"La dificultad no debe ser un motivo para desistir sino un estímulo para continuar"

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Grandes esperanças - Charles Dickens

GRANDES ESPERANÇAS CHARLES DICKENS Charles dickens nasceu em Portsmouth em 7 de fevereiro de 1812, o segundo de oito filhos. Começou a publicar pequenas crônicas em vários periódicos, que foram reunidas posteriormente em Sketches by Boz [Esboços de Boz]. The Pickwick Papers [Papéis de Pickwick] foi publicado em 1836-7 e, após um início tímido, tornou-se um fenômeno editorial; e os personagens de Dickens, o centro de um culto popular. Começou com Oliver Twist em 1837, seguido por Nicholas Nickleby (1838-9) e The Old Curiosity Shop [Loja de Antiguidades] (1840-41). Tendo concluído Barnaby Rudge (1841), ele viajou para os Estados Unidos. Suas experiências ficaram registradas em American Notes [Notas americanas] (1842). Martin Chuzzlewit (1843-4) não repetiu o sucesso de seus predecessores, mas isso não tardou a ser compensado pela enorme popularidade dos Livros de Natal, o primeiro dos quais, A Christmas Carol [Canção de Natal], foi publicado em 1842. Entre 1844 e 1846, Dickens viajou para o exterior e, na Suíça, iniciou Dombey and Son [Dombey e filho] (1846-8). Este e David Copperfield (1849-50) eram mais sérios no tema e planejados com mais cuidado que seus primeiros romances. Nas obras tardias, como Bleak House [A casa sombria] (1852-3) e Little Dorrit [A pequena Dorrit] (1855-7), a crítica social de Dickens tornou-se mais radical; e seu humor, mais feroz. Em 1850, ele fundou o hebdomadário Household Words, sucedido por All the Year Round em 1859; neles publicou Hard Times [Tempos difíceis] (1854), A Tale of Two Cities [Um conto de duas cidades] (1859) e Grandes esperanças (1860-61). Sua saúde ficou abalada na década de 1860, e o esforço físico das leituras públicas iniciadas em 1858 acelerou-lhe o declínio. Sem concluir o último romance, The Mystery of Edwin Drood [O mistério de Edwin Drood], Dickens faleceu no dia 9 de junho de 1870. Sua morte causou grande consternação pública, e ele foi sepultado no Poet’s Corner da Abadia de Westminster. Paulo henriques britto nasceu no Rio de Janeiro em 1951. Poeta, contista, ensaísta, professor e um dos principais tradutores brasileiros da língua inglesa, formou-se em Português e Inglês pela puc-Rio. É professor de tradução, criação literária e literatura brasileira na puc-Rio, onde também defendeu mestrado em língua portuguesa. Em 2002, recebeu o título de Notório Saber na mesma instituição. Como poeta, estreou em 1982, com Liturgia da matéria. Depois, vieram os volumes de poesia Mínima lírica (1989) , Trovar claro (Prêmio Alphonsus de Guimaraens da Fundação Biblioteca Nacional, 1977) , Macau (Prêmio Portugal Telecom , 2004) e Tarde (2007). Publicou também os contos Praísos artificiais (2004) e Eu quero é botar meu bloco na rua (2009), sobre a música de Sérgio Sampaio. Já traduziu cerca de cem livros, entre eles volumes de poesia de By ron, Elizabeth Bishop e Wallace Stevens, e romances de William Faulkner ( O som e a fúria), Ian McEwan (Reparação), Philip Roth (O animal agonizante), V. S. Naipaul (Uma casa para o sr. Biswas ), Thomas Py nchon (O arco-íris da gravidade) e Don DeLillo (Submundo). Recebeu o Prêmio Paulo Rónai da Fundação Biblioteca Nacional (1995) pela tradução de A mecânica das águas (Companhia das Letras), de E.L. Doctorow. david trotter é professor Quain de língua e literatura inglesas na University College London. Entre seus livros, figuram Circulation: Defoe, Dickens and the Economies of the Novel (1988) e The English Novel in History 1895-1920 (1993). charlotte mitchell é professora de inglês na University College London. Foi coeditora de Edwardian Fiction: An Oxford Companion (1997). Sumário Introdução — David Trotter Nota sobre o texto GRANDES ESPERANÇAS Notas Cronologia do autor — Stephen Wall Apêndice Leituras complementares Aviso aos que leem o livro pela primeira vez: esta Introdução revela detalhes do enredo. Introdução david trotter Grandes esperanças é a obra mais contida de um escritor que não costuma ser conhecido por sua contenção; é “absolutamente perfeita”, segundo George Bernard Shaw, e suas qualidades decorrem do que ela tem de compacto. Questões de peso permeiam todo o romance, de todos os lados, deixando marcas em cada detalhe de descrição, cada lance da narrativa. À medida que vamos lendo, acompanhamos por dentro, por assim dizer, as formas que elas moldaram por fora. Tudo aquilo que o romance tem a dizer sobre a bondade, sobre a culpa e o desejo, sobre a natureza do capitalismo — e nenhuma dessas questões poderia ser deixada de lado numa introdução ao livro — ele o faz pela maneira como mede a pressão de cada uma e como lhes distribui os pesos. Assim, ainda que queiramos explorar suas incertezas e contradições, e desenvolver seus contextos, devemos também, no final das contas, estar dispostos a simplesmente apreciar o resultado. “Foi a última grande obra do autor”, comentou Swinburne; “os defeitos são quase tão imperceptíveis quanto manchas no sol ou sombras num mar ensolarado.”1 A característica mais imediata de Grandes esperanças é ser uma história de redenção moral. O protagonista, um órfão criado num lar humilde, nas primeiras décadas do século xix, herda uma fortuna, e imediatamente rejeita os familiares e os amigos. Quando a fortuna perde o brilho, e depois desaparece por completo, ele é obrigado a assumir sua própria ingratidão, e aprende a amar o homem que o elevou e também o destruiu. A história é narrada pelo próprio protagonista, e ao elaborar essa narrativa na primeira pessoa Dickens enfrentou um desafio duplo. Era preciso fazer com que Pip parecesse sincero ao confessar seus defeitos, para que os leitores não imaginem que ele os admite apenas para conquistar-lhes a simpatia. E era preciso validar a redenção de Pip mostrando que ela gera não apenas belas palavras, mas também bons atos. Numa análise meticulosa do tom da narrativa, Christopher Ricks demonstra que ela funciona porque é tão franca quanto se pode desejar, sem jamais se comprazer com a própria franqueza.2 Sua notável agilidade é particularmente visível na passagem em que Pip descreve seus sentimentos quando fica sabendo da visita próxima de seu velho amigo e protetor, o ferreiro Joe Gargery. “Não com prazer, embora tantos vínculos me unissem a ele; não; com muita perturbação, uma certa mortificação e uma intensa sensação de incongruência. Se eu pudesse mantê-lo afastado pagando uma determinada quantia, certamente o teria feito.” (p. 309.) A segunda frase, em particular, é de fato implacável, sem fazer alarde de sua própria implacabilidade. Trata-se de um tom difícil de manter, e — como demonstra Ricks — nem sempre Dickens consegue fazê-lo. Há momentos em que Pip carrega um pouco demais na automortificação, e momentos em que ele parece pedir desesperadamente nossa aprovação. De modo geral, porém, ele é rigoroso consigo mesmo no grau exato para ser convincente. A prova da redenção de Pip está nos seus bons atos, e não em suas belas palavras: seus rasgos secretos de generosidade, quando possibilita a Herbert tornar-se sócio da Clarricker’s e quando convence a sra. Havishman dos méritos do sofrido Matthew Pocket; quando, no final das contas, recusa-se a aceitar dinheiro da sra. Havisham ou de Magwitch; e, acima de tudo, quando demonstra seu amor por Magwitch. O último desses atos de bondade, e o mais difícil de autenticar para o autor, torna-se intensamente vívido graças a uma sutil modificação da técnica narrativa. Isso se dá no volume iii, capítulo 15, quando Pip tenta ajudar Magwitch a fugir num barco no Tâmisa. É a única passagem em todo o romance em que a narrativa em primeira pessoa não focaliza os pensamentos de Pip — por mais honestos que sejam — sobre si próprio, e sim volta-se atentamente para os outros, e para o desenrolar dos acontecimentos.3 Uma tensão permeia a narrativa nas descrições das docas e do rio, mas trata-se de uma ansiedade ou um estado de alerta geral, e não o autocentramento de Pip, justificado ou não, que até então dominou a narrativa. O amor que Pip sente por Magwitch depois de sua captura é, portanto, um conhecimento conquistado por meio da submissão do eu ao outro. Sem dúvida, Pip tem pecados a expiar, em particular sua ingratidão para com Joe e Biddy, e a repulsa inicial que lhe inspira Magwitch. Mas sua consciência de culpa parece ser sempre excessiva em relação ao mal causado: menos um reconhecimento crescente dos defeitos morais do que uma afinidade misteriosa e profunda com o crime. Essa afinidade torna-se explícita quando, aguardando a chegada de Estella no escritório das diligências, Pip mata o tempo acompanhando Wemmick numa visita à prisão de Newgate. Consumi todo esse tempo pensando como era estranho que eu estivesse sempre envolvido por essa nódoa de prisão e crime; que, na minha infância, nos nossos charcos solitários numa noite de inverno, eu a houvesse encontrado pela primeira vez; que ela tivesse reaparecido em duas ocasiões, começando como uma nódoa desbotada, mas não desaparecida; que, desta nova maneira, ela impregnasse minha fortuna e minha ascensão (p. 366). Pip vê o crime não como um defeito moral, mas como uma predisposição psicológica, até mesmo genética: uma nódoa que tudo engloba. Julian Moy nahan propõe que a melhor maneira de abordar esse pressuposto é analisar a relação de Pip não com Magwitch, mas com Orlick, o ajudante de Joe Gargery que se torna assassino.4 Orlick é a sombra de Pip. Vemo-lo pela primeira vez trabalhando ao lado de Pip na ferraria. Quando a sra. Joe é brutalmente atacada, quem a ataca é Orlick, mas pode-se dizer que foi Pip quem lhe deu a arma: um grilhão. Pip é chamado para distrair a sra. Havisham; Orlick, algum tempo depois, torna-se porteiro dela. Pip vê Biddy como uma irmã; as intenções de Orlick com relação a ela são menos louváveis. Pip associa-se a Magwitch, e Orlick ao inimigo mortal de Magwitch, Compey son. Orlick, em suma, parece também ter lá suas grandes esperanças, acompanhando com ressentimento a ascensão de Pip, do charco à Casa Satis e por fim a Londres. Pip não consegue livrar-se dessa sombra obscena. No volume iii, capítulo 14, Orlick atrai Pip até uma cabana abandonada no charco, com intenção de não apenas matá-lo, mas também atormentá-lo com suas acusações. Ele afirma que Pip o prejudicou ao longo de toda sua vida. Mas a acusação que ele faz com mais convicção é a de que Pip é o verdadeiro responsável pela morte da sra. Joe, muito embora ele próprio, Orlick, a tenha golpeado. “‘Mas não foi o velho Orlick que fez a coisa, foste tu. Tu eras favorecido, e ele vivia levando descompostura e apanhando. O velho Orlick levava descompostura e apanhava, não é? Agora vais pagar por isso. Tu o fizeste, e agora vais pagar’.” (p. 580.) Orlick, que atacou a sra. Joe com intenção de matá-la, atribui a Pip, que lhe forneceu a arma sem querer, a responsabilidade pelo crime. Essa fantasiosa inversão de responsabilidades nos permite reconhecer em Orlick o duplo de Pip. Dickens sabia que sempre há obstáculos a vencer para se concretizarem grandes esperanças, e que às vezes é preciso usar de meios violentos para vencê-los. A sra. Joe, por não ver nada de positivo em Pip, era um obstáculo para suas grandes esperanças. Era necessário que ela fosse eliminada. E, no entanto, Pip, que inocentemente pensa que terá realizações e status sem que precise fazer qualquer esforço, não consegue livrar-se dela. Orlick realiza as fantasias de vingança de Pip. “‘Tu o fizeste, e agora vais pagar’.” A culpa é um reconhecimento da fantasia. Não admira que Pip, quando tem notícia da morte da irmã, de saída presuma que de algum modo seja responsável. Há outros obstáculos em seu caminho, como o tio Pumblechook, que jamais perde uma oportunidade de tratá-lo com condescendência ou negar-lhe qualquer mérito. Orlick também castiga Pumblechook, liderando um bando de ladrões que saqueiam sua loja, bebem seu vinho, puxam-lhe o nariz e enchem-lhe a boca com sementes de flores. Como Pumblechook só ofendeu Pip, sem propriamente prejudicá-lo, a vingança é menos severa; mas o tom é mesmo de vingança, como deixa claro o prazer com que Joe relata o evento (p. 632). Porém há obstáculos fora do alcance de Orlick, que exigem os serviços de um segundo duplo (o duplo de um duplo, talvez): Bentley Drummle. Drummle é uma cópia de Orlick, só que pertence à classe dominante. Como Orlick, é poderoso, moreno, incapaz de se expressar e impulsivo. Como Orlick, ele vive à espreita. Tendo Estella rejeitado o amor de Pip, Drummle casa-se com ela, e depois lhe dá surras. Os dois homens desaparecem da narrativa depois que realizam sua função, executando as fantasias de vingança que Pip jamais assume. Assim, talvez Pip tenha outros motivos para se sentir culpado, além da ingratidão. Ele, porém, associa a culpa não a acontecimentos específicos, e sim a uma sensação geral de mal-estar que o atormenta desde pequeno. A aparição de Magwitch no cemitério coincide com sua primeira impressão da “identidade das coisas” (p. 34). Pip sente esse mal-estar desde que começa a ter sentimentos. Mas até mesmo essa primeira impressão é, sob certos aspectos, uma segunda impressão. Ela assinala o momento não em que ele “descobre”, e sim em que ele descobre “com certeza” (o grifo é meu) que o charco era o charco, o rio era o rio, e assim por diante. Magwitch não é exatamente uma coisa nova, e sim uma coisa arrancada de uma paisagem que Pip habita desde que nasceu. “Um homem que havia afundado na água, e chafurdado na lama, e torcido o pé nas pedras, e se cortado nas pederneiras, e se espetado nas urtigas, e se rasgado nas urzes; que mancava, e estremecia, e rosnava; e que me olhava com olhar feroz, estalejando os dentes enquanto me agarrava pelo queixo” (p. 34). Magwitch é uma atmosfera, uma condição, não um dilema moral. Ele logo volta para o lugar de onde veio. Junto ao rio há um patíbulo, do qual pendem algumas correntes às quais outrora um pirata foi preso. Após esse primeiro encontro, Pip vê Magwitch ir embora “mancando em direção a esse patíbulo, como se fosse o pirata redivivo, que dele tendo descido agora voltava, para lá se pendurar outra vez” (p. 38). No capítulo 2, conhecemos a irmã de Pip, a sra. Joe Gargery , a qual, tendo-o criado “com a mão”, não precisa que ninguém a convença de que ele é um criminoso nato. Para ela, já é muito difícil ser esposa de um ferreiro (“e de um Gargery inda por cima”), quanto mais ser uma mãe para Pip (p. 41). O ressentimento constante da sra. Joe já convenceu Pip há muito tempo de que ele sempre foi um criminoso. A culpa redespertada de modo intenso pelo surgimento de Magwitch é um sentimento que lhe é bem familiar. Assim, ele volta ao charco com uma consciência duplamente “oprimida” no capítulo 3. A criminalidade, representada pelo forçado, é e sempre foi uma condição física, de imundície e fome, que a qualquer momento pode envolvê-lo, mas que pode também ser anulada por um ato de bondade. Alguma coisa estalou em sua garganta, como se ele tivesse dentro dele um mecanismo como o de um relógio, que estivesse prestes a dar a hora. E ele passou a manga rude e rasgada nos olhos. Apiedando-me de seu desamparo, e vendo-o atacar aos poucos o pastelão, criei coragem de dizer: “Que bom que o senhor gostou”. “Falaste?” “Eu disse que bom que o senhor gostou.” “Obrigado, meu menino. Gostei, sim.” (p. 53.) Por um momento, tem-se a impressão de que Dickens vai se tornar conivente — com a ênfase um pouco excessiva de “manga rude e rasgada” — com a autocomiseração avassaladora de Magwtich, com a irmanação sentimental na culpa. Mas a firmeza admirável de “atacar” — uma versão abrutalhada da refeição a que assistimos no capítulo seguinte na casa dos Gargery — possibilita a clareza moral da conversa que se segue: só muitos anos depois Pip vai conseguir manifestar gratidão de maneira tão espontânea. Esse intervalo de clareza, porém, serve apenas para reforçar a desolação geral. Desde o início, a nódoa da prisão e a do crime grudam em Pip, como a lama e a umidade do charco. Antes de surgirem suas grandes esperanças, a expectativa de Pip é que lhe vão mostrar que ele já cometeu algum crime. Trata-se de uma expectativa voltada para o passado, sobre a volta do passado no futuro, o retorno do reprimido. Muitas razões já foram propostas para esse sentimento de culpa desproporcional, entre elas o egoísmo e a masturbação.5 Mas é necessário que haja sempre um motivo para a culpa? Dickens, imagino, estava mais interessado na insistência da culpa do que na sua etiologia. Grandes esperanças, ao que parece, é uma história de revisão cognitiva — Pip descobre que seu benfeitor é Magwitch e não a sra. Havisham — o que leva a uma revisão moral: “Eu via nele apenas um homem que fora muito melhor do que eu fora para com Joe” (p. 606). Mas os termos em que se dá essa revisão cognitiva fazem com que sua eficácia seja muito duvidosa. A tarefa a ser enfrentada por Pip é a de substituir uma fada madrinha por um forçado que fugiu do degredo; ou, como observa Michal Peled Ginsburg, substituir o mundo do desejo pelo mundo da culpa. O capítulo 8, que relata a primeira ida de Pip à Casa Satis, enfatiza de modo brutal a diferença entre esses dois mundos. Diz Ginsburg: “Se o encontro com Magwitch repete uma sensação de culpa tão velha quanto a vida e a própria consciência, o encontro com Estella e a sra. Havisham é o nascimento de um novo conceito de eu: ele marca a primeira percepção do eu como deficiente, como definido pela falta, e portanto sujeito ao desejo”.6 Pip toma consciência, pela primeira vez, de que suas mãos são grosseiras e suas botas são pesadas. O anseio criado nesse momento dirige-se tanto a Estella quanto ao status social. É porque ele vivencia um novo sentimento na Casa Satis, e não a repetição de um sentimento antigo, que Pip identifica suas grandes esperanças com a sra. Havisham e Estella. “Foi para mim um dia memorável, pois ocasionou grandes mudanças em mim” (p. 121), ele relembra. A cena no volume ii, capítulo 11, em que o empregado de Trabb debocha cruelmente das roupas novas e dos novos ares de Pip, capta perfeitamente a sensação de estranheza do eu, criada pelo desejo. Não tenho palavras para exprimir a indignação e a mortificação que o empregado de Trabb me proporcionou quando, passando a meu lado, ele levantou o colarinho da camisa, retorceu os cabelos, pôs uma mão na cintura e, com um sorriso afetadíssimo, sacudindo os cotovelos e o corpo, rosnou para seus acompanhantes: ‘Não conheço ’ocês, não conheço ’ocês, juro por Deus que não conheço ’ocês!’ (p. 344.) Como G. K. Chesterton observou, George Eliot ou Thackeray saberiam descrever tão bem quanto Dickens a humilhação de Pip, mas não o “vigor” do empregado de Trabb, o tom de vingança irreprimível e necessária.7 A culpa, porém, insiste. Cada encontro com um objeto cintilante de desejo é precedido por uma manifestação de criminalidade. Jaggers vem anunciar as grandes esperanças, no volume i, capítulo 18, logo após uma conversa sobre um assassinato na taberna Três Barqueiros Alegres. Quando vai visitar a sra. Havisham e Estella, no volume ii, capítulo 9, Pip se vê na diligência sentado entre dois presidiários. Enquanto espera Estella, no capítulo 14, Pip faz uma visita a Newgate, onde fica a meditar sobre a “nódoa de prisão e crime” que tudo engloba. Os dois mundos se cruzam. A narrativa constantemente aponta para — e desse modo, talvez, qualifica — a substituição da sra. Havisham por Magwitch. Pip aprende a amar Magwitch. Aprende também que no encalço do desejo vem sempre a culpa; no do que gostaríamos de ser, aquilo que não podemos deixar de ser. O primeiro gesto de gratidão de Magwitch é enviar a Pip certa quantia através de um forçado que já ganhou a liberdade: “duas notas gordas e suadas, que pareciam ter gozado da maior intimidade com todos os mercados de gado do condado” (p. 129). Depois que Magwitch volta da Austrália, Pip, ainda supondo que a fonte de sua fortuna seja a sra. Havisham, tenta devolver-lhe o dinheiro. Ele ficou a olhar-me quando pus a carteira sobre a mesa e abri-a, e ficou a olhar-me enquanto eu separava as duas notas de uma libra. Eram limpas e novas, e eu desdobrei-as e entreguei-as a ele. Sempre olhando para mim, o homem colocou-as uma sobre outra, dobrou-as no sentido do comprimento, torceu-as, queimou-as no lampião e pôs as cinzas na bandeja. (p. 437.) Pip pensa que, substituindo as notas velhas e sujas por cédulas limpas e novas, seja possível dissociar-se de uma vez por todas da “nódoa de prisão e crime” que até agora sempre o envolveu. Mas não é assim tão fácil, como Magwitch sente-se obrigado a fazê-lo ver, separar o mundo da culpa do mundo do desejo. Essa cena mostra, de modo silencioso e eficaz, o terrível despertar de Pip para a realidade de sua situação. Também diz algo a respeito da natureza da riqueza: dinheiro limpo não existe. A sujeira radical daquelas notas gordas e suadas de uma libra sugere que examinemos, além do tumulto emocional e moral de Pip, as ideias sobre o processo social e econômico que Dickens já vinha expressando desde cerca de quinze anos antes de escrever Grandes esperanças, tanto em seus romances quanto em Household Words , o semanário que utilizava a partir de 1850 para divulgar suas ideias. Reconhece-se há muito tempo que sua atuação como reformador social tornou-se mais extensa e sistemática na década de 1840, e que os romances da última fase incorporam esse seu novo comprometimento. “Em Pickwick papers”, observa Humphry House, “um cheiro ruim era um cheiro ruim; em Our mutual friend é um problema.”8 O cheiro das notas de uma libra é um cheiro problemático. Durante a Grande Exposição de 1851, Dickens e Richard Horne escreveram um artigo publicado em Household Words que contrastava as maravilhas do Palácio de Cristal com o que havia de antiquado na mostra de artefatos chineses que ocorreu no mesmo evento. “É muito curioso ver uma exposição de um povo que parou no tempo, sabe-se lá quantos séculos atrás, ao lado da exposição de um mundo em movimento.” Para os autores, Inglaterra e China representavam os extremos de progresso e reação, movimento e estagnação: “A Inglaterra, cultivando relações comerciais com todo o mundo; a China, mantendo-se fechada em si própria, tanto quanto possível”. A Inglaterra comunica-se com o mundo e prospera. Sua prosperidade depende do “intercâmbio”, um fluxo constante de produtos e informações dentro de suas fronteiras e com os outros países. A China encerra-se em si mesma, recusando o intercâmbio, bloqueando o fluxo de produtos e informações. Comparar a China com a Inglaterra é comparar o “estancamento” com o “progresso”.9 Os chineses, em suma, ainda não tinham descoberto as vantagens do Livre Comércio, uma doutrina que triunfara na Inglaterra desde a abolição das Corn Laws em 1846.* Dickens e Horne insistiam que os tóris, que em 1851 ainda não se haviam desvinculado da bandeira do protecionismo, estavam tentando transformar o país numa segunda China. Household Words defendia a expansão máxima do livre-câmbio por todo o mundo. Um artigo atacava a Companhia da Baía do Hudson** por impedir que fossem exploradas as terras sob seu controle, desse modo “impedindo o avanço do trabalho e do capital”. Para o autor, era como se a empresa tivesse colocado uma imensa placa com os dizeres “Proibida a passagem” em rios e estradas (07/01/1854). Quando Dickens e seus associados falavam em estancamento, tinham em mente algo bem concreto: haviam sido bloqueados os canais através dos quais deveriam fluir os produtos e as informações. Era o fluxo de dinheiro, acima de tudo, segundo outro autor, que garantia que o intercâmbio comercial seguiria em frente “sem solavancos incômodos nem paradas súbitas” (17/05/1856). Quando Dickens e W. H. Wills visitaram o Banco da Inglaterra, eles admiraram “o coração poderoso do capital ativo, por cujas artérias e veias flui todo o meio circulante desta grande nação” (06/07/1850). Era a metáfora da circulação sanguínea, a metáfora básica da análise da riqueza no século xviii, que exprimia a admiração de Dickens pela “grande nação” em que ele vivia. Em 1850, ele ainda acreditava que a riqueza podia ser saudável: uma riqueza medida em notas de uma libra, finas, frescas, sem cheiro. Não estaríamos reduzindo de modo absurdo a visão política de Dickens se disséssemos que ele era a favor da circulação e contra o estancamento, e que não tinha medo algum da aplicação literal dessa metáfora à existência cotidiana. Para ele, a vida do pobre só se tornaria suportável se houvesse uma circulação apropriada de ar e água em suas moradias. Causavam-lhe repulsa o estancamento físico, os espaços cercados e congestionados no centro da cidade, como o mercado de Smithfield, ou os cemitérios urbanos (1117 cadáveres por acre, segundo Household Words, emitindo 55,261 pés cúbicos de gases mefíticos por acre por ano).*** Dickens escreveu um artigo atacando violentamente o mercado de Smithfield, afirmando que representava um grande estorvo e perigo para o público, além de crueldade para os animais (04/05/1850). Pip, recémchegado a Londres, visita o mercado, “e aquele lugar vergonhoso, todo coberto de imundície, gordura, sangue e escuma, pareceu grudar-se em mim” (p. 240). A gordura, sangue e escuma que contaminavam as notas de uma libra que lhe deram quando menino agora contaminam sua pessoa. A esclerose ameaça as artérias e veias através das quais o capital ativo outrora fluía livremente. Os romances da última fase associam um ponto de estancamento a outro, de modo metafórico e metonímico. Esses pontos são ao mesmo tempo intercambiáveis e contíguos. Pip livra-se da gordura e da escuma de Smithfield entrando numa rua que o leva às imediações da prisão de Newgate, lugar que, por sua vez, também gera sua quota de gordura e escuma. No volume ii, capítulo 13, enquanto Pip espera por Estella, Wemmick leva-o à prisão, na qual encontram “um homem corpulento, empertigado” cujo chapéu tem a superfície “ensebada e gordurenta, como caldo de carne frio” (p. 363). É significativo que, ao falar com esse homem, Wemmick adote, pela primeira e única vez, a fala agressiva de Bucket, personagem de Bleak house, e de Pancks, em Little Dorrit: “‘Não, não’, disse Wemmick, imperturbável, ‘o senhor não se importa’” (p. 364). A função de Bucket e Pancks é resolver os mistérios que envolvem os principais protagonistas, e ambos adquiriram o hábito de pôr palavras na boca dos outros como método de extrair-lhes informações. Também Wemmick faz o possível para obter informações que possam revelar o paradeiro do vilão Compey son. Mas nisso ele não tem muito sucesso, e há em Grandes esperanças — ao contrário do que ocorre em Bleak house e Little Dorrit — certa consciência de que os mistérios não podem ser resolvidos, ou que só podem ser resolvidos numa catástrofe. É uma catástrofe, naturalmente, que resolve o mistério da sra. Havisham. Esta personagem, que preserva a si própria e sua casa exatamente como eram no dia em que foi abandonada, é a imagem mais impressionante do estancamento em todo o romance. “Era tão imutável aquela casa velha e poeirenta, a luz amarela no quarto escurecido, a aparição murcha na cadeira diante do espelho da penteadeira, que me dava a impressão de que, quando os relógios foram parados, também o Tempo parara naquele lugar misterioso, e embora fora dela tudo se tornasse mais velho, eu inclusive, ali nada mudava” (p. 189). A sra. Havisham, como observa Susan Walsh, fechou não apenas a si própria mas também a cervejaria do pai, e assim repudiou “o papel do capital econômico e corpóreo da mulher dentro do sistema empresarial da família”.10 Perambulando pelos prédios abandonados, Pip encontra “uma selva de barris vazios, em torno dos quais ainda pairava uma lembrança azeda de dias melhores; mas era azeda demais para ser tomada como amostra da cerveja que não havia mais — e, sob esse aspecto, esses reclusos, assim me pareceu, eram semelhantes à maioria dos reclusos” (p. 110). A proprietária da cervejaria certamente deve ser incluída entre esses “reclusos” que azedaram além da conta. Quando a sra. Havisham, instigada por Pip, ajuda Herbert Pocket a se tornar sócio da firma, ela reassume até certo ponto seu papel de investidora nas empresas da família, e assim dá sua contribuição à circulação do capital. Dickens ainda permite essas reconstruções do processo econômico em pequena escala, mas temos a impressão de que são pequenas demais, e chegam tarde demais. Há quem afirme que Grandes esperanças exprime uma forte nostalgia pelas certezas sociais e morais da ferraria de Joe Gargery, à qual Pip retorna, no capítulo final, após a derrocada e reconstrução parcial de sua fortuna. Até certo ponto, isso é verdade. Pois o cenário a que Pip retorna oferece nada menos do que a reconstituição da família como meio de compreensão social e moral. No início do romance, somos apresentados a uma família inautêntica e disfuncional: Joe e a sra. Joe, um casal infeliz, que não tem filhos; o órfão Pip, deslocado em qualquer lugar; e o tio Pumblechook, que se autonomeia protetor de Pip, porém abusa dessa função para intimidar o menino e arrogar-se méritos inexistentes. Quando Pip finalmente volta à ferraria, após onze anos no estrangeiro, ele constata que essas posições têm agora, em sua maioria, novos ocupantes. Lá, fumando seu cachimbo no lugar de sempre junto à lareira, saudável e forte como sempre, ainda que um pouco grisalho, estava Joe; e lá, encurralado no canto da cozinha pela perna de Joe, sentado no meu banquinho, olhando para o fogo, estava… eu de novo! “A gente deu a ele o nome de Pip em tua homenagem, meu velho”, disse Joe, muito contente, quando me sentei em outro banco ao lado do menino (mas não lhe despenteei o cabelo), “e a gente espera que ele fique um pouco como ti quando crescer, e a gente acha que ele vai ficar, sim.” Eu também pensava assim, e saí para caminhar com ele na manhã seguinte, e conversamos muitíssimo, compreendendo um ao outro à perfeição (p. 651). Joe continua a ser o mesmo de sempre, no lugar de sempre ao pé da lareira. Biddy assumiu o lugar da sra. Joe; seu filho, o de Pip; e Pip, o de Pumblechook. Trata-se, é claro, de um Pumblechook benévolo, que não despenteia o cabelo do sobrinho. A família foi reconstituída. Não é, porém, a família de Pip. Nela ele não desempenha nenhum papel, senão o do benfeitor ocasional. Para ele, voltar à ferraria é impossível. Esta cena é a última palavra do romance sobre as vantagens e desvantagens do progresso, individual ou coletivo. É tão poderosa a sensação de conclusão nele expressa que são pequenas as implicações do encontro subsequente de Pip com Estella. O romance é elegíaco, sem dúvida; mas não crê na possibilidade de voltar ao paraíso perdido. Por mais compacta que fosse a forma com que Dickens se havia comprometido, e por mais equilibrada que fosse sua visão do progresso individual e coletivo, Dickens não conseguiu resistir de todo a uma manifestação de euforia pequena e inteiramente gratuita. Ele quase nunca perdia uma oportunidade de inserir, em seus romances, pequenos grupos de ociosos, cuja despreocupação absoluta contradiz do modo mais enfático a industriosidade que motiva não apenas os personagens principais mas também o próprio romancista. No volume i, capítulo 8 de Grandes esperanças, Pip passa a noite antes de sua primeira visita à sra. Havisham na casa de Pumblechook, numa cidade vizinha, onde ocorre uma feira. É a única vez que ele o faz, e sua estada lá não serve para outra coisa que não nos fornecer uma imagem da loja de Pumblechook e da rua principal. Nessa mesma oportunidade, verifiquei que o sr. Pumblechook, ao que parecia, realizava seu trabalho olhando para o seleiro do outro lado da rua, enquanto o seleiro parecia cumprir suas tarefas sempre de olho no segeiro, o qual parecia passar a vida com as mãos enfiadas nos bolsos olhando para o padeiro, o qual, por sua vez, ficava de braços cruzados olhando para o merceeiro, que, parado à porta de sua loja, bocejava olhando para o boticário (p. 98). A câmara de comércio parece ter se transformado numa câmara de inércia. Mas a cena contém também outro grupo de ociosos. A única pessoa que trabalha na rua é o relojoeiro, “sempre sentado a uma pequena mesa, examinando um mecanismo com uma lupa no olho, e sempre examinado por um grupo de homens de guarda-pó que o viam através do vidro de sua vitrine” (p. 98). A repetição irônica de “examinar” capta de modo perfeito a ociosidade desses ruminantes inofensivos, tão diferentes, em sua inércia e bisbilhotice, do sinistro Orlick. Esses guarda-pós descrevem um arco por sobre praticamente toda a carreira de Dickens e apontam para a multidão reunida diante da casa do magistrado à qual Pickwick e seus seguidores foram levados, no capítulo 25 de Pickwick papers. Esses ociosos estão tão desesperados para saber o que está se passando, e tão indignados com a falta de informações, que expressam seus sentimentos “chutando o portão e tocando a campainha, por uma ou duas horas”. É quase como se representassem os leitores impacientes do romance. Mas a busca do significado não leva todos os que estão na multidão à mesma atividade frenética. Três ou quatro “felizardos”, tendo encontrado uma grade no portão da qual se tinha “uma vista desimpedida para o nada”, ficam a olhar por ela com uma “perseverança incansável”. Essa perseverança, creio eu, é uma crítica à curiosidade: eles sabem que nada vai sair de uma vista para o nada. Os guardapós de Grandes esperanças fornecem uma vista de alguma coisa, mas bem poderia ser do nada, pois eles nada extraem do que veem. Também essa perseverança incansável, a meu ver, constitui uma crítica da curiosidade, no ponto em que o romance hesita por um momento antes de chegar à Casa Satis e à busca implacável do significado que lá terá início. * Leis que visavam a proteger os produtores de cereais no Reino Unido da concorrência das importações mais baratas, de 1815 a 1846. (n. t.) ** Fundada em 1670 e ainda hoje em existência, controlava boa parte do comércio de peles no Canadá. (n. t.) *** Em termos métricos: 2793 cadáveres por hectare, emitindo 3,913 metros cúbicos de gases por ano. (n. t.) Nota sobre o texto Dickens começou a escrever Grandes esperanças em setembro de 1860, e sua ideia inicial era publicar a obra em vinte seções mensais. No início de outubro, porém, preocupado com a queda da circulação de sua revista semanal, All the Year Round, que estava veiculando um romance de Charles Lever, A day’s ride , resolveu lançar seu próprio livro nela. Essa decisão levou-o a redimensionar a obra: apesar de lançar trechos semanalmente, Dickens continuou, enquanto escrevia, a agrupar os capítulos do livro em seções mensais, nove ao todo: três para cada volume da primeira edição. O primeiro trecho semanal saiu em All the Year Round em 1o de dezembro de 1860, e o último em 3 de agosto de 1861. Em forma de livro, o romance foi lançado em três volumes em julho de 1861, pela Chapman and Hall. Em novembro de 1862 saiu uma edição em volume único, que continha, entre outras mudanças menores, uma mudança importante na última linha do texto, que foi perpetuada na maioria das edições subsequentes, inclusive na “edição Charles Dickens” de 1868. Antigamente se julgava que essa edição representasse a revisão cautelosa feita pelo autor, e por isso ela foi usada como base para muitas edições posteriores; hoje, porém, não é mais considerada a referência final. A edição inglesa em que se baseia esta tradução foi preparada a partir de um exemplar da primeira edição de 1861, da biblioteca de Londres. Foram corrigidas algumas gralhas e inseridas algumas das emendas encontradas no manuscrito, propostas por Margaret Cardwell em sua edição do romance (Oxford: Clarendon Press, 1993). Agradeço aos curadores do Wisbech and Fenland Museum a permissão para examinar os manuscritos e publicar uma transcrição das anotações de trabalho de Dickens no Apêndice B desta edição. Os interessados na história da escrita e publicação de Grandes esperanças devem consultar a edição de Cardwell, que contém uma detalhada análise da complexa série de discrepâncias entre o manuscrito, o texto editado como folhetim na revista de Dickens, All the Year Round, entre 1o de dezembro de 1860 e 3 de agosto de 1861, as diversas provas das revistas existentes, as edições em seções e em livro nos Estados Unidos de 1861, a primeira edição em três volumes de julho de 1861 e as edições de 1862, 1863, 1864, 1865 e 1868. No Apêndice A temos o final do romance tal como foi concebido por Dickens originariamente. O Apêndice B reproduz algumas de suas anotações de trabalho. Grandes esperanças Afetuosamente dedicado a Chauncy Hare Townshend1 volume i 1 Sendo o sobrenome de meu pai Pirrip, e meu nome de batismo Philip, quando menino minhas tentativas de pronunciar os dois nomes não resultavam em nada mais longo nem mais explícito do que Pip. Por isso passei a denominar-me Pip, e assim vim a ser chamado. Digo que Pirrip era o sobrenome de meu pai com base na sua lápide e na minha irm㠗 a sra. Joe Gargery, que se casou com o ferreiro. Como jamais vi meu pai nem minha mãe, e nunca vi retrato deles (pois que viveram muito antes do tempo das fotografias),1 minhas primeiras fantasias a respeito de sua aparência se fundavam, de modo nada razoável, nas suas lápides. A forma das letras na lápide de meu pai me inspirou a estranha ideia de que ele teria sido um homem quadrado, robusto, moreno, com cabelos negros crespos. A partir do aspecto e fraseado da inscrição, “Também Georgiana Esposa do Acima ”, extraí a conclusão infantil de que minha mãe era sardenta e doente. Cinco pequenos losangos de pedra, cada um com cerca de meio metro de comprimento, dispostos numa fileira ordenada ao lado da sepultura dos dois, e dedicados à memória de cinco irmãozinhos meus — que desistiram de tentar viver excepcionalmente cedo nesse conflito universal — me inspiraram a convicção, à qual me apegava com fervor religioso, de que todos eles haviam nascido de costas, com as mãos nos bolsos das calças, e de lá jamais as tiraram neste estado da existência. Nossa região era o charco junto ao rio,2 a uma distância, onde o rio fazia curva, de trinta quilômetros do mar. Minhas primeiras impressões vívidas e abrangentes da identidade das coisas, creio eu que as vivenciei numa memorável tarde fria e úmida, já perto do anoitecer. Nessa ocasião descobri com certeza que aquele lugar lúgubre, coberto de urtigas, era o campo-santo; e que Philip Pirrip, paroquiano de lá, e também Georgiana, esposa do acima, estavam mortos e enterrados; e que Alexandre, Bartholomew, Abraham, Tobias e Roger, filhos pequenos dos dois, também estavam mortos e enterrados; e que o descampado escuro e plano que se estendia além do campo-santo, pontuado por diques e outeiros e porteiras, com algumas cabeças de gado esparsas a pastar, era o charco; e que a linha plana e cor de chumbo mais além era o rio; e que aquele pasto selvagem e longínquo de onde vinha o vento era o mar; e que o serzinho estremecendo de medo de tudo isso, e começando a chorar, era Pip. “Para com esse barulho!”, gritou uma voz terrível, e um homem veio vindo por entre as sepulturas ao lado do alpendre da igreja. “Fica quieto, seu diabrete, senão eu te corto a garganta!” Um homem assustador, com uma roupa grosseira toda cinzenta, com um grande ferro na perna.3 Um homem sem chapéu, e com sapatos rasgados, e com um trapo velho amarrado em torno da cabeça. Um homem que havia afundado na água, e chafurdado na lama, e torcido o pé nas pedras, e se cortado nas pederneiras, e se espetado nas urtigas, e se rasgado nas urzes; que mancava, e estremecia, e rosnava; e que me olhava com olhar feroz, estalejando os dentes enquanto me agarrava pelo queixo. “Ah! Não me corte a garganta, senhor”, implorei apavorado. “Por favor, não faça isso, senhor.” “Diz o teu nome!”, ordenou o homem. “Depressa!” “Pip, senhor.” “De novo”, disse o homem, olhando-me fixamente. “Fala!” “Pip. Pip, senhor!” “Mostra onde tu moras”, disse o homem. “Aponta pro lugar!” Indiquei a direção de nossa aldeia, na margem plana do rio, em meio a amieiros e árvores podadas, a quase dois quilômetros da igreja. O homem, tendo me olhado por um momento, virou-me de cabeça para baixo e esvaziou-me os bolsos. Neles não havia nada além de um pedaço de pão. Quando a igreja se endireitou — pois ele foi tão repentino e forte que a fez virar de ponta-cabeça diante de mim, e vi o campanário debaixo de meus pés —, quando a igreja se endireitou, como eu dizia, dei por mim sentado numa lápide alta, tremendo, enquanto ele devorava o pão com avidez. “Filhote de cachorro”, disse o homem, lambendo os beiços, “tuas bochecha é bem gorducha.” Creio que eram mesmo gordas, embora na época eu fosse um menino pequeno para minha idade, e nada forte. “Ora se eu não comia elas”, disse o homem, sacudindo a cabeça de modo ameaçador, “e posso muito bem comer, mesmo!” Manifestei enfaticamente a esperança de que ele não fizesse tal coisa, e agarrei-me com mais força à lápide em que ele me colocara; em parte para não cair dela, em parte para não chorar. “Escuta aqui!”, disse o homem. “Que é da tua mãe?” “Ali, senhor!”, apontei. Ele assustou-se, correu um pouco, parou e olhou para trás. “Ali, senhor!”, expliquei, tímido. “Também Georgiana. É a minha mãe.” “Ah!”, ele exclamou, voltando. “E aquele ali ao lado da tua mãe é o teu pai?” “Sim, senhor”, respondi, “paroquiano de cá.” “Ah!”, ele murmurou então, pensativo. “Tu vives com quem — se é que eu vou ser bonzinho e te deixar viver, coisa que ainda não decidi?” “Minha irmã, senhor — a senhora Joe Gargery — mulher de Joe Gargery, o ferreiro, senhor.” “Ferreiro, é?”, disse ele. E olhou para a própria perna. Depois de olhar feroz para a perna e para mim algumas vezes, aproximou-se de minha lápide, segurou-me pelos dois braços e inclinou-me para trás até onde pôde fazê-lo, de modo que pudesse me olhar nos olhos do modo mais penetrante, enquanto os meus olhavam para os dele, impotentes. “Escuta aqui”, disse ele, “o negócio é saber se te deixo viver ou não. Tu sabes o que é uma lima de ferro.” “Sei, sim, senhor.” “E sabes o que é comida.” “Sei, sim, senhor.” Depois de cada pergunta, ele me inclinava um pouco mais, de modo a acentuar minha sensação de impotência e perigo. “Me traz uma lima.” Inclinou-me outra vez. “E me traz comida.” Inclinoume outra vez. “Me traz as duas coisa.” Inclinou-me outra vez. “Senão eu te ranco o coração e o figo.” Inclinou-me outra vez. Eu estava terrivelmente assustado, e tão tonto que me agarrei a ele com as duas mãos, dizendo: “Se o senhor por favor parar de me entortar, pode ser que eu não fique enjoado, e preste mais atenção no senhor”. Ele me virou ao contrário com toda a força, de modo que a igreja pulou por cima de seu próprio cata-vento. Então me segurou pelos braços, de cabeça para cima, sobre a lápide, e continuou, ameaçador: “Me traz amanhã, de manhã bem cedo, a lima e a comida. Leva tudo pra mim, na velha bateria4 acolá. Faz isso e não ouses dizer uma palavra a ninguém, nem dar a entender que encontraste uma pessoa como eu, nem pessoa nenhuma, que aí eu te deixo viver. Se não fizeres o que mando, ou se desviares do que eu te digo, por pouco que seja, teu coração e teu figo vai ser arrancado, assado e comido. Olha, eu não estou sozinho não, ao contrário do que podes estar pensando. Tem um rapaz escondido comigo, e em comparação com esse rapaz eu sou um anjo. Esse rapaz está ouvindo tudo que eu digo. Esse rapaz tem um jeito secreto que só ele sabe de pegar um garoto, e rancar o coração dele, e o figo dele. Não adianta tentar se esconder desse rapaz. O garoto pode trancar a porta, se enfiar na cama quentinha, se embrulhar todo nas coberta, puxar elas até cobrir a cabeça, crente que está muito confortável e bem protegido, mas aí esse rapaz entra sem fazer barulho, chega até ele e rasga ele ao meio. Eu estou no momento impedindo esse rapaz de fazer mal a ti, com muita dificuldade. É muito difícil impedir esse rapaz de te rasgar ao meio. E então, o que me dizes?” Eu disse que ia lhe trazer a lima, e os restos de comida que conseguisse pegar, e viria a seu encontro na bateria de manhã cedinho. “Diz que Deus te mate mortinho se não fizeres isso!”, disse o homem. Obedeci, e ele me pôs no chão. “Pois então”, insistiu, “lembra do que foi combinado, e lembra daquele rapaz, e vai pra casa!” “Bo-boa noite, senhor”, gaguejei. “Boa uma ova!”, exclamou, correndo a vista pela planície fria e úmida. “Eu queria ser um sapo. Ou então uma enguia!” Enquanto abraçava o próprio corpo, que tremia, com os dois braços — apertando com força, como para não se desmanchar — seguia mancando até a mureta da igreja. Fiquei a vê-lo, contornando com cuidado as urtigas, por entre as sarças que cingiam os montículos verdes, e a meus olhos de criança ele dava a impressão de estar se esquivando das garras dos defuntos, que esticavam os braços cautelosos de suas sepulturas, para lhe agarrar o tornozelo e puxá-lo para dentro. Chegando à mureta, passou por cima dela, como um homem cujas pernas estão dormentes e duras, e depois se virou para me procurar. Quando vi que ele se virava, voltei-me na direção de minha casa, e corri o mais depressa que pude correr. Mas pouco depois olhei para trás e vi que ele voltava para os lados do rio, ainda a abraçar-se com os dois braços, pondo com cuidado os pés feridos entre as pedras grandes postas aqui e ali no charco, para servirem de passadeiras quando chovia forte, ou quando subia a maré. O charco era apenas uma longa linha horizontal negra quando parei para tentar encontrá-lo; e o rio não passava de mais uma linha horizontal, bem menos larga e menos negra; e o céu, só um feixe de linhas longas de um vermelho colérico, entremeadas com faixas negras e densas. Na margem do rio eu divisava, com dificuldade, os dois únicos vultos negros em toda a paisagem que pareciam estar em posição vertical; um deles era o farol que orientava os marinheiros — parecia um barril sem aros no alto de um poste — uma coisa feia quando vista de perto; o outro, um patíbulo onde pendiam umas correntes, no qual outrora fora enforcado um pirata. O homem seguia mancando em direção a esse patíbulo, como se fosse o pirata redivivo, que dele tendo descido agora voltava, para lá se pendurar outra vez. Esse pensamento fez-me muito mal; e, ao ver os bois levantando as cabeças e olhando para o homem, perguntei a mim mesmo se eles também teriam a mesma impressão. Corri a vista à minha volta, temendo deparar com o rapaz terrível, e não vi nenhum sinal dele. Porém, como estava com medo de novo, fui para casa correndo sem parar. 2 Minha irmã, a sra. Joe Gargery, era mais de vinte anos mais velha que eu, e granjeara grande reputação junto a si própria e à vizinhança por ter me criado “com a mão”.1 Sendo, na época, obrigado a descobrir por conta própria o significado da expressão, e sabendo que sua mão era dura e pesada, e que ela tinha o hábito de usá-la com frequência contra o marido e contra mim, concluí que tanto eu quanto Joe Gargery tínhamos sido criados com a mão. Não era uma mulher bonita, a minha irmã; e tinha eu a impressão geral de que ela havia obrigado Joe Gargery a casar-se com ela com a mão. Joe era um homem claro, com cachos de cabelo cor de palha dos dois lados do rosto liso, e olhos de um azul tão indeciso que pareciam de algum modo misturar-se com os brancos à sua volta. Era um homem tranquilo, bondoso, bem-humorado, de fácil trato, simplório e amável — uma espécie de Hércules2 em força, e também na fraqueza. Minha irmã, a sra. Joe, de cabelos e olhos negros, tinha uma pele tão vermelha que por vezes eu ficava a imaginar se era possível que ela se lavasse com um ralador de noz-moscada em vez de sabão. Era alta e ossuda, e quase sempre usava um avental grosseiro, amarrado a sua pessoa com dois laços atrás, e tendo um peitilho quadrado inexpugnável à frente, cheio de agulhas e alfinetes cravados. Parecia-lhe um grande mérito seu, e uma grave acusação contra Joe, o fato de que ela usava tanto esse avental. Se bem que não consigo entender por que motivo ela o usava: ou por que, se o usava, não poderia tirá-lo, todos os dias de sua vida. A ferraria de Joe ficava ao lado de nossa casa, que era de madeira, como eram muitas das casas de nossa região — a maioria delas, na época. Quando cheguei correndo do campo-santo, a ferraria estava fechada, e encontrei Joe a sós na cozinha. Sendo eu e Joe companheiros de infortúnio, trocávamos confidências, e ele me fez uma confidência tão logo levantei a tranca da porta e pela fresta olhei para ele, sentado no canto da chaminé. “A senhora Joe já saiu umas doze vezes, à tua procura, Pip. E está lá fora outra vez, completando uma dúzia de frade.”3 “É mesmo?” “É, sim, Pip”, disse Joe, “e o pior é que ela levou o pau-de-cosca.” Diante dessa terrível informação, fiquei a torcer o único botão de meu colete, olhando com muito desânimo para o fogo. O pau-de-cócega era um pedaço de bengala com cera na ponta, já liso de tanto me fazer cócegas no couro. “Ela sentou”, disse Joe, “e levantou, e garrou no pau-de-cosca, e saiu espumando. Foi o que ela fez”, disse Joe, lentamente abrindo espaço para o fogo entre as barras inferiores com o atiçador, e olhando para ele: “Saiu espumando, Pip.” “Ela já saiu há muito tempo, Joe?” Eu sempre o tratava como uma espécie maior de criança, e como um igual. “Bom”, ele respondeu, olhando de relance para o relógio alemão,4 “ela saiu espumando, da última vez, há coisa de cinco minuto, Pip. Lá vem ela! Te esconde atrás da porta, meu velho, e fica atrás da toalha rolante.” Segui seu conselho. Minha irmã, a sra. Joe, escancarando a porta, e encontrando um obstáculo atrás dela, de imediato adivinhou a causa, e valeu-se do pau-de-cócega para investigar. Terminou jogando-me — eu amiúde lhe servia de projétil conubial — em cima de Joe, o qual, satisfeito por se apoderar de mim, mesmo dessa maneira, me pôs dentro da chaminé e discretamente protegeu-me com sua perna enorme. “Adonde que te enfiaste, macaquinho?”, disse a sra. Joe, batendo com o pé no chão. “Me diz logo o que andaste fazendo pra me matar de preocupação e aflição, senão eu te tiro desse canto, mesmo que fosses cinquenta Pips, e houvesse quinhentos Gargery s na frente.” “Fui só lá no campo-santo”, respondi, de meu banquinho, chorando e me esfregando. “Campo-santo!”, repetiu minha irmã. “Se não fosse eu, já tinhas ido parar no campo-santo há muito tempo, e de lá não saías. Quem que te criou com a mão?” “A senhora”, respondi. “E por que foi que eu fiz isso, me diz, hein?”, exclamou minha irmã. Choraminguei: “Não sei”. “Eu é que não sei!”, retrucou minha irmã. “Nunca que eu fazia isso de novo! Isso eu sei. Com toda certeza, nunca que tirei esse meu avental desde que nasceste. Como se não bastasse ser mulher de ferreiro (e de um Gargery inda por cima), inda fui ser tua mãe.” Meus pensamentos se desviaram dessa questão enquanto meus olhos desconsolados contemplavam o fogo. Pois o fugitivo lá no charco, com o ferro na perna, o rapaz misterioso, a lima, a comida e o horrível juramento que eu fizera, comprometendo-me a cometer um furto contra o lar que me servia de abrigo, surgiam diante de mim nas brasas vingativas. “Ah!”, exclamou a sra. Joe, recolocando o pau-de-cócega em seu devido lugar. “Campo-santo, ora, essa é boa! Vocês dois falando de campo-santo.” Um de nós, aliás, não havia tocado no assunto. “Vocês dois, um dia desses, ainda vão me fazer parar no campo-santo, e quero só ver o que será dessa bela dupla sem mim!” Enquanto ela cuidava dos apetrechos do chá, Joe olhou de esguelha para mim por cima da perna, como se estivesse mentalmente nos somando os dois, eu e ele, e calculando que dupla haveríamos de fazer, nas lamentáveis circunstâncias antevistas. Em seguida, ficou a cofiar os cachos e as suíças cor de palha do lado direito, e acompanhando a sra. Joe com os olhos azuis, como sempre fazia em momentos de tempestade. Minha irmã tinha um modo vigoroso de cortar pão com manteiga para nós, que nunca variava. Primeiro, com a mão esquerda apertava o pão com força contra o peitilho — onde por vezes nele se cravava um alfinete, e por vezes uma agulha, que depois terminava em nossas bocas. Depois pegava um pouco de manteiga (não muita) com a faca e espalhava-a no pão, como um boticário preparando um emplastro5 — usando os dois lados da faca com uma destreza abrupta, aparando e aplainando a manteiga em torno da côdea. Então dava um último golpe preciso com a faca na beira do emplastro, e em seguida cortava um pedaço bem grosso do pão: o qual, por fim, antes de separá-lo do resto do pão, ela serrava ao meio, dando a Joe uma das metades e a mim a outra. Na ocasião em questão, embora estivesse com fome, não ousei comer minha fatia. Julgava eu que era necessário guardar alguma coisa para meu terrível conhecido e seu aliado mais terrível ainda, o rapaz. Eu sabia que a sra. Joe era muito minuciosa quanto aos gastos da família, e que se eu explorasse o cofre talvez não encontrasse nada. Por isso resolvi enfiar minha fatia de pão com manteiga na perna de minha calça. O esforço de determinação necessário para atingir esse objetivo foi, conforme verifiquei, terrível. Era como se eu tivesse de me obrigar a saltar do telhado de uma casa alta, ou mergulhar em águas muito profundas. E tudo se tornava mais difícil por não estar Joe a par do que acontecera. Na nossa maçonaria de companheiros de infortúnio, já mencionada, e numa atitude de camaradagem simpática, tínhamos o hábito de comparar, todas as noites, a maneira como mordíamos nossas fatias, exibindo-as em silêncio para a admiração mútua, de vez em quando, o que nos incentivava a empreender novos esforços. Naquela noite, Joe várias vezes me convidou, exibindo sua fatia cada vez menor, a participar de nossa costumeira competição amistosa; porém a cada vez ele deparava com minha caneca amarela de chá num dos joelhos e minha fatia intacta de pão com manteiga no outro. Por fim, concluí em desespero que era preciso fazer o que havia de ser feito, e que devia fazê-lo da maneira menos improvável compatível com as circunstâncias. Aproveitei-me de um momento em que Joe tinha acabado de olhar para mim e enfiei o pão na perna da calça. Joe, sem dúvida, estava preocupado com o que julgou ser minha perda de apetite, e deu em sua fatia uma mordida que pareceu não lhe dar prazer. Revirou o bocado na boca por muito mais tempo do que era seu costume, pensando profundamente, e no fim engoliu-o como se fosse uma pílula. Ia dar mais uma mordida, e já havia posicionado a cabeça em um dos lados do pão para abocanhá-lo com jeito, quando olhou para mim e percebeu que minha fatia havia desaparecido. O espanto e a consternação com que Joe se deteve no instante antes de morder e ficou a olhar para mim eram evidentes demais para que minha irmã não os observasse. “O que foi, agora?”, indagou ela, vigorosa, pondo a xícara na mesa. “Ora, o que é isso!”, murmurou Joe, sacudindo a cabeça para mim numa repreensão muito séria. “Pip, meu velho! Isso vai te fazer mal. Há de ficar entalado em algum lugar. Não é possível que tenhas mastigado, Pip.” “O que foi, agora?”, repetiu minha irmã, com mais vigor ainda que antes. “Se conseguires botar para fora, Pip, recomendo-te que o faças”, disse Joe, assustado. “Boas maneiras é importante, mas saúde é saúde.” A essa altura, minha irmã estava desesperada, e assim avançou sobre Joe e, pegando-o pelas duas suíças, bateu-lhe a cabeça por algum tempo contra a parede atrás dele; enquanto isso, no meu canto, eu assistia à cena, cheio de culpa. “Agora, quem sabe, vais me dizer o que houve”, falou minha irmã, ofegante, “estafermo de uma figa.” Joe olhou-a, impotente; depois deu uma mordida impotente, e voltou a olhar para mim. “Sabes, Pip”, disse Joe, muito sério, com a última bocada na bochecha, e falando num tom confidencial, como se nós dois estivéssemos a sós, “somos sempre amigos, tu e eu, e eu seria a última pessoa a te delatar, em qualquer ocasião. Mas…” — ele mudou de posição a cadeira e olhou para o trecho de chão entre nós dois, e depois voltou a olhar para mim — “… engolir tudo assim sem mastigar!” “Então ele anda engolindo a comida sem mastigar, é?”, exclamou minha irmã. “Tu sabes, meu velho”, disse Joe, olhando para mim, e não para a sra. Joe, com o bocado ainda na bochecha, “eu também fazia isso, quando tinha a tua idade — fazia muito — e quando menino conheci muitos que fazia a mesma coisa; mas nunca vi nada igual ao que fizeste, Pip, e não sei como não morreste entalado.” Minha irmã saltou sobre mim e me fisgou pelos cabelos, dizendo apenas as palavras terríveis: “Vem tomar o remédio”. Algum médico sem alma havia restituído o prestígio medicinal da água alcatroada,6 e a sra. Joe sempre tinha uma provisão da substância em seu armário, pois acreditava que suas virtudes eram tão grandes quanto era horrendo seu gosto. Na melhor das hipóteses, fazia-me ingerir uma quantidade tamanha desse elixir, tido como tônico excelente, que depois eu percebia que estava exalando um cheiro de cerca recém-erigida. Na noite em questão, a urgência de meu caso exigia meio litro dessa mistura, que foi despejada em minha goela, para meu maior conforto, enquanto a sra. Joe segurava minha cabeça debaixo do braço, como quem prende uma bota numa descalçadeira. Joe se safou com apenas um quarto de litro; porém foi obrigado a tomar a mistura (muito a contragosto, lentamente a mastigar e meditar diante da lareira), “porque ele estava com um achaque”. Do meu ponto de vista, eu diria que sem dúvida ele teve um achaque depois, ainda que nada tivesse antes. A consciência é uma coisa terrível quando ela acusa um homem ou um menino; mas quando, no caso de um menino, esse ônus secreto coopera com outro ônus secreto enfiado na perna de suas calças, o resultado (como posso testemunhar) é um tremendo castigo. O pensamento culposo de que eu iria roubar a sra. Joe — jamais pensei que ia roubar Joe, pois nunca encarei os objetos da casa como propriedade dele — associado à necessidade de manter sempre uma das mãos no pão com manteiga, estando eu sentado ou realizando alguma tarefa na cozinha, quase me enlouqueceu. Então, quando os ventos que vinham do charco atiçaram o fogo, imaginei que ouvia a voz lá fora, a voz do homem com ferro na perna, que me obrigara a jurar manter segredo, afirmando que ele não podia e não queria morrer de fome esperando até amanhã, porém precisava da comida agora. Em outros momentos, eu pensava: e se o rapaz, que com tanta dificuldade ele impedia de sujar as mãos com o meu sangue, cedesse a sua impaciência constitucional, ou se enganasse a respeito do combinado e julgasse ter direito a meu coração e meu fígado naquela noite, e não no dia seguinte? Se alguma vez alguém ficou com o cabelo em pé de terror, certamente terei sido eu. Mas talvez isso jamais tenha acontecido com ninguém. Era noite de Natal, e eu tinha que ficar a mexer o pudim para o dia seguinte no tacho de cobre, das sete às oito pelo relógio alemão. Tentei mexer com o tacho em cima da perna (o que me fez pensar outra vez no homem com o ferro na perna) e verifiquei que era impossível fazê-lo com o pão com manteiga querendo a toda hora escapulir pela boca da calça. Felizmente, consegui sair de fininho e guardar esse pedaço de minha consciência na água-furtada que me servia de quarto. “Que foi isso?”, exclamei, quando, tendo terminado de mexer o pudim, estava a me aquecer no canto da chaminé antes de ser mandado para a cama. “Foi tiro de canhão, Joe?” “Ah!”, disse Joe. “Mais um forçado que se escafedeu.” “O que quer dizer isso, Joe?”, perguntei. A sra. Joe, que sempre assumia as explicações, disse, irritada: “Fugiu. Fugiu”. Administrando a definição como se fosse água alcatroada. Estando a sra. Joe debruçada sobre sua costura, formei as palavras com a boca em silêncio olhando para Joe: “O que é forçado?”, Joe formou com a boca as palavras de uma resposta tão complicada que a única coisa que entendi foi: “Pip”. “Ontem um forçado escapou”, disse ele em voz alta, “depois do tiro do pôr do sol. E deram outro tiro pra anunciar a fuga dele. E agora, parece que estão anunciando mais outra.” “Quem é que está atirando?”, perguntei. “Diabo de menino”, interveio minha irmã, fechando a cara para mim sem interromper o trabalho, “não para de fazer pergunta. Não faças perguntas que não lhe dirão mentiras.” Ela não estava sendo muito delicada consigo própria, pensei, dando a entender que mentiria para mim se eu lhe fizesse perguntas. Mas ela nunca era delicada, a menos que estivesse em presença de visitas. A essa altura, Joe em muito aumentou minha curiosidade dando-se o trabalho de escancarar a boca ao máximo, e formar uma palavra que me pareceu ser “esgana”. Naturalmente, apontei para a sra. Joe, e formei a palavra “ela?”. Mas Joe sacudiu a cabeça com veemência, e mais uma vez escancarou a boca, formando com ela uma palavra muito enfática. Mas não consegui entender que palavra seria. “Senhora Joe”, arrisquei, como último recurso, “eu queria saber — se a senhora não se incomodar — de onde vêm esses tiros?” “Deus abençoe esse menino!”, exclamou minha irmã, num tom que parecia exprimir o sentimento contrário. “Das presigangas.”7 “Ah!”, disse eu, olhando para Joe. “As presigangas!” Joe repreendeu-me com uma tosse cujo sentido era: “Eu não te disse?” “E, por favor, o que é presiganga?” “Com esse menino é sempre assim!”, exclamou minha irmã, apontando para mim com a agulha e a linha, e sacudindo a cabeça. “A gente responde uma pergunta, e ele faz mais uma dúzia na mesma hora. As presigangas são naviosprisões, do outro lado do chaco.” Era esse o nome que sempre dávamos ao charco, na nossa região. “Quem será que mandam pra esses navios-prisões, e por que será que fazem isso?”, perguntei eu, uma pergunta de caráter geral, com um desespero contido. Foi demais para a sra. Joe, que imediatamente se levantou. “Eu vou te dizer uma coisa, rapazinho”, disse ela, “eu não te criei com a mão pra ficares a maçar a vida dos outros. Desse jeito o que fiz não merece elogio, e sim censura. Mandam pras presigangas quem mata, e quem rouba, e quem frauda, e quem faz tudo que é errado; e quem faz essas coisas sempre começa fazendo pergunta. Já pra cama!” Nunca me deixavam levar uma vela para ir até a cama, e, enquanto subia a escada no escuro, com a cabeça latejando — por efeito do dedal da sra. Joe, que nela tocara pandeiro como acompanhamento de suas palavras finais — tive a impressão preocupante de que as presigangas eram muito práticas para gente como eu. Sem dúvida, meu destino era lá. Eu começara fazendo perguntas, e agora ia roubar a sra. Joe. Desde aquele tempo, já muito distante agora, com frequência me ocorre o pensamento de que poucas pessoas sabem quantos segredos guardam as crianças sob o impacto do terror. Não importa que o terror seja ilógico, desde que terror seja. Inspirava-me um terror mortal o rapaz que queria meu coração e meu fígado; e também o meu interlocutor com ferro na perna; e também eu mesmo, que fora obrigado a fazer uma promessa tremenda; não tinha eu esperança de me salvar através de minha irmã todo-poderosa, que me repelia a cada passo; tremo de pensar no que eu teria sido capaz de fazer, se me mandassem, sob o impacto de meu terror secreto. Se dormi aquela noite, foi para imaginar-me descendo o rio numa forte maré de sizígia, até chegar às presigangas; um pirata espectral gritou para mim através de um porta-voz, quando passei pelo patíbulo, que era melhor eu ir me enforcar logo de uma vez, em vez de adiar o inevitável. Eu temia adormecer, mesmo que tal fosse possível, pois sabia que assim que o dia começasse a raiar seria obrigado a saquear a despensa. Não havia como fazê-lo à noite, pois era impossível acender o fogo com um atrito suave8 na época; para tal seria necessário usar pederneira e aço, o que faria tanto barulho quanto o pirata a chocalhar suas correntes. Tão logo o grande manto de veludo negro do lado de fora de minha pequena janela começou a tingir-se de cinza, levantei-me e desci; cada tábua do caminho, e cada rachadura em cada tábua, gritava atrás de mim: “Pega ladrão!” e “Acorde, senhora Joe!”. Na despensa, que estava muito mais bem abastecida do que de costume, por ser Natal, fiquei muito assustado com uma lebre dependurada pelas patas, a qual me deu a nítida impressão, quando fui lhe dar as costas, de ter piscado o olho. Não havia tempo para nenhuma verificação, para escolhas, para coisa alguma, pois eu corria contra o relógio. Roubei um pouco de pão, um pedaço de casca de queijo, cerca de meio pote de recheio de torta* (que guardei numa trouxa feita com meu lenço, junto com minha fatia de pão da véspera), um pouco de brande de uma garrafa de pedra (que eu verti dentro de uma garrafa de vidro em que, secretamente, eu preparara uma bebida inebriante, sumo de alcaçuz,9 no meu quarto: compensando o brande roubado com água tirada de uma jarra no armário da cozinha), um osso com muito pouca carne nele, e um belo pastelão de porco, redondo e compacto. Por um triz não saí sem o pastelão, porém senti-me tentado a subir até uma prateleira, para ver o que fora guardado com tanto cuidado num prato de cerâmica, coberto, num canto, lá encontrei o pastelão e o peguei, na esperança de que a intenção fosse consumi-lo mais tarde, e que, portanto, não se desse por sua falta por algum tempo. Havia na cozinha uma porta que dava direto para a ferraria; destranquei-a e levantei a retranca, e peguei uma lima em meio às ferramentas de Joe. Depois fechei tudo tal como estava antes, abri a porta pela qual eu entrara na véspera, quando voltei correndo para casa, fechei-a e saí correndo em direção ao charco nevoento. * Recheio de torta: no original, mincemeat, mistura de frutas secas, passas, cravo, canela, noz-moscada, brande (isto é, conhaque, às vezes substituído por rum) e outros ingredientes, além de carne moída e banha bovina, para servir de recheio de tortas servidas no Natal. (n. t.) 3 Era uma manhã de geada, muito úmida. Eu vira a umidade do lado de fora de minha janelinha, como se um duende tivesse ficado ali a noite inteira a chorar, usando a janela à guisa de lenço. Agora eu a via nas sebes desfolhadas e na grama rala, formando como que teias de aranha de uma espécie mais grosseira, pendendo de graveto a graveto e de folha a folha. Em cada grade e portão a umidade formava uma camada grudenta; e a névoa do charco era tão espessa que a placa de madeira do poste que indicava a direção da nossa aldeia — uma direção que ninguém tomava, pois ninguém jamais ia lá — só se tornou visível para mim quando fiquei bem embaixo dela. Então, quando levantei a vista para a placa, que pingava, ela tomou forma na minha consciência oprimida como um espectro que me sentenciava às presigangas. A névoa ficou mais pesada ainda quando penetrei o charco, de modo que, em vez de eu correr em direção às coisas, tudo parecia correr em minha direção. Essa sensação era muito desagradável para um espírito cheio de culpa. As porteiras e diques e barrancos surgiam-me de repente em meio à névoa, como se gritassem de modo perfeitamente claro: “Um menino com um pastelão de porco que não é dele! Peguem esse menino!”. Os bois também surgiam diante de mim subitamente, olhando-me com seus olhos fixos, vapor saindo de suas narinas: “Ora essa, um ladrãozinho!”. Um boi preto, com uma gravata branca — o qual parecia à minha consciência despertada ter um ar clerical — fixou-me os olhos de modo tão obstinado, e girava a cabeçorra de maneira tão acusadora, que choraminguei para ele: “Não foi por querer, senhor! Não foi para mim que eu peguei!”. Quando então o animal baixou a cabeça, exalou uma nuvem de fumaça pelo nariz e desapareceu, com um coice e um floreio da cauda. Enquanto isso, eu me aproximava do rio; mas por mais depressa que caminhasse, não conseguia aquecer os pés, aos quais o frio úmido parecia estar pregado, tal como o ferro estava preso à perna do homem com quem eu ia me encontrar. Eu conhecia bem o caminho da bateria, pois já estivera lá uma vez, num domingo, com Joe, o qual, sentado num canhão velho, me dissera que quando eu fosse seu aprendiz,1 com contrato e tudo, nós haveríamos de fazer grandes patuscadas ali! Porém, na confusão da névoa, terminei me dando conta de que me desviara demais para a direita, e por isso tive que tentar voltar seguindo o rio, pela margem de pedras soltas acima da lama e estacas que traçavam o limite da maré. Caminhando com toda a pressa, tinha eu acabado de atravessar uma vala que sabia ser bem próxima à bateria, e subira o montículo do outro lado dela, quando vi o homem sentado à minha frente. Estava de costas para mim, de braços cruzados, a cabeça caída para a frente, pesada de sono. Julguei que o homem ficaria mais satisfeito se eu me aproximasse dele, com seu desjejum, de modo inesperado; assim fui chegando pé ante pé e toquei-o no ombro. No mesmo instante ele levantou-se de um salto, e não era o mesmo homem, e sim outro! E, no entanto, ele estava com a mesma roupa de pano cinzento grosseiro, e também tinha um ferro grande na perna, e estava manco, e rouco, e transido de frio, e era sob todos os aspectos igual ao outro homem; só que não tinha o mesmo rosto, e usava um chapéu de feltro chato, de aba larga e copa baixa. Tudo isso vi num momento, pois tive apenas um momento para ver: ele xingou-me, tentou golpear-me — um golpe fraco e confuso que não me atingiu e teve o efeito de fazê-lo tropeçar e quase cair — e depois saiu correndo pela névoa adentro, tropeçando duas vezes no caminho, até que o perdi de vista. “É o rapaz!”, pensei, sentindo meu coração disparar ao identificá-lo. Creio que teria sentido uma dor no fígado também, se soubesse onde ele ficava. Logo cheguei à bateria, e lá estava o homem certo — abraçando o próprio corpo e mancando de um lado para o outro, como se tivesse passado a noite inteira a abraçar-se e mancar sem interrupção — à minha espera. Ele estava mesmo com muito frio. Eu meio que esperava que a qualquer momento ele caísse duro diante de meus olhos, morto de frio. Havia também tanta fome em seu olhar que, quando lhe entreguei a lima e ele a depôs na grama, ocorreu-me que teria tentado comê-la se não tivesse visto minha trouxa. Não me virou de cabeça para baixo, dessa vez, para pegar o que eu tivesse, porém me deixou na posição normal enquanto eu abria a trouxa e esvaziava os bolsos. “O que tem nessa garrafa, menino?”, ele perguntou. “Brande”, respondi. Ele já estava enfiando o recheio de torta goela abaixo de um modo muito curioso — mais parecia um homem que estivesse guardando a comida em algum lugar com muitíssima pressa do que alguém comendo — porém interrompeu o processo para tomar um gole de bebida. Enquanto isso, estremecia de modo tão violento que era com dificuldade que conseguia manter o gargalo entre os dentes sem trincá-lo. “Acho que o senhor está com sezão”,2 disse eu. “Sou mais ou menos da tua opinião, menino”, disse ele. “Aqui é muito ruim”, prossegui. “O senhor tem dormido no chaco, e isso sempre dá sezão. E reumatismo também.” “Vou fazer meu desjejum antes que eles me pegue pra me matar”, disse ele. “Eu havia de comer mesmo que eles me fosse pendurar naquela forca acolá, logo adespois. Duvido que a sezão me derrube, sou capaz de apostar.” Ele devorava recheio de torta, osso, pão, queijo e pastelão de porco, tudo ao mesmo tempo: olhando desconfiado, enquanto comia, para a névoa que nos cercava, e a toda hora parando — parando até de mastigar — para escutar. Algum som ouvido ou imaginado, algum estalido no rio ou respiração de animal no charco, assustou-o, e ele disse de repente: “Tu não és um diabrete traiçoeiro? Não trouxeste ninguém junto contigo?” “Não, senhor! Ninguém!” “Nem mandaste ninguém não vir atrás?” “Não!” “Bom”, disse ele, “acredito em ti. Só mesmo sendo um filhote de cão feroz pra, pequeno como és, ajudar a caçar um rato desgraçado, já quase morto e jogado no lixo, como esse pobre rato desgraçado de mim!” Alguma coisa estalou em sua garganta, como se ele tivesse dentro dele um mecanismo como o de um relógio, que estivesse prestes a dar a hora. E ele passou a manga rude e rasgada nos olhos. Apiedando-me de seu desamparo, e vendo-o atacar aos poucos o pastelão, criei coragem de dizer: “Que bom que o senhor gostou”. “Falaste?” “Eu disse que bom que o senhor gostou.” “Obrigado, meu menino. Gostei, sim.” Muitas vezes eu vira um cão grande que tínhamos devorando seu alimento; e me dei conta então de que havia uma semelhança nítida entre a maneira de comer do cachorro e a dele. O homem dava mordidas fortes, intensas, súbitas, tal como o animal. Ele engolia, ou melhor, abocanhava, cada bocado, cedo demais e rápido demais; e olhava para os lados, para lá e para cá, enquanto comia, como se acreditasse haver o perigo, em todas as direções, de que alguém viesse lhe tomar o pastelão. De tal modo o perturbava essa possibilidade que ele não aproveitava direito a comida, pensei, nem suportaria ter algum comensal a seu lado sem ficar trincando os dentes para ele. Sob todos esses aspectos ele muito se assemelhava ao cão. “Acho que o senhor não vai deixar nada pra ele”, comentei, tímido; após um silêncio durante o qual hesitei, não sabendo se minha observação seria educada. “Lá de onde veio essa comida tem mais.” Foi a certeza desse fato que me levou a fazer a insinuação. “Deixar nada pra quem? Ele quem?”, disse meu amigo, parando de mastigar um pedaço de pastelão. “O rapaz. De quem o senhor falou. Que estava escondido com o senhor.” “Ah, ah!”, ele retrucou, com uma espécie de riso áspero. “Ele? Sei, sei! Ele não quer saber de comida.” “Ele me deu a impressão de que queria, sim”, disse eu. O homem parou de comer, e me encarou com uma atenção intensa e uma enorme surpresa. “Ele? Quando?” “Logo agora.” “Adonde?” “Ali”, respondi, apontando, “onde ele estava cochilando, e pensei que fosse o senhor.” O homem agarrou-me pelo colarinho e olhou-me de tal modo que comecei a achar que ele voltara a pensar na ideia de cortar-me a garganta. “Vestido tal como o senhor, sabe, só que com chapéu”, expliquei, trêmulo, “e… e…” — eu queria dizê-lo do modo mais delicado — “e com… a mesma razão pra querer uma lima emprestada. O senhor não ouviu o canhão ontem à noite?” “Então deram tiro mesmo!”, disse ele a si próprio. “Não entendo como o senhor pode ter dúvida”, retruquei, “pois nós ouvimos lá em casa, que é mais longe, e ainda por cima estávamos com as janelas fechadas.” “Ora, vê lá”, explicou ele, “quem está sozinho nesse descampado, com a cabeça tonta e a barriga vazia, morrendo de frio e fome, não faz outra coisa a noite toda que não ouvir tiro de canhão e gente gritando. Ouvir? Ele vê os sordado, de túnica vermelha iluminada pelos archote, vindo cercar o lugar onde ele está. Ouve chamar o número dele, ouvi gente provocando, ouve o barulho dos mosquete, ouve as ordem de ‘Preparar! Apontar! Bala nele, sordado!’, sente as mão agarrando — e não tem nada! Ora, essa noite mesmo eu vi um esquadrão de busca — vindo tudo em ordem, os desgraçado, marchando, marchando — vi bem uns cem. E os tiro! Ora, eu vi a bruma tremer com os tiro de canhão, adespois que já tinha clareado. — Mas esse homem” — ele falara até então como se tivesse esquecido a minha presença — “reparaste alguma coisa nele?” “O rosto dele estava muito machucado”, disse eu, relembrando algo que eu mal sabia que sabia. “Não aqui?”, exclamou o homem, batendo na face esquerda de modo impiedoso, com a mão aberta. “Isso, aí mesmo!” “Que é dele?” Enfiou o pouco de comida que restava no peito do casaco cinzento. “Mostra pra que lado que ele foi. Eu mato ele feito um cachorro. O diabo leve esse ferro na minha perna machucada! Me dá a lima, menino.” Apontei a direção onde a névoa havia ocultado o outro homem, e ele levantou a vista por um instante. Mas logo se escarrapachou na grama crescida e úmida, atacando o ferro com a lima como um louco, sem ligar para mim nem para sua própria perna, onde havia uma escoriação antiga e também sangue, mas que ele manipulava com brutalidade, como se ela fosse tão insensível quanto a lima. Ele voltara a me fazer muito medo, agora que estava possuído por aquela pressa feroz, e além disso eu tinha muito medo de prolongar aquela minha saída por mais tempo. Disse-lhe que tinha de ir embora, mas ele sequer percebeu, e assim julguei que o melhor a fazer era escapulir. Quando vi o homem pela última vez, ele estava debruçado sobre o joelho e limando com força o grilhão, murmurando imprecações impacientes dirigidas ao ferro e à perna. Quando ouvi o homem pela última vez, ao parar na névoa e aguçar os ouvidos, a lima continuava em ação. 4 Eu realmente imaginava que encontraria um policial na cozinha, esperando para levar-me preso. Porém, não apenas não havia policial algum, como também ninguém ainda se dera conta do furto. A sra. Joe estava ocupadíssima com os preparativos das festividades, e Joe fora instalado no degrau da porta da cozinha para não ir parar na pá de lixo — lugar onde seu destino sempre acabava por levá-lo mais cedo ou mais tarde, quando minha irmã estava a ceifar vigorosamente os soalhos de seu estabelecimento. “E onde foi que te enfiaste?” foi a saudação natalina da sra. Joe, quando eu e minha consciência nos fizemos presentes. Eu disse que tinha ido ouvir os cânticos de Natal. “Ah, bom!” observou a sra. Joe. “Podia ter sido coisa pior.” Quanto a isso, não havia dúvida, pensei. “Quem sabe, se eu não fosse mulher de ferreiro, e (o que é a mesma coisa) uma escrava que nunca tira o avental, eu também tinha ido ouvir as cantigas”, disse a sra. Joe. “Gosto bastante de cânticos de Natal, e é justamente por isso que eu nunca ouço nenhum.” Joe, que se havia aventurado a adentrar a cozinha atrás de mim, já que a pá de lixo tinha sido recolhida, passou as costas da mão no nariz com uma expressão conciliatória quando a sra. Joe lhe dirigiu um olhar faiscante, e, quando ela desviou a vista, em segredo cruzou os dois indicadores para mim, um gesto que entre nós queria dizer que a sra. Joe estava mal-humorada. Essa condição era seu estado natural, de modo que eu e Joe por vezes passávamos semanas a fio com os dedos na mesma posição que as pernas dos cruzados nos monumentos.1 Teríamos um almoço magnífico, que consistiria em um pernil de porco no vinagre com verduras e duas galinhas assadas recheadas. Uma bela torta tinha sido preparada na manhã da véspera (motivo pelo qual não se deu pela falta do recheio de torta que eu roubara), e o pudim já estava fervendo. Esses complexos preparativos justificavam que nosso desjejum fosse suspenso sem a menor cerimônia; “porque eu”, explicou a sra. Joe, “não quero saber de ninguém engolindo comida e se entupindo pra depois ter que lavar tudo, com tanta coisa pra fazer pela frente, ora essa!” Assim, nossas fatias foram dispostas na mesa, como se fôssemos dois mil soldados numa marcha forçada e não um homem e um menino em casa; e bebemos goles de leite com água, com expressões compungidas, de uma jarra posta no aparador. Nesse ínterim, a sra. Joe instalou cortinas brancas limpas, e um falbalá novo com padrão de flores em frente à chaminé larga para substituir o velho, e descobriu a saleta especial do outro lado do corredor, a qual jamais era aberta em qualquer outra ocasião, porém passava o resto do ano numa névoa fresca de folha de estanho, que se estendia até os quatro pequenos poodles brancos de louça no console da lareira, cada um com um focinho preto e um cesto de flores na boca, um igual ao outro. A sra. Joe era uma dona de casa asseadíssima, porém dominava a sutil arte de tornar sua limpeza mais desconfortável e insuportável do que a própria sujeira. Limpeza vem logo depois da santidade, e há pessoas que agem do mesmo modo quanto à sua religião. Minha irmã, de tão ocupada que estava, iria à igreja por procuração; ou seja, eu e Joe é que iríamos em seu lugar. Com suas roupas de trabalho, Joe era o típico ferreiro; endomingado, mais parecia um espantalho próspero do que qualquer outra coisa. Nessas ocasiões, nada que usava lhe caía bem nem parecia lhe pertencer; e tudo que usava o incomodava. Na ocasião festiva em questão, ao emergir de seu quarto, quando soaram os sinos alegres, Joe era a própria imagem da infelicidade, ostentando um traje completo de penitência dominical. Quanto a mim, creio que minha irmã imaginava que eu era um jovem criminoso que um parteiro da polícia havia detido (no dia de meu nascimento) e entregado a ela, para que lidasse comigo nos termos da majestade lesada da lei. Sempre fui tratado como se houvesse insistido em nascer, em oposição aos ditames da razão, da fé e da moral, e ignorando os argumentos de meus melhores amigos. Mesmo quando eu era levado para adquirir roupas novas, o alfaiate tinha ordens de fazêlas como se fossem uma espécie de reformatório,2 e que não me deixassem de modo algum ter a liberdade de usar meus membros. Assim, eu e Joe indo para a igreja certamente havíamos de formar um espetáculo comovente para espectadores compassivos. No entanto, o que eu sofria por fora não era nada em comparação com o que se passava em meu interior. Os terrores que me haviam dominado cada vez que a sra. Joe passava perto da despensa, ou saía da cozinha, só eram comparáveis ao remorso com que minha mente relembrava o que minhas mãos tinham feito. Sob o ônus de meu segredo malévolo, eu me perguntava se a Igreja teria poderes suficientes para me proteger da vingança do terrível rapaz, se eu o divulgasse àquela instituição. Estava convicto de que, quando fossem lidos os proclamas e o sacerdote dissesse “que fale agora!”, eu teria de me levantar e propor uma conversa reservada na sacristia. Não estou de modo algum certo de que não teria sido capaz de surpreender nossa pequena congregação com essa medida extrema, não fosse o fato de que era Natal e não domingo.3 O sr. Wopsle, o sacristão, vinha almoçar conosco; e também o sr. Hubble, o segeiro, com a sra. Hubble; e o tio Pumblechook (era tio de Joe, mas a sra. Joe se apropriara dele), um próspero comerciante de cereais que morava na cidade mais próxima, e que conduzia sua própria carruagem. O almoço estava marcado para uma e meia. Quando eu e Joe chegamos em casa, encontramos a mesa posta, e a sra. Joe vestida, e o almoço preparado, e a porta da frente destrancada (vivia trancada, em qualquer outra ocasião) para que os convidados entrassem, e tudo esplêndido. E, por enquanto, nada a respeito do roubo. Deu uma e meia, sem trazer nenhum alívio para meus sentimentos, e os convidados chegaram. O sr. Wopsle, portando um nariz romano e uma testa larga, calva e reluzente, tinha uma voz grave que lhe inspirava um orgulho descomunal; de fato, dava a entender que, se permitissem que ele lesse em voz alta, o pároco entraria em pânico; ele próprio confessava que, se a Igreja fosse “escancarada”, isto é, aberta para a concorrência, ele não estava certo de que não deixaria sua marca nela. Não estando “escancarada” a Igreja, ele era, como já disse, nosso sacristão. Porém seus améns eram tremendos; e quando lia o salmo — sempre dando o versículo completo — antes corria os olhos por toda a congregação, como se dissesse: “Vocês ouviram meu amigo lá de cima;4 por favor, digam-me o que acham do meu estilo!”. Fui abrir a porta para os convidados — fazendo de conta que para nós era habitual abrir aquela porta — primeiro para o sr. Wopsle, depois para o sr. e a sra. Hubble, e por fim para o tio Pumblechook. N. B. Eu não tinha permissão para chamá-lo tio, estando sujeito a castigos severíssimos. “Senhora Joe”, disse o tio Pumblechook: um homem grandalhão e lerdo, de meia-idade, de respiração pesada, com boca de peixe, olhos mortiços e parados e cabelos ruivos que ficavam espetados em sua cabeça, dando a impressão de que fora estrangulado quase até a morte e tinha acabado de recobrar os sentidos; “eu lhe trouxe, como presente de Natal — eu lhe trouxe, senhora, uma garrafa de xerez — e lhe trouxe, senhora, uma garrafa de vinho do Porto.” Todo Natal ele se apresentava, como se fosse uma novidade profunda, com exatamente as mesmas palavras, e carregando as duas garrafas como se fossem halteres. Todo Natal a sra. Joe respondia, tal como o fazia agora: “Ah ti-o Pumble- chook! Muita bondade sua!”. Todo Natal ele respondia, tal como o fazia agora: “A senhora merece. E então, estão todos patuscos, e como vai o nosso Meio-Tostão?”. A referência era a mim. Nessas ocasiões, almoçávamos na cozinha, e depois, na hora das frutas secas, laranjas e maçãs, nos transferíamos para a sala de visitas; mudança essa que muito se assemelhava à mudança de traje de Joe, das roupas de trabalho para as de domingo. Minha irmã estava excepcionalmente animada na ocasião em questão, e de modo geral derramava-se em gentilezas com a sra. Hubble mais do que com qualquer outro convidado. Lembro-me da sra. Hubble como uma mulherzinha de cabelos crespos e feições bem definidas, com um traje azul-celeste, que ocupava uma posição convencionalmente juvenil por ter desposado o sr. Hubble — não sei em que período remoto — quando era muito mais jovem que ele. Lembro-me do sr. Hubble como um velho durão, de ombros altos e costas recurvas, com uma fragrância de serragem, que andava com as pernas extraordinariamente afastadas uma da outra: tanto assim que, quando pequeno, eu sempre via uma grande extensão de campo aberto entre elas quando me deparava com ele subindo a rua. Em meio a tão boa companhia eu deveria sentir-me, mesmo que não tivesse tomado de assalto a despensa, como um impostor. Não por ter sido instalado num ângulo agudo da toalha da mesa, com a mesa no meu peito e o cotovelo pumblechookiano no meu olho, nem por não ter permissão para falar (eu não queria falar), nem por me regalarem com as pontas escamosas das coxas dos frangos e com aqueles recantos obscuros do porco de que o animal, quando vivo, tinha menos motivos para se orgulhar. Não; nada disso me importaria, se eles me deixassem em paz. Porém eles não me deixavam em paz. Parecia-lhes que estariam perdendo uma oportunidade se não conseguissem me tornar assunto da conversa, de vez em quando, e me alfinetar. Era como se eu fosse um pequeno touro infeliz numa arena espanhola, de tanto que me feriam essas aguilhoadas morais. Começou no momento em que nos sentamos para comer. O sr. Wopsle deu as graças com uma declamação teatral — em retrospecto, parecia um cruzamento religioso do fantasma do pai de Hamlet com Ricardo iii — e terminou com a aspiração muito apropriada de que fôssemos sinceramente gratos. Ao ouvir isso, minha irmã fixou o olhar em mim e disse, em voz baixa e em tom de reprovação: “Ouviste? Sê grato”. “Especialmente”, disse o sr. Pumblechook, “sê grato, menino, a quem te criou com a mão.” A sra. Hubble sacudiu a cabeça e, contemplando-me com o melancólico pressentimento de que eu haveria de terminar mal, perguntou: “Por que será que os jovens nunca são gratos?”. Esse mistério moral parecia estar além da compreensão dos comensais, até que o sr. Hubble o resolveu de modo sumário, dizendo: “Ruindade natural”. Todos então murmuraram: “É verdade!”, e olharam para mim de um modo particularmente desagradável e pessoal. A posição e a influência de Joe eram um pouco mais fracas (se tal era possível) na presença de visitas do que na ausência delas. Porém ele sempre me ajudava e confortava quando podia, lá a sua maneira, e durante as refeições sua maneira de fazê-lo era me dar molho, quando molho havia. Como naquele dia o molho era farto, Joe pôs no meu prato, a essa altura, cerca de um quarto de litro. Um pouco mais tarde, ainda durante o almoço, o sr. Wopsle criticou o sermão com certa severidade, e nos deu uma ideia — sob a hipótese habitual de ser a Igreja “escancarada” — que espécie de sermão ele teria feito. Após brindar os convivas com alguns dos tópicos desse discurso, comentou que a seu ver o tema da homilia que tinham ouvido fora mal escolhido; o que era tão menos desculpável, acrescentou, por haver tantos temas “por aí”. “É verdade, mais uma vez”, disse o tio Pumblechook. “O senhor acertou em cheio! Há muitos temas por aí, é só saber pegá-los no ar. É só isso que falta. Não é preciso ir longe para achar um tema, desde que se esteja atento.” O sr. Pumblechook acrescentou, após um curto intervalo para reflexão: “Por exemplo, o porco. Eis um tema! Quer um tema, tome o porco!”. “É verdade, meu senhor. Muitas morais para os jovens”, retorquiu o sr. Wopsle; e eu já sabia que seria o alvo da estocada antes mesmo que ele prosseguisse, “podem ser deduzidas desse texto.” (“Escuta bem”, disse-me minha irmã, num parêntese severo.) Joe me deu mais um pouco de molho. “Os porcos”, prosseguiu o sr. Wopsle, com sua voz mais grave, apontando com seu garfo para minhas faces enrubescidas, como se estivesse me chamando pelo nome de batismo, “os porcos eram os companheiros do filho pródigo.5 A gula do porco nos é apresentada como um exemplo para os jovens.” (Achei muito boa essa, vindo de quem pouco antes tinha elogiado o porco por ser tão gorducho e suculento.) O que é detestável num porco, é mais detestável ainda num menino.” “Ou numa menina”, sugeriu o sr. Hubble. “Sim, claro, ou numa menina, senhor Hubble”, concordou o sr. Wopsle, um tanto irritado, “mas não há nenhuma menina aqui.” “Além disso”, disse o sr. Pumblechook, virando-se diretamente para mim, “pensa nos motivos que tens para agradecer. Se tivesses nascido um porquinho…” “E ele era mesmo um porquinho, quando pequeno”, disse minha irmã, com muita ênfase. Joe me deu mais molho. “Sim, mas quero dizer um porquinho mesmo, quadrúpede”, disse o sr. Pumblechook. “Se tivesses nascido assim, estarias aqui agora? Não…” “A menos que fosse nessa forma”, disse o sr. Wopsle, indicando a travessa. “Mas não me refiro a essa forma, meu senhor”, devolveu o sr. Pumblechook, que não gostava de ser interrompido; “e sim a desfrutar da companhia dos mais velhos e mais sábios, e aprender com a conversa deles, e desfrutar tantos luxos. Ele estaria fazendo isso? Não. E qual seria o teu destino?”, virando-se para mim outra vez. “Serias vendido por tantos xelins de acordo com o preço de mercado do artigo, e o Dunstable, o açougueiro, vinha buscar-te na palha onde estavas deitado, e te enfiava debaixo do braço esquerdo, e com a mão direita levantava o avental para pegar um canivete no bolso do colete, e então te tirava o sangue e a vida. Ninguém havia de te criar com a mão. Nem pensar!” Joe ofereceu-me mais molho, que tive medo de aceitar. “Ele deu muitíssimo trabalho à senhora”, disse a sra. Hubble, apiedando-se de minha irmã. “Trabalho?”, ecoou minha irmã, “trabalho?” E então deu início a um tremendo catálogo de todas as doenças de que eu fora culpado, e todos os atos de insônia que eu cometera, e todos os lugares altos de que eu havia caído, e todos os lugares baixos em que eu havia caído, e todos os machucados que eu infligira a mim mesmo, e todas as vezes que ela desejara me ver no túmulo e eu, teimosamente, me recusara a ir para lá. Imagino que os romanos deviam irritar-se mutuamente sobremaneira, com aqueles narizes. Talvez fosse por isso que se tornaram um povo tão inquieto. Fosse como fosse, o nariz romano do sr. Wopsle de tal modo me irritou, durante o recital de minhas infrações, que tive vontade de puxá-lo até que ele urrasse. Mas tudo que eu havia suportado até aquele momento não foi nada em comparação com os sentimentos terríveis que me dominaram quando foi interrompida a pausa que se seguiu ao recital de minha irmã, durante a qual todos ficaram a me olhar (como percebi dolorosamente) com indignação e repugnância. “E, no entanto”, disse o sr. Pumblechook, levando os comensais delicadamente de volta para o tema de que se haviam afastado, “o porco, considerado no estado cozido, também tem seu lado bom; é ou não é?” “O senhor aceita um brande, tio?”, disse minha irmã. Meu Deus, era agora! Ele acharia a bebida fraca, diria que estava fraca, e eu estaria perdido! Agarrei com força a perna da mesa por baixo da toalha, com as duas mãos, e fiquei aguardando meu destino. Minha irmã foi pegar a garrafa de pedra, voltou com a garrafa de pedra e serviu uma dose: ninguém mais ia beber brande. O desgraçado brincou com a taça — levantou-a, olhou para a luz através dela, pousou-a na mesa — prolongando meu sofrimento. Enquanto isso, a sra. Joe e Joe, eficientes, tiravam a mesa para servir a torta e o pudim. Eu não conseguia tirar os olhos dele. Sempre agarrando com força a perna da mesa, com as mãos e os pés, vi a desgraçada criatura dedilhar sua taça, brincalhão, levantá-la, sorrir, jogar a cabeça para trás e beber o brande de um só gole. No instante seguinte, todos os comensais foram tomados por uma consternação indizível, porque ele se levantou de um salto, correu de um lado para o outro várias vezes numa horrenda dança espasmódica de coqueluche e saiu correndo pela porta afora; em seguida, vimo-lo pela janela, abaixando-se e expectorando violentamente, fazendo as caretas mais horrendas, aparentemente enlouquecido. Continuei agarrado ao pé da mesa, enquanto a sra. Joe e Joe corriam para acudi-lo. Eu não sabia como o fizera, mas sem dúvida tinha dado um jeito de assassiná-lo. Na minha terrível situação, foi um alívio quando o trouxeram de volta, e ele, correndo a vista por todos como se eles tivessem discordado dele, jogou-se em sua cadeira exclamando apenas: “Alcatrão!”. Eu havia enchido a garrafa com água alcatroada. Eu sabia que ele ia acabar se sentindo pior ainda. Fiz a mesa deslocar-se, como um médium de nossos tempos,6 pelo vigor com que minha mão invisível a apertava. “Alcatrão!”, exclamou minha irmã, perplexa. “Ora, como foi que isso foi parar lá?” Mas o tio Pumblechook, que era onipotente naquela cozinha, não queria ouvir a palavra, nem queria que se tocasse no assunto, com um gesto imperioso pôs de lado todo o incidente e pediu um gim com água quente. Minha irmã, que estava ficando perigosamente pensativa, teve que providenciar o gim, a água quente, o açúcar e a casca de limão, e misturá-los. Por ora, ao menos, eu estava salvo. Continuei agarrado à perna da mesa, mas agora eu a agarrava com o fervor da gratidão. Pouco a pouco, fui me acalmando, até que pude largar a perna da mesa e provar o pudim. O sr. Pumblechook provou o pudim. Todos provaram o pudim. Terminado o pudim, o sr. Pumblechook já sorria sob o efeito benévolo do gim com água. Comecei a pensar que escaparia incólume naquele dia, quando minha irmã disse a Joe: “Pratos limpos — frios”. Imediatamente voltei a agarrar a perna da mesa, apertando-a contra o peito como se fosse a companheira de minha juventude e amiga de minha alma. Eu previa o que estava por vir, e sentia que dessa vez eu estava mesmo perdido. “Vocês precisam provar”, disse minha irmã, dirigindo-se aos convivas do modo mais afável, “vocês precisam provar, pra terminar, o presente delicioso do tio Pumblechook!” Precisavam mesmo? Ah, que eles não quisessem provar! “Vou lhes dizer”, insistiu minha irmã, levantando-se, “é uma torta; uma deliciosa torta de porco.” Os comensais murmuraram elogios. O tio Pumblechook, cônscio de ser merecedor dos bons sentimentos de seus semelhantes, disse — de modo bem vivaz, dadas as circunstâncias: “Bem, senhora Joe, vamos fazer o possível; provemos essa famosa torta”. Minha irmã foi pegá-la. Ouvi seus passos indo em direção à despensa. Vi o senhor Pumblechook brincar com a faca. Vi o apetite do sr. Wopsle redespertar em suas narinas romanas. Ouvi o sr. Hubble dizer que “um pouco de torta de porco, por cima de qualquer outra coisa, mal não faz”, e ouvi Joe dizer: “Hás de comer um pouco também, Pip”. Nunca consegui determinar com certeza se soltei um grito lancinante de terror apenas em espírito ou se concretamente, nos ouvidos dos convivas. Senti que não aguentava mais, e que tinha de fugir dali. Soltei a perna da mesa, e saí correndo a toda velocidade. Porém, não passei da porta da frente, pois lá esbarrei num grupo de soldados armados de mosquetes, um dos quais me mostrou um par de algemas, dizendo: “Até que enfim, depressa, vamos!”. 5 A aparição de uma coluna de soldados batendo com as coronhas dos mosquetes carregados na soleira de nossa casa fez os comensais se levantarem da mesa atabalhoadamente, e a sra. Joe, ao voltar para a cozinha de mãos abanando, parar de súbito de olhos arregalados, com o lamento atrapalhado: “Meu Deus, Deus do céu, como foi, o que foi — o que é — da torta!”. Eu e o sargento estávamos na cozinha quando a sra. Joe lá ficou parada com o olhar fixo; e nessa crise recobrei em parte o juízo. Quem se dirigira a mim fora o sargento, e ele agora corria o olhar pelos convivas, estendendo-lhes as algemas, num gesto convidativo, com a mão direita, estando a esquerda pousada em meu ombro. “Perdão, senhoras e senhores”, disse o sargento, “mas como já disse ao entrar pra esse rapazinho esperto” (coisa que ele não havia feito), “estou fazendo uma busca em nome do rei, e quero falar com o ferreiro.” “E, diga lá, o que é que o senhor quer com ele?”, retrucou minha irmã, irritada só de saber que alguém queria alguma coisa com Joe. “Minha senhora”, respondeu o galante sargento, “falando por mim, eu diria que é pra ter a honra e o prazer de travar conhecimento com a senhora esposa dele; falando em nome do rei, digo que é por conta de um pequeno serviço.” Essa resposta do sargento foi julgada muito boa; tanto assim que o sr. Pumblechook exclamou, para todos ouvirem: “Muito bem dito!”. “Ferreiro”, disse o sargento, que a essa altura já havia identificado Joe e para ele olhava, “temos um problema com estas algemas, a tranca de uma delas não funciona, não engata direito. Como temos precisão delas pra uso imediato, você poderia lhes dar uma olhadela?” Joe olhou-as rapidamente, e diagnosticou que o serviço exigiria que fosse acesa a fornalha da forja, e levaria mais para duas horas do que para uma. “É mesmo? Então trate de começar agora mesmo, ferreiro”, disse o sargento, sem maiores cerimônias, “pois é a serviço do rei. E se meus homens puderem lhe dar uma mãozinha, pode contar com eles.” Em seguida, convocou os soldados, que entraram na cozinha um por um, e empilharam suas armas num canto. Depois ficaram parados, como fazem os soldados; ora com as mãos entrelaçadas frouxamente caídas a sua frente; ora descansando um joelho ou um ombro; ora afrouxando um cinto ou um bornal; ora abrindo a porta para lançar uma cusparada, por cima dos colarinhos altos e duros, no quintal. Todas essas coisas eu via sem saber que as via, tamanha a angústia de minha apreensão. Porém, começando a entender que as algemas não eram destinadas a mim, e que os militares haviam conseguido relegar a torta ao segundo plano, consegui juntar mais um pouco os cacos de meu juízo. “O senhor me diria as horas?”, indagou o sargento, dirigindo-se ao sr. Pumblechook, como se reconhecendo nele um homem cuja capacidade de apreciação justificava a inferência de que ele seria capaz de saber as horas. “Passa um pouco das duas e meia.” “Nada mau”, refletiu o sargento; “mesmo se eu tivesse que ficar aqui quase duas horas, está bom. A que distância fica o charco, mais ou menos? Menos de dois quilômetros, imagino?” “Um e meio”, respondeu a sra. Joe. “Está bom. Vamos começar a cercá-los por volta do entardecer. Um pouco antes do entardecer, foram as ordens que recebi. Está bom.” “Forçados, sargento?”, perguntou o sr. Wopsle, num tom bem natural. “Exato!”, retrucou o sargento. “Dois. Não há dúvida que estão ainda soltos no charco, e não vão tentar sair de lá antes do anoitecer. Alguém aqui viu alguma coisa suspeita?” Todos, menos eu, responderam que não, confiantes. Ninguém pensou em mim. “Bom!”, exclamou o sargento. “Eles vão ficar cercados, calculo, mais cedo do que imaginam. Vamos, ferreiro! Se você estiver pronto, sua majestade o rei também está.” Joe já havia tirado o paletó e o colete e a gravata, e vestido o avental de couro, e entrado na ferraria. Um dos soldados abriu as janelas de madeira, outro acendeu o fogo, outro se ocupou com o fole e os demais ficaram parados em torno das chamas, que logo começaram a rugir. Então Joe pôs-se a martelar e tinir, martelar e tinir, e todos nós ficamos olhando. O interesse pela iminente caçada não apenas absorveu a atenção de todos como também tornou até mesmo minha irmã generosa. Ela encheu uma jarra com cerveja do barril, para os soldados, e ofereceu ao sargento uma taça de brande. Mas o sr. Pumblechook interveio, severo: “Dê-lhe vinho, senhora. Esse eu garanto que não tem alcatrão”. E assim o sargento agradeceu-lhe, dizendo que, como preferia bebida sem alcatrão, ia ficar com o vinho, se não fosse nenhum incômodo. Quando o vinho lhe foi servido, bebeu à saúde de sua majestade e desejou a todos um feliz Natal, e bebeu tudo de um gole só e estalou os lábios. “Bom, hein, sargento?”, exclamou o sr. Pumblechook. “Vou lhe dizer uma coisa”, retrucou o sargento; “desconfio que quem trouxe foi o senhor.” O sr. Pumblechook, com uma espécie de gargalhada gorda, perguntou: “É mesmo? Por quê?” “Porque”, explicou o sargento, apertando-lhe o ombro, “o senhor é um homem que sabe das coisas.” “O senhor acha isso mesmo?”, disse o sr. Pumblechook, com o mesmo riso de antes. “Aceite mais um copo!” “Com o senhor. À sua, à minha”, retrucou o sargento. “Meu pé sobre o seu — seu pé sobre o meu — bate copo até estalar — melhor música não há!1 Sua saúde. Que o senhor viva mil anos, e seja sempre tão bom juiz dos homens como é no atual momento da sua vida!” O sargento virou seu copo mais uma vez e parecia pronto para mais um. Percebi que o sr. Pumblechook, com sua hospitalidade, parecia ter esquecido que dera o vinho de presente e o tomara de volta da sra. Joe, chamando para si a generosidade do gesto de oferecê-lo numa explosão de jovialidade. Até eu ganhei um pouco. E tão prodigamente o distribuiu que chegou a pedir a outra garrafa e serviu-a com a mesma liberalidade, quando a primeira terminou. Observando-os agrupados ao redor da forja, a divertirem-se tanto, ocorreume que meu amigo fugitivo no charco era um molho terrivelmente bom para um jantar. Todos estavam aproveitando muito menos a ocasião antes da animação fornecida por ele. E agora, quando todos antecipavam alegremente a apreensão dos “dois malfeitores”, e quando o fole parecia rugir para os fugitivos, o fogo arder para eles, a fumaça ir correndo a persegui-los, Joe martelar e tinir para eles, e todas as sombras turvas na parede estremecer para ameaçá-los, enquanto as chamas subiam e desciam e as fagulhas rubras caíam e morriam, a tarde pálida lá fora quase parecia, à minha fantasia compassiva, ter empalidecido por pena daqueles pobres-diabos. Por fim, Joe concluiu seu serviço, e as marteladas e o rugido cessaram. Enquanto vestia o paletó, ele criou coragem e propôs que alguns de nós fôssemos com os soldados para ver no que dava a caçada. O sr. Pumblechook e o sr. Hubble não aceitaram o convite, argumentando que preferiam fumar seus cachimbos e privar da companhia das senhoras; mas o sr. Wopsle disse que iria, se Joe fosse. Joe retrucou que estava inclinado a ir, e que me levaria, se a sra. Joe permitisse. Jamais teríamos tido autorização para ir, disso estou certo, se a sra. Joe não estivesse curiosa para saber tudo sobre a caçada, e como haveria de acabar. Assim, ela limitou-se a estipular: “Se trouxeres o menino com a cabeça esmigalhada por um tiro de mosquete, depois não me vás pedir que eu junte os cacos”. O sargento despediu-se educadamente das senhoras, e disse adeus ao sr. Pumblechook como se ele fosse um camarada de armas; porém duvido que reconhecesse tantos méritos naquele cavalheiro em condições mais secas, quanto em situações mais úmidas. Os soldados retomaram suas armas e entraram em forma. O sr. Wopsle, Joe e eu fomos seriamente advertidos a ficar sempre na retaguarda e não dizer palavra tão logo chegássemos ao charco. Quando já estávamos todos no frio lá fora, avançando em direção a nosso objetivo, cochichei para Joe, como um traidor: “Espero, Joe, que não encontremos ninguém”. E Joe cochichou para mim: “Eu daria um xelim para que eles cortassem as correntes e fugissem, Pip”. Ninguém da aldeia nos acompanhou, pois o tempo estava gelado e ameaçador, o caminho era lúgubre, a pista era ruim, estava escurecendo e as pessoas tinham boas lareiras acesas em casa e celebravam o Natal. Uns poucos rostos apareceram afobados nas janelas iluminadas e ficaram a olhar para nós, mas ninguém saiu. Passamos pelo poste indicador, e seguimos direto para o campo-santo. Lá, paramos por alguns minutos, a um sinal de mão do sargento, enquanto dois ou três de seus homens se espalhavam por entre as sepulturas e examinavam o pórtico. Voltaram sem ter encontrado nada, e então seguimos para o charco vazio, pelo portão lateral do campo-santo. Castigava-nos uma chuva cortante misturada com gelo, trazida pelo vento leste, e Joe me colocou nas suas costas. Agora que estávamos no descampado lúgubre onde ninguém imaginava que eu estivera oito ou nove horas antes e vira os dois homens a esconder-se, ocorreu-me pela primeira vez uma ideia, acompanhada por intenso terror: se os encontrássemos, será que o meu fugitivo, em particular, pensaria que fora eu quem tinha levado os soldados até aquele lugar? Ele me perguntara se eu não seria um diabrete traiçoeiro, e dissera que eu havia de ser um filhote de cão feroz se me juntasse a seus perseguidores. Não me veria como um diabrete e um cão traiçoeiro, que o havia entregado? Era inútil fazer a mim mesmo essa pergunta agora. Lá estava eu, nas costas de Joe, e lá estava Joe embaixo de mim, avançando sobre as valas como um caçador, e animando o sr. Wopsle para que ele não caísse de ponta em seu nariz romano, e não ficasse para trás. Os soldados seguiam à nossa frente, formando uma fileira bem larga, com um bom intervalo cada homem e seu vizinho. Íamos pelo caminho que eu tomara de início, e do qual acabara por me afastar no meio da névoa. Ou bem a névoa ainda não havia descido, ou bem o vento a dissipara. Sob o brilho avermelhado do poente, o farol, o patíbulo, o montículo da bateria e a margem oposta do rio eram todos claramente visíveis, ainda que todos assumissem um tom aguado de chumbo. Com o coração a martelar feito um ferreiro sobre os ombros largos de Joe, eu olhava para todos os lados, procurando algum sinal dos forçados. Não via ninguém, não ouvia ninguém. O sr. Wopsle já havia me assustado mais de uma vez, ao bufar e respirar de modo ruidoso; mas a essa altura eu aprendera a reconhecer esses sons e distingui-los do alvo da caçada. Levei um susto terrível quando julguei ouvir o ruído da lima ainda sendo esfregada; mas era só a sineta de um carneiro. Os carneiros paravam de pastar e ficavam a nos olhar, tímidos; e os bois, virando as cabeças para o lado contrário ao do vento e do gelo, encaravam-nos zangados, como se nos julgassem responsáveis pelos dois incômodos; fora essas coisas, porém, e o estremecimento do dia moribundo em cada folha de relva, nada perturbava a imobilidade desoladora do charco. Os soldados caminhavam em direção à velha bateria, e nós os seguíamos a curta distância, quando, de súbito, todos paramos. Pois chegara até nós, nas asas do vento e da chuva, um grito prolongado. Ele se repetiu. Vinha de certa distância ao leste, mas era alto e demorado. Não, eram dois ou mais gritos simultâneos — até onde era possível julgar naquela confusão dos sons. Era o que diziam o sargento e os homens que estavam mais próximos dele, aos sussurros, quando eu e Joe nos aproximamos. Depois de ficar à escuta mais um momento, Joe (que era bom em tais questões) concordou, e o sr. Wopsle (que não era bom em tais questões) concordou. O sargento, um homem decidido, mandou que não respondessem ao grito, mas que alterassem o curso, e que os soldados seguissem em “marcha acelerada”. Assim, guinamos para a direita (em direção ao leste), e Joe caminhava tão depressa que eu era obrigado a segurar-me com força para me manter em meu lugar. Agora estávamos correndo mesmo, uma corrida, como disse Joe, com as únicas palavras que pronunciou em todo aquele tempo, “de tirar o fôlego”. Íamos descendo taludes e subindo taludes, e passando por porteiras, e chafurdando nos diques, e irrompendo pelo meio dos juncos grossos: ninguém se importava onde pisava. À medida que nos aproximávamos da origem dos gritos, foi ficando cada vez mais evidente que havia mais de uma voz a gritar. Por vezes a gritaria parecia parar por completo, e então os soldados se detinham. Quando recomeçava, os homens voltavam a correr ainda mais depressa do que antes, e nós íamos atrás deles. Após algum tempo estávamos tão perto que pudemos ouvir uma voz gritando: “Assassino!”, e uma outra: “Prisioneiros! Fugitivos! Guarda! Os fugitivos foram por lá!”. Então as vozes pareciam ser sufocadas numa luta, e logo irrompiam outra vez. E quando isso acontecia, os soldados corriam como gazelas, e Joe também. O sargento foi o primeiro a entrar correndo, quando chegamos ao local de onde vinham os gritos, e dois de seus homens o seguiram de perto. Suas armas estavam engatilhadas e apontadas quando todos nós entramos. “Lá estão os dois!”, exclamou o sargento, ofegante, lutando no fundo da vala. “Rendam-se, vocês dois! O diabo os carregue, suas feras danadas! Parem!” Água espirrava, e lama voava, e xingamentos soavam, e socos eram desferidos, e mais homens entraram na vala para ajudar o sargento, e de lá arrastaram, separadamente, o meu prisioneiro e o outro. Os dois estavam sangrando, ofegantes, xingando-se e debatendo-se; mas é claro que reconheci ambos. “Viu só!”, disse o meu forçado, enxugando o sangue do rosto com as mangas esfarrapadas, e sacudindo os dedos cheios de cabelos arrancados. “Fui que eu peguei ele! Eu que entreguei ele pra vocês! Vocês todos viu!” “Não te fies muito nisso”, disse o sargento; “de pouco isso te vai valer, meu caro, pois estás na mesma situação que ele. Passem as algemas!” “Sei que não vai me valer de nada. Basta o bem que me faz agora”, disse o meu forçado, com uma risada ávida. “Eu peguei ele. Ele sabe disso. Pra mim, isso me basta.” O outro prisioneiro era um espetáculo terrível de se ver, pois, além do machucado antigo no lado esquerdo do rosto, parecia ter contusões e feridas por todo o corpo. Ele só conseguiu recuperar o fôlego suficientemente para falar quando os dois já haviam sido algemados separadamente, apoiando-se num soldado para não cair. “Veja lá, seu guarda — ele tentou me matar”, foram suas primeiras palavras. “Tentei matar?”, disse meu prisioneiro, com desdém. “Tentei e não matei? Eu peguei ele, e depois larguei; foi isso que eu fiz. Eu não só não deixei ele fugir pro charco mas também arrastei ele até aqui — lá de longe até aqui. É um cavalheiro, mesmo, esse malfeitor. Agora esse cavalheiro vai voltar pra presiganga, graças a mim. Matar ele? Matar pra quê, se eu posso fazer coisa muito pior, que é levar ele de volta pra lá!” O outro ainda estava ofegante. “Ele tentou… tentou… me matar. Vocês… são testemunhas.” “Olha aqui!”, disse o meu forçado ao sargento. “Sozinho eu escapuli do navio-prisão; saí correndo e caí fora. Eu podia ter saído desse brejo gelado também — olha pra minha perna: vocês vai ver que não tem mais quase ferro nela — se eu não descubro que ele está aqui. Deixar ele escapar? Deixar ele escapar pelo caminho que eu descobri? Deixar ele me fazer de bobo outra vez? Mais uma vez? Não, não e não. Se eu tivesse morrido lá embaixo”, e com um gesto vigoroso das mãos algemadas indicou a vala, “eu ia agarrar ele com tanta força que vocês ia me encontrar grudado nele.” O outro fugitivo, que claramente sentia um horror extremo de seu companheiro, repetiu: “Ele tentou me matar. Eu estaria morto agora se vocês não tivessem chegado”. “É mentira!”, exclamou o meu prisioneiro, com energia feroz. “Ele nasceu mentindo, e vai morrer mentindo. Olha só pra cara dele; não está escrito nela? Manda ele olhar nos meus olhos. Duvido que ele olha.” O outro, esforçando-se para esboçar um sorriso de deboche — sem conseguir, porém, conter o tremor nervoso dos lábios numa expressão fixa — olhava para os soldados, e olhava para o charco à sua volta, e para o mar, mas certamente não para o outro. “Está vendo?”, insistiu o meu forçado. “Está vendo que pulha que ele é? Está vendo essa cara de lambe-botas e esse olho arisco? É assim que ele estava quando nós foi julgado junto. Não olhou pra mim nem uma vez.” O outro, retorcendo sem parar os lábios secos e voltando os olhos para tudo que o cercava, longe e perto, finalmente fixou-os por um momento no primeiro, com as palavras: “Sua cara não é coisa que se olhe”, e com um olhar algo desafiador para as mãos atadas. Nesse momento, o meu forçado foi tomado por tal frenesi de exasperação que teria se jogado sobre ele, não fosse a interposição dos soldados. “Eu não disse”, observou o outro, “que ele me mataria, se pudesse?” E todos podiam ver que ele tremia de medo, e que se formaram sobre seus lábios curiosos flocos brancos, como de neve fina. “Chega de conversa”, disse o sargento. “Acendam os archotes.” Enquanto um dos soldados, que levava uma cesta em vez de arma, ajoelhava-se para abri-la, o meu forçado olhou à sua volta pela primeira vez, e me viu. Eu havia descido dos ombros de Joe à beira da vala assim que chegamos, e desde então não me movera. Olhei para ele ansioso quando ele olhou para mim, e de leve acenei com as mãos e sacudi a cabeça. Eu estava aguardando o momento em que ele me veria, para tentar convencê-lo de minha inocência. Não ficou claro para mim se ele sequer compreendeu minha intenção, pois ele me dirigiu um olhar que não compreendi, e tudo se passou num momento. Mas mesmo se ele tivesse ficado olhando para mim por uma hora ou por um dia, eu não teria guardado na lembrança uma expressão mais atenta do que aquela. O soldado da cesta fez fogo, e acendeu três ou quatro archotes, ficando com um deles e distribuindo os outros. Antes estava quase escuro, mas agora a escuridão se aprofundara, e logo depois se tornou absoluta. Antes de sairmos daquele lugar, quatro soldados em círculo dispararam dois tiros para o alto. Logo em seguida vimos outros archotes ardendo a alguma distância atrás de nós, e outros no charco, na margem oposta do rio. “Muito bem”, disse o sargento. “Ordinário, marcha.” Não havíamos avançado muito quando três canhões dispararam à frente de nós, com um estrépito que pareceu estourar algo dentro de meu ouvido. “Estão à tua espera a bordo”, disse o sargento ao meu forçado, “sabem que estás vindo. Não faças corpo mole, meu caro. Anda mais depressa.” Os dois eram mantidos separados, e cada um caminhava cercado por uma guarda diferente. Agora eu seguia de mãos dadas com Joe, e Joe carregava um dos archotes. O sr. Wopsle havia manifestado o desejo de voltar para casa, mas Joe estava decidido a ver a coisa até o fim, e assim seguimos com o grupo. O caminho agora era razoavelmente bom, e seguíamos a maior parte do tempo à beira-rio, fazendo um ou outro desvio quando surgia um dique, com um moinho de vento em miniatura e uma comporta lamacenta. Olhando a minha volta, eu via as outras luzes que vinham atrás de nós. Os archotes que levávamos deixavam cair grandes manchas de fogo na pista, e eu as via também, a fumegar e emitir clarões. Fora isso, eu só via uma escuridão negra. Nossas luzes aqueciam o ar que nos cercava com seu brilho resinoso, e os dois prisioneiros pareciam apreciá-lo, enquanto seguiam mancando entre os mosquetes. Não podíamos ir depressa por estarem os dois mancos; e tamanha era a exaustão deles que duas ou três vezes tivemos de parar para que descansassem. Depois de cerca de uma hora de caminhada, chegamos a uma cabana rústica de madeira e um desembarcadouro. Havia um guarda na cabana; ele deu a senha, e o sargento respondeu com a contrassenha. Então entramos na cabana, onde havia um cheiro de fumo e cal, e um fogo vivo na lareira, e uma luminária, e um porta-mosquetes, e um tambor, e um estrado de cama baixo, de madeira, como uma calandra enorme sem a maquinaria, onde caberia uma dúzia de soldados ao mesmo tempo. Os três ou quatro que lá estavam deitados, por cima de seus sobretudos, não estavam muito interessados em nós, e limitaram-se a levantar as cabeças e dirigir-nos um olhar sonolento, para depois reassumirem a posição original. O sargento fez uma espécie de relatório, e um registro num livro, e em seguida aquele a quem me refiro como o outro forçado foi levado por sua guarda, para ser o primeiro a voltar à presiganga. O meu forçado não voltou a olhar para mim, após aquela única vez. Quando estávamos na cabana, ele postou-se diante do fogo, contemplando-o pensativo, pondo ora um pé, ora o outro, junto à lareira, e contemplando-os pensativo, como se deles se apiedasse pelas recentes desventuras que haviam sofrido. De repente voltou-se para o sargento, e comentou: “Quero dizer uma coisa sobre essa minha fuga. Pra que ninguém mais vire suspeito junto comigo.” “Podes dizer o que quiseres”, retrucou o sargento, olhando-o tranquilo, de braços cruzados, “mas não carece de ser aqui. Depois não te faltará ocasião para falar sobre isso, e ouvir falar, antes de encerrar o processo, como sabes.” “Sei, sim, mas é uma outra coisa, uma questão separada. Ninguém aguenta passar fome; eu, pelo menos, não aguento. Eu peguei comida, na aldeia acolá — perto da igreja já quase no meio do charco.” “Tu roubaste, é o que queres dizer”, disse o sargento. “E vou dizer donde que foi. Da casa do ferreiro.” “Ora, ora!”, exclamou o sargento, olhando para Joe. “Ora, Pip!”, exclamou Joe, olhando para mim. “Foi uns restos de comida — só isso — e um trago de bebida, e uma torta.” “Você deu pela falta de alguma coisa assim, como uma torta, ferreiro?”, perguntou o sargento, em tom confidencial. “Minha mulher deu, no momento exato em que o senhor chegou. Não foi, Pip?”“ Então”, disse o meu prisioneiro, voltando um olhar melancólico para Joe, e sem dirigir o mais rápido relance a mim, “então você é o ferreiro, é? Lamento dizer que comi a sua torta.” “Deus sabe que por mim, espero que tenha aproveitado — até onde ela era minha”, retrucou Joe, lembrando-se da sra. Joe. “A gente não sabe o que ’ocê fez, mas nós não ia querer que um pobre semelhante morresse de fome. É ou não é, Pip?” Aquela coisa em que eu havia reparado antes estalou na garganta do homem outra vez, e ele nos deu as costas. O barco havia voltado, e sua guarda estava pronta, por isso o acompanhamos até o desembarcadouro feito de pedras e estacas grosseiras, e o vimos sendo levado para dentro do bote, que tinha ao remo uma tripulação de forçados como ele. Ninguém parecia surpreso por vê-lo, nem interessado em vê-lo, nem alegre por vê-lo, nem triste por vê-lo, nem disse palavra; apenas uma voz no barco rosnou, como se se dirigisse a cães: “Força, vocês aí!”, que era o sinal para que começassem a remar. À luz dos archotes, vimos a presiganga negra a pouca distância do lodo da margem, como uma arca de Noé perversa. Cercado de troncos e barras e atracado com correntes pesadas e enferrujadas, o navio-prisão parecia a meus olhos de menino estar agrilhoado, tal como os prisioneiros. Vimos o barco aproximar-se dele, e vimos o homem sendo levantado e depois desaparecer. Então os restos dos archotes foram jogados dentro d’água, a silvar, e apagaram-se, como se para ele tudo estivesse terminado. 6 Meu estado mental com relação ao furto de que eu fora inocentado tão inesperadamente não me impelia a fazer uma confissão sincera; porém continha, espero, alguma coisa de bom, no fundo. Não me lembro de ter sentido algum peso na consciência quanto à sra. Joe, quando fui libertado do medo de ser descoberto. Mas eu gostava de Joe — talvez pelo simples motivo, nessa fase de minha vida, de que esse excelente sujeito me permitia gostar dele — e, quanto a ele, meu eu interior não se aquietou com tanta facilidade. Assediava-me a ideia (em particular depois que o vi procurando a lima) de que eu devia contar a ele toda a verdade. No entanto, não o fiz, e não o fiz por temer que, se o fizesse, ele me julgaria pior do que eu era. O medo de perder a confiança de Joe, e doravante permanecer no canto junto à chaminé olhando desconsolado para o companheiro e amigo que eu perdera, prendia minha língua. Ocorreu-me o pensamento mórbido de que, se ele soubesse, nunca mais eu poderia vê-lo junto ao fogo cofiando as suíças louras, sem pensar que ele estaria meditando sobre o assunto. Que, se Joe soubesse, nunca mais eu poderia vê-lo, mesmo de relance, comendo a carne ou pudim de ontem servido à mesa hoje, sem pensar se ele estaria perguntando a si próprio se eu teria feito uma incursão à despensa. Que, se Joe soubesse, e se em qualquer momento subsequente de nossa vida doméstica ele comentasse que a cerveja estava choca ou espessa, a convicção de que ele suspeitava haver alcatrão nela faria o sangue me subir às faces. Em suma, fui covarde demais para fazer o que eu sabia ser certo, tal como fora covarde demais para evitar fazer o que sabia ser errado. Eu ainda não travara contato com o mundo nesse tempo, e assim sendo não imitei os muitos de seus habitantes que agem desse modo. Verdadeiro gênio inato, descobri essa linha de ação sozinho. Como fiquei sonolento ainda antes de nos termos afastado muito do navioprisão, Joe pôs-me nas costas de novo e carregou-me para casa. A viagem deve ter sido um tanto cansativa para ele, pois o sr. Wopsle, exausto, estava de tal modo mal-humorado que, se a Igreja tivesse sido escancarada, ele provavelmente teria excomungado toda a expedição, a começar por Joe e por mim. Na condição de leigo, insistia em sentar-se no chão molhado de modo tão enlouquecido que, quando tirou seu casaco para secá-lo junto ao fogo, na cozinha, as provas circunstanciais em suas calças haveriam de levá-lo à forca se a coisa fosse crime capital. A essa altura, eu cambaleava no chão da cozinha como se fosse um ebriozinho, por ter sido colocado de pé ainda há pouco, e por ter dormido a sono solto, e por ter sido despertado num lugar quente e iluminado e cheio de vozes. Quando acordei (com a ajuda de um tapa pesado entre os ombros e a exclamação restauradora “Eh! Onde já se viu um menino igual a este!”, da minha irmã), Joe estava a falar-lhes sobre a confissão do forçado, e todas as visitas propunham hipóteses diferentes sobre o modo como ele conseguira entrar na despensa. O sr. Pumblechook concluiu, tendo examinado o recinto com cuidado, que ele primeiro subira ao telhado da ferraria, em seguida passara para o telhado da casa, e depois descera pela chaminé da cozinha usando uma corda feita com tiras compridas a que havia reduzido seus lençóis; e como o sr. Pumblechook estava muito certo do que dizia e conduzia sua própria carruagem — passando por cima de qualquer um — concordou-se que certamente fora assim. O sr. Wopsle, é bem verdade, exclamou loucamente “Não!”, com a malícia débil de um homem cansado; porém, não tendo ele uma teoria, nem um casaco que pudesse vestir, foi unanimemente desprezado — ainda por cima, saía-lhe muita fumaça do traseiro, estando ele parado em frente à lareira da cozinha para secar-se: o que sem dúvida não haveria de inspirar confiança. Isso foi tudo que ouvi aquela noite antes que minha irmã me agarrasse, por estar minha sonolência ofendendo os olhos dos presentes, e me ajudasse a subir para o quarto com mão tão pesada que me dava a impressão de estar eu calçando cinquenta pares de botas, arrastando todas elas contra as beiras dos degraus. Meu estado mental, tal como o descrevi, começou antes mesmo de eu me levantar pela manhã, e perdurou muito depois de o assunto ter sido esquecido, só voltando a ser mencionado em ocasiões excepcionais. 7 Na época em que fui ao campo-santo e fiquei a ler as lápides da minha família, eu sabia ler apenas o suficiente para decifrar as inscrições. Meu entendimento do significado delas, tão simples, não era muito correto, pois julgava eu que “esposa do Acima” se referia à condição elevada de meu pai num mundo melhor; e se alguma referência fosse feita a um de meus falecidos familiares como “Abaixo”, sem dúvida eu teria formado uma péssima opinião a respeito desse indivíduo. Do mesmo modo, os conceitos que eu formara a respeito das posições teológicas que me impunha o catecismo1 não eram de modo algum corretos; pois, como me lembro muito bem, pensava que “assim caminhar por todos os dias de minha vida” me obrigava a caminhar em nossa aldeia, a partir de nossa casa, sempre na mesma direção, e jamais me desviar dela entrando no caminho do segeiro ou subindo até o moinho. Quando atingisse a idade apropriada, haveria de tornar-me aprendiz de Joe, e até poder assumir esse digno cargo eu não devia ser “papá-ricado”, ou (como interpreto o termo) paparicado. Assim, não apenas eu atuava como pau para toda a obra na ferraria, como também se algum vizinho precisasse de um menino a mais para enxotar aves, ou catar pedras, ou executar qualquer tarefa afim, era eu o escolhido para o cargo. Porém, para que nossa posição de superioridade não fosse comprometida por isso, uma caixa de dinheiro era mantida no console da cozinha, na qual, como era divulgado para o público em geral, todos os pagamentos por mim recebidos eram colocados. Tenho a impressão de que eles seriam utilizados futuramente em prol da liquidação da dívida nacional, mas sei que não tinha eu nenhuma esperança de ter qualquer participação pessoal nesse tesouro. A tia-avó do sr. Wopsle mantinha uma escola noturna na aldeia; em outras palavras, era uma velha ridícula de renda limitada e debilidade ilimitada, que cochilava das seis às sete todas as tardes na companhia de jovens que pagavam dois pence por semana cada, para ter a instrutiva oportunidade de vê-la cochilar. Ela alugava uma casa pequena, e o sr. Wopsle ficava no quarto do andar de cima, onde nós, os alunos, o ouvíamos ler em voz alta de maneira mui digna e terrível, e de vez em quando esbarrar no teto. Nutria-se a ficção de que o sr. Wopsle “examinava” os alunos uma vez a cada trimestre. O que ele fazia em tais ocasiões era arregaçar as mangas, pôr o cabelo para cima e recitar para nós a oração de Marco Antônio sobre o cadáver de César. Essa fala era sempre seguida pela “Ode sobre as paixões” de Collins,2 sendo que conquistava minha veneração em particular o sr. Wopsle no papel de Vingança, jogando a espada ensanguentada trovejante, e tomando a trombeta que anuncia a guerra com olhar tremendo. Eu não era ainda como me tornei mais tarde, quando, passando a conviver com as paixões, comparei-as com Collins e Wopsle, comparação essa que resultou desvantajosa para ambos os cavalheiros. A tia-avó do sr. Wopsle, além dessa instituição educacional, tinha também — no mesmo cômodo — uma pequena venda. Não fazia ela ideia do estoque que tinha, nem do preço de qualquer mercadoria; havia, porém, um caderninho ensebado guardado numa gaveta, que servia como catálogo de preços, e era com base nesse oráculo que Biddy pautava todas as transações comerciais. Biddy era a neta da tia-avó do sr. Wopsle; confesso-me incapaz de fazer os cálculos necessários para determinar qual seu grau de parentesco com o sr. Wopsle. Era, tal como eu, uma órfã; também como eu, fora criada com a mão. O que mais nela chamava a atenção, a meu ver, eram suas extremidades; pois o cabelo estava sempre precisando ser escovado; as mãos, ser lavadas; e os sapatos, ser consertados e ganhar saltos novos. Essa descrição, porém, deve ser tomada com uma limitação semanal. Aos domingos, ela ia à igreja toda paramentada. Muitas vezes sem ajuda, e, quando ajudado, mais por Biddy do que pela tiaavó do sr. Wopsle, atravessei o alfabeto como quem atravessa uma sarça, sendo mordido e arranhado por cada letra. Depois disso, caí nas mãos daqueles salteadores,3 os nove algarismos, que a cada noite pareciam fazer algo de novo para se disfarçarem e não serem reconhecidos. Porém, por fim comecei, à maneira de um catacego que anda tateando, a ler, escrever e fazer contas, na mais mínima escala. Uma noite, estava eu no meu cantinho da chaminé com minha lousa, produzindo com muito esforço uma carta a Joe. Creio que deve ter sido um ano após nossa caçada no charco, pois foi um bom tempo depois, era inverno e fazia muito frio. Com um alfabeto a meus pés para me servir de referência, em uma ou duas horas compus, após muito rabiscar e apagar, esta epístola: cAru JO ispEru Q sTejaS bEm ispEru Q em bREvi eu PoçO enCinArti JO ai vAi Se MunTo Bom quAnDu eu fOr tEu apRenDis JO vaMu faZe gRAndiS BatUsCaDas saUdasOns PiP. Não era absolutamente indispensável que eu me comunicasse com Joe através de uma carta, já que ele estava sentado a meu lado e estávamos sozinhos. Porém, entreguei-lhe essa comunicação escrita (com lousa e tudo) pessoalmente, e Joe recebeu-a como um milagre de erudição. “Olha só, Pip, meu velho!”, exclamou Joe, arregalando os olhos azuis, “que estudioso tu te tornaste! És ou não és um estudioso?” “Eu bem que gostaria de ser”, respondi, olhando para a lousa enquanto ele a segurava: constrangido por ser minha letra um tanto acidentada. “Ora, eis aqui um J”, disse Joe, “e um O muito bem-feito! Eis um J e um O, Pip, e J-O, Joe.” Eu nunca ouvira Joe ler em voz alta um texto mais longo do que esse monossílabo, e já havia observado na igreja, no domingo anterior, quando por engano segurei nosso Livro de Oração de cabeça para baixo, que para ele isso lhe convinha tanto quanto se estivesse de cabeça para cima. Querendo aproveitar a oportunidade para descobrir se, para ensinar Joe, seria necessário começar bem no início, eu disse: “Ah! Mas lê o resto, Joe”. “O resto, é, Pip?”, retrucou Joe, percorrendo a lousa lentamente com o olhar. “Um, dois, três. Ora, tem três J, e três O, e três J-O, Joes, Pip!” Debrucei-me sobre Joe e, com a ajuda do meu indicador, li para ele toda a carta. “Espantoso!”, disse Joe quando terminei. “És mesmo um estudioso.” “Como é que tu escreves Gargery, Joe?”, perguntei-lhe, com uma condescendência modesta. “Eu não escrevo”, disse Joe. “Mas, vamos supor, e se escrevesses?” “Não há como supor isso”, disse Joe. “Apesar de que eu gosto muitíssimo de ler.” “É mesmo, Joe?” “Mui-tíssimo. Dá-me”, disse Joe, “um bom livro, ou um bom jornal, e põeme ao pé de um bom fogo, e não peço mais nada. Meu Deus!”, prosseguiu ele, depois de esfregar as mãos nos joelhos. “Quando a gente acha um J e um O, e diz: ‘Olha aqui, finalmente, J-O, Joe’, como é interessante ler!” Concluí, com base nisso, que a instrução de Joe, tal como a máquina a vapor, ainda estava em seus primórdios. Insisti, perguntando: “Nunca foste à escola, Joe, quando eras pequeno como eu?” “Não, Pip.” “E por que nunca foste à escola, Joe, quando eras pequeno como eu?” “Bom, Pip”, disse Joe, pegando o atiçador e assumindo sua ocupação habitual sempre que estava pensativo, de lentamente atiçar o fogo por entre as grades mais baixas, “vou te contar. Meu pai, Pip, era chegado à bebida, e quando ficava chumbado ele martelava a minha mãe sem dó. Era quase que só nessas vez que ele martelava alguma coisa, quer dizer, e também quando martelava eu. E ele me martelava com toda a força que ele não punha quando martelava a bigorna dele. — Estás escutando e compreendendo, Pip?” “Estou, Joe.” “E em consequência eu e a minha mãe fugiu do meu pai, mais de uma vez; e aí minha mãe ia trabalhar, e ela me dizia: ‘Joe’, dizia ela, ‘agora, se Deus quiser, vais estudar um pouco’, e aí ela me punha na escola. Mas o meu pai tinha bom coração e não conseguia viver sem nós. E aí ele vinha com um monte de gente e fazia uma barulheira tamanha na porta da casa onde nós estava, que aí eles não tinha jeito de não entregar nós pra ele. E aí ele levava nós pra casa e martelava nós. E isso, Pip, tu entendes”, disse Joe, fazendo uma pausa no seu pensativo atiçar do fogo, e olhando para mim, “prejudicou um bocado os meus estudo.” “É claro, Joe, pobre de ti!” “Mas, vê lá, Pip”, disse Joe, com um ou dois toques precisos do atiçador na grade de cima, “dando a César o que é de Deus, e fazendo justiça de homem a homem, meu pai tinha bom coração, não vês?” Eu não via tal coisa, mas nada disse. “Pois bem!”, Joe prosseguiu. “Alguém tem que pôr pão na despensa, senão na despensa pão não há, não vês?” Eu via, e disse que sim. “E em consequência meu pai não via nenhum pobrema de eu começar a trabalhar; foi assim que passei a trabalhar no meu ofício, que era também o dele, só que ele não praticava, e eu trabalhava com muito afinco, Pip, isso eu posso te garantir. Em pouco tempo eu já sustentava ele, e fiquei sustentando até que um ataque pepiléptico levou ele. E eu queria mandar escrever no tumo dele assim: ‘Perfeito ele não era, não, Mas porém tinha bom coração’.” Joe recitou esse dístico com tanto orgulho explícito e tamanha perspicácia cuidadosa que lhe perguntei se ele próprio o havia composto. “Foi eu que fiz”, respondeu, “sozinho. Foi coisa de um momento. Foi que nem aprontar uma ferradura inteirinha de uma martelada só. Nunca fiquei tão dimirado na minha vida — eu não conseguia imaginar que aquilo saiu da minha cabeça — pra falar com franqueza, eu quase não acreditava que era da minha cabeça mesmo que tinha saído. Como eu ia dizendo, Pip, eu queria mandar escrever no tumo dele; mas poesia custa dinheiro, com letra pequena ou grande, e a coisa acabou que não se fez. Pra nem falar nos carregador do caixão, todo o dinheiro que havia era pra minha mãe. Ela estava ruim de saúde, e sem um tostão. Não demorou muito, coitada, e ela também acabou descansando.” Os olhos azuis de Joe ficaram um pouco úmidos; ele esfregou-os, primeiro um, depois o outro, de um modo nada característico e bem constrangido, com o cabo redondo do atiçador. “Aí eu fiquei muito sozinho”, disse Joe, “morando aqui só eu, e aí conheci a tua irmã. Sabe, Pip”, Joe olhou firme para mim, como se soubesse que eu não iria concordar com ele, “a sua irmã é uma bela duma mulher.” Não pude deixar de desviar a vista para o fogo, num evidente estado de dúvida. “Diga o que disser a família, ou o mundo todo, Pip, a tua irmã”, Joe batia na grade de cima, um toque para cada palavra, “é — uma — bela — duma — mulher!” Não me ocorreu nada melhor para dizer do que: “Ainda bem que pensas assim, Joe”. “Ainda bem, sim”, retrucou Joe, reforçando minhas palavras. “Ainda bem que eu penso assim, Pip. Um pouco vermelha aqui, um pouco ossuda ali, e o que me importa isso?” Fiz o comentário sagaz de que, se a ele não importava, a quem haveria de importar? “Isso mesmo!”, concordou Joe. “É isso. Tens razão, meu velho! Quando conheci tua irmã, todo mundo falava que ela tinha criado você com a mão. Muita bondade dela, toda a gente dizia, e eu dizia também, junto com os outro. Quanto a ti”, Joe insistiu, com cara de quem vê algo de muito desagradável, “se tu pudesses saber na época o quanto eras pequenino e fraquinho e mirrado, tu terias formado uma ideia muito ruim de ti próprio!” Não muito feliz de ouvir tal coisa, eu disse: “Não ligues pra mim, Joe”. “Mas eu ligava pra ti, Pip”, ele retrucou, com terna simplicidade. “Quando me ofereci à tua irmã pra lhe fazer companhia, e pra perguntar a ela na igreja se ela viria de bom grado ficar comigo na ferraria, eu disse a ela: ‘E traz também a pobre criancinha. Deus abençoe a pobre criancinha’, eu disse à tua irmã, ‘que há lugar pra ela na ferraria!’.” Comecei a chorar e a pedir perdão, e a abraçar o pescoço de Joe, o qual largou o atiçador para me abraçar, dizendo: “A gente é amigo de verdade, não é, hein, Pip? Não chores, meu velho!”. Finda essa pequena interrupção, Joe recomeçou: “Pois é, Pip, e cá estamos nós! A coisa é mais ou menos essa, e cá estamos nós! Pois se vais te ocupar de me ensinar, Pip (e devo te avisar logo de saída que sou muito bronco, muito bronco), é bom que a senhora Joe não fique sabendo o que estamos fazendo. A coisa tem que ser feita, diguemos assim, às escondida. E às escondida por quê? Eu te digo por quê, Pip.” De novo tinha na mão o atiçador; sem ele, creio que dificilmente teria sido capaz de prosseguir em sua demonstração. “Tua irmã é dada ao governo.” “Dada ao governo, Joe?” Fiquei atônito, pois formei a ideia vaga (e, devo confessar, a vaga esperança) de que Joe havia se divorciado dela, cedendo-a ao almirantado ou ao Tesouro nacional. “Dada ao governo”, repetiu Joe. “Quer dizer, a governar eu e tu.” “Ah!” “E ela não há de gostar da ideia de ter estudioso na casa dela”, prosseguiu Joe, “principalmente de eu virar estudioso, com medo de eu me revoltar. Uma espécie de rebelde, não vês?” Ia eu retrucar com uma pergunta, e cheguei mesmo a articular um “Por que…”, quando Joe me deteve. “Espera um pouco. Sei o que vais dizer, Pip, espera um pouco! Não nego que tua irmã seje um verdadeiro grão-mogol4 pra nós, vez em quando. Não nego que ela nos derruba no chão, e que cai em cima de nós com vontade. Nessas hora que a tua irmã está espumando, Pip”, Joe baixou a voz, reduzindo-a a um sussurro e olhando de esguelha para a porta, “confesso que ela é uma fera.” Joe pronunciou a palavra como se ela começasse com pelo menos uma dúzia de F maiúsculos. “Por que eu não me revolto? Era isso que ias me perguntar quando eu terrompi, não era, Pip?” “Era, sim, Joe.” “Pois bem”, disse Joe, passando o atiçador para a mão esquerda, para poder cofiar a suíça; eu perdia as esperanças quanto a ele sempre que ele se entregava a essa ocupação plácida; “a tua irmã é um crânio. Um crânio.” “O que é isso?”, perguntei, com alguma esperança de detê-lo. Mas Joe tinha a definição mais na ponta da língua do que eu esperava, e foi ele quem me deteve de vez argumentando circularmente, ao responder, com o olhar parado: “É o que ela é”. “E eu não sou um crânio”, prosseguiu Joe, quando seu olhar se despregou de seu ponto fixo, e retomou a suíça. “E, por fim, Pip — e isso eu queria te dizer muito sério, meu velho — vi minha pobre mãe se matando tanto de trabalhar, e sofrendo tanto que partiu o coração, e nunca teve paz em vida, que tenho muito medo de não fazer direito o que se tem que fazer com uma mulher, e na dúvida prefiro errar pro outro lado, e ser um pouco maltratado por isso. Eu preferia que fosse só eu a me dar mal, Pip, que o pau-de-cosca fosse só pra eu e não pra ti também; eu preferia que caísse tudo em mim; mas é assim que as coisas é, Pip, e espero que tu aguentes tudo que é pobrema.” Apesar de minha tenra idade, creio que foi a partir dessa noite que se formou em mim uma nova admiração por Joe. Continuamos a ser iguais, tal como já éramos; porém, quando eu ficava a olhar para Joe e pensar nele em momentos de tranquilidade, a partir daí passei a experimentar uma nova sensação, cônscio de que, em meu coração, eu tomava Joe por modelo. “Seja lá como for”, disse Joe, levantando-se para pôr mais lenha na lareira, “o relógio alemão já está quase dando as oito, e ela inda não voltou! Tomara que a égua do tio Pumblechook não tenha pisado numa pedra de gelo e caído.” Ocasionalmente a sra. Joe acompanhava o tio Pumblechook em dias de feira, para ajudá-lo a fazer compras de casa e outros bens que requeriam o discernimento de uma mulher; pois o tio Pumblechook era solteiro e não confiava muito em sua criada. Era dia de feira, e a sra. Joe saíra numa dessas expedições. Joe acendeu o fogo e varreu a lareira, e em seguida fomos até a porta para aguardar a chegada da sege. Era uma noite fria e seca, com um vento cortante, e uma geada branca e dura. Se houvesse um homem hoje deitado no chão do charco, pensei, ele haveria de morrer de frio. E depois olhei para as estrelas, e pensei como seria terrível virar o rosto para elas ao morrer congelado, e não encontrar nenhuma ajuda nem piedade em toda aquela imensidão cintilante. “Lá vem a égua”, disse Joe, “tilintando que nem um monte de sino!” O som das ferraduras contra o piso duro da estrada era bem musical, pois ela vinha trotando num passo bem mais rápido que o costumeiro. Levamos para fora uma cadeira, a fim de ajudar a sra. Joe a desmontar, e atiçamos o fogo para que eles vissem a janela bem iluminada, e examinamos a cozinha pela última vez, para verificar se não havia nada fora do lugar. Quando terminamos esses preparativos, eles chegaram, agasalhados de modo que só os olhos ficavam de fora. A sra. Joe logo desmontou, e pouco depois o tio Pumblechook fez o mesmo, cobrindo a égua com um pano, e em seguida fomos todos para a cozinha, trazendo tanto frio conosco que era como se todo o calor do fogo tivesse ido embora. “Ora”, disse a sra. Joe, tirando os agasalhos afobada e excitada, e jogando para trás o capuz, que lhe caiu sobre os ombros, dependurado pelos cordéis, “se esse menino não ficar grato hoje, nunca mais há de ficar!” Exibi o máximo de gratidão de que seria capaz um menino que não fizesse ideia alguma do motivo que tinha para assumir tal expressão. “Só espero”, disse minha irmã, “que ele não fique papá-ricado. Mas fico preocupada.” “Ela não é dessas”, disse o Pumblechook. “Ela não é boba.” Ela? Olhei para Joe, fazendo movimentos com os lábios e as sobrancelhas. “Ela?” Joe olhou para mim, fazendo os mesmos movimentos com os lábios e as sobrancelhas: “Ela?”. Como minha irmã o apanhasse em flagrante fazendo isso, ele passou as costas da mão na frente do nariz, com seu ar conciliador de sempre em tais ocasiões, e encarou-a. “E então?”, exclamou minha irmã, com seu jeito brusco. “O que é que estás olhando? A casa está pegando fogo?” “É que se falou em algum individo”, explicou Joe, delicadamente, “‘ela’”. “E ela não é ela?”, insistiu minha irmã. “A menos que queiras chamar a senhora Havisham de ele. E duvido que sejas capaz disso.” “A senhora Havisham, da cidade?”, perguntou Joe. “E há alguma senhora Havisham fora da cidade?”, redarguiu minha irmã. “Ela quer que este menino vá brincar lá. E é claro que ele vai. E é bom ele brincar lá, mesmo”, disse minha irmã, sacudindo a cabeça para mim, de modo a me estimular a ser extremamente alegre e brincalhão, “senão ele vai ver.” Eu ouvira falar da sra. Havisham, da cidade — todo mundo em toda a região ouvira falar da sra. Havisham, da cidade — como um mulher muitíssimo rica e severa que morava numa casa grande e lúgubre, fortificada para proteger-se de ladrões, e vivia isolada do mundo. “Claro, claro!”, exclamou Joe, perplexo. “Não sei como ela ficou sabendo do Pip!” “Pateta!”, retrucou minha irmã. “E quem que disse que ela sabia dele?” “É que algum individo”, mais uma vez Joe explicou, delicadamente, “falou que ela queria que ele fosse brincar lá.” “E ela não podia perguntar ao tio Pumblechook se ele conhecia algum menino que podia ir brincar lá? Será que não dá pra imaginar que o tio Pumblechook seja inquilino dela, e que às vezes — já não digo de três em três meses nem de seis em seis, porque aí seria pedir demais de ti — mas só às vezes — ele tem que ir lá pra pagar o aluguel? E nessa ocasião ela não podia perguntar se ele conhecia algum menino que podia ir brincar lá? E o tio Pumblechook, que sempre pensa em nós e se preocupa conosco — ainda que tu penses que não, Joseph”, num tom profundamente acusatório, como se ele fosse o mais ingrato dos sobrinhos, “não podia então falar nesse menino que está aqui a dar pinotes” — coisa que, afirmo solenemente, eu não estava fazendo — “de quem sou uma verdadeira escrava voluntária há tantos anos?” “Muito bem dito!”, exclamou o tio Pumblechook. “Muito bem expresso! Falou muito bem! Muito bem, mesmo! Pois agora, Joseph, sabes de tudo.” “Não, Joseph”, disse minha irmã, ainda em tom de acusação, enquanto Joe, conciliador, passava as costas da mão à frente do nariz vez após vez, “ainda não sabes — mesmo que penses o contrário — de tudo. Talvez penses que sabes, mas não sabes, Joseph. Pois não sabes que o tio Pumblechook, percebendo que é bem possível que a fortuna deste menino seja garantida por essa ida à casa da senhora Havisham, ofereceu-se pra levá-lo à cidade hoje na carruagem dele, para ele passar a noite na casa dele, e entregá-lo pessoalmente à senhora Havisham amanhã de manhã. E Deus me perdoe”, exclamou minha irmã, jogando para o lado o capuz num desespero súbito, “cá estou a falar com esses dois basbaques, enquanto o tio Pumblechook está esperando, e a égua está no frio lá fora, e o menino coberto de fuligem e sujeira da ponta dos cabelos até a sola dos pés!” Dizendo isso, saltou sobre mim, como uma águia sobre um cordeiro, e meu rosto foi espremido em vasilhas de madeira dentro de pias, e minha cabeça foi posta debaixo de bicas, e fui ensaboado, e esfregado, e enxugado, e sacudido, e arranhado, e raspado, até não aguentar mais. (Vale a pena observar neste ponto que, na minha opinião, não há ninguém vivo que conheça tão bem quanto eu a sensação de ter o rosto riscado por uma aliança enfiada num dedo nem um pouco delicado.) Findas minhas abluções, vestiram-me uma roupa de baixo limpa e muito dura, como se eu fosse um penitente com um cilício, e enfiaram-me no meu traje mais apertado e terrível. Fui então entregue ao sr. Pumblechook, o qual me recebeu formalmente como se fosse o xerife e me fez o sermão que, eu sabia, ele estava morrendo de vontade de fazer desde o início: “Menino, sê sempre grato a todos os teus amigos, mas principalmente a quem te criou com a mão!”. “Até logo, Joe!” “Deus te abençoe, Pip, meu velho!” Eu nunca me separara dele antes, e sob o impacto das emoções e da espuma de sabão, de início não vi estrela alguma pela janela da sege. Mas elas foram surgindo, a tremeluzir, uma por uma, sem iluminar nem um pouco a questão do motivo inimaginável pelo qual eu ia brincar na casa da sra. Havisham, e que brincadeira inimaginável eu haveria de brincar lá. 8 As instalações do sr. Pumblechook, na High-street* da cidade onde era realizada a feira, eram pimentosas e farinhentas, como era de se esperar em se tratando de um comerciante de cereais e sementes. Parecia-me que ele haveria de ser um homem muito feliz, por ter tantas gavetinhas em sua loja; e fiquei a imaginar, quando examinei uma ou duas delas, das mais baixas, e vi os pacotes de papel pardo amarrados que lá havia, se as sementes e bulbos não teriam vontade, num dia de sol, de escapulir daquelas prisões e florescer. Foi de manhã bem cedo, no dia após a minha chegada, que elaborei essa especulação. Na noite da véspera eu fora posto para dormir num sótão de telhado inclinado, telhado esse que era tão baixo no canto onde ficava a cama que, segundo meus cálculos, as telhas ficariam a no máximo trinta centímetros de minhas sobrancelhas. Nessa mesma manhã, constatei a existência de uma afinidade singular entre as sementes e as calças de veludo. O sr. Pumblechook usava calças de veludo, e o caixeiro de sua loja também usava; e de tal modo havia nas calças de veludo certa atmosfera e um sabor que eram da natureza das sementes, e havia nas sementes certa atmosfera e um sabor que eram da natureza das calças de veludo, que eu mal conseguia distinguir uma coisa da outra. Nessa mesma oportunidade, verifiquei que o sr. Pumblechook, ao que parecia, realizava seu trabalho olhando para o seleiro do outro lado da rua, enquanto o seleiro parecia cumprir suas tarefas sempre de olho no segeiro, o qual parecia passar a vida com as mãos enfiadas nos bolsos olhando para o padeiro, o qual, por sua vez, ficava de braços cruzados olhando para o merceeiro, que, parado à porta de sua loja, bocejava olhando para o boticário. O relojoeiro, sempre sentado a uma pequena mesa, examinando um mecanismo com uma lupa no olho, e sempre examinado por um grupo de homens de guarda-pó que o viam através do vidro de sua vitrine, parecia ser a única pessoa na High-street cujo trabalho exigia atenção. O sr. Pumblechook e eu fizemos o desjejum às oito horas numa sala nos fundos da loja, enquanto o caixeiro bebia sua caneca de chá e comia seu pão com manteiga sentado num saco de ervilhas na loja. Eu considerava o sr. Pumblechook péssima companhia. Além de compartilhar com minha irmã a ideia de que minha dieta deveria ter um caráter mortificador e penitencial — além de me dar o máximo de miolo de pão e o mínimo de manteiga, e pôr tamanha quantidade de água quente no meu leite que seria mais honesto omitir o leite por completo — sua conversação consistia exclusivamente em aritmética. Quando educadamente lhe desejei bom-dia, ele retrucou, pomposo: “Sete vezes nove, menino!”. E como poderia eu lhe dar resposta sendo ignorado daquela maneira, num lugar estranho, e de estômago vazio! Eu tinha fome, mas antes de ter engolido o primeiro bocado ele deu início a uma longa soma que durou todo o desjejum. “Sete?” “Mais quatro?” “Mais oito?” “Mais seis?” “Mais dois?” “Mais dez?” E assim por diante. Uma vez resolvida mais uma soma, mal tinha eu tempo de engolir mais um pedaço ou beber mais um gole antes que viesse mais uma; enquanto isso, ele ficava à vontade, sem ter que calcular nada, comendo toucinho com pães quentes, de um modo (se me permitem a expressão) voraz e glutônico. Por tais motivos, muito me alegrei quando deram as dez horas e partimos em direção à casa da sra. Havisham, embora eu não me sentisse nem um pouco seguro quanto à maneira como deveria me comportar sob o teto dessa senhora. Em um quarto de hora chegamos à casa da sra. Havisham, que era uma estrutura velha, de tijolo, de aparência lúgubre, cercada de grades de ferro. Algumas das janelas haviam sido fechadas com tijolos; das que restavam, todas as do andar de baixo eram protegidas por grades enferrujadas. Havia um pátio na frente, cercado por grades; assim, tivemos que esperar, após tocar a campainha, até que alguém viesse abrir. Enquanto aguardávamos junto ao portão, dei uma espiada lá dentro (mesmo nesse momento o sr. Pumblechook perguntou: “Mais catorze?”, porém fingi que não o ouvia), e vi que ao lado da casa havia uma cervejaria grande. A fábrica não estava funcionando no momento, e parecia não funcionar há muito, muito tempo. Abriu-se uma janela, e uma voz límpida perguntou: “Nome?”. A que meu portador respondeu: “Pumblechook”. A voz retrucou: “Muito bem”, e a janela voltou a se fechar; e uma jovem veio atravessando o pátio, com um chaveiro na mão.“ Este”, disse o sr. Pumblechook, “é Pip.” “Então este é o Pip?”, retrucou a jovem, que era muito bonita e parecia muito orgulhosa. “Entra, Pip.” O sr. Pumblechook ia entrar também, quando ela o deteve no portão. “Ah!”, ela exclamou. “O senhor queria falar com a senhora Havisham?” “Se a senhora Havisham quiser falar comigo”, respondeu o sr. Pumblechook, desconcertado. “Ah”, disse a jovem, “mas, o senhor entende, ela não quer.” Ela falou de modo tão definitivo, num tom tão inquestionável, que o sr. Pumblechook, apesar de sua dignidade ofendida, não conseguiu protestar. Porém olhou para mim com ar severo — como se eu tivesse feito alguma coisa a ele! — e partiu com estas palavras ditas em tom de acusação: “Menino! Que a sua conduta aqui seja motivo de orgulho para quem o criou com a mão!”. Não estava eu livre do temor de que ele voltaria para me perguntar, do outro lado do portão: “Mais dezesseis?”. Mas tal não se deu. Minha jovem guia trancou o portão, e atravessamos o pátio. Era pavimentado e estava limpo, porém crescia mato em cada rachadura. Os prédios da cervejaria eram ligados a ele por um pequeno caminho; e os portões de madeira desse caminho estavam abertos para toda a cervejaria, também aberta, que se estendia até o muro alto ao longe; e tudo estava vazio e abandonado. O vento frio parecia mais frio ali dentro do que fora dos portões; e uivava de modo estridente ao entrar e sair pelas portas abertas da cervejaria, e era um som semelhante ao do vento no cordame de um navio em alto-mar. A jovem viu que eu olhava para lá, e disse: “Podias sem te prejudicar beber toda a cerveja forte que lá se faz agora, menino”. “Acho que podia, sim, moça.” “Melhor nem tentar fazer cerveja lá agora, pois ela ficaria azeda, menino; não achas?” “É o que parece, moça.” “Não que alguém vá tentar tal coisa”, ela acrescentou, “pois isso agora é passado, e o prédio há de ficar ocioso como está, até cair de podre. Quanto à cerveja forte, o que há no celeiro já é bastante para inundar a mansão.” “Esse é o nome da casa, moça?” “É um dos nomes dela, menino.” “Então ela tem mais de um, moça?” “Tem dois. O outro era Satis;1 o que em grego, ou latim, ou hebraico, ou nas três línguas — e, pra mim, tanto se me dá — quer dizer ‘bastante’.” “A Casa Bastante”, disse eu; “é um nome curioso, moça.” “É”, concordou ela; “mas queria dizer mais do que isso. Queria dizer, quando foi dado a casa, que quem dela era dono não podia querer mais nada. Naquele tempo as pessoas se satisfaziam com pouca coisa, eu diria. Mas não fiques aí a vaguear, menino.” Embora me chamasse “menino” tantas vezes, e num tom descuidado que estava longe de ser elogioso, ela era mais ou menos da minha idade. Parecia muito mais velha do que eu, é claro, por ser menina, e bonita, e senhora de si; e me tratava com tanto desdém quanto se tivesse vinte e um anos e fosse uma rainha. Entramos na casa por uma porta lateral — a grande porta da frente era atravessada por duas correntes do lado de fora — e a primeira coisa de que me dei conta foi que todos os corredores estavam às escuras, e que a moça deixara uma vela acesa ali. Ela pegou a vela, e passamos por mais alguns corredores e subimos uma escada, e tudo ainda estava escuro, e só a vela nos iluminava o caminho. Por fim chegamos à porta de um quarto, e ela disse: “Entra”. Respondi, mais por timidez do que por delicadeza: “Primeiro a senhora, moça”. Ao ouvir isso, ela retrucou: “Não sejas ridículo, menino; eu não vou entrar”. E afastou-se, desdenhosa, e — o que era pior — levou consigo a vela. Isso era desagradável, e senti um pouco de medo. Porém, como a única coisa a fazer era bater à porta, bati à porta, e uma voz vinda lá de dentro me mandou entrar. Entrei, pois, e me vi num quarto bem grande, muito bem iluminado com velas de cera. Nenhum raio de luz solar entrava ali. Era um toucador, a julgar pelos móveis, se bem que boa parte deles tinha formas e funções que eu desconhecia por completo. Porém ocupava um lugar de destaque uma mesa coberta por uma toalha, com um espelho dourado, e que identifiquei à primeira vista como uma bela penteadeira. Se eu teria identificado esse móvel tão rapidamente se não houvesse uma senhora imponente sentada diante dele, não sei dizer. Numa cadeira de braços, cotovelo apoiado na mesa e cabeça pousada na mão, estava a senhora mais estranha que eu jamais vira ou hei de ver. Trajava roupas de materiais nobres — cetins, rendas e sedas — tudo branco. Os sapatos eram brancos. E um longo véu branco caía-lhe dos cabelos, e nos cabelos havia flores, como se ela fosse uma noiva, mas os cabelos eram brancos. Algumas joias brilhantes cintilavam no pescoço e nas mãos, e outras cintilavam sobre a penteadeira. Outros vestidos, não tão esplêndidos quanto o que ela estava usando, estavam espalhados pelo recinto. Ela ainda não havia terminado de se vestir, pois só calçara um pé do sapato — o outro estava na penteadeira, perto de sua mão — o véu não estava ainda disposto de modo correto, o relógio e a corrente e uma peça de renda para usar no busto também aguardavam sobre a penteadeira, juntamente com o lenço, e as luvas, e algumas flores, e um livro de orações, tudo isso amontoado de modo confuso em torno do espelho. Não foi nos primeiros momentos que vi todas essas coisas, se bem que delas vi mais nos primeiros momentos do que se pode imaginar. Porém vi que tudo no meu campo de visão que era para ser branco fora branco há muito tempo, e perdera o brilho, e estava desbotado e amarelado. Vi que a noiva com seu vestido de noiva havia fenecido tal como o vestido, e como as flores, que não havia nela nada que brilhasse senão os olhos fundos. Vi que o vestido havia sido usado antes por uma jovem de formas arredondadas, e o corpo que ele agora cobria, em dobras folgadas, reduzira-se a pele e osso. Uma vez levaram-me a um horrendo museu de cera na feira, representando sei lá qual personagem absurdo em câmara ardente. Numa outra vez, levaram-me para uma das velhas igrejas do charco para ver um esqueleto coberto pelas cinzas de um vestido elegante, que fora escavado de uma cova debaixo do piso da igreja. Agora, a figura de cera e o esqueleto pareciam ter olhos negros que se mexiam e olhavam para mim. Eu teria gritado, se pudesse gritar. “Quem é?”, indagou a dama, junto à penteadeira. “É o Pip, senhora.” “Pip?” “O menino do senhor Pumblechook, senhora. Que veio… para brincar.” “Chega mais perto, quero te ver. Chega mais perto.” Foi quando me plantei diante dela, evitando seus olhos, que pude observar os objetos que a cercavam em detalhe, e vi que seu relógio havia parado às oito e quarenta, e que o relógio do quarto havia parado às oito e quarenta. “Olha para mim”, disse a sra. Havisham. “Não tens medo de uma mulher que não vê o sol desde que nasceste?” Lamento confessar que tive medo de dizer a tremenda mentira que estaria resumida na palavra “Não”. “Sabes onde ponho a mão, aqui?”, perguntou ela, pondo as mãos, uma sobre a outra, no lado esquerdo do peito. “Sei, sim, senhora.” (Aquilo me fez pensar no rapaz.) “Onde estou pondo a mão?” “No seu coração.” “Partido!” Pronunciou a palavra com uma expressão ávida, e muita ênfase, e um sorriso estranho que parecia conter uma espécie de bravata. Depois, manteve as mãos no lugar por mais algum tempo, e lentamente tirou-as do peito como se fossem pesadas. “Estou cansada”, disse a sra. Havisham. “Quero uma distração, e cansei dos homens e das mulheres. Brinca.” Creio que até mesmo meu leitor mais disputativo há de reconhecer que ela não poderia ter mandado um menino infeliz fazer nada no mundo mais difícil que isso, dadas as circunstâncias. “Por vezes tenho fantasias doentias”, prosseguiu ela, “e tenho a fantasia doentia de que quero ver uma brincadeira. Vamos, vamos!”, com um movimento impaciente dos dedos da mão direita; “brinca, brinca, brinca!” Por um momento, temendo vir a ver fosse o que fosse que minha irmã me ameaçara de ver, tive a ideia desesperada de começar a correr ao redor da sala fazendo de conta que era a carruagem do sr. Pumblechook. Senti-me, porém, tão incapaz de fazer tal coisa que desisti, e fiquei parado olhando para a sra. Havisham de um modo que, imagino, ela deve ter considerado insistente, pois, depois que passamos um bom tempo olhando um para o outro, perguntou-me: “És aborrecido e obstinado?” “Não, senhora; lamento muito pela senhora, e lamento muito não conseguir brincar agora. Se a senhora se queixar de mim, minha irmã vai me castigar, por isso eu bem que brincava se pudesse; mas aqui é tudo tão novo para mim, tão estranho, e tão bonito… e melancólico…” Parei, temendo dizer demais, ou mesmo já ter dito demais, e passamos mais um tempo olhando um para o outro. Antes de voltar a falar, ela desviou os olhos de mim e voltou-os para o vestido que usava, e a penteadeira, e, por fim, à sua própria imagem no espelho. “Tão novo para ele”, ela murmurou, “tão velho para mim; tão estranho para ele, tão familiar para mim; tão melancólico para nós dois! Chama a Estella.” Como ela continuava a olhar para seu próprio reflexo, julguei que estivesse falando sozinha, e permaneci calado. “Chama a Estella”, repetiu, dirigindo-me um rápido relance. “Isso podes fazer. Chama a Estella. Da porta.” Ficar parado no escuro num corredor misterioso de uma casa desconhecida, gritando “Estella” para uma moça desdenhosa que não se podia ver e que não me respondia, achando que gritar seu nome era tomar uma liberdade terrível, era quase tão desagradável quanto brincar por obrigação. Porém ela respondeu por fim, e sua luz veio descendo o longo corredor escuro como se fosse uma estrela. A sra. Havisham fez sinal para que ela se chegasse, e pegou uma joia na penteadeira, e experimentou seu efeito sobre seu seio jovem e formoso e sobre seus belos cabelos castanhos. “Será tua, um dia, minha querida, e tu a usarás bem. Quero ver-te jogando cartas com este menino.” “Com este menino! Ora, mas ele é um trabalhadorzinho vulgar!” Julguei ouvir o que a sra. Havisham disse em resposta — só que parecia uma resposta improvável — “E daí? Podes partir o coração dele.” “O que sabes jogar, menino?”, perguntou Estella a mim, com o máximo de desdém. “Só batalha, moça.” “Derrota-o na batalha”, disse a sra. Havisham a Estella. E assim sentamonos e começamos a jogar. Foi então que me dei conta de que tudo naquele quarto havia parado, tal como os dois relógios, muitos anos antes. Percebi que a sra. Havisham colocou a joia exatamente no lugar onde estava antes. Enquanto Estella dava as cartas, voltei a olhar para a penteadeira, e vi que o sapato que estava nele, outrora branco, agora amarelo, jamais fora usado. Olhei de relance para o pé a que faltava o sapato, e vi que a meia de seda que o envolvia, outrora branca, agora amarela, estava rasgada com o uso. Se não fosse essa interrupção de todo movimento, essa imobilidade de todos os objetos pálidos e gastos, nem mesmo o vestido de noiva fenecido que recobria aquele corpo destroçado poderia assemelhar-se tanto ao traje de um defunto, nem o véu tanto a uma mortalha. Assim, ela permaneceu imóvel como um cadáver enquanto nós dois jogávamos cartas; os babados e enfeites de seu vestido de noiva pareciam papel esfarelento. Na época, eu não sabia que por vezes são descobertos cadáveres enterrados na antiguidade, que se reduzem a pó no instante em que são vistos com clareza; mas posteriormente vim a refletir muitas vezes que a sra. Havisham certamente tinha a aparência de quem, se atingida pela luz do dia, teria se transformado em poeira. “Ele chama os valetes de jotas, este menino!”, exclamou Estella com desprezo, antes de terminarmos nossa primeira partida. “E como são grosseiras as mãos dele. E que botas mais pesadas!” Nunca me ocorrera envergonhar-me de minhas mãos; mas comecei a achálas bem ordinárias. O desprezo de Estella era tão forte que se tornava infeccioso, e contaminou-me. Estella ganhou a partida, e eu dei as cartas. Errei ao fazê-lo, o que era natural, pois eu sabia que ela estava aguardando a hora de me ver errar; e a moça me acusou de ser um trabalhadorzinho boçal e desajeitado. “Não dizes nada dela”, dirigiu-se a mim a sra. Havisham, enquanto assistia à partida. “Ela diz muitas coisas ruins de ti, mas não dizes nada a respeito dela. O que pensas dela?” “Não quero falar”, gaguejei. “Fala no meu ouvido”, disse a sra. Havisham, abaixando-se. “Acho que ela é muito orgulhosa”, respondi, num cochicho. “Mais alguma coisa?” “Acho que ela é muito bonita.” “Mais alguma coisa?” “Acho que ela é muito desdenhosa.” (No momento, ela olhava para mim com uma expressão de aversão extrema.) “Mais alguma coisa?” “Acho que eu queria voltar para casa.” “E nunca mais voltar a vê-la, embora ela seja tão bonita?” “Não sei se não quero voltar a vê-la, mas eu queria mesmo voltar para casa.” “Vais voltar daqui a pouco”, disse a sra. Havisham, em voz alta. “Termina a partida.” Não fosse aquele sorriso estranho que ela sorrira no início, eu teria quase certeza de que o rosto da sra. Havisham não era capaz de sorrir. Sua face assumira uma expressão atenta e pensativa — muito provavelmente no momento em que tudo que a cercava se imobilizara — e parecia que nada seria capaz de reanimá-la. Seu peito caíra, de modo que ela ficara recurva; e sua voz caíra, de modo que ela falava baixo, e com uma quietude de morte que a envolvia; no todo, dava a impressão de ter caído, corpo e alma, por dentro e por fora, sob o peso de um golpe esmagador. Joguei até o fim a partida com Estella, e ela me derrotou. Lançou as cartas na mesa depois que as ganhou todas, como se as desprezasse por tê-las ganhado de mim. “Quando vou te mandar voltar?”, disse a sra. Havisham. “Deixa-me pensar.” Ia eu dizer-lhe que era uma quarta-feira, quando ela me calou com mais um movimento impaciente dos dedos da mão direita. “Não, não! Não sei nada dos dias da semana; não sei nada das semanas do ano. Volta daqui a seis dias. Ouviste?” “Sim, senhora.” “Estella, leva-o daqui. Dá-lhe algo de comer, e deixa-o ficar a andar e olhar à sua volta enquanto come. Vai, Pip.” Fui seguindo a vela ao sair, tal como seguira a vela ao entrar, e Estella colocou-a no lugar onde a encontráramos. Até o momento em que ela abriu a porta lateral, eu imaginava, sem pensar de fato no assunto, que haveria de ser noite. O impacto da luz do dia me confundiu bastante, e me deu a impressão de que eu havia ficado muitas horas naquele quarto à luz de velas. “Tu tens que esperar aqui, menino, ouviu?”, disse Estella; e desapareceu, fechando a porta. Aproveitei a oportunidade de estar sozinho no pátio e olhei para minhas mãos grosseiras e minhas botas ordinárias. Minha opinião a respeito desses acessórios não era favorável. Eles jamais haviam me incomodado antes, mas agora me incomodavam, por serem apêndices vulgares. Resolvi perguntar a Joe por que ele me ensinara a chamar de jotas aquelas cartas de figura que deviam ser chamadas de valetes. Pensei como seria bom se Joe houvesse sido criado como um cavalheiro, pois aí eu também teria sido criado assim. Ela voltou, com um pouco de pão e carne e um pequeno caneco de cerveja. Pôs o caneco no pavimento de pedra do pátio, e deu-me o pão e a carne sem olhar para mim, tão insolente como se eu fosse um cachorro caído em desgraça. Eu estava tão humilhado, magoado, desprezado, ofendido, zangado, triste — não consigo encontrar o nome exato para a dor — Deus sabe qual seria tal nome — que me vieram lágrimas aos olhos. Assim que elas surgiram, a moça olhou-me, subitamente contente por tê-las causado. Isso me deu forças para contê-las e olhar para ela: assim, ela levantou a cabeça de repente e jogou-a para trás, com desdém — porém com a consciência, pareceu-me, de ter-se excedido ao verificar se eu estava mesmo tão magoado — e deixou-me. Porém, depois que ela saiu, olhei a meu redor, à procura de um lugar onde pudesse esconder a cara, e enfiei-me atrás de um dos portões do caminho da cervejaria, e apoiei o braço na parede, e encostei a testa na manga da camisa e chorei. Enquanto chorava, eu dava pontapés na parede, e retorcia com força meu cabelo; tão amargos eram meus sentimentos, e tão intensa a dor sem nome, que exigiam alguma reação. Minha irmã me criara de tal modo que eu me tornara sensível. No pequeno mundo em que vivem as crianças, seja quem for que as crie, nada é percebido com tanta intensidade, e sentido com tanta intensidade, quanto a injustiça. As injustiças a que a criança é exposta podem ser pequenas; mas a criança é pequena, e seu mundo é pequeno, e seu cavalo de balanço é tão alto, guardadas as proporções, quanto um Irish hunter de ossos grandes. No meu íntimo, eu vivia, desde a mais tenra infância, um conflito perpétuo com a injustiça. Eu sabia, desde que aprendi a falar, que minha irmã, com sua coerção caprichosa e violenta, era injusta comigo. Eu nutria a convicção profunda de que ter ela me criado com a mão não lhe dava o direito de me criar aos cachações. Em meio a todos os castigos, vexames, jejuns e vigílias, e outras penitências, eu nutria essa certeza; e é a intensa convivência com ela, de um modo solitário e desprotegido, que me parece ser a principal causa de eu ter-me tornado moralmente tímido e muito sensível. Livrei-me de meus sentimentos feridos por algum tempo, golpeando-os com meus pés contra a parede da cervejaria, e arrancando-os de meu cabelo ao torcê-lo, e depois alisei o rosto contra a manga da camisa, e saí detrás do portão. O pão e a carne eram aceitáveis, e a cerveja me aquecia e animava, e logo tive ânimo de olhar à minha volta. Sem dúvida, era um lugar deserto, como estava deserto o pombal no pátio da cervejaria, no alto de um poste que algum vento forte entortara, de tal modo que os pombos haveriam de se imaginar em alto-mar, se pombos lá houvesse a balouçar-se. Mas não havia pombos no pombal, nem cavalos na estrebaria, nem porcos na pocilga, nem malte no armazém, nem cheiros de cereais e cerveja no tacho nem no tonel. Era como se todas as funções e todos os cheiros da cervejaria houvessem evaporado junto com o último fiapo de fumaça. Num pátio adjacente, havia uma selva de barris vazios, em torno dos quais ainda pairava uma lembrança azeda de dias melhores; mas era azeda demais para ser tomada como amostra da cerveja que não havia mais — e, sob esse aspecto, esses reclusos, assim me pareceu, eram semelhantes à maioria dos reclusos. Atrás da extremidade mais distante da cervejaria havia um jardim abandonado, cercado por um muro velho: não tão alto que eu não pudesse subir nele e me segurar o tempo suficiente para olhar por cima dele, e ver que o jardim abandonado era o jardim da casa, e que ele estava tomado por um emaranhado de mato, mas que havia marcas de passos nas pistas verdes e amarelas, como se alguém por vezes andasse lá, e vi Estella afastando-se de mim naquele exato momento. Mas ela parecia estar em toda parte. Pois quando não resisti à tentação e comecei a caminhar sobre os barris, vi Estella andando sobre eles no outro lado do pátio. Estava de costas para mim, e segurava com as duas mãos o lindo cabelo castanho, e não olhava para trás, e logo saiu de meu campo de vista. Assim, entrei na cervejaria em si — ou seja, no prédio amplo e majestoso onde outrora se fabricava cerveja, e onde os implementos usados para fazer cerveja ainda estavam em seus lugares. Tão logo entrei, e, um tanto oprimido pela escuridão, parei junto à porta olhando a meu redor, vi Estella passar por entre os fogões apagados, e subir por uma escada de ferro leve, e sair por uma galeria bem elevada, como se fosse penetrar no céu. Foi nesse lugar, e nesse momento, que uma coisa estranha sucedeu com minha fantasia. Julguei estranho o que vi então, e julguei-o ainda mais estranho por muito tempo depois. Voltei os olhos — um pouco ofuscados por estarem virados para a fria luz do dia — em direção a uma grande viga de madeira num recanto baixo do prédio perto de mim, à minha direita, e vi um vulto pendurado ali pelo pescoço. Um vulto todo de branco amarelado, com apenas um dos pés calçados; e pendurado de tal modo que me permitia ver que os babados desbotados do vestido pareciam papel esfarelento, e que o rosto era o da sra. Havisham, a mover-se como se ela estivesse tentando chamar-me. Apavorado por me ver diante daquele vulto, e apavorado por estar certo de que ele não estivera ali um momento antes, de início fugi correndo, e depois corri em direção ao vulto. E fiquei ainda mais apavorado quando verifiquei que não havia vulto algum ali. Nada menos que a luz fria do céu alegre, a visão de gente passando do outro lado das grades do portão e a influência revivificante do que restava do pão, da carne e da cerveja teria feito com que eu recuperasse os sentidos. Mesmo com esses estímulos, eu talvez não tivesse recuperado os sentidos tão depressa se não tivesse visto Estella se aproximando com as chaves, vindo abrir o portão para mim. Ela teria bons motivos para me desprezar, pensei, se me visse assustado; e eu não queria que ela tivesse bons motivos. Estella voltou-me um olhar triunfal quando passou por mim, como se estivesse se regozijando com minhas mãos grosseiras e minhas botas pesadas, e abriu o portão, e ficou a segurá-lo. Eu estava saindo sem olhar para ela, quando ela me tocou com uma mão provocante. “Por que não choras?” “Porque não quero.” “Choras, sim”, disse ela. “Choraste até não poder mais, e agora estás quase chorando de novo.” Ela riu, desdenhosa, empurrou-me para fora e trancou o portão na minha cara. Fui direto à casa do sr. Pumblechook, e fiquei muitíssimo aliviado quando soube que ele não estava em casa. Assim, tendo dito ao caixeiro em que dia a sra. Havisham queria que eu voltasse, comecei a caminhar as quatro milhas que me separavam da nossa ferraria; pensando, enquanto seguia, em tudo que eu vira, e remoendo profundamente a ideia de que eu era um trabalhadorzinho vulgar; que minhas mãos eram grosseiras, que minhas botas eram pesadas; que eu adquirira o hábito desprezível de chamar os valetes de jotas; que eu era muito mais ignorante do que julgava ser na véspera, e, de modo geral, que minha vida era muito vil e má. * High-street: a rua principal de uma cidade. (n. t.) 9 Quando cheguei em casa, minha irmã estava curiosíssima para que eu lhe contasse tudo a respeito da sra. Havisham, e me fez uma série de perguntas. E logo em seguida comecei a levar cachações fortes na nuca e no lombo, e minha cabeça foi empurrada contra a parede da cozinha do modo mais humilhante, por não ter eu dado respostas suficientemente longas a essas perguntas. Se o pavor de não ser compreendido se oculta no coração das outras crianças tanto quanto se ocultava no meu — o que me parece provável, pois não tenho nenhum motivo para me considerar uma espécie de monstro — ele explica muitos casos de reserva. Eu estava convicto de que, se descrevesse a sra. Havisham tal como meus olhos a viram, não seria compreendido. Não só isso, como também estava convicto de que também a sra. Havisham não seria compreendida; e embora ela fosse de todo incompreensível para mim, tinha eu a impressão de que seria de algum modo grosseiro e traiçoeiro eu evocar a imagem real dessa senhora (para não falar na da jovem Estella) para a contemplação da sra. Joe. Assim, falei o mínimo possível, e terminei com a cabeça empurrada contra a parede da cozinha. O pior de tudo foi que Pumblechook, aquele velho tirânico, consumido por uma curiosidade doentia, queria ser informado de tudo que eu vira e ouvira, e chegou sequioso em sua carruagem na hora do chá, para que os detalhes lhe fossem divulgados. E, diante daquele tormento, com seus olhos de peixe e boca entreaberta, o cabelo ruivo espetado como se numa interrogação, o peito arfando de aritmética gasosa, por pirraça tornei-me ainda mais reticente. “Bem, menino”, foi dizendo o tio Pumblechook, tão logo se instalou no lugar de honra ao pé do fogo. “Como foi lá?” Respondi: “Muito bem, senhor”, e minha irmã sacudiu o punho para mim. “Muito bem?”, repetiu o sr. Pumblechook. “‘Muito bem’ não é resposta. Explique o que queres dizer com ‘muito bem’, menino?” Cal de parede na testa endurece o cérebro, tornando-o obstinado, talvez. Seja como for, tendo eu a testa suja de cal, minha obstinação tornou-se férrea. Refleti por algum tempo, e em seguida respondi, como se tivesse tido uma nova ideia: “Quero dizer que fui muito bem”. Minha irmã, com uma exclamação de impaciência, estava prestes a partir para cima de mim — eu não tinha qualquer esperança de proteção, pois Joe estava trabalhando na ferraria — quando o sr. Pumblechook interveio: “Não! Não perca as estribeiras. Deixe o rapazinho comigo, minha senhora; deixe o rapazinho comigo”. O sr. Pumblechook virou-me para si, como se fosse cortar meu cabelo, e disse: “Primeiro (para pôr em ordem as ideias): quarenta e três pence.”1 Calculei as consequências de responder “quatrocentas libras”, e concluindo que elas seriam negativas para mim, aproximei-me da resposta certa tanto quanto pude — ou seja, errando por cerca de oito pence. Então o sr. Pumblechook me fez recitar a tabuada dos pence desde “doze pence dão um xelim” até “quarenta pence dão três xelins e quatro pence”, e em seguida exigiu, triunfante, como se me houvesse encurralado: “Agora! Quarenta e três pence dão quanto?”. Respondi, após um longo intervalo de reflexão: “Não sei”. E eu estava tão irritado que quase chego a pensar que não sabia, mesmo. O sr. Pumblechook retorceu a cabeça como se fosse um parafuso, para com ele abrir meu raciocínio, e indagou: “Quarenta e três pence dão sete xelins, seis pence e três farthings,* por exemplo?”. “Isso!”, exclamei. E embora minha irmã na mesma hora socasse meus ouvidos, para mim foi muito gratificante ver que minha resposta tirou a graça de sua brincadeira, e o fez calar-se por completo. “Menino! Como é a senhora Havisham?”. O sr. Pumblechook voltou à carga depois que se recuperou, com os braços cruzados sobre o peito e apertando seu parafuso. “Muito alta e morena”, respondi. “É mesmo, tio?”, perguntou minha irmã. O sr. Pumblechook fez que sim com uma piscadela, com base na qual deduzi na mesma hora que ele jamais vira a sra. Havisham, pois ela em nada correspondia a tal descrição. “Bom!”, exclamou o sr. Pumblechook, presunçoso. (“É assim que vamos pegá-lo! Estamos começando a avançar, creio eu, não é, senhora?”) “Certamente, tio”, retrucou a sra. Joe. “Eu queria muito que o senhor o pegasse sempre: o senhor sabe lidar com ele muito bem.” “Mas sim, menino! O que ela estava fazendo quando chegaste lá hoje?”, perguntou o sr. Pumblechook. “Ela estava sentada”, respondi, “dentro de uma carruagem de veludo preto.” O sr. Pumblechook e a sra. Joe entreolharam-se — e não era para menos — repetindo ambos: “Dentro de uma carruagem de veludo preto?”. “Isso mesmo”, respondi. “E a Estella — a sobrinha dela, eu acho — serviulhe bolo e vinho pela janela da carruagem, num prato de ouro. E nós todos comemos bolo e tomamos vinho em pratos de ouro. E eu subi atrás da carruagem para comer meu bolo, porque ela mandou.” “Havia mais alguém lá?”, perguntou o sr. Pumblechook. “Quatro cachorros”, respondi. “Grandes ou pequenos?” “Enormes”, disse eu. “E eles ficaram brigando por umas costeletas de vitelas servidas numa cesta de prata.” O sr. Pumblechook e a sra. Joe entreolharam-se outra vez, em total perplexidade. Eu estava completamente frenético — uma testemunha desarvorada sob tortura — e seria capaz de lhes dizer qualquer coisa. “Onde estava essa carruagem, Deus do céu?”, indagou minha irmã. “No quarto da senhora Havisham.” Os dois entreolharam-se de novo. “Mas não havia cavalo nenhum.” Fiz essa ressalva salvadora imediatamente após rejeitar quatro corcéis ricamente ajaezados, que tive a ideia louca de atrelar à carruagem. “Isso é possível, tio?”, indagou a sra. Joe. “O que esse menino está querendo dizer?” “Eu sei o que é, minha senhora”, replicou o sr. Pumblechook. “A meu ver, é uma liteira. Ela é caprichosa, sabe — muito caprichosa — o bastante pra ficar o tempo todo dentro de uma liteira.” “O senhor já a viu na liteira, tio?”, perguntou a sra. Joe. “Mas como?”, retrucou ele, obrigado a confessar-se. “Como, se eu nunca a vi na minha vida? Nunca pus os olhos nela!” “Meu Deus, tio! E, no entanto, o senhor já falou com ela?” “Ora, a senhora não sabe”, ele explicou, irritado, “que quando vou lá, levamme até junto à porta do quarto dela, e a porta fica entreaberta, e ela fala comigo pela fresta? Não me diga que a senhora não sabia disso. Mas, enfim, o menino foi lá para brincar. De que brincaste, menino?” “Brincamos com bandeiras”, respondi. (Peço licença para comentar que vejo a mim mesmo com perplexidade, quando relembro as mentiras que contei nessa ocasião.) “Bandeiras!”, repetiu minha irmã. “Isso mesmo”, respondi. “A Estella sacudia uma bandeira azul, e eu sacudia uma vermelha, e a senhora Havisham uma toda salpicada de estrelinhas douradas, pela janela da carruagem. E depois todos nós sacudíamos nossas espadas e gritávamos hurra.” “Espadas!”, repetiu minha irmã. “Onde vocês pegaram as espadas?” “Num armário”, expliquei. “E vi que dentro dele tinha pistolas também — e geleia — e pílulas. E não entrava a luz do dia na sala, era só luz de velas.” “Isso é verdade, sim, senhora”, disse o sr. Pumblechook, balançando a cabeça, solene. “É essa a situação, pois eu próprio já verifiquei.” E então os dois olharam para mim, e eu, com uma expressão atrevida de espontaneidade no rosto, olhei para eles, enquanto pregueava a perna direita das calças com a mão direita. Se eles houvessem feito mais perguntas, sem dúvida eu terminaria por me entregar, pois estava prestes a acrescentar que havia um balão no quintal, e só não cheguei a arriscar tal afirmação porque minha inventividade estava dividida entre esse fenômeno e a presença de um urso na cervejaria. Eles, porém, estavam tão entretidos em comentar as maravilhas por mim expostas a sua consideração, que escapei. O assunto ainda os ocupava quando Joe veio da ferraria para tomar uma xícara de chá. E a ele minha irmã, mais para aliviar sua própria mente do que para gratificar a dele, relatou minhas supostas experiências. Ora, quando vi Joe arregalar os olhos azuis e correr a vista por toda a cozinha, sem saber o que fazer de tão atônito, fui tomado pelo remorso; mas o sentimento era dirigido a ele apenas — nem um pouco aos outros dois. Em relação a Joe, e só a Joe, eu me sentia um monstrinho, enquanto eles conversavam sobre as possíveis consequências de eu travar conhecimento com a sra. Havisham e cair nas graças dela. Estavam certos de que a sra. Havisham “faria alguma coisa” por mim; mas não tinham certeza a respeito do que essa coisa viria a ser. Minha irmã apostava na “propriedade”. O sr. Pumblechook era a favor de um generoso pagamento para que eu me tornasse aprendiz de algum ofício refinado — por exemplo, o comércio de cereais e sementes. Joe caiu em desgraça junto a ambos, por dar a brilhante sugestão de que talvez apenas eu ganhasse de presente um dos cães que haviam disputado as costeletas de vitela. “Se na tua parvoíce não tens opiniões melhores para dar”, disse minha irmã, “e tens trabalho a fazer, melhor ir trabalhar.” Foi o que Joe fez. Depois que o sr. Pumblechook voltou para sua casa, e quando minha irmã foi se lavar, escapuli para a ferraria para ficar com Joe, e lá permaneci até que ele encerrasse o expediente. Então eu lhe disse: “Antes de apagar o fogo, Joe, queria te contar uma coisa”. “É mesmo, Pip?”, disse Joe, puxando seu banquinho para perto da fornalha. “Então dize lá. O que foi, Pip?” “Joe”, comecei, segurando a manga enrolada de sua camisa e retorcendo-a entre o indicador e o polegar, “lembra tudo que falei sobre a casa da senhora Havisham?” “Se lembro?”, disse Joe. “Acredito em ti! Maravilhoso!” “É terrível, Joe; mas não é verdade.” “O que estás dizendo, Pip?”, exclamou Joe, jogando-se para trás na maior perplexidade. “Não é possível que estejas me dizendo que…” “Isso mesmo, Joe; é mentira.” “Mas não tudo? Ora, não vais me dizer, Pip, que não havia nenhuma carruagem de veludo pr… hein?” Pois eu sacudi a cabeça. “Mas pelo menos tinha cachorro, Pip. Ora, Pip”, disse Joe, num tom persuasivo, “se não tinha costeleta de vitela, pelo menos cachorro tinha?” “Não, Joe.” “Nem unzinho?”, insistiu ele. “Um filhote? Hein?” “Não, Joe, não havia nada disso.” Enquanto eu olhava fixamente para Joe, desconsolado, ele me olhava com desânimo. “Pip, meu velho! Isso não se faz, rapaz! Ora veja! Onde que pretendes ir parar?” “É terrível, Joe, não é?” “Terrível?”, exclamou ele. “É horrendo! O que deu em ti?” “Não sei o que deu em mim, Joe”, respondi, soltando a manga de sua camisa e me sentando em meio às cinzas a seus pés, de cabeça baixa; “mas eu queria que tu não tivesses me ensinado a chamar os valetes do baralho de jotas; e queria que minhas botas não fossem tão pesadas, e minhas mãos não fossem tão grosseiras.” Então disse a Joe que era muito infeliz, que não conseguira me explicar à sra. Joe e ao sr. Pumblechook que me tratavam tão mal, e que havia uma mocinha muito bonita na casa da sra. Havisham que era terrivelmente orgulhosa, e que ela dissera que eu era vulgar, e que eu sabia que era vulgar, e que eu queria não ser vulgar, e que as mentiras haviam surgido a partir disso, se bem que eu não sabia como. Tratava-se de uma questão metafísica, ao menos tão difícil para Joe quanto era para mim. Mas Joe retirou o problema da esfera da metafísica, e desse modo o resolveu. “De uma coisa não deves ter dúvida, Pip”, disse Joe, após ruminar por algum tempo, “é que mentira é mentira. Seja lá como ela aparece, ela não devia de aparecer, e ela vem do pai das mentira, e todas ela dá no mesmo. Não contes mais mentira, não, Pip. Não é assim que vais deixar de ser vulgar, meu velho. E quanto a ser vulgar, não entendi muito bem essa. Não tens nada de vulgar numas coisa. És muito pequeno pra tua idade, o que não é vulgar. E também em matéria de estudo não és vulgar.” “Sou, sim, Joe. Sou muito ignorante, Joe.” “Ora, então eu não vi a carta que escreveste ontem! E em letra de imprensa ainda por cima! Já vi carta — e carta escrita por gente de qualidade — que juro que não era escrita em letra de imprensa”, disse Joe. “Não aprendi quase nada, Joe. Tu me tens em alta conta. É só isso.” “Bem, Pip”, disse Joe, “seje ou não seje verdade, o fato é que tens que começar sendo vulgar em matéria de estudo pra depois poder ser invulgar, a meu ver! O rei lá, sentado no trono dele, com a coroa na cabeça, não pode escrever as lei do Parlamento em letra de imprensa sem antes começar, quando ainda era príncipe, antes de ser promovido, a aprender as letra do alfabeto — Ah!”, acrescentou Joe, com um meneio de cabeça cheio de significados, “e tem que começar no A, e seguir até o Z. E eu sei o que é fazer isso, mesmo não tendo feito muito direitinho.” Havia alguma esperança nessa sabedoria, e ela me animou um bocado. “E se pra quem é vulgar em matéria de profissão e renda”, prosseguiu Joe, pensativo, “não é melhor mesmo continuar andando com quem é vulgar, em vez de ir brincar com os invulgar — aliás, por falar nisso, tinha mesmo bandeira, não tinha? Eu espero que sim.” “Não tinha, não, Joe.” “(Pena que não tinha bandeira, Pip.) Se isso é ou não é verdade, é coisa que não dá pra descobrir agora, sem a tua irmã ficar espumando, e fazer isso de propósito, nem pensar. Olha aqui, Pip, quem te fala é amigo de verdade. Ouve o que te diz este amigo de verdade. Se não conseguires ser invulgar andando às direita, não vais conseguir andando às torta. Então não contes mais mentira, não, Pip, e vive bem e morre feliz.” “Não estás zangado comigo, não, Joe?” “Não, meu velho. Mas levando-se em conta que as que contaste eram, diguemos assim, de uma natureza muito assombrosa e exagerada — inclusive com alusães a costeleta de vitela e briga de cachorro — meu conselho de amigo, Pip, é que tu penses nelas quando fizeres tuas meditaçães, na hora de te deitares. Só isso, meu velho, e nunca mais voltes a fazer isso.” Quando subi a meu quartinho e pus-me a rezar, não me esqueci da recomendação de Joe, e, no entanto, minha mente infantil estava em tal estado de perturbação ingrata que muito após me deitar continuava pensando que Estella acharia Joe, um mero ferreiro, muito vulgar: botas tão pesadas, mãos tão grosseiras. Pensei que Joe e minha irmã estavam na cozinha e que eu viera da cozinha a meu quarto, e que a sra. Havisham e Estella nunca ficavam na cozinha, porém estavam muito acima dessas vulgaridades. Adormeci pensando no que eu “costumava fazer” quando ia à casa da sra. Havisham, como se eu a frequentasse há semanas e meses, e não horas; como se fosse um tema que há muito ocupasse minhas recordações, e não um que surgira apenas naquele dia. Foi para mim um dia memorável, pois ocasionou grandes mudanças em mim. Mas é assim com todas as vidas. Imagine que um determinado dia fosse eliminado de sua vida, e pense em todas as consequências que isso teria sobre o resto dela. Para e pensa, tu que me lês, por um momento, na longa cadeia de ferro ou ouro, de espinhos ou flores, que jamais te teria cingido, não fosse a formação do primeiro elo num dia memorável. * O farthing era uma moeda que valia um quarto de um pêni. (n. t.) 10 Ocorreu-me, uma ou duas manhãs depois, ao despertar, a ideia feliz de que o melhor a fazer, no sentido de me tornar invulgar, era extrair de Biddy tudo que ela sabia. Tendo em vista esse plano luminoso, disse eu a Biddy, quando fui à casa da tia-avó do sr. Wopsle naquela noite, que tinha um motivo especial para querer subir na vida, e que eu lhe ficaria muito agradecido se ela me transmitisse todos os seus conhecimentos. Biddy, que era a mais prestativa das moças, de imediato prometeu-me que o faria, e de fato começou a cumprir sua promessa cinco minutos depois. O plano ou curso educacional estabelecido pela tia-avó do sr. Wopsle pode ser resumido na sinopse que se segue. Os alunos comiam maçãs e punham palha um nas costas do outro, até que a tia-avó do sr. Wopsle reunia suas forças e esboçava em direção a eles um gesto indiscriminado com uma vara de vidoeiro. Tendo reagido a esse ataque com muitas manifestações de deboche, os alunos entravam em fila e ruidosamente passavam um livro rasgado de mão em mão. O livro continha um alfabeto, algumas cifras e tabuadas e um pouco de ortografia — melhor dizendo, contivera tais coisas outrora. Tão logo esse volume começava a circular, a tia-avó do sr. Wopsle entrava num estado de coma, provocado pelo sono ou por algum paroxismo reumático. Quanto aos alunos, esses começavam a disputar uma espécie de sabatina competitiva a respeito do assunto botas, com o fito de determinar quem era capaz de pisar com mais força nos pés de quem. Esse exercício mental perdurava até o momento em que Biddy se precipitava sobre eles e distribuía três Bíblias desfiguradas (cuja forma levava a pensar que eram extremidades mal cortadas de alguma coisa), cuja impressão era mais ilegível do que qualquer outra curiosidade literária que me tenha caído nas mãos desde então, bíblias todas salpicadas de tinta e contendo diversos espécimes de insetos esmagados entre suas páginas. Essa parte do curso costumava ser animada por uma série de combates individuais entre Biddy e alunos refratários. Findas as lutas, Biddy dava o número da página e todos nós líamos em voz alta o que conseguíamos ler — ou o que não conseguíamos ler — num coro horrendo, puxado por Biddy com uma voz alta, estridente e monótona, sendo que nenhum de nós fazia a menor ideia, nem sentia a mínima reverência, pelo que estávamos lendo. Quando essa barulheira terrível se prolongava por certo tempo, tinha o efeito automático de despertar a tia-avó do sr. Wopsle, que avançava sobre um menino aleatório e lhe puxava as orelhas. Este era o sinal convencional que assinalava o término da aula daquela noite, e saíamos para a rua com gritos de vitória intelectual. Há que admitir que os alunos não eram proibidos de se entreterem com uma lousa ou mesmo com tinta (quando havia tinta), porém não era fácil entregar-se a tais atividades no inverno, porque a pequena loja onde eram realizadas as aulas — e que era também a sala de estar e o quarto de dormir da tia-avó do sr. Wopsle — era mal iluminada por uma única e desanimada vela de imersão, sem espevitadeiras.1 Parecia-me que seria necessário muito tempo para me tornar invulgar em tais circunstâncias; não obstante, resolvi tentar, e naquela mesma noite Biddy começou a pôr em prática o que havíamos combinado, repassando-me informações de seu pequeno catálogo de preços, referentes ao açúcar mascavo, e me emprestando, para que eu copiasse em casa, um D grande e antiquado que ela imitara do cabeçalho de algum jornal, e que me parecera, até ela me explicar o que era, o desenho de uma fivela. Havia, é claro, uma taberna na aldeia, e Joe, é claro, gostava de ir lá às vezes para fumar seu cachimbo. Eu recebera ordens rigorosas de minha irmã para ir chamá-lo nesse estabelecimento, chamado Aos Três Barqueiros Alegres, naquela noite, quando voltasse da escola, e o trouxesse para casa, senão eu seria punido. Assim sendo, segui para o Três Barqueiros Alegres. Havia na Três Barqueiros um salão de bebidas, com umas contas assustadoramente longas escritas em giz na parede ao lado da porta, que me pareciam jamais ter sido pagas. Estavam ali desde que eu me tinha por gente, e haviam crescido mais do que eu. Mas havia muito giz na nossa região, e talvez as pessoas não quisessem perder uma oportunidade de utilizá-lo. Como era sábado, encontrei o proprietário a contemplar essas anotações com ar um tanto tristonho, mas como eu estava ali para falar com Joe e não com ele, limitei-me a desejar-lhe boas-noites e segui em direção ao salão no final do corredor, onde um fogão grande estava aceso, e onde Joe fumava seu cachimbo acompanhado pelo sr. Wopsle e um desconhecido. Joe me saudou, como sempre, com “Olá, Pip, meu velho!”, e tão logo ele me saudou o estranho virouse e olhou para mim. Era um homem de ar misterioso que eu jamais vira antes. A cabeça estava inclinada para um lado, e um de seus olhos estava entrefechado, como se ele mirasse algum alvo com uma arma invisível. Tinha na boca um cachimbo, e tirou-o, e após soprar lentamente toda a fumaça, olhando para mim o tempo todo, acenou com a cabeça. Fiz o mesmo, e depois ele repetiu o gesto, e chegouse para o lado no banco de madeira para que eu pudesse me sentar também. Mas, como costumava sentar-me ao lado de Joe sempre que ia àquele lugar, eu disse: “Não, obrigado, senhor”, e instalei-me no lugar que Joe abrira para mim no banco em frente. O estranho, após olhar para Joe, e vendo que a atenção de Joe estava voltada para outro foco de interesse, acenou outra vez para mim depois que me sentei, e em seguida esfregou a mão na perna — de um modo muito estranho, foi o que me pareceu. “O senhor estava dizendo”, disse o desconhecido, virando-se para Joe, “que era ferreiro.” “Sim. Foi o que eu disse”, respondeu Joe. “O que o senhor vai tomar, senhor…? Aliás, ainda não me disse sua graça.” Joe identificou-se, e o desconhecido chamou-o pelo nome. “O que o senhor vai tomar, senhor Gargery ? Às minhas custas? Pra fechar?” “Sabe”, disse Joe, “pra falar com franqueza, não tenho o hábito de beber às custa dos outro, não.” “Hábito? Ora”, retrucou o estranho, “mas uma vez na vida só, e numa noite de sábado inda por cima. Vamos lá! Diga o que vai tomar, senhor Gargery .” “Não quero ser má companhia”, disse Joe. “Rum.” “Rum”, repetiu o desconhecido. “E o outro cavalheiro vai manifestar sua preferência?” “Rum”, disse o sr. Wopsle. “Três rum!”, exclamou o estranho, dirigindo-se ao proprietário. “Copo pra todo mundo!” “Este outro cavalheiro”, observou Joe, como forma de apresentar o sr. Wopsle, “o senhor havia de gostar de ouvir este cavalheiro fazendo uma leitura. É o sacristão da nossa igreja.” “Ahá!”, disse o estranho, mais que depressa, inclinando a cabeça e olhando para mim. “A igreja solitária, no meio do charco, cercada de túmulo!” “Essa mesma”, disse Joe. O desconhecido, pitando com um grunhido de prazer, pôs as pernas em cima do banco que ocupava sozinho. Usava um chapéu de viajante, de abas largas e moles, debaixo do qual havia um lenço amarrado na cabeça à guisa de capuz: de modo que dele não se via o cabelo. Enquanto ele olhava para o fogo, julguei divisar em seu rosto uma expressão astuciosa, seguida por um meio riso. “Não conheço esta terra, mas parece ser um lugar solitário, ali perto do rio.” “Chaco é sempre um lugar solitário”, disse Joe. “Sem dúvida, sem dúvida. Por lá hoje em dia a gente encontra cigano, ou vagabundo, ou alguma outra espécie de gente vadia?” “Não”, disse Joe, “só um que outro forçado fugido de vez em quando. E esses, a gente nunca que encontra, com facilidade. Não é, senhor Wopsle?” O sr. Wopsle concordou, com um gesto majestoso que reconhecia a lembrança de um desconforto antigo; mas sem entusiasmo. “Pelo visto, vocês já saíram atrás de um deles?”, indagou o estranho. “Uma vez”, respondeu Joe. “Não que a gente quisesse pegar eles, veja lá; nós fumo só pra ver; eu, o senhor Wopsle, e mais o Pip. Não foi, Pip?” “Foi, Joe.” O desconhecido olhou-me outra vez — ainda de cabeça inclinada, como se estivesse me mirando com sua arma invisível — e disse: “Simpático, esse rapazinho magricela. Como foi que o senhor chamou ele?”. “Pip”, respondeu Joe. “Nome de batismo?” “Não, não é nome de batismo, não.” “Sobrenome?” “Não”, explicou Joe, “é uma espécie de apelido que ele se deu quando pequeno, e a gente chama ele assim.” “Seu filho?” “Bem”, respondeu Joe, pensativo — não, é claro, que fosse necessário meditar acerca da questão, mas porque, na Três Barqueiros, as pessoas pareciam meditar profundamente a respeito de tudo enquanto pitavam seus cachimbos, “bem… não. Não é, não.” “Sobrinho?”, perguntou o estranho. “Bem”, disse Joe, com o mesmo ar de cogitação profunda, “não — não, não vou lhe enganar, ele não é — meu sobrinho.” “Mas então, o que cargas-d’água ele é?”, indagou o estranho. O que me pareceu uma interrogativa excessivamente enfática. Nesse momento, interveio o sr. Wopsle, um entendido em relacionamentos, que tinha oportunidades profissionais de saber quais parentas um homem não podia desposar,2 e explicou o vínculo que havia entre mim e Joe. Tendo entrado na conversa, o sr. Wopsle aproveitou para encaixar uma passagem terrivelmente violenta de Ricardo III,3 e pelo visto julgou ter justificado muito bem a citação acrescentando: “…como diz o poeta”. E aqui cabe observar que quando o sr. Wopsle se referia a mim, ele via como parte necessária dessa referência os gestos de despentear meu cabelo e enfiá-lo em meus olhos. Não consigo entender por que motivo todas as pessoas da mesma condição social que ele, ao visitar nossa casa, sempre me faziam passar pelo mesmo processo inflamatório em circunstâncias semelhantes. Não me lembro de uma única ocasião na minha infância em que, sendo objeto de algum comentário no círculo social de nossa família, alguma pessoa de mãos grandes não tenha recorrido ao mesmo método oftálmico de me tratar com condescendência. Durante todo esse tempo, o homem estranho olhava apenas para mim, e olhava-me como se estivesse decidido a encontrar uma oportunidade de por fim atirar em mim, e me derrubar. Não disse nada, porém, após sua observação sobre as cargas-d’água, enquanto não foram trazidos os copos de rum com água; e foi então que deu seu tiro, um tiro dos mais extraordinários. Não foi um comentário verbal, e sim um procedimento de mímica, claramente endereçado a mim. Mexeu seu copo de rum com água de maneira ostensivamente dirigida a mim, e provou seu rum com água de maneira ostensivamente dirigida a mim. E o mexeu e o provou: não com a colher que lhe foi entregue, e sim com uma lima. Fez isso de tal modo que ninguém, além de mim, viu a lima; e, tendo-o feito, enxugou a lima e guardou-a num bolso interno. Percebi que era a lima de Joe, e que o homem conhecia o meu forçado, tão logo pus os olhos na ferramenta. Fiquei a olhá-lo fixamente, fascinado. Depois, porém, o estranho reclinou-se no banco, dando-me muito pouca atenção, e falando principalmente sobre nabos. Havia uma deliciosa sensação de arrumar as coisas e fazer uma pausa tranquila antes de tocar a vida para a frente, na nossa aldeia, nas noites de sábado, algo que estimulava Joe a ousar voltar para casa meia hora mais tarde aos sábados do que nos outros dias. Como já chegavam ao fim a meia hora e o copo de rum com água, Joe levantou-se para sair, e pegou-me pela mão. “Espere só um instante, senhor Gargery ”, disse o desconhecido. “Acho que tenho um xelim novinho em folha no bolso, e se tiver mesmo, vou dá-lo ao menino.” Encontrou o xelim num punhado de moedas, embrulhou-o num papel amassado e entregou-o a mim. “É teu!”, disse ele. “Veja lá! Só teu.” Agradeci, olhando para ele muito além dos limites da boa educação, agarrado a Joe. Ele deu as boas-noites a Joe, e deu as boas-noites ao sr. Wopsle (que saiu conosco), e a mim limitou-se a dirigir um olhar com seu olho de fazer pontaria — não, não foi um olhar, pois ele fechou o olho, mas coisas maravilhosas podem ser feitas com um olho escondendo-o. A caminho de casa, se estivesse com vontade de conversar, eu teria de falar sozinho, pois o sr. Wopsle despediu-se de nós à porta da Três Barqueiros, e Joe foi até em casa com a boca escancarada, para que o ar levasse embora o cheiro de rum tanto quanto possível. Mas eu estava de certo modo estupefato diante dessa consequência da má ação que eu cometera e do conhecimento que eu travara no passado, e não conseguia pensar em mais nada. Minha irmã não estava de humor muito mau quando nos apresentamos na cozinha, e Joe sentiu-se estimulado por essa circunstância inesperada para lhe falar do xelim novo em folha. “Deve ser falso, aposto”, disse a sra. Joe, triunfal, “senão ele não dava pro menino! Mostra cá.” Desembrulhei a moeda do papel, e ela se revelou verdadeira. “Mas o que é isso?”, disse a sra. Joe, largando o xelim e pegando o papel. “Duas notas de uma libra?”4 Nada menos do que duas notas gordas e suadas, que pareciam ter gozado da maior intimidade com todos os mercados de gado do condado. Joe pegou o chapéu e saiu correndo para devolvê-las ao dono. Na sua ausência, sentei-me em meu banquinho costumeiro e fiquei olhando para minha irmã com um olhar sem expressão, certo de que o homem não estaria lá. Pouco depois Joe voltou, dizendo que o homem tinha ido embora, mas que ele, Joe, deixara um recado para ele na Três Barqueiros Alegres a respeito das notas. Então minha irmã embrulhou-as num pedaço de papel que ela lacrou, e colocou-as debaixo de umas folhas de roseira secas num bule ornamental em cima de um armário na sala de visitas de cerimônia. E lá ficaram, um pesadelo para mim, por muitos dias e muitas noites. Quando me deitei, meu sono foi tristemente interrompido por pensamentos do estranho a mirar-me com sua arma invisível, e do que havia de culposamente grosseiro e vulgar em ter relações clandestinas e secretas com forçados — um momento da minha carreira de vilezas que eu havia esquecido. Também me assombrava aquela lima. Dominava-me o medo de que, quando eu menos esperasse, a lima reaparecesse. Convenci-me a dormir pensando na ida à casa da sra. Havisham, na quarta-feira seguinte; e num sonho vi a lima saindo de uma porta e aproximando-se de mim, sem que eu visse quem a segurava, e acordei gritando. 11 À hora combinada, voltei à casa da sra. Havisham, e quando toquei a campainha do portão, hesitante, Estella veio abrir. Ela trancou o portão assim que entrei, como da outra vez, e tal como antes foi seguindo à minha frente pelo corredor escuro onde ficava a sua vela. Ignorou minha presença até o momento em que pegou a vela, quando então se virou para trás, numa atitude arrogante, e disse: “Hoje tens que vir por aqui”, e conduziu-me por um caminho que levava a outra parte bem diferente da casa. Este corredor era longo, e parecia estender-se por todo o porão quadrado da mansão. Porém atravessamos apenas um lado do quadrado; ao final ela parou, largou a vela e abriu uma porta. Então a luz do dia reapareceu, e me vi num pequeno pátio pavimentado, o lado oposto do qual era formado por uma casa separada, que parecia ter pertencido outrora ao administrador ou diretor da cervejaria extinta. Havia um relógio na parede externa dessa casa. Tal como o relógio do quarto da sra. Havisham, e como o relógio de bolso dela, ele estava parado indicando as oito e quarenta. Entramos pela porta, que estava aberta, e fomos dar num cômodo escuro de teto baixo, no andar térreo, nos fundos da casa. Havia outras pessoas presentes, e Estella me disse ao juntar-se a elas: “Fica parado ali, menino, até que te chamem”. Como “ali” se referia à janela, fui até ela, e fiquei “ali”, num estado mental de grande desconforto, olhando para fora. A janela dava para o terreno, para um canto muito desolador do jardim abandonado, com pés de repolho transformados em mato e um buxo que fora podado muitos anos antes, em forma de pudim, do alto do qual brotara um outro ramo, de forma e cor diferentes, como se aquele pedaço do pudim tivesse grudado na panela e queimado. Foi esse o pensamento singelo que tive ao contemplar o buxo. Havia nevado um pouco durante a noite, e que eu soubesse não restava mais neve em lugar algum; porém nem toda a neve havia derretido na sombra fria daquele trecho de jardim, e o vento levantava-a em pequenos torvelinhos e lançava-a contra a vidraça, como se protestando por estar eu ali. Eu imaginava que minha chegada houvesse interrompido as conversas na sala, e que os outros presentes estivessem olhando para mim. Da sala eu nada via além do brilho do fogo refletido na vidraça, mas enrijeci todas as minhas articulações por ter consciência de que estava sendo examinado detidamente. Havia na sala três senhoras e um cavalheiro. Antes que eu completasse cinco minutos parado à janela, essas pessoas de algum modo me fizeram entender que eram todas bajuladoras e impostoras, mas que cada uma delas fingia não saber que as outras eram bajuladoras e impostoras: pois se admitisse que sabia disso, então ficaria claro que também ela era uma bajuladora e uma impostora. Todas essas pessoas tinham o ar desanimado e entediado de quem está à disposição de alguém, e a mais falante das senhoras tinha de falar com certa rigidez para não bocejar. Essa senhora, que se chamava Camilla, em muito me lembrava minha irmã, com a diferença de que era mais velha, e (como percebi quando olhei para ela) tinha feições mais duras. De fato, depois que a conheci melhor, comecei a achar que era de admirar que tivesse feições de alguma espécie, pois seu rosto era um muro sem vida, alto e nu. “Coitado!”, exclamou esta senhora, com um jeito abrupto igual ao de minha irmã. “Só tem a si próprio por inimigo!” “Seria bem mais aceitável ser inimigo de outra pessoa”, observou o cavalheiro; “bem mais natural.” “Primo Ray mond”, comentou outra senhora, “nós devemos amar o próximo.” “Sarah Pocket”, redarguiu o primo Ray mond, “se um homem não é seu próprio próximo, quem haverá de ser?” A sra. Pocket riu, e Camilla riu e disse (contendo um bocejo): “Que ideia!”. Porém pareceu-me que todos achavam a ideia muito boa também. A outra senhora, que ainda não havia falado, disse, muito séria e enfática: “Tem toda a razão!”. “Coitado!”, prosseguiu Camilla depois de algum tempo (eu sabia que todos tinham ficado a olhar-me nesse ínterim). “Ele é tão estranho! Vocês acreditariam se eu dissesse que quando a mulher do Tom morreu, não foi possível convencê-lo que era importante que os filhos usassem o luto mais profundo? ‘Meu Deus!’ ele disse, ‘Camilla, que diferença faz desde que os pobrezinhos estejam de preto?’ Só mesmo o Matthew! Que ideia!” “Ele tem lá suas qualidades, tem lá suas qualidades”, comentou o primo Ray mond; “Deus me livre de negar que ele tem qualidades; mas nunca teve, e nunca vai ter, o senso da medida.” “Imaginem que fui obrigada”, prosseguiu Camilla, “fui obrigada a ser firme. Eu disse: ‘Isso é inadmissível, pelo bom nome da família’. Eu disse a ele que, sem o luto mais profundo, a família cairia em desgraça. Chorei desde o desjejum até o almoço. Prejudiquei minha digestão. E por fim, daquele modo violento dele, ele exclamou, com uma imprecação: ‘Então faz o que bem entenderes’. Graças a Deus que sempre hei de me consolar com o pensamento de que na mesma hora saí no meio de um temporal e comprei as coisas.” “Foi ele quem pagou, não foi?”, perguntou Estella. “A questão, minha querida menina, não é quem pagou”, respondeu Camilla, “mas que fui eu quem comprou. E hei de me lembrar disso muitas vezes, com alívio, quando acordar no meio da noite.” O soar de uma campainha ao longe, juntamente com o eco de um grito no corredor pelo qual eu viera, interrompeu a conversa e fez com que Estella me dissesse: “Vai, menino!”. Quando me virei, todos olhavam para mim com o máximo de desprezo, e, quando saí, ouvi Sarah Pocket dizendo: “Mas que coisa! Era só o que faltava!”, e Camilla acrescentar, indignada: “Onde já se viu um capricho assim! Que i-dei-a!”. Enquanto seguíamos com nossa vela pelo corredor escuro, Estella parou de repente e, virando-se para trás, disse, com seu jeito provocador, aproximando bem o rosto do meu: “E então?” “E então, moça?”, respondi, tendo que me deter para não cair em cima dela. Ela ficou parada olhando para mim, e, é claro, eu fiquei parado olhando para ela. “Sou bonita?” “É, sim; acho a senhora muito bonita.” “Sou desdenhosa?” “Menos do que da outra vez”, disse eu. “Menos?” “É.” Ela abespinhou-se ao fazer essa última pergunta, e deu-me um tabefe com toda a sua força, quando respondi. “E agora?”, ela perguntou. “Monstrinho grosseiro, o que achas de mim agora?” “Não vou dizer, não.” “Porque vai dizer a ela, lá em cima. Não é?” “Não”, respondi, “não é.” “Por que não choras de novo, criaturinha desgraçada?” “Porque nunca mais vou chorar pela senhora”, respondi. O que, creio eu, foi uma mentira deslavada; pois por dentro eu estava chorando por ela naquele exato momento, e sei o que sei da dor que ela me proporcionou depois. Tomamos a escada depois desse episódio; e, enquanto subíamos, encontramos um cavalheiro descendo a escada escura, tateando. “Quem é que está aí?”, perguntou ele, parando e olhando para mim. “Um menino”, disse Estella. Era um homem corpulento, de tez muitíssimo escura, com uma cabeça grandíssima e mãos proporcionais a ela. Pegou meu queixo com sua manzorra e virou meu rosto para cima a fim de vê-lo à luz da vela. Tinha uma calva prematura no cocuruto, e sobrancelhas espessas e negras que não ficavam no lugar, porém erguiam-se, espetadas. Tinha olhos muito fundos, desagradavelmente penetrantes e desconfiados. Do bolso pendia uma corrente de relógio avantajada, e no rosto havia pontos negros grandes nos lugares que seriam cobertos pela barba e pelas suíças se ele não as raspasse. O homem não era nada para mim, e eu não poderia prever naquele momento que ele viria a ser alguma coisa para mim, mas por acaso tive essa oportunidade de observá-lo bem.“ Um menino da vizinhança? Hein?”, ele perguntou. “Sim, senhor”, respondi. “O que fazes aqui?” “A senhora Havisham mandou-me vir, senhor”, expliquei. “Ora! Comporta-te. Eu tenho muita experiência com meninos, e os meninos não são flor que se cheire. Vê lá”, disse ele, mordendo o lado do dedo médio comprido, franzindo o cenho para mim, “comporta-te!” Com essas palavras, soltou-me — o que me aliviou, pois sua mão cheirava a sabonete perfumado — e continuou descendo a escada. Fiquei a pensar se ele seria médico; mas não, pensei; não devia ser médico, senão teria um jeito mais discreto e persuasivo. Não havia muito tempo para pensar na questão, pois logo estávamos entrando no quarto da sra. Havisham, onde ela e tudo o mais estavam tal como estavam quando eu lá estivera antes. Estella deixou-me junto à porta, e ali fiquei parado até que a sra. Havisham, sentada à penteadeira, olhou para mim. “Pois então!”, ela exclamou, sem parecer assustada nem surpresa; “os dias se passaram, não?” “Sim, senhora. Hoje 酔 “Não, não, não!” Fez aquele gesto de impaciência com os dedos. “Não quero saber. Estás pronto para brincar?” Fui obrigado a responder, um tanto constrangido: “Acho que não estou não, senhora”. “Nem para jogar cartas, de novo?”, ela indagou, com um olhar perscrutador. “Sim, senhora; isso eu posso fazer, se a senhora quiser.” “Como esta casa te parece velha e severa, menino”, disse a sra. Havisham, impaciente, “e não estás disposto a brincar, estás disposto a trabalhar?” Essa pergunta eu podia responder com mais ânimo do que a anterior, e disse que sim, que estava muito bem-disposto a trabalhar. “Então vai pra aquele quarto, ali em frente”, ordenou, apontando para a porta atrás de mim com a mão engelhada, “e espera até eu chegar.” Atravessei o patamar da escada e entrei no cômodo por ela indicado. Dentro dele, também, a luz do sol estava de todo excluída, e havia um cheiro abafado que era opressivo. O fogo fora aceso pouco antes na lareira úmida e antiquada, e estava mais disposto a apagar do que a pegar, e a fumaça relutante que pairava no recinto parecia mais fria que o ar mais limpo — tal como a névoa do nosso charco. Alguns galhos hibernais de velas no console alto da lareira iluminavam o ambiente fracamente; ou, para ser mais expressivo, perturbava de leve a escuridão. O cômodo era espaçoso, e pareceu-me que outrora fora belo, mas tudo que ali se podia ver estava coberto de poeira e mofo, e estava caindo aos pedaços. O objeto que mais se destacava era uma mesa comprida com uma toalha, como se uma festa estivesse sendo preparada no momento em que a casa e os relógios pararam todos juntos. Havia uma espécie de centro de mesa no ponto central da toalha; estava de tal modo recoberto de teias de aranha que era impossível distinguir sua forma; e, enquanto eu contemplava aquela extensão amarela da qual, lembro-me, ela parecia brotar como se fosse um fungo escuro, vi aranhas de patas pintadas e corpos manchados correndo para ela ou dela saindo, como se algum evento da maior importância pública tivesse acabado de ocorrer na comunidade das aranhas. Eu ouvia ratos também, a tamborilar atrás dos lambris de madeira, como se o mesmo acontecimento também fosse importante para eles. As baratas, porém, não se davam conta da agitação, e arrastavam-se em torno da lareira lerdas e desajeitadas como velhos, como se enxergassem e escutassem mal, e não falassem umas com as outras. Esses seres rastejantes mantinham-me fascinado, e eu os contemplava à distância quando a sra. Havisham pousou a mão no meu ombro. Na outra mão ela levava uma bengala que era como uma muleta no alto, na qual se apoiava, e parecia a bruxa daquele lugar. “É aqui”, disse ela, apontando para a mesa comprida com a bengala, “que vão me deitar quando eu estiver morta. Eles vão vir me ver aqui.” Com o vago temor de que ela pudesse subir na mesa naquele exato instante e morrer de imediato, tornando-se a concretização completa da figura de cera que eu vira na feira, recuei de seu toque. “O que pensas que é aquilo?”, perguntou-me ela, novamente apontando com a bengala; “aquilo, cheio de teias de aranha.” “Não posso imaginar, não, senhora.” “É um bolo grande. Um bolo de casamento.1 Meu!” Ela olhou a seu redor com os olhos arregalados, e depois disse, apoiando-se em mim enquanto apertava meu ombro: “Vem, vem, vem! Anda comigo, anda comigo!”. Entendi que o trabalho que me cabia era andar com a sra. Havisham, dando voltas e mais voltas na sala. Assim, comecei a andar de imediato, com ela apoiada em meu ombro, seguindo nós dois num ritmo que parecia uma imitação (fundada no primeiro impulso que eu tivera naquela casa) da carruagem do sr. Pumblechook. A sra. Havisham tinha pouca força física, e não demorou para que ela dissesse: “Mais devagar!”. Assim mesmo, seguimos a um ritmo espasmódico e impaciente, e enquanto seguíamos ela me apertava o ombro, e contorcia a boca, e me fazia pensar que estávamos andando depressa porque seus pensamentos eram rápidos. Depois de algum tempo ela ordenou: “Chama a Estella!”. Assim, fui até o patamar da escada e gritei o nome tal como na ocasião anterior. Quando a luz de Estella apareceu, voltei para o lado da sra. Havisham, e recomeçamos a dar voltas e mais voltas na sala. Se Estella viesse sozinha para ser espectadora de nossa caminhada, eu já haveria de ficar um tanto desconcertado; mas como ela trouxe consigo as três senhoras e o cavalheiro que eu vira no andar de baixo, eu não sabia o que fazer. Por educação, teria parado; mas a sra. Havisham apertou meu ombro, e seguimos adiante — eu, com muita vergonha de que as pessoas achassem que a ideia era minha. “Cara senhora Havisham, disse a sra. Sarah Pocket, “a senhora está muito bem!” “Não estou, não”, redarguiu ela. “Sou só pele amarela e ossos.” Camilla alegrou-se quando a sra. Pocket recebeu essa resposta; e murmurou, enquanto contemplava a sra. Havisham com olhar melancólico: “Coitadinha! Como poderia estar bem a pobrezinha. Que ideia!”. “E como está você?”, a sra. Havisham perguntou a Camilla. Como estávamos naquele momento perto dela, naturalmente inclinei-me a parar, só que a sra. Havisham não quis parar. Seguimos em frente, e senti que estava sendo muito indelicado com Camilla. “Obrigada, senhora Havisham”, ela respondeu. “Estou tão bem quanto era de se esperar.” “Ora, qual o seu problema?”, perguntou a sra. Havisham, num tom muito áspero. “Nada que valha a pena dizer”, retrucou Camilla. “Não quero fazer um espetáculo de meus sentimentos, mas tenho pensado mais na senhora à noite do que posso suportar.” “Então não pense em mim”, retorquiu a sra. Havisham. “Falar é fácil!”, respondeu Camilla, simpaticamente reprimindo um soluço, enquanto seu lábio superior começou a tremer, e as lágrimas transbordavam os olhos. “Pergunte ao Ray mond quanto eu tenho de tomar de gengibre e sais voláteis2 toda noite. Pergunte ao Ray mond quantos espasmos nervosos eu tenho nas pernas. Mas sufocações e espasmos nervosos não são novidade para mim, quando penso com ansiedade nos meus entes queridos. Se eu conseguisse ser menos afetuosa e sensível, minha digestão seria melhor e eu teria nervos de aço. Quisera eu. Mas quanto a não pensar na senhora à noite… que ideia!” Mais uma explosão de lágrimas. Entendi que o Ray mond por ela mencionado era o cavalheiro ali presente, e entendi também que ele seria o sr. Camillo. A essa altura ele veio a seu auxílio, e disse, num tom de consolação e elogio: “Camilla, minha querida, todos sabem que teus sentimentos pela família estão aos poucos te abalando de tal modo que uma das tuas pernas está ficando mais curta que a outra”. “Que eu saiba”, observou a senhora severa cuja voz eu só ouvira uma vez, “pensarmos numa pessoa não nos dá mais direitos sobre essa pessoa, minha cara.” A sra. Sarah Pocket, a qual, verifiquei nesse momento, era uma velhinha seca, de pele escura e enrugada, com um rostinho que parecia feito de cascas de nozes, e uma boca larga como a boca de um gato, sem os bigodes, concordou, dizendo: “Não dá, não, minha cara. Hm!”. “Pensar é fácil”, disse a senhora severa. “Haverá coisa mais fácil do que pensar?”, concordou a sra. Sarah Pocket. “É mesmo, é mesmo!”, exclamou Camilla, cujos sentimentos pareciam, ao fermentar, subir das pernas para o peito. “É verdade, sim! É uma fraqueza ser tão afetuosa, mas não posso fazer nada. Sem dúvida, minha saúde seria muito melhor se eu não fosse assim, mas eu não gostaria de ser diferente, mesmo que eu pudesse. Por mais sofrimento que me cause, é um consolo saber que sou assim, quando acordo no meio da noite.” Mais uma explosão de sentimentos. Eu e a sra. Havisham não paramos nenhuma vez durante todo esse tempo, porém continuávamos dando voltas e mais voltas, ora roçando nas saias das visitas, ora afastando-nos delas para o outro lado daquela sala lúgubre. “Vejam o Matthew!”, disse Camilla. “Nunca se aproxima dos parentes, nunca vem aqui ver como está a senhora Havisham! Já fui levada a um sofá com o laço do espartilho cortado, e fiquei três horas deitada, desacordada, com a cabeça caída para um lado, todo o cabelo solto, meus pés não sei onde…” (“Bem mais altos que tua cabeça, meu amor”, disse o sr. Camillo.) “Já passei horas nesse estado, horas e horas, por conta do comportamento estranho e inexplicável do Matthew, e ninguém me agradece.” “Mas, falando sério, não vejo por quê!”, interveio a senhora severa. “Minha cara”, acrescentou a sra. Sarah Pocket (uma personagem suavemente repugnante), “a pergunta que deves fazer a ti própria é: quem haveria de te agradecer, querida?” “Sem esperar agradecimento, nem nada semelhante”, prosseguiu Camilla, “já permaneci nesse estado horas e horas, e perguntem ao Ray mond quantas vezes não sufoquei, sem que o gengibre tivesse o menor efeito, a ponto de eu ser ouvida da casa do afinador de pianos do outro lado da rua, onde as crianças, pobrezinhas, chegaram a pensar que fossem pombos arrulhando ao longe — e agora vêm me dizer…” Nesse ponto Camilla levou a mão à garganta, e novos compostos químicos pareceram formar-se ali. Quando o tal de Matthew voltou a ser mencionado, a sra. Havisham deteve a mim e a si própria e ficou parada olhando para quem falava. Essa mudança teve o efeito de fazer com que a química de Camilla terminasse de súbito. “O Matthew há de vir me ver no final”, disse a sra. Havisham, grave, “quando eu estiver estendida nessa mesa, morta. Ali é onde ele vai ficar”, batendo com a bengala na mesa, “junto à minha cabeça! E o seu lugar será ali! E o do seu marido ali! E o da Sarah Pocket ali! E o da Georgiana ali! Agora vocês todos sabem quais são os seus lugares, quando vierem me devorar. Agora vão embora!” Ao mencionar cada nome ela batia na mesa com a bengala, cada vez num lugar diferente. Então se virou para mim: “Anda comigo, anda comigo!”. E voltamos a caminhar. “Acho que não há outra coisa a fazer”, exclamou Camilla, “senão obedecer e partir. Não é pouca coisa ver o objeto do nosso amor e nosso dever, mesmo que seja por tão pouco tempo. Vou pensar nisso com uma satisfação melancólica quando acordar no meio da noite. Eu queria muito que o Matthew pudesse ter esse conforto, mas ele o renega. Estou decidida a não exibir meus sentimentos, mas é muito difícil ouvir alguém me dizer que quero devorar um parente — como se eu fosse um gigante3 — e ser mandada embora. Mas que ideia!” Como o sr. Camillo interveio no momento em que a sra. Camilla pôs a mão no seio arfante, a senhora em questão assumiu uma postura de firmeza forçada, que, imaginei, significava seu propósito de cair no chão sufocada tão logo saísse de cena, e após beijar a mão da sra. Havisham ela foi levada para fora da sala. Sarah Pocket e Georgiana ficaram disputando quem deveria ser a última a sair; mas Sarah era esperta demais para ser passada para trás, e ficou a andar em torno de Georgiana de modo tão ardiloso que a outra foi obrigada a ir embora primeiro. Sarah Pocket então pôde partir sozinha exclamando “Deus a abençoe, querida senhora Havisham!”, com um sorriso em seu rosto de casca de noz que exprimia piedade magnânima para as fraquezas das outras pessoas. Enquanto Estella iluminava a escada para as visitas, a sra. Havisham continuava a caminhar com a mão no meu ombro, porém cada vez mais devagar. Por fim parou diante da lareira, e disse, depois de resmungar e olhar para o fogo por alguns instantes: “Hoje é meu aniversário, Pip.” Eu ia dar-lhe os parabéns quando ela levantou a bengala. “Não permito que falem no meu aniversário. Não permito que as pessoas que acabam de sair daqui, ou quem quer que seja, falem nele. Elas vêm aqui no dia, mas não ousam falar nele.” Naturalmente, eu não esbocei mais nenhuma tentativa de me referir à data. “Neste dia do ano, muito antes de nasceres, esse monte de podridão”, apontando com a bengala a pilha de teias de aranha na mesa, mas sem tocá-la, “foi trazido aqui. Ele e eu decaímos juntos. Os ratos o roeram, e dentes mais afiados que os dos ratos me roeram.” Apertou a parte de cima da bengala contra o coração enquanto contemplava a mesa; ela, com seu vestido outrora branco, todo amarelado e fenecido; a toalha de mesa outrora branca toda amarelada e fenecida; tudo que a cercava prestes a desmoronar ao menor toque. “Quando a ruína for completa”, disse ela, com um olhar horrendo, “e quando me deitarem morta, com meu vestido de noiva, na mesa da festa do casamento — o que há de ser feito, e há de ser a maldição final sobre a cabeça dele — tanto melhor se for neste dia!” Ficou olhando para a mesa como se contemplasse seu próprio corpo nela estendido. Permaneci mudo. Estella voltou, e também ela ficou muda. Tive a impressão de que ficamos assim por um bom tempo. No ar pesado da sala, e na escuridão pesada que pairava nos cantos mais remotos, tive a fantasia assustadora de que eu e Estella logo começaríamos a apodrecer também. Por fim, saindo de seu estado de perturbação não aos poucos, mas de repente, a sra. Havisham disse: “Quero ver vocês dois jogando cartas; por que ainda não começaram?”. Com isso, voltou para seu quarto, e nós nos sentamos como antes; fui derrotado na batalha, como antes; e mais uma vez, como antes, a sra. Havisham ficou a observar-nos o tempo todo, dirigindo minha atenção para a beleza de Estella, e fazendo-me percebê-la mais ainda ao colocar suas joias no peito e no cabelo da moça. Estella, por sua vez, tratou-me como antes; só que dessa vez não condescendeu em me dirigir a palavra. Depois que jogamos meia dúzia de partidas, foi marcado o dia em que eu voltaria, e fui levado ao quintal para ser alimentado tal como antes, como se fosse um cachorro. Lá, também, permitiram-me que ficasse a andar para todos os lados, conforme me desse na veneta. Pouco importa se o portão no muro do jardim, em que da vez anterior eu subira para olhar do outro lado, estava, nesta ocasião, aberto ou fechado. O importante é que da outra vez não vi portão algum, e nesta ocasião eu o vi. Como estava aberto, e como eu sabia que Estella o abrira para as visitas — pois ela voltara com as chaves na mão — entrei no jardim e andei por todo ele. Era uma verdadeira selva, e havia alguns estufins velhos para melões e pepinos, que pareciam ter produzido, em sua decadência, rebentos espontâneos que eram tentativas malsucedidas de produzir pedaços de botas e chapéus velhos, com um ou outro broto em forma de frigideira estragada. Tendo visto todo o jardim, e uma estufa na qual não havia nada além de uma videira caída e algumas garrafas, dei por mim naquele canto melancólico que eu vira pela janela. Absolutamente convicto de que a casa estava vazia, olhei para dentro de uma das outras janelas e dei por mim, com grande espanto, trocando um olhar direto com um jovem cavalheiro pálido de pálpebras avermelhadas e cabelo claro. Esse jovem pálido rapidamente desapareceu, reaparecendo a meu lado. Estava ocupado com seus livros quando me vi olhando para ele, e percebi agora que estava sujo de tinta. “Ei!”, exclamou ele. “Garoto!” Como “ei” é uma observação de caráter geral que, como aprendi por observação, deve ser respondida do mesmo modo, também eu exclamei “ei!”, mas por educação não repeti “garoto”. “Quem deixou você entrar?”, ele perguntou. “A senhora Estella.” “Quem deixou você ficar andando por aí?” “A senhora Estella.” “Venha lutar”, disse o jovem cavalheiro pálido. O que podia eu fazer senão segui-lo? Muitas vezes tenho dirigido essa pergunta a mim mesmo desde então; mas, de fato, que outra coisa eu poderia fazer? Seu tom era tão decidido e eu estava tão atônito que segui atrás dele, como se estivesse sob o efeito de um encantamento. “Mas espere um pouco”, disse ele, dando meia-volta após darmos apenas uns poucos passos. “Preciso lhe dar uma razão para lutar, também. É esta!” Do modo mais irritante, na mesma hora ele bateu uma mão contra a outra, delicadamente jogou uma das pernas para trás, puxou-me o cabelo, bateu palmas de novo, abaixou a cabeça e deu-me uma cabeçada no estômago. Este último gesto taurino, além de ser indubitavelmente um abuso, era mais desagradável ainda por ocorrer logo após a ingestão de pão e carne. Assim sendo, investi contra ele, e ia investir de novo quando ele exclamou: “Ah, é? Então é assim?”, e começou a dançar para a frente e para trás, de uma maneira de todo inédita para a minha limitada experiência. “As leis do jogo!”, disse ele. Nesse ponto, pulou, jogando o peso da perna esquerda para a direita. “As regras regulares!” Nesse ponto, pulou, jogando o peso da perna direita para a esquerda. “Venha ao campo, e passe pelas preliminares!” Nesse ponto, ficou a saltitar para trás e para a frente, fazendo uma série de movimentos enquanto eu olhava para ele, impotente. Fiquei, no íntimo, com medo dele ao ver que era tão ágil; sentia-me, porém, moral e fisicamente convicto de que aquela cabeça loura não tinha o direito de intrometer-se no meu estômago, e que eu tinha o direito de considerá-la irrelevante quando ela de tal modo se impunha à minha atenção. Portanto, seguio sem dizer palavra até um recanto remoto do jardim, formado pela junção de dois muros e ocultado por um monte de lixo. Quando ele me perguntou se eu estava satisfeito com a escolha do lugar, e respondi que sim, ele me pediu permissão para ausentar-se por um momento, voltando mais que depressa com uma garrafa d’água e uma esponja embebida em vinagre. “É para nós dois”, disse, colocando os objetos junto ao muro. E então se pôs a despir não apenas o paletó e o colete, mas também a camisa, de um modo ao mesmo tempo tranquilo, eficiente e sanguissedento. Embora ele não parecesse muito saudável — pois tinha espinhas no rosto, e uma erupção na boca — esses terríveis preparativos me horrorizaram. Eu calculava que ele teria mais ou menos a minha idade, mas era muito mais alto, e tinha um jeito de rodopiar que era muito impressionante. No mais, era um jovem cavalheiro com um terno cinzento (antes de se despir para o combate), com cotovelos, joelhos, pulsos e calcanhares bem mais avançados que o resto do corpo em seu desenvolvimento. Meu ânimo fraquejou quando o vi assumindo a posição de luta, dando todas as demonstrações de habilidade mecânica, e encarando minha anatomia como se estivesse escolhendo um osso com todo o cuidado. A maior surpresa de toda a minha vida foi, ao dar o primeiro soco, vê-lo caído no chão, olhando-me com o nariz ensanguentado e o rosto visto por um ângulo que o deformava. Mas na mesma hora ele se pôs de pé, e após limpar-se com a esponja, dando grandes mostras de agilidade, voltou a assumir a posição de combate. A segunda maior surpresa de minha vida foi vê-lo caído outra vez, olhando para mim com um olho roxo. Sua disposição despertou em mim um profundo respeito. Ele parecia não ter força alguma, e não me acertou um único golpe violento, e sempre era derrubado; porém levantava-se logo em seguida, limpando-se com a esponja ou bebendo um gole d’água, reanimando-se com muita satisfação da maneira apropriada, e depois investindo contra mim com um ar e um ânimo tais que eu era levado a acreditar que finalmente ele ia acabar comigo dessa vez. Ele acabou ficando bem machucado, pois lamento dizer que quanto mais eu batia nele, mais força eu usava; mas ele se levantava vez após vez após vez, até que por fim levou um tombo feio e deu com a cabeça no muro. Mesmo após essa crise nas nossas relações, ele se pôs de pé e deu algumas voltas, confuso, sem saber onde eu estava; mas por fim foi de joelhos até a esponja e jogou-a para o alto, exclamando ao mesmo tempo, ofegante: “Isto quer dizer que você ganhou”. Ele parecia tão corajoso e inocente que, embora não tivesse sido eu quem propusera a disputa, senti apenas uma satisfação melancólica com minha vitória. De fato, chego a desejar que eu tenha pensado, enquanto me vestia, que não passava de uma espécie de filhote de lobo selvagem, ou de alguma outra fera. Porém, vesti-me, de vez em quando enxugando meu rosto sanguinário com um gesto soturno, e perguntei: “Posso ajudá-lo?”, e ele respondeu: “Não, obrigado”, e eu disse: “Boa tarde”, e ele respondeu: “Para você também”. Quando voltei para o pátio, encontrei Estella esperando com as chaves na mão. Mas ela não me perguntou onde eu estivera, nem por que eu a fizera esperar-me; e seu rosto estava corado de alegria, como se tivesse acontecido alguma coisa que lhe dera enorme prazer. Além disso, em vez de ir diretamente ao portão, ela deu um passo atrás e fez sinal para mim. “Vem cá! Podes me beijar, se quiseres.” Beijei-lhe o rosto quando ela o virou para mim. Creio que teria sido capaz de sofrer muito para poder beijar-lhe o rosto. Mas senti que aquele beijo fora dado ao trabalhadorzinho grosseiro tal como se fosse uma moeda, e não valia nada. Com as visitas de aniversário, e os jogos de cartas, e a luta, minha estada se prolongara tanto que, quando me aproximei de minha casa, a luz do farol na ponta de areia que saía do cabo no charco brilhava contra um céu negro, e a fornalha de Joe lançava uma faixa de fogo que atravessava a rua. 12 Eu estava intranquilo com relação à luta com o jovem cavalheiro pálido. Quanto mais eu pensava no assunto, e me lembrava do jovem cavalheiro caído no chão, o rosto cada vez mais inchado e vermelho, mais me parecia certo que haveriam de fazer alguma coisa comigo. Tinha eu a impressão de ser culpado por derramar o sangue do jovem cavalheiro, e que a lei haveria de vingá-lo. Sem ter uma ideia nítida das penas em que eu incorrera, estava claro para mim que os meninos da aldeia não podiam andar por aí, invadindo as casas das pessoas de bem e atacando os jovens estudiosos da Inglaterra, sem se expor a castigos severos. Por alguns dias, evitei afastar-me muito de casa, e fiquei a olhar para fora pela porta da cozinha com todo o cuidado e muito temor antes de sair para realizar alguma tarefa, julgando que os homens da cadeia do condado poderiam pegar-me. O nariz do jovem cavalheiro pálido havia sujado minhas calças, e tentei lavar a prova do crime na alta madrugada. Eu havia ferido os nós dos dedos nos dentes do jovem cavalheiro pálido, e retorcia minha imaginação de milhares de maneiras, concebendo justificativas incríveis para aquelas circunstâncias incriminadoras, a serem utilizadas quando eu fosse levado a julgamento. Quando chegou o dia de voltar ao local de meu ato de violência, meu terror atingiu o auge. Haveria mirmídones da justiça,1 vindos especialmente de Londres, aguardando-me em emboscada atrás do portão? A sra. Havisham, preferindo vingar-se pessoalmente do ultraje ocorrido em sua casa, haveria de levantar-se, envolta naquelas suas roupas de defunto, sacar uma pistola e matarme? Meninos contratados — um bando numeroso de mercenários — viriam atacar-me na cervejaria, socando-me até a morte? Tamanha era minha confiança na honra do jovem cavalheiro pálido que jamais concebi a possibilidade de que ele fosse cúmplice de tais retaliações; elas sempre me vinham à mente como atos de seus parentes insensatos, movidos pelo estado de seu rosto e pela solidariedade indignada com os traços fisionômicos da família. Porém eu tinha de ir à casa da sra. Havisham, e para lá fui. E, maravilha das maravilhas, nada aconteceu em consequência da luta. Não foi feita nenhuma menção a ela, e nenhum jovem cavalheiro pálido foi visto na propriedade. Encontrei aberto o mesmo portão, e explorei o jardim, e cheguei mesmo a olhar pelas janelas da casa dos fundos; porém minha visão esbarrou nas persianas baixadas por dentro, e não havia sinal de vida. Apenas no canto onde a luta tivera lugar pude detectar sinais da existência do jovem cavalheiro. Havia marcas de sangue no lugar, e com terra do jardim ocultei-as de olhares humanos. No largo patamar entre o quarto da sra. Havisham e a sala onde ficava a mesa grande, vi uma cadeira de jardim — uma cadeira leve com rodas, dessas que são empurradas por detrás. Fora colocada ali após minha última visita, e nesse mesmo dia passei a ocupar-me regularmente com a tarefa de empurrar a sra. Havisham nessa cadeira (quando ela se cansava de andar apoiada no meu ombro) dando voltas em seu próprio quarto, e atravessando o patamar, e dando voltas na sala da mesa. Vez após vez após vez, percorríamos essa trajetória, em algumas ocasiões por três horas corridas. Dou-me conta de que passei a me referir a essas viagens como numerosas, porque foi na mesma hora decidido que eu voltaria um dia sim, outro não, ao meio-dia, com esse fim, e porque passo agora a resumir um período de no mínimo oito ou dez meses. À medida que nos fomos acostumando um com o outro, a sra. Havisham começou a falar mais comigo, e perguntar-me coisas como o que havia eu aprendido, e que seria eu na vida. Respondi-lhe que ia me tornar aprendiz de Joe, ao que parecia; e muito me estendi sobre o fato de que eu nada sabia e queria saber tudo, na esperança de que ela me oferecesse alguma ajuda no sentido de atingir essa meta desejável. Mas ela não o fez; pelo contrário, dava a impressão de preferir que eu permanecesse ignorante. Também nunca me deu dinheiro algum — nada além de meu jantar — nem sequer estipulou que eu fosse pago pelos meus serviços. Estella estava sempre por perto, e sempre abria o portão para eu entrar e sair, mas nunca me permitiu que a beijasse outra vez. Às vezes me tolerava friamente; às vezes agia comigo com muita familiaridade; às vezes afirmava com veemência que me odiava. A sra. Havisham com frequência perguntavame num cochicho, ou quando estávamos a sós: “Ela está cada vez mais bonita, Pip?”. E quando eu respondia que sim (pois de fato Estella estava cada vez mais bonita), ela parecia saborear minha resposta com avidez. Além disso, quando jogávamos cartas a sra. Havisham assistia, gozando com um prazer avaro os estados de espírito de Estella, quaisquer que fossem. E por vezes, quando esses estados de espírito eram tantos e tão contraditórios que eu ficava sem saber o que dizer ou fazer, a sra. Havisham abraçava-a com uma abundância de carinhos, murmurando em seu ouvido algo que parecia ser: “Parte-lhes os corações, meu orgulho e esperança, parte-lhes os corações sem piedade!”. Havia uma canção que Joe gostava de cantarolar de modo fragmentário na ferraria, que tinha no estribilho o velho Clem.2 Não era uma maneira muito respeitosa de homenagear um santo padroeiro; mas creio que o velho Clem era mesmo muito íntimo dos ferreiros. Era uma canção que imitava o ritmo de quem bate no ferro, e era apenas uma desculpa lírica para introduzir o nome respeitável do velho Clem. Assim, todos devem martelar — velho Clem! — fazendo a bigorna vibrar — velho Clem! — bate forte, bate sempre — velho Clem! — para os fortes e valentes — velho Clem! — sopra o fogo sem parar — velho Clem! — para a chama avivar — velho Clem! Um dia, pouco depois do aparecimento da cadeira, a sra. Havisham de repente me ordenou, com aquele movimento impaciente dos dedos: “Vamos, vamos, vamos! Canta!”. E dei por mim, surpreso, cantando essa cançoneta enquanto a empurrava pelo quarto. A canção de tal modo lhe agradou que ela começou a cantá-la também, em voz baixa, como se cantasse dormindo. Depois disso, adquirimos o hábito de cantá-la enquanto passeávamos, e Estella muitas vezes fazia coro; mas o canto era discreto, mesmo quando nós três cantávamos, e fazia menos barulho na velha casa soturna do que a brisa mais leve. O que eu podia me tornar num tal ambiente? Como poderia meu caráter não ser influenciado por ele? Não era de se esperar que meus pensamentos ficassem deslumbrados, tanto quanto meus olhos, quando eu emergia para a luz do dia ao sair daqueles cômodos nevoentos e amarelos? Talvez eu tivesse falado com Joe sobre o jovem cavalheiro pálido, se antes não me houvessem levado a inventar aqueles dislates que depois havia confessado. Dadas as circunstâncias, parecia-me que Joe sem dúvida veria o jovem cavalheiro pálido como um provável passageiro da carruagem de veludo negro; por isso nada lhe falei a respeito dele. Além do mais, minha aversão a falar sobre a sra. Havisham e Estella, que eu sentia desde o início, foi se tornando muito mais forte com o passar do tempo. Eu só depositava total confiança em Biddy ; mas à pobre Biddy eu contava tudo. Por que isso me parecia natural, e por que ela se interessava profundamente por tudo que eu lhe contava, eu não sabia na época, se bem que agora, creio, o sei. Nesse ínterim, lá em casa realizavam-se reuniões na cozinha, que proporcionavam uma irritação quase insuportável a meu espírito indignado. O idiota do Pumblechook vinha com frequência à noite com o fito de conversar com minha irmã a respeito das minhas perspectivas; e estou convicto (e até hoje me penitencio menos do que deveria) de que se minhas mãos fossem capazes de retirar uma cavilha de uma das rodas de sua carruagem, elas o teriam feito. O miserável era de tal modo insensível que não conseguia conversar sobre minhas perspectivas sem me ter diante de si — para, por assim dizer, atuar sobre mim — e assim me arrastava de meu banquinho (normalmente pelo colarinho) onde eu estava quieto em meu canto, e, pondo-me diante do fogo como se fosse me assar, começava com as palavras: “Mas sim, minha senhora, cá está o menino! O menino que a senhora criou com a mão. Levanta a cabeça, menino, e seja por todo o sempre grato por quem fez isso por ti. Mas sim, minha senhora, quanto às perspequitívias desse menino!”. E então virava meu cabelo para o lado errado — algo que, desde a mais tenra infância, como já dei a entender, no fundo de minha alma sempre achei que nenhum semelhante tinha o direito de fazer — e segurava-me diante de si pela manga: um espetáculo de imbecilidade de que só ele mesmo era capaz. Então ele e minha irmã entregavam-se a tais especulações insensatas a respeito da sra. Havisham, sobre o que ela haveria de fazer comigo e para mim, que me dava vontade — o que era muito doloroso — de me debulhar em lágrimas de despeito, partir para cima de Pumblechook e socá-lo dos pés à cabeça. Nesses diálogos, minha irmã falava de mim como se estivesse moralmente arrancando cada um de meus dentes cada vez que me mencionava; enquanto Pumblechook, que se autoproclamava meu protetor, me inspecionava com um olhar depreciativo, como se fosse o arquiteto de meu destino a considerar que seu encargo era muito pouco remunerativo. Nesses colóquios, Joe não tinha nenhuma participação. Mas muitas vezes lhe dirigiam comentários, durante as conversações, porque a sra. Joe julgava que ele não aprovava a ideia de me retirar da ferraria. Eu já estava em idade de me tornar aprendiz de Joe; e quando Joe, com o atiçador entre os joelhos, revolvia pensativo as cinzas entre as grades mais baixas, minha irmã concluía com tanta certeza que esse ato inocente era uma manifestação de oposição de sua parte que corria para cima dele, tirava-lhe das mãos o atiçador, sacudia Joe e guardava o instrumento. Todos esses debates terminavam sempre do modo mais irritante. De uma hora para a outra, sem nenhuma preparação, minha irmã se detinha com um bocejo e, percebendo minha presença como se por acaso, investia contra mim dizendo: “Vamos! Chega de aturar a ti! Já para a cama; já me deste trabalho bastante por uma noite, espero eu!”. Como se eu tivesse lhes implorado que me fizessem o favor de me infernizar a vida. Assim prosseguimos por muito tempo, e tudo indicava que assim haveríamos de continuar por muito tempo, quando um dia a sra. Havisham parou de repente, durante uma de nossas caminhadas, apoiada no meu ombro; e disse, com um pouco de desprazer: “Estás ficando alto, Pip!” Julguei melhor dar a entender, através de uma expressão meditativa, que talvez isso fosse consequência de circunstâncias sobre as quais eu não tinha controle. Ela nada mais disse naquele momento; pouco depois, porém, parou e olhoume de novo; e em seguida fez o mesmo; e depois disso ficou carrancuda e malhumorada. Na vez seguinte em que fui a sua casa, quando terminamos nosso exercício habitual, depois que a deixei diante de sua penteadeira, ela me deteve com um movimento dos dedos impacientes: “Diz-me outra vez o nome desse teu ferreiro.” “Joe Gargery , senhora.” “É dele que ias te tornar aprendiz?” “Sim, senhora.” “Melhor que te tornes aprendiz o quanto antes. Crês que esse Gargery viria aqui contigo, e traria teu contrato de aprendizagem?” Dei a entender que ele sem dúvida se sentiria honrado se tal lhe fosse pedido. “Então que venha.” “Em algum dia em particular, senhora Havisham?” “Ora, ora! Não sei nada sobre dias. Que ele venha em breve, e venha contigo e mais ninguém.” Quando voltei para casa à noite e dei esse recado a Joe, minha irmã começou a “espumar”, num grau mais assustador do que em qualquer ocasião anterior. Ela perguntou a mim e a Joe se imaginávamos que ela fosse um capacho sob nossos pés, e como tínhamos o desplante de usá-la desse modo, e a que ambiente julgávamos ser apropriado levá-la? Tendo esgotado uma torrente de tais indagações, ela jogou um castiçal em Joe, começou a chorar ruidosamente, pegou a lata de lixo — o que era sempre péssimo sinal — vestiu seu avental mais grosseiro e começou a limpar a casa num grau terrível. Não satisfeita em fazer uma limpeza a seco, pegou um balde e um esfregão, e expulsou-nos de nossa casa e lar, de modo que ficamos a tiritar no quintal dos fundos. Foi só às dez da noite que ousamos entrar de fininho, e então ela perguntou a Joe por que motivo ele não se casara com uma escrava negra logo de uma vez? Joe, coitado, não deu resposta, porém ficou a cofiar as suíças e a olhar-me com desânimo, como se lhe parecesse que talvez tivesse mesmo sido melhor tal opção. 13 Foi uma provação para meus sentimentos, dois dias depois, ver Joe endomingarse para me acompanhar até a casa da sra. Havisham. Porém, como ele julgava que seu melhor terno era requerido pela ocasião, não cabia a mim lhe dizer que sua aparência ficava bem melhor quando ele trajava suas roupas de trabalho; ainda mais por saber eu que ele se submetia àquele desconforto terrível apenas por mim, e que era por mim que ele levantara o colarinho da camisa ao máximo na nuca, a ponto de fazer com que os cabelos de seu cocuruto ficassem em pé como um tufo de penas. No desjejum, minha irmã declarou sua intenção de ir à cidade conosco, para que a deixássemos na casa do tio Pumblechook e a fôssemos buscar depois que tivéssemos tratado com as nossas “senhoras elegantes” — uma maneira de encarar a situação que parecia levar Joe a esperar o pior. A ferraria não abriu naquele dia, e Joe rabiscou a giz na porta (como sempre fazia nas raríssimas vezes em que não estava trabalhando) a palavra sai, acompanhada por uma seta que supostamente indicava a direção por ele tomada. Caminhamos até a cidade, minha irmã indo à frente com uma touca de castor muito grande, e levando uma cesta que era como o Grande Selo da Inglaterra em palha trançada,1 tamancos para proteger os sapatos, um xale sobressalente e um guarda-chuva, embora fosse um belo dia de sol. Não sei bem se esses artigos eram levados por penitência ou por ostentação; mas tendo a crer que eram exibidos como propriedades — do mesmo modo como Cleópatra ou qualquer outra soberana, espumando de raiva, poderia exibir sua riqueza num cortejo ou desfile. Quando chegamos à casa de Pumblechook, minha irmã foi logo entrando e nos deixou. Como já se aproximava o meio-dia, eu e Joe seguimos direto para a casa da sra. Havisham. Estella abriu o portão como sempre, e, tão logo ela apareceu, Joe tirou o chapéu e ficou a sopesá-lo pela aba com as duas mãos: como se tivesse um motivo urgente para verificar seu peso exato, até o último décimo de grama. Estella não deu atenção a mim nem a ele, porém nos conduziu pelo caminho que já me era familiar. Eu ia imediatamente atrás dela, e Joe por último. Quando olhei para trás e vi Joe no longo corredor, ele continuava a sopesar o chapéu com o maior cuidado, seguindo-nos com passos largos nas pontas dos pés. Estella disse-me que nós dois deveríamos entrar, e por isso puxei Joe pela bainha do casaco e conduzi-o até a sra. Havisham. Ela estava sentada à penteadeira, e de imediato virou-se para nós. “Ah!”, ela exclamou para Joe. “O senhor é o marido da irmã deste menino?” Eu jamais poderia ter imaginado meu querido Joe tão diferente da sua aparência normal, ou tão semelhante a uma ave extraordinária; parado, mudo, com seu tufo de penas eriçadas e a boca aberta, como se aguardasse que lhe servissem uma minhoca. “O senhor é o marido”, repetiu a sra. Havisham, da irmã deste menino?” Era muito irritante; mas durante toda a entrevista Joe insistiu em dirigir-se a mim e não à sra. Havisham. “O que eu quero dizer, Pip”, observou Joe então, num tom que ao mesmo tempo exprimia uma argumentação irrespondível, uma confidência íntima e uma extrema polidez, “é que eu se casei com a tua irmã, sendo que na época eu era, por assim dizer (se é isso que queres dizer), solteiro.” “Bem!”, disse a sra. Havisham. “E o senhor criou o menino, com a intenção de torná-lo seu aprendiz — é isso, senhor Gargery ?” “Sabes, Pip”, respondeu Joe, “como tu e eu sempre fumo amigo, isso era uma coisa que eu sempre achei que era bom de acontecer, porque nós ia fazer grandes patuscadas. Se bem que, Pip, se alguma vez tu levantasses alguma obijeção a esse tipo de trabalho — quer dizer, isso da gente ficar sujo de fulige, e coisa e tal — é claro que, nesses caso, a gente ia levar isso em conta, não é?” “O menino”, perguntou a sra. Havisham, “levantou alguma objeção? Ele gosta desse ofício?” “De formas que, como bem sabes, Pip”, respondeu Joe, fortalecendo a mistura de argumentação, confidência e polidez, “é o que desejas do fundo do coração.” (Percebi que de súbito lhe ocorreu a ideia de adaptar seu epitáfio à ocasião, antes de prosseguir.) “E se da tua parte não há obijeção, e sendo o que desejas do fundo do coração!” Era inútil tentar fazê-lo dar-se conta de que deveria dirigir-se à sra. Havisham. Quanto mais eu fazia caretas e gestos nesse sentido, mais confidencial, argumentativo e polido ele se tornava em relação a mim. “O senhor trouxe o contrato de aprendizagem dele?”, indagou a sra. Havisham. “Bom, Pip, tu sabes”, respondeu Joe, como se essa pergunta não fosse muito razoável, “tu mesmo me viste botar ele dentro do meu chapéu, de formas que bem sabes que o cujo está aqui.” Ao dizer isso, tirou o contrato e estendeu-o não à sra. Havisham, mas a mim. Creio que tive vergonha do meu bom amigo — sei que tive vergonha dele — quando vi que Estella estava atrás da cadeira da sra. Havisham, e que seus olhos riam travessos. Tirei o contrato de sua mão e entreguei-o à sra. Havisham. “O senhor não esperava”, disse a sra. Havisham, enquanto lia o documento, “nenhuma gratificação associada ao menino?” “Joe!”, adverti-o, pois ele nada disse em resposta. “Por que não respondes…” “Pip”, interrompeu-me Joe, como se estivesse magoado, “o que eu quis dizer é que isso não era uma pergunta que precisava de resposta entre eu e tu, pois bem sabes que a resposta é não. Tu sabes disso, Pip, e assim por que é que tenho que responder?” A sra. Havisham olhou-o como se o compreendesse tal como ele era, melhor do que eu julgava possível, vendo-o ali; e pegou um pequeno saco na mesa a seu lado. “Pip fez jus a uma gratificação aqui”, disse ela, “e ei-la aqui. Nesse saco há vinte e cinco guinéus.2 Entrega-o ao teu mestre, Pip, sim?” Como se estivesse de todo fora de si por efeito do deslumbramento nele causado pela figura estranha da sra. Havisham e por aquela sala estranha, Joe, mesmo depois disso, continuou se dirigindo a mim. “Muito generoso da sua parte, Pip”, disse ele, “e assim sendo aceito com muita gratidão, se bem que nunca pensei nem esperei por isso, de jeito nem maneira. E agora, meu velho”, disse Joe, proporcionando-me uma sensação primeiro de ardência e depois de frio intenso, pois tive a impressão de que aquela expressão familiar se aplicava à sra. Havisham, “e agora, meu velho, vamos cumprir nossa obrigação! Que tu e eu compremos nossa obrigação, da parte de um tanto quanto do outro, de formas que o teu generoso presente… nos… proporciona… para a sastifação… de… quem nunca…” Neste ponto, Joe demonstrou estar esbarrando em dificuldades terríveis, até que se salvou, triunfalmente, com as palavras: “e longe de mim tal coisa!”. Essas palavras tinham para ele um som tão retumbante e convincente que ele as pronunciou duas vezes. “Adeus, Pip!”, disse a sra. Havisham. “Abre a porta para eles, Estella.” “Devo voltar outra vez, senhora Havisham?”, indaguei. “Não. Agora teu mestre é Gargery . Gargery ! Só mais uma coisa!” Chamando-o quando eu já saía pela porta afora, ouvi-a dizer a Joe num tom enfático: “Esse menino se portou bem aqui, e essa é a recompensa dele. É claro que o senhor, como um homem honesto, não há de esperar mais nada”. De que modo Joe saiu da sala, jamais pude descobrir; só sei que, quando o fez, começou a subir a escada em vez de descer, e fez-se surdo a todas as minhas advertências até que fui atrás dele e o agarrei. Um minuto depois estávamos do lado de fora do portão, e o portão estava trancado, e Estella se fora. Quando nos vimos a sós à luz do dia, Joe andou para trás até encostar num muro, e disse-me: “Espantoso!”. E ali ficou por tanto tempo, repetindo “Espantoso!” de quando em quando, e tantas vezes, que comecei a pensar que ele jamais haveria de recuperar a razão. Por fim ele prolongou o comentário neste outro: “Pip, eu te digo, isso é es-pan-to-so!”. E assim, aos poucos, voltou a conversar e conseguiu começar a caminhar. Tenho motivos para crer que o intelecto de Joe foi beneficiado por aquele encontro, e que a caminho da casa de Pumblechook ele elaborou um plano sutil e ladino. Digo isso com base no que se passou na sala do sr. Pumblechook: onde, quando nos apresentamos, minha irmã estava confabulando com o detestável comerciante de grãos. “E então?”, exclamou minha irmã, dirigindo-se a nós dois ao mesmo tempo. “E o que aconteceu contigo? Muito me admiro de ver que ainda te dignas a misturar-te com gente tão pobre quanto nós!” “A senhora Havisham”, disse Joe, olhando fixamente para mim, como se fizesse um esforço de memória, “deixou muito claro que nós devia mandar… era saudações ou cumprimentos, Pip?” “Saudações”, respondi. “O que, aliás, era a minha opinião…”, afirmou Joe, “as saudações dela à senhora J. Gargery…” “E de muita valia elas me hão de ser!”, observou minha irmã, porém um tanto gratificada. “E desejando”, prosseguiu Joe, olhando-me fixamente outra vez, como se fazendo outro esforço de memória, “que o estado de saúde da senhora Havisham permitisse que ela tivesse… o que mesmo, Pip?” “Tivesse o prazer”, acrescentei. “Da companhia de senhoras”, disse Joe. E respirou fundo. “Pois bem!”, exclamou minha irmã, com um olhar apaziguado para o sr. Pumblechook. “Ela podia ter tido a delicadeza de mandar esse recado antes, mas antes tarde do que nunca. E o que foi que ela deu ao nosso pequeno Rantipole?”3 “A ele”, respondeu Joe, “não deu nada.” A sra. Joe ia irromper, mas Joe prosseguiu: “O que ela deu”, disse Joe, “ela deu pros amigos dele. ‘E por amigos dele’, ela explicou, ‘me refiro-me às mãos da irmã dele, a senhora J. Gargery.’ Foi assim mesmo que ela falou: ‘a senhora J. Gargery ’. Acho que ela nem sabia”, acrescentou Joe, com ar reflexivo, “se era Joe ou Jorge.” Minha irmã olhou para Pumblechook, o qual alisou os braços de sua cadeira e acenou com a cabeça para ela e para a lareira, como se já soubesse de tudo de antemão. “E quanto ganhaste?”, indagou minha irmã, rindo. Rindo, sim! “O que diriam ’ocês se eu disser dez libra?”, perguntou Joe. “Diríamos”, respondeu minha irmã, seca, “razoável. Não muito, mas razoável.” “Pois é mais que isso”, disse Joe. O terrível impostor, Pumblechook, de imediato fez que sim e disse, esfregando as mãos nos braços da cadeira: “É mais que isso, minha senhora”. “O senhor não vai me dizer que…”, começou minha irmã. “Isso mesmo, minha senhora”, disse Pumblechook, “mas espere um pouco. Continue, Joseph. Muito bem! Continue!” “O que diriam ’ocês”, prosseguiu Joe, “se eu disser vinte libra?” “Uma bela quantia”, respondeu minha irmã. “Pois”, disse Joe, “é mais de vinte libras.” O abjeto hipócrita, Pumblechook, fez que sim outra vez e comentou, com um riso condescendente: “É mais que isso, minha senhora. Muito bem! Continue, Joseph!”. “Então, pra terminar”, disse Joe, entregando o saco à minha irmã com muita alegria, “são vinte e cinco libra.” “São vinte e cinco libras, senhora”, repetiu o mais vil dos patifes, Pumblechook, levantando-se para apertar a mão dela; “e a senhora bem as mereceu (como eu disse quando me pediram a opinião), e que faça bom proveito do dinheiro!” Se o calhorda tivesse ficado por aí, já teria sido terrível, mas ele aumentou ainda mais sua culpa ao se apropriar de mim, assumindo um poder que deixava longe todos os seus atos criminosos anteriores. “Como vocês sabem, Joseph e esposa”, disse Pumblechook, enquanto segurava meu braço acima do cotovelo, “sou dessas pessoas que não deixam nada pelo meio. É preciso contratar este menino, imediatamente. Comigo é assim. É contratar imediatamente.” “Ah, tio Pumblechook”, disse minha irmã (agarrando o dinheiro), “Deus sabe o quanto devemos ao senhor.” “Que nada, minha senhora”, retrucou o diabólico comerciante de grãos. “Um prazer é um prazer, aqui e na China. Mas quanto a este menino, sabe, há que contratá-lo. Eu disse que eu mesmo o faria — para lhe falar a verdade.” Os juízes estavam reunidos na prefeitura ali perto, e lá fomos de imediato para lavrar meu contrato de aprendizagem com Joe na presença dos magistrados. Digo que fomos lá, mas na verdade fui empurrado por Pumblechook, tal como se eu tivesse acabado de bater uma carteira ou incendiado uma meda de trigo; de fato, todos no tribunal tiveram a impressão de que eu fora apanhado em flagrante, pois, quando Pumblechook abriu caminho pela multidão empurrando-me a sua frente, ouvi pessoas dizendo: “O que foi que ele fez?” e “É pequenino, mas tem má cara, não é?”. Uma pessoa de aspecto mansueto e benévolo chegou mesmo a me entregar um folheto com uma estampa que representava um rapaz malévolo recebendo toda uma panóplia de grilhões, com o título para ser lido na minha cela. A prefeitura era um lugar estranho, pensei, com bancos mais altos que os da igreja — e com pessoas debruçadas sobre os bancos para assistir ao que se passava — e juízes poderosos (um deles com uma peruca empoada) recostados em suas cadeiras, de braços cruzados, ou cheirando rapé, ou cochilando, ou escrevendo, ou lendo jornais — e alguns retratos reluzentes nas paredes, que para meus olhos nada artísticos pareciam composições feitas com tofe de amêndoas e emplastros adesivos.4 Ali, num canto, meu contrato de aprendizado foi devidamente assinado e atestado; o tempo todo o sr. Pumblechook me segurava, como se estivéssemos ali de passagem a caminho da forca, para cuidar daqueles pequenos detalhes preliminares. Quando saímos do tribunal, e nos livramos dos garotos que estavam animadíssimos com a perspectiva de me ver sendo torturado em público e ficaram muito decepcionados ao compreender que meus amigos estavam apenas reunidos a meu redor, voltamos à casa de Pumblechook. E lá minha irmã ficou tão entusiasmada com a história dos vinte e cinco guinéus que só se aquietou quando resolvemos jantar fora, com o dinheiro obtido de modo tão inesperado, no Javali Azul, e Pumblechook foi em sua carruagem buscar os Hubble e o senhor Wopsle. Assim foi feito; e vivi um dia dos mais melancólicos. Pois, por motivos inescrutáveis, parecia claro, para todos os convivas, que eu era uma excrescência naquela comemoração. E, para piorar as coisas, todos me perguntavam de vez em quando — em suma, sempre que não tinha outra coisa para fazer — por que eu não estava me divertindo. E que poderia eu fazer, nesse caso, senão dizer que estava me divertindo, sim — embora não estivesse? Porém, eles eram adultos, e foi feita a vontade deles, e eles aproveitaram ao máximo a ocasião. O trapaceiro do Pumblechook, que assumira ares de benfeitor responsável por tudo, chegou mesmo a instalar-se na cabeceira; e quando falou à mesa sobre meu contrato de aprendizagem, e diabolicamente regozijou-se ao afirmar que eu estava sujeito à prisão se jogasse cartas, bebesse bebidas destiladas, ficasse na rua até tarde ou me entregasse a outras práticas irregulares que, nos termos do contrato, pareciam praticamente inevitáveis, ele me fez ficar em pé numa cadeira a seu lado, para ilustrar seus comentários. Minhas únicas outras lembranças do grande festejo são as que se seguem. Não me deixavam dormir, e toda vez que me viam cochilando me despertavam com ordens de que eu me divertisse. Quando já era bem tarde, o sr. Wopsle brindou-nos com a ode de Collins,5 e jogou sua espada ensanguentada com um estrondo, e foi tamanho o estardalhaço que veio um garçom dizer que os comerciantes do andar de baixo mandavam seus cumprimentos, e que ali não era o Recanto dos Acrobatas.6 Todos estavam na maior animação no caminho de volta para casa, e cantaram “O Lady fair!”.7 O sr. Wopsle cantava a parte do baixo, afirmando com uma voz tonitruante (em resposta ao abelhudo que canta essa canção do modo mais impertinente, querendo saber tudo sobre os assuntos particulares de todos) que ele era o homem com os cachos brancos ao vento, e que era, sob todos os aspectos, o mais fraco de todos os peregrinos. Por fim, lembro que, ao entrar em meu quartinho, eu me sentia realmente infeliz, e estava convicto de que não gostaria jamais do ofício de Joe. Eu gostara dele outrora, mas outrora não era agora. 14 É terrível ter vergonha do próprio lar. Talvez seja a mais negra ingratidão, e o castigo seja proporcional e bem merecido; mas que é uma coisa terrível, isso posso afirmar com conhecimento de causa. O lar nunca fora um lugar muito agradável para mim, por causa do temperamento da minha irmã. Mas Joe o santificava, e antes eu acreditava no meu lar. Antes eu acreditava na sala de visitas de cerimônia, como um salão dos mais elegantes; acreditava na porta da frente, como um portal misterioso do templo sagrado cuja abertura solene era marcada por um sacrifício de aves assadas; acreditava na cozinha como um cômodo casto, ainda que não magnífico; acreditava na ferraria como o caminho reluzente da maturidade e da independência. No decorrer de um ano, tudo isso mudara. Agora, tudo lá era grosseiro e vulgar, e eu faria tudo para que a sra. Havisham e Estella não vissem minha casa em quaisquer circunstâncias. Até que ponto essa minha atitude ingrata era culpa minha, da sra. Havisham ou da minha irmã, é algo que agora não tem mais nenhuma relevância para mim nem para ninguém. A mudança ocorrera em mim; era um fato consumado. Bom ou mau, desculpável ou indesculpável, era um fato. Antes, parecia-me que no dia em que por fim arregaçasse as mangas e entrasse na ferraria como aprendiz de Joe, eu me tornaria uma pessoa distinta e feliz. Agora que isso se tornara realidade, tudo que eu sentia era que estava coberto de pó de carvão, e que tinha na minha consciência cotidiana um peso em comparação com o qual a bigorna era leve como uma pluma. Na minha vida subsequente, houve ocasiões (como imagino que ocorra com a maioria das pessoas) em que por algum tempo tive a impressão de que uma cortina grossa havia caído por cima de tudo que havia de interessante e romântico, reduzindome apenas à sobrevivência pura e simples. Essa cortina jamais foi tão pesada e escura quanto no momento em que vi minha vida estendida à minha frente pela estrada recém-aberta do aprendizado com Joe. Lembro que numa época posterior da minha vida eu costumava ir ao campo-santo aos domingos, ao cair da tarde, e lá ficava a comparar minhas perspectivas com a vista do charco percorrido pelo vento, observando as semelhanças que havia entre eles, pensando que ambos eram monótonos e baixos, e que a ambos chegava um caminho desconhecido, uma névoa escura e por fim o mar. No meu primeiro dia de trabalho na ferraria, eu me sentia tão desanimado quanto nesse período posterior; mas dá-me satisfação pensar que jamais esbocei a menor queixa para Joe durante toda a minha época de aprendizagem. É praticamente a única coisa de que me orgulho, no que diz respeito a esse assunto. Pois, embora isso inclua o que vou acrescentar, todo o mérito do que vou acrescentar cabe a Joe. Não foi por eu permanecer fiel, mas por Joe permanecer fiel, que jamais fugi para me tornar soldado ou marinheiro. Não foi por eu ter a firme consciência da virtude do trabalho, e sim porque Joe tinha a firme consciência da virtude do trabalho, que trabalhei com uma dedicação razoável, contra minha própria inclinação. É impossível saber até onde a influência de um homem simpático, honesto e cumpridor de seus deveres se estende no mundo; mas é perfeitamente possível saber até que ponto essa influência tocou a nós, e sei muito bem que tudo de bom que porventura tenha havido na minha aprendizagem se deveu a Joe, esse homem simples e contente, e não a mim, sempre inquieto, cheio de aspirações e de descontentamento. O que eu queria, quem poderá dizer? Que posso eu dizer, se jamais o soube? O que eu mais temia era a possibilidade de, num momento particularmente infeliz, em que eu estivesse mais sujo e vulgar, eu levantar os olhos e deparar com Estella olhando para dentro da ferraria por uma das janelas de madeira. Atormentava-me o medo de que ela, mais cedo ou mais tarde, me encontrasse ali, com as mãos e o rosto negros, realizando as tarefas mais grosseiras de meu trabalho, e tripudiasse sobre mim e me desprezasse. Muitas vezes, depois que escurecia, quando eu estava acionando o fole para Joe, e nós dois cantávamos a canção do velho Clem, e me vinha a lembrança do tempo em que cantava essa música na casa da sra. Havisham, eu parecia ver o rosto de Estella no fogo, com seu belo cabelo ao vento, zombando de mim com o olhar — muitas vezes, nessas ocasiões, eu olhava para os quadrados negros1 na parede formados pelas janelas de madeira, e imaginava ver o rosto dela a se afastar naquele exato momento, e pensava que finalmente ela havia aparecido. Depois, quando íamos jantar, a casa e a refeição me pareciam mais feios do que nunca, e eu sentia mais vergonha do lar do que nunca, no meu coração ingrato. 15 Como eu já estava ficando crescido demais para a sala da tia-avó do sr. Wopsle, meus estudos sob os auspícios daquela mulher absurda terminaram. Mas só depois que Biddy me ensinou tudo que ela sabia, desde o pequeno catálogo de preços até uma canção humorística que ela comprara uma vez por meio pêni. Embora o único trecho coerente dessa obra literária fossem os dois primeiros versos: Eu fui a Londres mês passado, Ta-ra-lá, ta-ra-lá Ta-ra-lá, ta-ra-lá E fui muito bem engambelado, Ta-ra-lá, ta-ra-lá Ta-ra-lá, ta-ra-lá1 — mesmo assim, movido pelo desejo de me tornar mais sábio, decorei essa composição com a maior seriedade; tampouco me recordo de lhe ter questionado o mérito, ainda que pensasse (como ainda penso) que a quantidade de ta-ra-lás era um tanto excessiva em relação à de poesia. Na minha fome de conhecimento, propus ao sr. Wopsle que me concedesse algumas migalhas intelectuais; e ele teve a bondade de me atender. Como, porém, verifiquei que ele me queria apenas para me usar como um manequim teatral, a ser contradito, abraçado, lamentado, intimidado, agarrado, esfaqueado e derrubado de várias maneiras, em pouco tempo recusei tal curso de estudos, mas não antes que o sr. Wopsle, possuído de sua fúria poética, tivesse me machucado bastante. Tudo que eu adquiria eu tentava transmitir a Joe. Esta afirmativa pode causar tão boa impressão que minha consciência não me permite que ela seja feita sem uma ressalva. Eu queria fazer com que Joe se tornasse menos ignorante e vulgar para que ele se tornasse mais digno da minha companhia e ficasse menos exposto às críticas de Estella. A velha bateria no charco era nosso lugar de estudo, e uma lousa quebrada e um toco de lápis de lousa eram nossos instrumentos educacionais: a eles Joe sempre acrescentava um cachimbo cheio de fumo. Não me lembro de Joe ter lembrado uma única vez, num domingo, de algo que aprendera no domingo anterior, ou de ter ele adquirido, sob minha instrução, qualquer informação. Porém, lá na bateria ele fumava seu cachimbo com um ar bem mais sagaz do que o fazia em qualquer outro lugar — até mesmo com um ar de sapiência — como se julgasse estar realizando progressos extraordinários. Espero que meu querido amigo de fato o tenha feito. O lugar era agradável e tranquilo, com as velas singrando o rio além do aterro, e por vezes, quando a maré era vazante, elas pareciam fazer parte de navios naufragados que continuavam a navegar no fundo do mar. Sempre que eu ficava a ver as embarcações seguindo rumo ao alto-mar com suas velas brancas ao vento, por algum motivo lembrava-me da sra. Havisham e de Estella; e sempre que a luz atingia em ângulo, ao longe, uma nuvem ou vela ou encosta verdejante ou linha-d’água, era a mesma coisa — a sra. Havisham e Estella e a casa estranha e aquela vida estranha pareciam ter algo a ver com tudo que era pitoresco. Num domingo em que Joe, regozijando-se com seu cachimbo, tanto se gabou de ser “terrivelmente bronco” que desisti de continuar insistindo naquele dia, fiquei deitado no chão por algum tempo, com o queixo na mão, descobrindo vestígios da sra. Havisham e de Estella em toda a paisagem, no céu e no mar, até que por fim me decidi a falar sobre uma coisa que vinha ocupando meus pensamentos. “Joe”, disse eu, “não achas que eu devia visitar a senhora Havisham?” “Ora, Pip”, redarguiu Joe, pensando lentamente, “por quê?” “Por quê, Joe? Por que é que a gente visita as pessoas?” “Tem umas visitas, talvez”, disse Joe, “que essa pergunta fica pra sempre sem resposta, Pip. Mas no caso da senhora Havisham ela pode ficar achando que queres alguma coisa — que esperas alguma coisa da parte dela.” “E achas que eu não posso dizer que não quero nada, Joe?” “Poder, podes, meu velho”, respondeu Joe, “e ela pode acreditar. Mas também ela pode não acreditar.” Joe julgava ter dado um bom argumento, no que eu estava de acordo, e começou a tirar baforadas de seu cachimbo para impedir-se de enfraquecê-lo ao repeti-lo. “Sabes, Pip”, insistiu Joe, assim que esse perigo passou, “a senhora Havisham foi muito boa contigo. Adespois do que ela fez o que fez por ti, ela me chamou pra dizer que não ia fazer mais nada.” “Eu sei, Joe. Eu ouvi o que ela disse.” “Mais nada”, repetiu Joe, com muita ênfase. “Eu sei, Joe, como já falei, ouvi o que ela disse.” “Quer dizer, Pip, pode ser que ela quis dizer com isso: Acabou! — Volta tudo como era antes! — Eu pro norte, tu pro sul! — Cada um prum lado!” Eu também tinha pensado nisso, e não me era nem um pouco confortador saber que ele também o pensara; pois isso parecia tornar a possibilidade mais provável. “Mas, Joe.” “Sim, meu velho.” “Estou cumprindo meu primeiro ano de aprendizagem, e desde o dia do contrato que não agradeci senhora Havisham, nem pedi notícias dela, nem dei sinais de que me lembro dela.” “É verdade, Pip; e a menos que levasses pra ela quatro pés de sapato — e olha que até mesmo quatro pés de sapato pode não ser um presente aceitável, já que ninguém tem quatro patas nessa história…” “Não estou falando em lembrar-me dela nesse sentido; não estou falando em lhe dar um presente.” Mas Joe havia enfiado na cabeça a ideia do presente, e agora não largava do assunto. “Até mesmo”, disse ele, “se fizesses pra ela uma corrente nova pra porta da rua — ou uma ou duas grosa de parafuso de cabeça redonda de uso geral — ou uma coisa mais leve e bonita, que nem um garfo pra tostar bolinho — ou uma grelha de fritar peixe ou então…” “Não estou falando em presente, não, Joe”, interrompi. “Bom”, prosseguiu Joe, como se eu estivesse insistindo em dar um presente, “se eu fosse tu, Pip, eu não fazia isso não. Não mesmo. Pois pra quê corrente na porta pra quem já tem uma sempre fechada? E parafuso pode dar em malentendido. E garfo de torrar ias ter de mexer com latão e a coisa ia acabar não ficando boa. E o ferreiro mais invulgar não tem como demonstrar que é invulgar fazendo uma grelha — porque uma grelha é uma grelha”, disse Joe, argumentando de modo implacável, como se tentasse me arrancar de uma ideia fixa, “e faças o que fizeres, uma grelha acaba saindo apenas uma grelha, ou porque querias mesmo que assim fosse, ou porque não querias que assim fosse, e não tens como…” “Meu querido Joe”, exclamei, em desespero, agarrando-o pelo casaco, “para com isso. Eu nunca pensei em dar presente nenhum à senhora Havisham.” “Não, Pip”, concordou Joe, como se estivesse tentando me convencer esse tempo todo; “e o que te digo é: tens razão, Pip.” “Sim, Joe, mas o que eu queria dizer era que, como não estamos com muito trabalho no momento, se me desses meio feriado amanhã, creio que eu iria visitar a senhora Est… Havisham.” “O nome da cuja”, disse Joe, muito sério, “não se chama Estavisham, Pip, só se ela foi batizada outra vez.” “Eu sei, Joe, eu sei. Fui eu que troquei na hora de falar. O que achas disso, Joe?” Em resumo, Joe achava que, se eu achava que era uma ideia, também para ele a ideia era boa. Mas ele fez questão de estipular que se eu não fosse recebido com cordialidade, e se eu não fosse estimulado a voltar a visitar na condição de um visitante que não tinha segundas intenções, e sim queria apenas manifestar a gratidão pelo favor que lhe foi feito, então essa experiência não devia ser repetida. Prometi aceitar essas condições. Ora, Joe tinha um empregado que recebia um salário semanal, chamado Orlick. Dizia ele que seu nome de batismo era Dolge — algo claramente impossível — porém era um homem de tal modo obstinado que, a meu ver, não devia ter nenhuma ilusão a esse respeito, porém impunha esse nome à aldeia como uma afronta a seu entendimento. Era um sujeito moreno, ágil, de ombros largos e uma força extraordinária, que jamais tinha pressa e andava sempre recurvado. Nunca parecia vir ao trabalho com determinação, porém entrava todo recurvado, como se ali estivesse por acaso; e quando ia à Três Barqueiros almoçar, saía de lá recurvado, como Caim ou o Judeu Errante,2 como se não fizesse ideia de para onde ia e não tivesse intenção de jamais voltar. Morava na casa de um guardador de eclusa no charco, e nos dias de trabalho vinha de seu refúgio caminhando recurvado, as mãos nos bolsos e o almoço numa trouxa pendurada no pescoço, que lhe caía às costas. Nos domingos ficava a maior parte do tempo deitado o dia inteiro junto às comportas da barragem, ou então parado ao lado de medas e celeiros. Andava sempre recurvado, os olhos no chão; e quando o abordavam ou de algum outro modo o obrigavam a levantar a vista, ele o fazia com um misto de irritação e perplexidade, como se o único pensamento que jamais tivesse na cabeça fosse a ideia estranha e enervante de que ele nunca estava pensando em nada. Este empregado mal-humorado não tinha simpatia por mim. Quando eu era bem pequeno e medroso, ele me convenceu de que o Demônio morava num canto escuro da ferraria, e que ele o conhecia muito bem: e também que era necessário alimentar o fogo, uma vez a cada sete anos, com um menino vivo, e que eu podia me considerar combustível. Quando me tornei aprendiz de Joe, Orlick talvez visse confirmada alguma suspeita sua de que eu viria a substituí-lo; fosse como fosse, passou a gostar de mim ainda menos que antes. Não que jamais dissesse alguma coisa, ou fizesse alguma coisa que abertamente manifestasse hostilidade; eu apenas percebia que ele sempre batia as fagulhas na minha direção, e que sempre que eu cantava a canção do velho Clem ele entrava no canto fora do tom. Dolge Orlick estava no trabalho e presente, no dia seguinte, quando lembrei Joe de meu meio feriado. Não disse nada na hora, pois ele e Joe naquele instante estavam ambos trabalhando com um pedaço de ferro quente, e eu estava acionando o fole; mas pouco depois ele observou, apoiado no martelo: “Ora, mestre! O senhor não vai querer privilegiar um de nós. Se o jovem Pip vai ter meio feriado, então o senhor podia fazer o mesmo pelo velho Orlick.” Creio que ele tinha cerca de vinte e cinco anos, porém costumava referir-se a si próprio como um ancião. “Mas o que é que vais fazer com um meio feriado, se o tiveres?”, perguntou Joe. “O que eu vou fazer? O que é que ele vai fazer? Eu faço o mesmo que ele fizer”, respondeu Orlick. “O Pip vai à cidade”, disse Joe. “Então o velho Orlick também vai à cidade”, retrucou o ilustre cavalheiro. “Dois pode ir à cidade. Não carece de ser só um, não.” “Não vás perder as estribeiras”, disse Joe. “Se quiser, eu perco, sim”, rosnou Orlick. “Então ele vai à cidade! Ora, mestre! Isso, não. Nada de privilégios. Seja homem!” Como o mestre se recusava a discutir a questão enquanto o empregado não recuperasse a calma, Orlick atacou a fornalha, dela tirou uma barra de ferro em brasa, fez menção de enfiá-la em meu corpo, girou-a em torno da minha cabeça, a pôs na bigorna, martelou-a — como se ela fosse eu, pensei, e as faíscas fossem meu sangue a esguichar — e por fim, quando ele já havia ficado quente e o ferro havia ficado frio de tanto ele malhar, voltando a apoiar-se no martelo, disse: “Agora, mestre!” “Então, estás bem agora?”, perguntou Joe. “Ah! Estou bem, sim”, rosnou o velho Orlick. “Então, como normalmente costumas trabalhar direito como todo mundo”, disse Joe, “que seja meio feriado pra todos.” Minha irmã estivera esse tempo todo parada no quintal, a escutar — ela era uma espiã e bisbilhoteira sem escrúpulo algum — e na mesma hora pôs a cabeça numa das janelas. “És mesmo um pateta!”, disse ela a Joe. “Dando feriado a dois maganões ociosos. Pelo visto, és muito rico, pra desperdiçar salários assim. Ah, se eu fosse mestre!” “A senhora seria mestre de todos, se pudesse”, retorquiu Orlick, com um sorriso mau. (“Deixa ela em paz”, disse Joe.) “Comigo, bobo e malandro não tinha vez”, respondeu minha irmã, começando a enraivecer-se. “E se bobo comigo não tinha vez, imagina então o seu mestre, que é o rei dos bobalhões. E se malandro não tinha vez, o que seria de você, que é o malandro mais feio e mais sem-vergonha do país. Ora!” “E a senhora é uma megera”, rosnou o empregado. “Se quem é megera entende de malandro, então a senhora é a maior entendida que há.” (“Deixa ela em paz, ouviu?”, disse Joe.) “O que foi que você disse?”, exclamou minha irmã, começando a gritar. “O que foi que você disse? O que foi que esse tal de Orlick disse a mim, Pip? Ele me chamou do quê, com o meu marido do lado? Ah! Ah! Ah!” Cada uma dessas interjeições era um berro; e devo dizer a respeito de minha irmã algo que se aplica a todas as mulheres violentas que já conheci: a emoção não era uma desculpa para ela, pois não havia dúvida de que, em vez de sucumbir à emoção, ela deliberadamente se esforçava de modo extraordinário no sentido de se emocionar, e chegava a uma fúria cega por etapas regulares. “De que nome ele me xingou, na cara do homem que jurou me defender? Ah! Me segurem! Ah!” “Há-há-há!”, rosnou o empregado entre os dentes. “Eu bem que segurava a senhora, se fosse minha mulher. Segurava debaixo da bica aberta, até ficar engasgada.” (“Eu já disse pra deixar ela em paz”, insistiu Joe.) “Ah! Olha só!”, exclamou minha irmã, batendo palmas e gritando ao mesmo tempo — era essa a etapa seguinte. “Olha só como ele me xinga! Esse Orlick! Na minha casa! Eu, uma mulher casada! E na cara do meu marido! Ah! Ah!” Nesse ponto, após um acesso de palmas e gritos, minha irmã começou a bater com as mãos no peito e nos joelhos, e jogou no chão a touca, e puxou os cabelos para baixo — as últimas etapas rumo ao frenesi. Como já se havia transformado numa verdadeira Fúria,* e obtido total sucesso, ela partiu como uma bala em direção à porta, a qual felizmente eu havia trancado. O que podia fazer agora o pobre Joe, tendo sido ignoradas suas intervenções parentéticas, senão abordar seu empregado, e perguntar-lhe que ideia era aquela de se meter entre ele e a sra. Joe, e também se ele era homem o bastante para enfrentá-lo? O velho Orlick sentiu que a situação não admitia outra alternativa senão o enfrentamento, e na mesma hora assumiu uma postura defensiva; e assim, sem que sequer tirassem seus aventais chamuscados e queimados, os dois partiram um para cima do outro, como dois gigantes. Mas se havia algum homem na nossa vizinhança capaz de resistir a Joe por mais tempo, não cheguei a conhecê-lo. Orlick, como se fosse tão fraco quanto o jovem cavalheiro pálido, em pouco tempo deu por si caído no meio do pó de carvão, sem a menor pressa de emergir de lá. Então Joe destrancou a porta e pegou minha irmã, que havia caído desacordada junto à janela (mas que antes assistira à luta, creio eu) e foi levada para dentro de casa e deitada, e estimulada a acordar, não fazendo outra coisa senão debater-se e puxar os cabelos de Joe. Então sobrevieram aquela calmaria e silêncio singulares que sempre se seguem a todos os tumultos; e depois, com a vaga sensação que sempre associo a tais calmarias — a de que era domingo e alguém havia morrido — subi a escada e fui me vestir. Quando mais tarde desci, encontrei Joe e Orlick varrendo a ferraria, tendo como único vestígio do ocorrido um corte numa das narinas de Orlick, que não era nem expressivo nem ornamental. Uma jarra de cerveja viera da Três Barqueiros, e os dois bebiam um de cada vez, de modo pacífico. A calmaria teve um efeito sedativo e filosófico em Joe, que foi comigo até a rua para me dar, à guisa de despedida, uma espécie de conselho: “Uma hora está espumando, depois para de espumar, Pip — a vida é assim!”. Que sentimentos absurdos (pois os sentimentos que são muito sérios num homem parecem-nos cômicos num menino) me tomaram quando me vi outra vez indo em direção à casa da sra. Havisham, não interessa dizer agora. Tampouco interessa relatar quantas vezes passei e repassei pelo portão até criar coragem de tocar a campainha. Nem tampouco o quanto perguntei a mim mesmo se deveria ir embora sem tocá-la; nem que eu sem dúvida teria ido embora, se fosse dono de meu tempo, e pudesse voltar depois. A sra. Sarah Pocket veio abrir o portão. Ela, e não Estella. “O quê, tu por aqui outra vez?”, disse a sra. Pocket. “O que queres?” Quando respondi que viera apenas para saber como estava a sra. Havisham, Sarah claramente ficou a pensar se devia ou não despachar-me na hora. Porém, não querendo arcar com a responsabilidade, deixou-me entrar, e pouco depois voltou trazendo o recado seco de que eu devia “subir”. Tudo permanecia tal como antes, e a sra. Havisham estava a sós. “Sim?”, disse ela, fixando os olhos em mim. “Espero que não queiras nada? Não vais ganhar nada.” “Não, senhora Havisham. Só queria lhe dizer que estou indo muito bem no aprendizado, e que sou sempre muito grato à senhora.” “Ora, ora!” com aqueles velhos dedos irrequietos. “Venha de vez em quando; venha no seu aniversário. — Isso!”, exclamou de repente, virando o corpo e a cadeira em minha direção. “Estás à procura de Estella? Hein?” De fato, eu estava olhando à minha volta — sim, à procura de Estella — e respondi, gaguejando, que esperava que ela estivesse bem. “No estrangeiro”, disse a sra. Havisham, “educando-se para se tornar uma dama; fora do teu alcance; mais bela do que nunca; admirada por todos que a veem. Achas que a perdeste?” Havia tanto prazer maligno nessas suas últimas palavras, e foi tão desagradável a gargalhada que lhe irrompeu dos lábios, que fiquei sem saber o que dizer. Ela poupou-me o trabalho de decidir, despachando-me. Quando o portão se fechou após minha saída, pelas mãos de Sarah, a de rosto de noz, sentime mais do que nunca insatisfeito com minha casa e meu ofício e tudo o mais; e foi esse o único resultado do meu impulso. Enquanto eu perambulava pela rua principal, olhando desanimado para as vitrines e pensando no que eu haveria de comprar se fosse um cavalheiro, vi saindo da livraria ninguém menos que o sr. Wopsle. Ele tinha nas mãos a tocante tragédia de George Barnwell,3 livro em que ele naquele momento investira seis pence, com o objetivo de derramar cada palavra ali contida na cabeça de Pumblechook, com quem ia tomar chá. Tão logo me viu, pareceu dar sinais de julgar que uma Providência especial pusera um aprendiz à sua frente para ouvir a leitura da peça, e insistiu para que eu o acompanhasse até o salão pumblechookiano. Como eu sabia que haveria de me sentir muito infeliz em casa, e as noites eram escuras e lúgubre o caminho, e quase qualquer companhia na estrada era melhor do que ir sozinho, não lhe opus muita resistência; assim, entramos na casa de Pumblechook na hora em que se acendiam as luzes da rua e das lojas. Como jamais assisti a outra encenação de George Barnwell, não sei quanto tempo o espetáculo costuma durar; sei muito bem, porém, que naquela noite durou até as nove e meia, e que quando o sr. Wopsle entrou em Newgate, ** achei que jamais chegaria ao cadafalso, porque se tornou muito mais lento do que em qualquer etapa anterior de sua vergonhosa carreira. Achei um pouco excessivo ele queixar-se de ser abatido na flor da vida, como se desde o começo de sua trajetória, folha após folha, já não estivesse semeando seu fim. Mas isso era apenas uma questão de duração excessiva e tédio. O que me indignou foi a identificação de toda aquela história com minha inofensiva pessoa. Quando Barnwell começou a enveredar pelo mal, confesso que senti um impulso de pedir desculpas, tão indignado era o olhar que Pumblechook passou a me dirigir. Também Wopsle fazia questão de me pintar com as mais feias cores. Ao mesmo tempo feroz e sentimental, fui levado a assassinar meu tio sem quaisquer circunstâncias atenuantes; Millwood me derrotava em todas as discussões; tornou-se mera obsessão da parte da filha de meu mestre importar-se por mim o mínimo que fosse; e tudo que posso dizer da minha atitude hesitante e procrastinadora na manhã fatal é que ela esteve bem à altura da debilidade geral de meu caráter. Mesmo depois que fui felizmente enforcado e Wopsle fechou o livro, Pumblechook continuou a olhar para mim e sacudir a cabeça, dizendo: “Cuida bem, menino, cuida bem!”, como se fosse um fato sabido de todos que eu planejava assassinar um parente próximo, bastando para tal que eu conseguisse convencer um deles a cair no erro de se tornar meu benfeitor. Era uma noite muito escura quando tudo terminou, e quando saí com o sr. Wopsle em direção a minha casa. Fora da cidade, havia uma névoa pesada, que descia úmida e espessa. O lampião da barreira era apenas um borrão, parecendo estar fora de seu lugar habitual, e sua luz parecia transformar-se numa substância sólida na neblina. Estávamos observando esse fato, e comentando que a névoa surgia quando o vento vinha de certa direção do charco, quando vimos um homem, todo encurvado, protegendo-se do vento junto à cabine da barreira. “Olá!”, dissemos, parando. “É o Orlick?” “Ah!”, ele respondeu, aproximando-se, recurvo. “Eu estava ali, parado, um minuto, vendo se vinha alguém.” “É tarde pra você estar aí”, comentei. Orlick retrucou, não sem razão: “E pra vocês, não é?”. “Nós”, respondeu o sr. Wopsle, entusiasmado por seu desempenho de ainda há pouco, “estávamos desfrutando, senhor Orlik, de um serão intelectual.” O velho Orlick rosnou, como se não tivesse nada a comentar sobre tal assunto, e seguimos em frente juntos. Depois de algum tempo, perguntei-lhe se ele havia passado seu meio feriado andando de alto a baixo. “Isso mesmo”, disse ele, “andei por toda a cidade. Eu estava andando atrás de vocês. Não vi vocês, mas devia estar logo atrás. Aliás, estão dando tiro de novo.” “Lá nas presigangas?”, indaguei. “É! Tem mais uns pássaro aí fora da gaiola. Estão dando tiro desde o entardecer, mais ou menos. Daqui a pouco vocês vai ouvir mais um.” De fato, havíamos caminhado mais uns poucos metros apenas quando o estrondo bem conhecido veio em nossa direção, amortecido pela névoa, e foi ecoando pesado pelas terras baixas à margem do rio, como se perseguindo e ameaçando os fugitivos. “Uma boa noite pra fugir”, disse Orlick. “Hoje é que não ia ser fácil de derrubar um desses pássaro que estiver voando por aí.” Aquele assunto era sugestivo para mim, e fiquei a pensar sobre ele em silêncio. O sr. Wopsle, no papel do tio vitimado da tragédia daquela noite, pôs-se a meditar em voz alta em seu jardim em Camberwell.4 Orlick, com as mãos nos bolsos, caminhava a meu lado, muito encurvado. Era uma noite muito escura, muito úmida, muito lamacenta, e assim andávamos espadanando água. De vez em quando um tiro de canhão nos surpreendia outra vez, e mais uma vez ecoava, sombrio, ao longo do curso do rio. Eu permanecia calado, imerso em meus pensamentos. O sr. Wopsle morreu amavelmente em Camberwell, com muito estoicismo em Bosworth Field, e em meio a agonias indizíveis em Glastonbury. 5 Orlick rosnava às vezes: “Bate forte, bate sempre — velho Clem! — para os fortes e valentes — velho Clem!”. Achei que Orlick havia bebido, mas ele não estava bêbado. Chegamos enfim à aldeia. O caminho que seguíamos nos fez passar pela porta da Três Barqueiros Alegres, e ficamos surpresos de ver que o lugar — embora já fossem onze horas — estava em estado de comoção, a porta escancarada, luzes não habituais acesas às pressas espalhadas pelo lugar. O sr. Wopsle entrou para perguntar o que ocorrera (imaginando que um forçado tivesse sido apreendido), mas saiu correndo afobado. “Ocorreu alguma coisa séria”, disse ele, sem parar, “na sua casa, Pip. Vamos correr!” “O que foi?”, perguntei, correndo ao lado dele. Orlick corria também. “Não entendi direito. Parece que a casa foi arrombada quando Joe Gargery não estava. Parece que por forçados. Uma pessoa foi atacada e ferida.” Estávamos correndo depressa demais para continuar conversando, e só paramos ao chegarmos à cozinha de nossa casa. Estava cheia de gente; toda a aldeia estava lá dentro ou no quintal; e lá estavam um médico, e Joe, e um grupo de mulheres, todos reunidos em torno do chão do meio da cozinha. Os curiosos desocupados recuaram ao me ver, e assim foi que deparei com minha irm㠗 deitada desacordada e imóvel sobre as tábuas nuas, tendo sido derrubada por um golpe fortíssimo dado por trás na cabeça, por uma mão desconhecida, quando ela estava voltada para a lareira — claramente condenada a nunca mais espumar de raiva enquanto fosse esposa de Joe. * Fúria: na mitologia clássica, as Fúrias, ou Eríneas, eram três divindades vingativas, que castigavam os criminosos. (n. t.) ** Newgate: famosa prisão em Londres. (n. t.) 16 Com a história de George Barnwell na cabeça, de início fui levado a pensar que eu estaria de algum modo envolvido na agressão contra minha irmã, ou ao menos que, na condição de seu parente mais próximo, que sabidamente lhe devia obediência, eu era um objeto de suspeita mais legítimo do que qualquer outro. Mas quando, à luz clara da manhã seguinte, voltei a pensar na questão e a ouvi discutida a meu redor por todas as partes, passei a encarar o caso por um ângulo diferente, e mais razoável. Joe tinha ficado na Três Barqueiros Alegres, fumando seu cachimbo, das oito e quinze às quinze para as dez. Enquanto estava lá, minha irmã fora vista parada à porta da cozinha, e trocara boas-noites com um camponês que voltava para casa. O homem não fora capaz de especificar melhor a hora em que a vira (quando tentou fazê-lo, confundiu-se todo) senão que teria sido antes das nove. Quando Joe chegou em casa às cinco para as dez, encontrou-a derrubada no chão, e imediatamente pediu ajuda. O fogo na lareira não estava excessivamente baixo, nem o morrão da vela estava longo demais, porém a vela fora soprada. Nenhum objeto fora levado de nenhum cômodo da casa. E, além do fato de que fora soprada a vela — a qual estava numa mesa entre a porta e minha irmã, atrás dela no momento em que, em pé diante da lareira, e voltada para o fogo, ela fora atingida — nada na cozinha fora mexido, fora as consequências de ter minha irmã caído no chão sangrando. Mas havia uma prova notável no local do crime. A vítima tinha sido atingida por algum objeto contundente pesado, na cabeça e na coluna; depois que ela fora golpeada, alguma coisa pesada foi jogada sobre seu corpo com muita violência, estando ela caída de bruços. E no chão, a seu lado, quando Joe a levantou, havia um grilhão de ferro de forçado, que havia sido aberto com uma lima. Ora, examinando o grilhão com seu olho de ferreiro, Joe afirmou que ele teria sido limado algum tempo antes. Tendo o clamor público chegado até as presigangas, veio gente de lá examinar o grilhão, e a opinião de Joe foi confirmada. Não afirmaram quando o objeto fora retirado dos navios-prisões dos quais sem dúvida ele provinha; porém disseram ter certeza de que aquele grilhão em particular não fora usado por nenhum dos dois forçados que haviam fugido na noite da véspera. Ademais, um deles já fora recapturado, e não havia conseguido livrar-se de seus grilhões. Sabendo o que eu sabia, fiz minha própria inferência neste ponto. Julgava eu que o grilhão pertencesse ao meu forçado — o grilhão que eu vira e o ouvira limando no charco — porém não acreditava que fosse ele quem o utilizara na véspera. A meu ver, uma de duas outras pessoas se havia apossado dele, usandoo com aquele fim cruel. A pessoa era ou Orlick ou o desconhecido que me havia mostrado a lima. Quanto a Orlick, ele havia ido à cidade tal como nos dissera quando o encontramos na cabine da barragem, fora visto em vários lugares da cidade ao longo de toda a noite, estivera em companhia de diversas pessoas em mais de uma taberna, e voltara comigo e com o sr. Wopsle. Nada havia que o incriminasse, senão a discussão da véspera; e minha irmã discutira com ele, e com quase todas as outras pessoas a seu redor, dez mil vezes. Quanto ao desconhecido, se ele voltara para pegar suas duas cédulas não poderia ter havido briga por esse motivo, pois minha irmã estava perfeitamente disposta a devolvêlas. Além disso, não houvera briga; o agressor entrara de modo tão silencioso e súbito que ela fora derrubada antes que tivesse tempo de olhar para trás. Era horrível concluir que eu providenciara a arma do crime, ainda que sem intenção, mas era impossível tirar outra conclusão. Sofri uma agonia indizível ao pensar e repensar se devia por fim me livrar daquele encantamento da minha infância e contar tudo a Joe. Durante os meses que se sucederam, todos os dias eu decidia a questão de modo categórico na negativa, e a reabria e reconsiderava na manhã seguinte. No final das contas, a questão resumia-se a isto: o segredo era tão antigo, de tal modo criara raízes em mim e se tornara uma parte de meu ser, que eu já não podia arrancá-lo. Além do medo de que, tendo tido consequências tão terríveis, mais do que nunca ele teria agora o efeito de afastar Joe de mim se ele acreditasse no que lhe fosse dito, paralisava-me também o medo de que ele não acreditasse, porém pusesse a revelação na mesma conta que os cães fabulosos e os pratos de vitela, como uma invenção monstruosa. Mas contemporizei comigo mesmo, é claro — pois não estava eu hesitando entre o certo e o errado, quando não havia dúvida do que havia de ser feito? — e decidi que contaria tudo se uma nova situação constituísse mais uma oportunidade de ajudar a descobrir a identidade do criminoso. Os policiais e os homens da Bow-Street1 vindos de Londres — pois isto se deu nos tempos da extinta força policial que usava coletes vermelhos — frequentaram a casa por uma ou duas semanas, fazendo mais ou menos o que, conforme já li e ouvi dizer, tais autoridades costumam fazer em casos assim. Detiveram várias pessoas que claramente nada tinham a ver com o caso, e se apegaram do modo mais obstinado a ideias erradas, insistindo em adaptar as circunstâncias às ideias, em vez de tentar extrair ideias das circunstâncias. Além disso, ficavam parados à porta da Três Barqueiros com expressões sagazes e reservadas que inspiravam admiração a toda a vizinhança; e tinham um jeito misterioso de beber que quase equivalia a prender o culpado. Não mais que quase, porém; pois isso eles nunca conseguiram fazer. Por muito tempo depois que esses poderes constitucionais se dispersaram, minha irmã permaneceu acamada, em péssimo estado. Sua visão foi prejudicada, de modo que ela via os objetos multiplicados, e tentava segurar xícaras de chá e taças de vinho imaginárias em vez das reais; sua audição ficou muito reduzida; sua memória também foi afetada; e sua fala tornou-se ininteligível. Quando, por fim, ela já conseguia, com ajuda de alguém, descer a escada, ainda assim era necessário manter minha lousa sempre a seu lado, para que ela pudesse exprimir por escrito o que não conseguia falar. Como (além de ter péssima letra) ela escrevia muito mal, e como Joe lia pior ainda, complicações extraordinárias surgiam entre eles, para as quais eu era sempre chamado para esclarecer. Servir repolho em vez de remédio, confundir Joe com pão e tesoura com toucinho foram alguns dos erros menos sérios que cometi. O gênio de minha irmã, porém, melhorou muito, e ela tornou-se paciente. Uma incerteza trêmula quanto ao funcionamento de todos os seus membros logo se tornou uma parte de seu estado normal, e posteriormente, com intervalos de dois ou três meses, ela muitas vezes levava as mãos à cabeça e em seguida permanecia por cerca de uma semana imersa num estado mental aberrante de melancolia. Não sabíamos como encontrar uma acompanhante apropriada para ela, até que uma circunstância conveniente veio a nosso auxílio. A tia-avó do sr. Wopsle livrou-se do hábito teimoso de viver que havia adquirido, e Biddy passou a morar conosco. Foi talvez um mês depois que minha irmã voltou a frequentar a cozinha que Biddy veio a nossa casa com uma caixinha sarapintada contendo todos os seus bens, e tornou-se uma bênção para toda a família. Acima de tudo, foi uma bênção para Joe, pois essa adorável criatura não suportava ter que contemplar constantemente os destroços de sua esposa, e adquirira o costume de virar-se para mim de vez em quando, ao cuidar dela à noite, e dizer-me, com os olhos azuis rasos d’água: “E pensar que ela já foi uma bela mulher, Pip!”. Biddy de imediato assumiu os cuidados de minha irmã com tanta destreza quanto se fizesse isso desde a infância, e Joe pôde aproveitar um pouco a tranquilidade maior que sua vida conquistara, podendo ir de vez em quando à Três Barqueiros para uma mudança de ares que lhe fazia bem. Era típico dos policiais todos eles meio que desconfiarem do pobre Joe (se bem que disso ele jamais teve ciência), e acreditarem de comum acordo que ele era um dos mais refinados ladinos que eles jamais conheceram. O primeiro triunfo de Biddy em seu novo cargo foi resolver um problema que me derrotara por completo. Eu me esforçara muito, mas nada conseguira. Eis a questão: Vez após vez após vez, minha irmã traçava na lousa um símbolo que parecia um T curioso, e depois com muita ansiedade chamava nossa atenção para ele, como algo que ela desejava em particular. Eu tentara em vão trazer-lhe todos os objetos que começassem com a letra T, fosse terebintina, torrada ou tábua. Depois de algum tempo comecei a pensar que o símbolo parecia um martelo, e quando pronunciei a palavra com ênfase no ouvido de minha irmã ela pôs-se a martelar na mesa e manifestar uma aprovação limitada. Em seguida, eu lhe trouxe todos os martelos da casa, um após o outro, mas sem êxito. Em seguida, ocorreu-me que a forma era bem semelhante a uma muleta, e assim tomei uma emprestada na aldeia, exibindo-a a minha irmã com muita confiança. Ela, porém, sacudiu a cabeça de tal modo que ficamos apavorados, temendo que, no seu estado de fraqueza e invalidez, ela deslocasse o pescoço. Quando minha irmã se deu conta de que Biddy conseguia compreendê-la com muita rapidez, o símbolo misterioso reapareceu na lousa. Biddy olhou-o pensativa, ouviu minha explicação, olhou pensativa para minha irmã, olhou pensativa para Joe (o qual era sempre representado na lousa por sua inicial maiúscula) e correu para a ferraria, seguida por Joe e por mim. “Ora, é claro!”, exclamou Biddy, com uma expressão triunfal no rosto. “Vocês não veem? É ele!” Orlick, sem dúvida! Minha irmã perdera seu nome, e só conseguia representá-lo por seu martelo. Explicamos-lhe por que queríamos que ele viesse à cozinha, e ele lentamente largou o martelo, enxugou a testa no braço, enxugoua de novo com o avental e veio, caminhando recurvado, com aqueles joelhos dobrados do modo curioso, típico dos vagabundos, que o caracterizava de modo tão enfático. Devo confessar que esperava que minha irmã o denunciasse, e que fiquei decepcionado quando vi o que aconteceu. Ela revelou-se muito ansiosa por fazer as pazes com ele, ficou claramente satisfeitíssima por conseguir estar com ele depois de tanto tempo, e indicou que gostaria que lhe fosse servido algo para beber. Ela observava-lhe o rosto como se desejasse certificar-se de que Orlick aceitava de bom grado aquela recepção, demonstrou toda intenção de reconciliar-se com ele, e havia em tudo o que ela fazia aquele ar de propiciação que tenho observado na conduta de uma criança para com um mestre rigoroso. Desde então, era raro que se passasse um dia sem que ela desenhasse o martelo na sua lousa, e sem que Orlick entrasse, todo recurvo, e se postasse a sua frente, lealmente, como se entendesse tão pouco quanto eu o que estava acontecendo. 17 Mergulhei então na rotina da vida de aprendiz, que teve como única variação, levando-me além dos limites da aldeia e do charco, a circunstância nada notável da chegada de meu aniversário e mais uma visita à sra. Havisham. Encontrei a sra. Sarah Pocket ainda ocupando o posto de porteira, e encontrei a sra. Havisham tal como a havia deixado, e ela falou sobre Estella exatamente do mesmo modo que antes, se não com as mesmas palavras. A conversa durou apenas alguns minutos, e ela me deu um guinéu quando nos despedimos, e me disse que voltasse no próximo aniversário. Aproveito para observar que essas visitas anuais se tornaram costumeiras. Tentei não aceitar o guinéu nessa primeira ocasião, mas o único efeito de minha recusa foi fazê-la me perguntar, muito zangada, se eu esperava mais. Depois dessa, aceitei. Era tão imutável aquela casa velha e poeirenta, a luz amarela no quarto escurecido, a aparição murcha na cadeira diante do espelho da penteadeira, que me dava a impressão de que, quando os relógios foram parados, também o Tempo parara naquele lugar misterioso, e embora fora dela tudo se tornasse mais velho, eu inclusive, ali nada mudava. A luz do dia jamais entrava na casa em todos os meus pensamentos e lembranças associados a ela, tal como não entrava na casa em si. Isso me deixava perplexo, e sob tal influência continuava, no fundo do coração, a odiar meu ofício e a ter vergonha de minha casa. De modo imperceptível, fui tomando consciência de uma mudança em Biddy, porém. Seus sapatos não estavam mais amarfanhados nos calcanhares, seu cabelo ficou mais reluzente e asseado, suas mãos estavam sempre limpas. Ela não era bela — era vulgar, e não podia ser como Estella — porém era agradável, saudável e bem-humorada. Estava conosco há apenas um ano (lembro-me que ela havia acabado de tirar o luto nessa época) quando percebi uma noite que seus olhos eram curiosamente pensativos e atentos; olhos muito bonitos e muito bons. Isso ocorreu quando levantei meus olhos, interrompendo uma tarefa em que estava absorto — a de copiar trechos de um livro, para me aperfeiçoar de duas maneiras ao mesmo tempo através de uma espécie de estratagema — e vi que Biddy me observava. Larguei a pena, e Biddy deteve sua agulha sem largar a costura. “Biddy ”, disse eu, “como é que consegues? Ou eu sou muito burro ou tu és muito inteligente.” “O que é que eu consigo? Não sei”, respondeu ela, sorrindo. Ela administrava toda a nossa vida doméstica, e de um modo maravilhoso; mas não era a isso que eu me referia, embora isso tornasse ainda mais surpreendente aquilo a que eu me referia. “Como é que consegues, Biddy ”, expliquei, “aprender tudo que eu aprendo, e sempre me acompanhar?” Eu estava começando a ficar um tanto vaidoso de meus conhecimentos, pois eu gastava meus guinéus de aniversário e a maior parte do meu dinheiro miúdo em investimentos tais; embora hoje me pareça claro que o pouco que eu sabia fora adquirido a um preço extremamente caro. “Eu é que bem podia te perguntar”, devolveu Biddy, “como é que tu consegues?” “Não; porque quando volto da ferraria à noite, qualquer um pode me ver estudando. Mas tu nunca estás estudando, Biddy .” “Acho que pego — como se fosse um resfriado”, disse ela, em voz baixa; e continuou a costurar. Ainda a pensar nessa ideia, recostei-me em minha cadeira de madeira e fiquei a olhar para Biddy , costurando com a cabeça inclinada, e comecei a achar que ela era uma moça extraordinária. Pois, disse a mim mesmo, ela conhecia igualmente bem os termos de nosso ofício, e os nomes dos diferentes tipos de trabalho que fazíamos, e nossas diversas ferramentas. Em suma, tudo que eu sabia, Biddy sabia também. Teoricamente, ela já era uma ferreira tão boa quanto eu, se não melhor. “Tu és uma dessas pessoas, Biddy ”, disse eu, “que aproveitam ao máximo cada mudança. Antes de vires para cá, não tinhas nenhuma oportunidade; e vê como melhoraste de vida!” Biddy olhou-me por um instante, e continuou a costurar. “Mas eu fui tua primeira professora, não é?”, disse, enquanto costurava. “Biddy !”, exclamei, perplexo. “O quê, estás chorando?” “Não estou, não”, disse ela, levantando a cabeça e rindo. “Quem te pôs essa ideia na cabeça?” O que poderia ter posto essa ideia na cabeça senão o brilho de uma lágrima a pingar na costura de Biddy ? Permaneci em silêncio, lembrando a vida dura que ela levara até que a tia-avó do sr. Wopsle conseguiu livrar-se daquele seu péssimo hábito de viver, do qual algumas pessoas têm tanta necessidade de se livrar. Relembrei as circunstâncias desanimadoras que a haviam cercado na lojinha miserável e na escolinha noturna barulhenta e miserável, sempre tendo de arrastar e amparar aquele miserável fardo de incompetência. Refleti que mesmo naqueles tempos difíceis deviam estar latentes em Biddy aquelas qualidades que agora se desenvolviam, pois no meu primeiro momento de inquietude e descontentamento eu recorrera a ela sem pensar duas vezes. Biddy continuava a costurar em silêncio, sem chorar mais nem uma lágrima, e enquanto eu a fitava e pensava, ocorreu-me que talvez não tivesse manifestado minha gratidão a ela de modo suficiente. Talvez tivesse sido excessivamente reservado, e devesse tê-la favorecido mais (embora não fosse essa a palavra exata que usei em minha meditação) com minha confiança. “É verdade, Biddy ”, concordei, quanto terminei essas considerações, “foste mesmo minha primeira professora, e isso numa época em que jamais imaginávamos que um dia estaríamos juntos como estamos agora, nesta cozinha.” “Ah, coitada!”, replicou Biddy. Era típico de sua generosidade transferir o comentário para minha irmã, e levantar-se para ocupar-se com ela, para lhe dar mais conforto. “É verdade, que tristeza!” “Pois é”, arrematei, “precisamos conversar um pouco mais, como fazíamos antigamente. E preciso consultar-te um pouco mais, como eu costumava fazer. Vamos passear no charco neste domingo, Biddy , e ter uma longa conversa.” Minha irmã agora jamais ficava a sós; mas Joe assumiu de bom grado os cuidados dela naquela tarde de domingo, e eu e Biddy saímos juntos. Era verão, e era um dia muito bonito. Depois que deixamos para trás a aldeia, a igreja e o campo-santo, e nos vimos no charco e começamos a ver as velas dos navios ao longe, comecei a associar a sra. Havisham e Estella àquela vista, como de costume. Chegando à beira do rio, sentamo-nos na margem, com a água chegando até nossos pés, um ruído que apenas realçava o silêncio, e decidi que era a hora e o lugar para eu me abrir com Biddy . “Biddy ”, disse eu, após lhe pedir que guardasse segredo, “quero ser um cavalheiro.” “Ah, eu também havia de querer, se fosse tu!”, ela retrucou. “Acho que não daria certo.” “Biddy ”, insisti, com certa severidade, “tenho meus motivos para querer ser um cavalheiro.” “Tu é que sabes, Pip; mas não achas que serias mais feliz sendo quem és?” “Biddy ”, exclamei, impaciente, “não sou nem um pouco feliz tal como sou. Detesto meu ofício e minha vida. Nunca gostei de nenhum dos dois, desde que me tornei aprendiz. Não seja boba.” “Eu fui boba?”, disse Biddy, levantando as sobrancelhas um pouco. “Desculpa; foi sem querer. Só quero que te sintas bem, e viva em conforto.” “Pois então, quero que entendas de uma vez por todas que nunca vou poder viver em conforto — nunca vou deixar de ser infeliz — isso mesmo, Biddy ! — se não conseguir levar uma vida muito diferente dessa que levo agora.” “É uma pena!”, respondeu Biddy, sacudindo a cabeça com uma expressão de tristeza. Ora, eu também havia pensando tantas vezes que era uma pena, que, naquela curiosa discussão comigo mesmo que eu vivia tendo, senti-me um pouco inclinado a chorar de aflição e amargura quando Biddy exprimiu aquele sentimento seu que também era meu. Disse-lhe que ela tinha razão, que eu sabia que era mesmo lamentável, mas que não havia jeito. “Se pudesse me acomodar”, disse eu a Biddy, arrancando a grama a meu lado tal como uma vez eu arrancara meus sentimentos dos cabelos e os chutara contra as paredes da cervejaria, “se pudesse me acomodar e gostar da ferraria ao menos um pouco, a metade do que eu gostava quando era pequeno, sei que seria muito melhor pra mim. Então não faltaria nada para ti, para mim e para Joe, e talvez eu me tornasse sócio de Joe quando chegasse a hora, e fizesse companhia a ti, e viéssemos nos sentar bem aqui, à beira do rio, nos domingos de bom tempo, duas pessoas muito diferentes. Eu seria bom o bastante pra ti; não é, Biddy ?” Biddy suspirou enquanto olhava para os navios que passavam, e disse, à guisa de resposta: “É, sim; não sou muito exigente”. O comentário não era muito lisonjeiro, mas eu sabia que sua intenção fora boa. “Em vez disso”, prossegui, arrancando mais grama e mastigando uma folha ou duas, “vê como estou. Insatisfeito, amargurado e — que importância isso teria, isso de eu ser grosseiro e vulgar, se ninguém nunca me tivesse dito que eu era!” Biddy virou-se para mim de repente, e olhou-me com mais atenção do que olhara para os navios até então. “Isso que te disseram não é de todo verdade, e não é muito educado”, comentou ela, voltando a olhar para os navios. “Quem disse isso?” Fiquei desconcertado, pois havia puxado o assunto sem me dar conta da direção que estava tomando. Agora não havia como voltar atrás, porém, e respondi: “A moça bonita da casa da senhora Havisham, ela é a pessoa mais bonita que já existiu, e eu tenho uma admiração tremenda por ela, e é por causa dela que quero ser um cavalheiro”. Tendo feito essa confissão maluca, pus-me a jogar no rio a grama que eu arrancara, como se tivesse alguma intenção de ir atrás dela. “Queres ser cavalheiro pra despeitá-la ou pra conquistá-la?”, Biddy perguntou em voz baixa, após uma pausa. “Não sei”, respondi, emburrado. “Porque se é pra despeitá-la”, prosseguiu Biddy, “a meu ver — mas tu és quem sabe — a maneira melhor e mais independente de fazer isso é não dar importância ao que ela diz. E se é para conquistá-la, — mas tu és quem sabe — ela não merece ser conquistada.” Exatamente o que eu próprio já havia pensado, muitas vezes. Exatamente o que estava bem claro para mim naquele momento. Mas como podia eu, um rapazinho pobre e deslumbrado que morava numa aldeia, evitar aquela maravilhosa incoerência em que os homens melhores e mais sábios incidem todos os dias? “Isso pode ser verdade”, disse eu a Biddy, “mas o fato é que tenho uma admiração tremenda por ela.” Em suma, virei-me para o outro lado ao dizer isso, e agarrei meu cabelo de ambos os lados da cabeça, e puxei-o também. Sabendo o tempo todo que a loucura de meu coração era de fato loucura e desatino, que eu tinha consciência de que meu rosto bem merecia que eu o levantasse pelo cabelo e o batesse contra as pedras do chão, para castigá-lo por pertencer a um idiota. Biddy era a mais sábia das moças, e não tentou mais argumentar comigo. Pôs sua mão, que era agradável embora tornada áspera pelo trabalho, nas minhas, uma depois da outra, e delicadamente tirou-as de meu cabelo. Então acariciou-me o ombro para me tranquilizar, enquanto eu, com o rosto enterrado na manga da camisa, chorava um pouco — tal como fizera no pátio da cervejaria — e me sentia vagamente convencido de que eu era muito maltratado, não sei se por alguém, ou se por todo mundo. “Uma coisa me anima”, disse Biddy, “é que tu te sentiste capaz de confiar em mim, Pip. E outra coisa também, é claro que sabes que podes ter certeza de que podes ter confiança em mim e de que jamais vou traí-la. Se a sua primeira professora (e que pobre professora, pois ela própria precisava aprender tanta coisa!) fosse sua professora no momento, ela acha que saberia que lição te haveria de dar. Mas seria uma lição difícil de aprender, e tu já a deixaste para trás, e agora de nada adiantaria.” Assim, com um suspiro suave dirigido a mim, Biddy pôs-se de pé, e perguntou-me, com uma mudança de tom agradável: “Vamos caminhar mais um pouco, ou voltamos para casa?”. “Biddy ”, exclamei, levantando-me e abraçando-lhe o pescoço, e beijando-a, “vou sempre te contar tudo.” “Até te tornares um cavalheiro”, respondeu ela. “Sabes que nunca vou ser, e por isso é mesmo pra sempre. Não que eu tenha alguma ocasião de te dizer mais coisas, pois sabes tudo que eu sei — como eu te disse lá em casa aquela noite.” “Ah!”, exclamou Biddy, num sussurro, enquanto desviava o olhar para os navios. E depois repetiu, no mesmo tom agradável de antes: “Vamos caminhar mais um pouco, ou voltamos para casa?”. Respondi que caminharíamos mais um pouco, e foi o que fizemos, e a tarde de verão foi se transformando numa noite de verão, e uma noite muito bonita. Comecei a pensar se seria para mim mais natural e saudável, no final das contas, estar ali naquelas circunstâncias, do que jogando batalha à luz de vela no quarto dos relógios parados, sendo desprezado por Estella. Pensei que seria muito bom para mim se eu conseguisse tirá-la da cabeça, juntamente com todas aquelas outras lembranças e fantasias, e pudesse retomar o trabalho decidido a gostar do que tinha de fazer, e me aplicar a meu ofício, e aproveitá-lo da melhor maneira possível. Perguntei a mim mesmo se eu não sabia muito bem que se Estella estivesse a meu lado naquele momento em vez de Biddy, ela me faria sentir infeliz. Fui obrigado a reconhecer que sabia disso, sim, e disse a mim mesmo: “Pip, és mesmo um idiota!”. Conversamos bastante durante a caminhada, e tudo que Biddy dizia me parecia razoável. Ela nunca era desdenhosa, nem caprichosa, nem era Biddy hoje e outra pessoa amanhã; para ela seria apenas doloroso, e não um prazer, me fazer sentir dor; ela preferiria sem dúvida ferir a si própria do que a mim. Como podia ser, então, que eu não gostasse muito mais dela que da outra? “Biddy ”, disse eu, quando caminhávamos de volta para casa, “queria muito que pudesses dar um jeito em mim.” “Eu também queria!”, exclamou Biddy . “Se eu pudesse me fazer apaixonar-me por ti — tu não te incomodas de me ouvir falar tão às claras com uma velha amiga?” “Ah, não, que nada!”, respondeu ela. “Não te importes comigo.” “Se eu conseguisse isso, seria o melhor pra mim.” “Mas nunca vais, não é?”, disse Biddy . A coisa não me parecia tão improvável naquela noite quanto teria parecido se tivéssemos falado no assunto algumas horas antes. Assim, observei que eu não tinha tanta certeza disso. Mas Biddy disse que ela, sim, tinha certeza, e afirmou-o num tom decidido. No fundo do coração, eu achava que ela tinha razão; e, no entanto, não me agradou nem um pouco ouvi-la fazer tal afirmação de modo tão categórico. Quando nos aproximávamos do campo-santo, tínhamos de atravessar uma barragem, e passar por uma cancela junto a uma eclusa. Apareceu então, saído da cancela, ou do meio dos juncos, ou da lama (que era tão estagnada quanto ele), o velho Orlick. “Olá!”, rosnou ele. “Adonde que vocês dois estão indo?” Onde estaríamos indo, senão para casa? “Então”, disse ele, “me estrepem se eu não levar vocês em casa!” Este castigo de ser estrepado era uma de suas suposições favoritas. Ele não atribuía nenhum significado específico à palavra, que eu saiba, porém a utilizava, tal como seu suposto nome de batismo, para afrontar a humanidade, e exprimir a ideia de algo terrivelmente danoso. Quando eu era menino, imaginava que, se Orlick me estrepasse pessoalmente, haveria de fazê-lo com um gancho afiado e torto. Biddy era totalmente contrária à ideia de ele nos acompanhar, e disse a mim num cochicho: “Não o deixes vir; não gosto dele”. Como também eu não gostava de Orlick, tomei a liberdade de lhe dizer que agradecíamos, mas que não queríamos ser levados para casa. Ele recebeu essa informação com uma gargalhada, e deixou-se ficar para trás, mas veio andando atrás de nós, todo recurvado, a uma pequena distância. Curioso, querendo saber se Biddy desconfiava de que Orlick tivesse participado daquela agressão assassina que minha irmã jamais conseguira explicar, perguntei-lhe por que ela não gostava dele. “Ah!”, respondeu ela, olhando de relance para a figura que vinha atrás de nós, “porque eu… acho que ele gosta de mim.” “Ele alguma vez te disse que gostava de ti?”, perguntei, indignado. “Não”, respondeu Biddy, olhando para trás de relance outra vez, “nunca me disse isso; mas fica dançando à minha frente, sempre que consegue atrair meu olhar.” Por mais estranha e inusitada que fosse essa prova de interesse, não duvidei que sua interpretação estivesse correta. Fiquei muitíssimo irritado de saber que Orlick ousava admirá-la; tanto quanto se isso fosse uma agressão dirigida a mim. “Mas pra ti, isso não faz diferença, tu sabes”, disse Bid dy , tranquila. “Não, Biddy , não faz diferença pra mim; mas não gosto; não aprovo.” “Eu também não”, disse Biddy. “Se bem que isso também não faz diferença pra ti.” “Certamente”, retruquei; “mas devo te dizer que faria mau juízo de ti, Biddy , se ele dançasse a tua frente com tua aprovação.” Fiquei de olho em Orlick a partir daquela noite, e sempre que as circunstâncias lhe permitiriam dançar diante de Biddy, colocava-me à frente dele, para criar um obstáculo para tais demonstrações. Orlick havia criado raízes na ferraria, por ter minha irmã de repente se interessado por ele; não fosse isso, eu tentaria fazer com que ele fosse demitido. Orlick compreendia e reciprocava minhas boas intenções, como pude concluir depois. E agora, porque minha cabeça ainda não estava suficientemente confusa, aumentei essa confusão cinquenta vezes mais, passando por fases e temporadas em que tinha certeza de que Biddy era incomensuravelmente melhor do que Estella, e que a vida simples e honesta de trabalhador que me cabia por berço não me dava motivo algum para me envergonhar, porém oferecia-me meios suficientes de conquistar o amor-próprio e a felicidade. Nesses momentos, eu concluía de modo decisivo que minha implicância com meu querido Joe e a ferraria havia passado, e que eu estava caminhando para um dia me tornar sócio de Joe e fazer companhia a Biddy — quando de repente alguma lembrança acachapante da casa da sra. Havisham desabava em mim, como um projétil destruidor, e despedaçava meu juízo. Leva-se tempo para catar os pedaços do juízo; e muitas vezes, antes de eu conseguir juntá-los outra vez, eles eram espalhados para todos os lados por um único pensamento errante, a ideia de que talvez, no final das contas, a sra. Havisham viesse a fazer minha fortuna quando chegasse minha hora. Se minha aprendizagem tivesse ido até o fim, ela me deixaria ainda no auge da minha perplexidade, creio eu. Porém ela não chegou a concluir-se, e sim foi interrompida prematuramente, como passo a relatar. 18 Foi no quarto ano de meu aprendizado com Joe, e foi numa noite de sábado. Havia um grupo reunido em torno da lareira na Três Barqueiros Alegres, ouvindo o sr. Wopsle a ler o jornal em voz alta. Nesse grupo estava eu. Um assassinato muito popular fora cometido, e o sr. Wopsel estava mergulhado em sangue até as sobrancelhas. Ele deleitava-se com cada adjetivo horrendo da descrição, e identificava-se com cada testemunha na investigação. Gemia em voz baixa: “É o fim”, no papel da vítima, e gritava como um bárbaro: “Vais ter o que mereces”, no papel do assassino. Apresentou o testemunho médico, imitando claramente o clínico local; e com uma voz aguda, trêmulo, deu o depoimento do velho guardador da cabine da barreira que ouvira os golpes, de modo tão paralítico que lançou dúvida sobre a competência mental dessa testemunha. O médico-legista, nas mãos do sr. Wopsle, tornou-se Timão de Atenas; o oficial de justiça, Coriolano.1 Ele divertia-se à grande, e todos nós nos divertíamos, e estávamos deliciosamente à vontade. Nesse estado mental agradável, chegamos ao veredicto: assassinato doloso. Neste momento, não antes, me dei conta de que havia um cavalheiro desconhecido debruçado sobre o encosto do banco em frente ao meu, assistindo à cena. Havia uma expressão de desprezo em seu rosto, e ele mordia o lado de seu avantajado dedo indicador enquanto observava aquele grupo de rostos. “Pois bem!”, disse o cavalheiro para o sr. Wopsle, ao final da leitura. “Então o senhor resolveu tudo e está satisfeito, não é mesmo?” Todos levantaram a vista, surpresos, como se ele fosse o assassino. O homem dirigiu a todos um olhar frio e sarcástico. “Culpado, é claro?”, insistiu. “Digam lá. Vamos!” “Meu senhor”, retrucou o sr. Wopsle, “ainda que não tenha a honra de conhecê-lo, digo, sim: culpado.” Em seguida, todos nós criamos coragem de nos unirmos num murmúrio de aprovação. “Sei que vocês pensam assim”, disse o desconhecido; “eu já sabia. Eu lhes disse. Mas agora vou lhes fazer uma pergunta. Vocês sabem, ou não sabem, que na Inglaterra a lei pressupõe que todo homem é inocente, até que sua culpa seja provada — provada?” “Meu senhor”, foi dizendo o sr. Wopsle, “eu mesmo, na condição de inglês…” “Ora!”, exclamou o desconhecido, mordendo o dedo para ele. “Não se esquive da minha pergunta. Ou o senhor sabe, ou não sabe. Qual das alternativas?” Ele estava em pé, com a cabeça inclinada para um lado e o corpo para o outro, numa postura agressiva e inquisidora, e apontou com o indicador para o sr. Wopsle — como se para marcá-lo — antes de morder o dedo outra vez. “Agora!”, disse ele. “O senhor sabe ou não sabe?” “É claro que sei”, respondeu o sr. Wopsle. “É claro que sabe. Então por que não disse isso antes? Pois agora vou lhe fazer outra pergunta”, apossando-se do sr. Wopsle como se tivesse direitos sobre ele. “O senhor sabe que nenhuma dessas testemunhas ainda foi submetida a um interrogatório detalhado?”* O sr. Wopsle começou: “Só posso dizer…”, quando o desconhecido o interrompeu. “O quê? O senhor não vai responder à pergunta, sim ou não? Pois vou tentar outra vez.” Apontando para ele outra vez. “Ouça-me. O senhor sabe, ou não sabe, que nenhuma dessas testemunhas ainda foi sujeita a um interrogatório detalhado? Vamos, só quero uma palavra do senhor. Sim, ou não?” O sr. Wopsle hesitou, e todos nós começamos a formar uma opinião um tanto desfavorável a seu respeito. “Vamos lá!”, disse o desconhecido. “Vou ajudá-lo. O senhor não merece ser ajudado, mas vou ajudá-lo assim mesmo. Olhe para o papel que o senhor tem na mão. O que é isso?” “O que é isso?”, repetiu o sr. Wopsle, olhando para o jornal, sem saber o que dizer. “Seria isso”, insistiu o desconhecido no seu tom mais sarcástico e desconfiado, “o papel impresso que o senhor estava lendo ainda há pouco?” “Sem dúvida.” “Sem dúvida. Agora pegue esse papel, e me diga se nele está escrito com clareza que o prisioneiro afirmou com todas as letras que seus representantes legais o instruíram a abster-se de se defender?” “Acabei de ler isso”, argumentou o sr. Wopsle. “Não vem ao caso o que o senhor acabou de ler; não estou lhe perguntando o que o senhor acabou de ler. O senhor pode ler o padre-nosso de trás para frente, se quiser — e pode, talvez, ter feito isso ontem. Volte ao jornal. Não, não, não, meu amigo; não para o alto da coluna; o senhor sabe muito bem que não é aí; para a parte de baixo, de baixo.” (Todos nós começamos a pensar que o sr. Wopsle era cheio de subterfúgios.) “E então? Encontrou?” “Cá está”, disse o sr. Wopsle. “Agora, percorra com o olho esse trecho, e me diga se aí se diz com clareza que o prisioneiro afirmou com todas as letras que seus representantes legais o instruíram a abster-se por completo de se defender? Vamos! Como o senhor entende isso?” Respondeu o sr. Wopsle: “Não são essas as palavras exatas”. “Não são as palavras exatas!”, repetiu o cavalheiro, cáustico. “O teor exato é esse?” “É”, respondeu o sr. Wopsle. “É”, repetiu o desconhecido, olhando para os demais presentes com a mão direita estendida em direção à testemunha, Wopsle. “E agora eu lhes pergunto o que me dizem da consciência deste homem, o qual, tendo essa passagem diante de seus olhos, é capaz de dormir à noite depois de afirmar que um semelhante seu é culpado, sem tê-lo ouvido?” Todos nós começamos a suspeitar que o sr. Wopsle não era o homem por quem o tomávamos, e que ele estava começando a ser desmascarado. “E este mesmo homem, lembrem”, insistiu o cavalheiro, apontando o dedo para o sr. Wopsle de modo enfático, “este mesmo homem pode ser convocado para atuar como jurado neste exato julgamento, e, tendo-se comprometido profundamente, pode voltar ao seio de sua família e dormir à noite, depois de jurar explicitamente que iria julgar de modo competente e veraz a questão envolvendo sua majestade, nosso rei e senhor, e o réu presente, e que daria um veredicto verdadeiro de acordo com as provas apresentadas, com a ajuda de Deus!” Todos nós estávamos inteiramente convencidos de que o infeliz Wopsle tinha ido longe demais, e seria melhor interromper aquela trajetória perigosa enquanto ainda era tempo. O cavalheiro desconhecido, com um ar de autoridade inquestionável, e com modos de quem conhecia um segredo a respeito de cada um de nós que seria nosso fim se ele resolvesse revelá-lo, saiu detrás do banco e veio para o espaço entre os dois bancos, à frente da lareira, onde permaneceu em pé: com a mão esquerda no bolso, enquanto mordia o indicador da mão direita. “Com base em informações que recebi”, disse ele, olhando para nós, que tremíamos diante de seu olhar, “sou levado a crer que há entre vocês um ferreiro chamado Joseph — ou Joe — Gargery . Quem é esse homem?” “Sou eu”, disse Joe. O cavalheiro desconhecido fez sinal para que ele se levantasse, e Joe o fez. “O senhor tem um aprendiz”, prosseguiu o desconhecido, “chamado por todos de Pip? Ele está aqui?” “Estou aqui!”, exclamei. O desconhecido não me reconheceu, mas eu o reconheci: era o cavalheiro que eu encontrara na escada, na ocasião da minha segunda visita à casa da sra. Havisham. Eu o reconhecera no momento em que o vi do outro lado do banco, olhando para nós, e agora que eu estava diante dele, tendo ele a mão em meu ombro, observei outra vez cada detalhe, a cabeçorra, a pele escura, os olhos fundos, as sobrancelhas espessas e negras, a enorme corrente de relógio, os pontos negros grandes da barba e das suíças, até mesmo o cheiro de sabonete perfumado em sua manzorra. “Gostaria de ter uma conversa em particular com vocês dois”, disse ele, depois de me observar por alguns instantes. “Vai levar algum tempo. Talvez seja melhor irmos até a sua residência. Prefiro não antecipar aqui o que tenho a dizer; vocês transmitirão a seus amigos depois o quanto quiserem do que lhes direi; quanto a isso, sou de todo indiferente.” Em meio a um silêncio atônito, nós três saímos da Três Barqueiros, e num silêncio atônito caminhamos para casa. No caminho, o cavalheiro desconhecido de vez em quando olhava para mim, e de vez em quando mordia o lado do dedo indicador. Ao nos aproximarmos de nossa casa, tendo uma vaga ideia de que a ocasião era importante e cerimoniosa, Joe adiantou-se e abriu a porta da frente. Nossa reunião realizou-se na sala de visitas de cerimônia, fracamente iluminada por uma vela. Começou quando o cavalheiro desconhecido sentou-se à mesa, puxou a vela para perto de si e consultou algumas anotações em sua caderneta de bolso. Depois pôs sobre a mesa a caderneta e colocou a vela a seu lado: depois olhou para Joe e para mim na escuridão, para certificar-se de quem era quem. “Meu nome”, disse ele, “é Jaggers, e sou um advogado londrino. Sou bem conhecido. Tenho um negócio pouco habitual a realizar com vocês, e começo por dizer que não fui eu quem teve a iniciativa. Se tivessem pedido meu conselho, eu não estaria aqui. Não me pediram, e cá estou eu. Faço o que faço como representante confidencial de um terceiro. Nada mais, nada menos que isso.” Constatando que não conseguia nos ver muito bem de onde estava, levantouse, jogou uma perna sobre o encosto de uma cadeira e apoiou-se nela; assim, tinha um pé no assento da cadeira e o outro no chão. “Pois bem, senhor Joseph Gargery, vim trazer uma oferta para retirar de suas mãos esse seu jovem aprendiz. O senhor não se importa de cancelar o contrato de aprendizagem, a pedido dele e para o bem dele? O senhor não pediria nada em troca?” “Deus me livre de pedir alguma coisa pra não atrapalhar a vida do Pip”, disse Joe, com os olhos arregalados. “Que Deus o livre é uma expressão piedosa, mas irrelevante”, retrucou o sr. Jaggers. “A pergunta é: o senhor quereria algo? O senhor quer algo?” “A resposta”, disse Joe, sério, “é não.” Pareceu-me que o sr. Jaggers olhou de relance para Joe, como se o considerasse um tolo por ser tão desinteressado. Mas eu estava demasiadamente perplexo, dividido entre uma curiosidade e uma surpresa intensas, para ter certeza disso. “Muito bem”, disse o sr. Jaggers. “Lembre-se do que o senhor acaba de afirmar, e não tente voltar atrás depois.” “Quem que vai tentar?”, retorquiu Joe. “Eu não disse que ninguém ia tentar nada. O senhor tem um cachorro?” “Tenho um cachorro, sim.” “Pois então não esqueça que a Gabolice é um bom cachorro, mas a Reticência é melhor ainda.2 Não esqueça, ouviu?”, repetiu o sr. Jaggers, fechando os olhos e acenando com a cabeça para Joe, como se lhe perdoasse alguma falta. “Voltemos a este rapazinho. E a comunicação que lhe trago é que ele tem grandes esperanças.” Joe e eu ficamos boquiabertos e nos entreolhamos. “Fui instruído a comunicar-lhe”, disse o sr. Jaggers, apontando o dedo para mim, de lado, “que ele vai herdar uma bela propriedade. Ademais, o atual dono da propriedade em questão deseja que ele seja imediatamente retirado de suas atuais circunstâncias e deste lugar, e passe a ser criado como um cavalheiro — em suma, como um jovem com grandes esperanças.” Meu sonho fora revelado; minha louca fantasia fora ultrapassada pela fria realidade; a sra. Havisham ia fazer minha fortuna numa escala grandiosa. “Pois bem, senhor Pip”, prosseguiu o advogado, “o resto do que tenho a dizer destina-se ao senhor. É preciso dizer-lhe, em primeiro lugar, que a pessoa que me instruiu lhe faz o pedido de que seu nome continue sempre sendo Pip. Creio que o senhor não fará objeção a que suas grandes esperanças dependam dessa condição tão fácil. Mas se há alguma objeção, agora é o momento de levantála.” Meu coração batia tão depressa, e era tão alto o zumbido em meus ouvidos, que mal consegui gaguejar que não tinha objeção alguma. “Era de se esperar! Em segundo lugar, senhor Pip, o nome de seu benfeitor generoso permanecerá em segredo absoluto, até que a pessoa em questão resolva revelá-lo. Fui instruído a lhe dizer que a intenção dessa pessoa é que seu nome seja revelado em primeira mão oralmente, por mim, para o senhor. Quando ou onde essa intenção deverá se realizar, não sei dizer; ninguém sabe. Talvez daqui a anos. Ora, é importante que o senhor compreenda que é terminantemente proibido fazer qualquer indagação quanto a esse ponto, qualquer alusão ou referência, por mais remota que seja, a qualquer indivíduo, quem quer que seja, como sendo a pessoa em questão, em todas as comunicações que o senhor vier a ter comigo. Se o senhor guarda uma suspeita em seu coração, mantenha essa suspeita em seu coração. Não vem em absoluto ao caso quais seriam as razões dessa proibição; podem ser as mais fortes e sérias, ou podem ser um mero capricho. Não cabe ao senhor investigar essa questão. A condição foi estabelecida. Que o senhor a aceite, e continue a acatá-la, é a única outra condição que fui incumbido de lhe transmitir, pela pessoa que me instruiu, e pela qual não tenho qualquer outra responsabilidade. É dessa pessoa que decorrem suas esperanças, e o segredo só é conhecido por essa pessoa e por mim. Mais uma vez, não se trata de uma condição muito difícil de aceitar em troca de uma mudança de vida tão afortunada; mas se o senhor tiver alguma objeção, agora é o momento de levantá-la. Fale.” Mais uma vez, gaguejei com dificuldade que não tinha nenhuma objeção. “Era de se esperar! Pois bem, senhor Pip, terminei com as estipulações.” Embora me chamasse de senhor, e já começasse a me adular um pouco, ainda assim ele não conseguia livrar-se de certo ar de desconfiança intimidadora; e mesmo agora ele de vez em quando fechava os olhos e apontava para mim enquanto falava, como se para dar a entender que era sabedor de muitas coisas que depunham contra mim, e que poderia mencioná-las se bem o entendesse. “Agora passemos a meros detalhes de disposições. É preciso deixar claro que, embora eu tenha usado o termo ‘esperanças’ mais de uma vez, não se trata apenas de esperanças. Já tenho em mãos uma quantia mais que suficiente para garantir sua instrução e seu sustento. O senhor pode passar a me ter por seu tutor. Ah!”, pois eu estava prestes a agradecer-lhe, “apresso-me a lhe dizer que estou sendo pago por meus serviços, senão não os estaria prestando. Considera-se que o senhor precisa de uma formação melhor, tendo em vista sua nova situação na vida, e que o senhor há de compreender a importância e a necessidade de valerse o quanto antes dessa vantagem.” Observei que eu sempre desejara tal coisa. “Não importa que o senhor sempre a tenha desejado, senhor Pip”, retorquiu ele; “atenha-se aos termos acordados. Se o senhor a deseja agora, é o que basta. Devo entender que sua resposta é que o senhor está disposto a encontrar imediatamente algum preceptor? É isso?” Gaguejei que era isso, sim. “Muito bem. Pois bem, devo consultar suas inclinações. Não me parece uma boa ideia, veja lá, mas é o que me cabe fazer. O senhor conhece algum preceptor que tenha sua preferência?” Eu jamais ouvira falar de outras preceptoras que não Biddy e a tia-avó do sr. Wopsle, e assim respondi na negativa. “Há um determinado preceptor, de quem tenho algum conhecimento, que a meu ver talvez seja adequado”, disse o sr. Jaggers. “Não estou a recomendá-lo, veja lá, pois nunca recomendo ninguém. O cavalheiro que tenho em mente é um certo senhor Matthew Pocket.” Ah! Reconheci o nome de imediato. O parente da sra. Havisham. O Matthew de quem a sra. Camilla e o sr. Camillo haviam falado. O Matthew que deveria ficar à cabeceira da sra. Havisham, quando ela estivesse morta, com seu vestido de noiva, estendida na mesa da festa nupcial. “O senhor reconhece o nome?”, perguntou o sr. Jaggers, dirigindo-me um olhar arguto, e depois fechando os olhos enquanto aguardava minha resposta. Minha resposta foi que eu já ouvira aquele nome, sim. “Ah!”, exclamou ele. “O senhor já ouviu o nome. Mas a pergunta é: o que o senhor pensa dele?” Respondi, ou tentei responder, que lhe agradecia muito a recomendação… “Não, meu jovem amigo!”, ele interrompeu, sacudindo a cabeçorra bem vagarosamente. “Lembre o que eu disse!” Não lembrando, comecei de novo a dizer que lhe agradecia muito a recomendação… “Não, meu jovem amigo”, ele interrompeu, sacudindo a cabeça, franzindo a testa e sorrindo ao mesmo tempo, “não, não e não; está muito bem dito, mas nada disso; o senhor é muito jovem pra fazer isso comigo. Recomendação não é a palavra, senhor Pip. Tente outra.” Corrigindo-me, disse então que lhe agradecia muito por mencionar o sr. Matthew Pocket… “Melhorou!”, exclamou o sr. Jaggers. …E (acrescentei) eu gostaria de experimentar o cavalheiro em questão. “Muito bem. Melhor experimentá-lo na casa dele. Tudo será providenciado, e o senhor falará primeiro com o filho dele, que está em Londres. Quando é que o senhor irá a Londres?” Respondi (olhando de relance para Joe, que assistia a tudo, imóvel) que imaginava poder ir imediatamente. “Antes”, disse o sr. Jaggers, “o senhor vai precisar de roupas novas, e não devem ser roupas de trabalho. Digamos dentro de uma semana. O senhor vai precisar de dinheiro. Posso lhe dar vinte guinéus?” Sacou uma bolsa comprida, com a maior naturalidade, contou o dinheiro na mesa e depois o empurrou em minha direção. Foi a primeira vez que ele tirou a perna de cima da cadeira. Ficou escarrapachado sobre a cadeira depois que empurrou o dinheiro, a balançar a bolsa e encarar Joe. “Bem, Joe Gargery ? Parece aparvalhado?” “E estou mesmo!”, disse Joe, muito decidido. “Ficou estabelecido que o senhor não queria nada para si, lembra?” “Ficou estabricido”, disse Joe. “E continua estabricido. E assim há de ficar.” “Mas”, disse o sr. Jaggers, balançando a bolsa, “e se eu tivesse sido instruído a lhe dar um presente, como compensação?” “Pra compensar o quê?”, perguntou Joe. “A perda dos serviços do senhor Pip.” Joe pousou a mão no meu ombro com um toque feminino. Desde então tenho pensado nele muitas vezes assim, como o martelo-pilão, que pode esmagar um homem ou tocar numa casca de ovo, em sua combinação de força com delicadeza. “O Pip”, disse Joe, “pode levar os serviço dele pra adonde ele quiser, em busca de honra e fortuna, nem é preciso falar. Mas se o senhor acha que tem dinheiro nesse mundo… capaz de compensar… a perda de um menininho… que veio pra ferraria… e o melhor amigo que há!…” Ah, meu querido Joe, que eu estava disposto a abandonar tão prontamente sem sequer agradecer, vejo-te outra vez, com teu braço musculoso de ferreiro cobrindo os olhos, e teu peito largo arquejando, e tua voz morrendo aos poucos. Ah, querido, bom, fiel e terno Joe, sinto o tremor amoroso de tua mão em meu braço, tão solene ainda hoje como se fosse o roçar da asa de um anjo! Mas na hora dei força a Joe. Estava eu perdido nos labirintos de minhas fortunas futuras, e não podia reencontrar as veredas que havíamos trilhado juntos. Implorei-lhe que se sentisse confortado, pois (como ele mesmo dizia) sempre havíamos sido os melhores amigos, e (como eu dizia) assim seríamos para sempre. Joe passou o punho livre nos olhos, como se quisesse arrancá-los, mas não disse mais nada. O sr. Jaggers assistia à cena como se visse em Joe o bobo da aldeia, e em mim a pessoa que dele cuidava. Quando terminou, ele disse, sopesando a bolsa que havia parado de balançar: “Bem, Joe Gargery, aviso-lhe que esta é a sua última oportunidade. Comigo não há meias medidas. Se quer aceitar o presente que fui encarregado de lhe dar, diga, e ele será seu. Se, pelo contrário, o senhor quer dizer…” Neste ponto, para grande espanto seu, ele foi interrompido por Joe, que dele se aproximou dando todas as mostras de estar cheio de terríveis intenções pugilistas. “O que eu quero dizer”, exclamou Joe, “é que se o senhor entra na minha casa me provocando e me desafiando, vamos lá pra fora! Quero dizer que se o senhor é homem, pode vir! Quero dizer que o que eu digo, eu digo mesmo, e é pra valer, sim senhor!” Afastei Joe, e ele de imediato acalmou-se; limitou-se a me dizer, do modo mais amistoso e polido, apenas a título de informação dirigida a quem interessar pudesse, que ele não ia deixar que o provocassem e incitassem em sua própria casa. O sr. Jaggers havia se levantado quando Joe se abespinhou, e recuara em direção à porta. Sem manifestar nenhuma inclinação de voltar a entrar, ali mesmo fez seus comentários finais. Disse então: “Pois bem, senhor Pip, creio que quanto mais cedo o senhor se for embora daqui — já que vai se tornar um cavalheiro — melhor. O senhor pode pegar um carro de aluguel na estação da diligência em Londres, e vir direto até mim. Compreenda que não manifesto qualquer opinião, contra ou a favor, em relação à tarefa que me foi imposta. Estou sendo pago para desempenhá-la, e assim o faço. Compreenda isso, por fim. Compreenda isso!” Ele apontava o dedo para nós dois, e creio que teria continuado a fazê-lo, se não lhe parecesse que Joe oferecia perigo, e por isso foi-se embora. Surgiu-me uma ideia na cabeça que me levou a sair correndo atrás do sr. Jaggers, que já seguia para a Três Barqueiros, onde havia deixado uma carruagem de aluguel. “Com licença, senhor Jaggers.” “Mas sim!”, exclamou ele, virando-se para trás. “O que foi?” “Eu queria me certificar de uma coisa, senhor Jaggers, e respeitar as suas instruções; por isso achei melhor perguntar. Haveria algum problema se eu me despedisse de uma pessoa que conheço, daqui, antes de ir embora?” “Não”, respondeu ele, como se não estivesse me entendendo direito. “Não me refiro a alguém cá na aldeia, mas na cidade?” “Não”, disse ele. “Problema nenhum.” Agradeci e voltei para casa correndo, e lá constatei que Joe já havia trancado a porta da frente e saído da sala de visita de cerimônia, e estava sentado junto à lareira da cozinha com uma mão em cada joelho, contemplando fixamente as brasas ardentes. Também eu sentei-me junto ao fogo e fiquei a olhar para as brasas, e ninguém disse nada por um bom tempo. Minha irmã estava em sua poltrona no canto, e Biddy costurava diante da lareira, e Joe estava ao lado de Biddy, e eu estava ao lado de Joe no canto em frente ao de minha irmã. Quanto mais eu olhava para as brasas ardentes, mais difícil me era olhar para Joe; quanto mais se prolongava o silêncio, mais difícil me era falar. Por fim, consegui dizer: “Joe, contaste à Biddy ?”. “Não, Pip”, retrucou Joe, ainda olhando para a lareira, e segurando os joelhos com força, como se tivesse sido informado de que eles pretendiam escapulir, “deixei isso pra ti, Pip.” “Eu preferia que tu falasses, Joe.” “O Pip é um cavalheiro de fortuna”, disse Joe, “e que Deus o abençoe!” Biddy largou a costura e olhou para mim. Joe segurava os joelhos e olhava para mim. Olhei para os dois. Depois de uma pausa, ambos me felicitaram efusivamente; mas havia um certo toque de tristeza naquelas felicitações que me incomodou deveras. Fiz questão de deixar claro para Biddy (e, através dela, para Joe) que era da maior importância que meus amigos não soubessem nada e não dissessem nada a respeito do responsável pela minha fortuna. A coisa viria à tona quando fosse a hora, observei, e nesse ínterim nada deveria ser dito, apenas que eu tinha agora grandes esperanças, graças a um misterioso protetor. Biddy fez que sim, pensativa, olhando para a lareira, enquanto retomava o trabalho, e disse que seria muito sigilosa; e Joe, ainda contendo os joelhos, disse: “Isso, e eu também vou ser muito sizilojo, Pip”; em seguida, os dois me felicitaram outra vez, e manifestaram tanto espanto diante da ideia de que eu agora era um cavalheiro, que seu espanto não me agradou nem um pouco. Em seguida, Biddy não mediu esforços para dar a minha irmã alguma ideia do que havia ocorrido. No meu entender, essas tentativas fracassaram por completo. Ela riu e balançou a cabeça muitas vezes, e chegou mesmo a repetir, instigada por Biddy, as palavras “Pip” e “propriedade”. Mas creio que nelas havia tanto sentido quanto num bordão eleitoral, e não posso imaginar um indicador mais terrível de seu estado mental. Jamais teria acreditado que tal era possível se não o tivesse vivido, mas, à medida que Joe e Biddy voltavam a ficar mais alegres e tranquilos, tornei-me um tanto melancólico. Insatisfeito com minha fortuna, certamente eu não estava; é possível, porém, que eu estivesse, sem ter plena consciência disso, insatisfeito comigo mesmo. Fosse como fosse, permaneci sentado com o cotovelo apoiado no joelho e o rosto na mão, contemplando o fogo, enquanto os dois falavam sobre minha partida, e o que fariam sem mim, e coisas assim. E sempre que surpreendia um deles olhando para mim, ainda que do modo mais simpático (e eles olhavam para mim a toda hora — principalmente Biddy ), eu me sentia ofendido: como se eles estivessem exprimindo alguma desconfiança em relação a mim. Muito embora Deus saiba que eles jamais fizeram tal coisa, nem por palavras nem por sinais. Nesses momentos eu me levantava, ia até a porta e olhava para a rua, pois a porta de nossa cozinha dava direto para a noite, e ficava aberta nas noites de verão para arejar o recinto. Até as estrelas para as quais eu levantava a vista me pareciam, creio eu, meras estrelas pobres e humildes, por lançarem seu brilho sobre os objetos rústicos em meio aos quais eu vivera minha vida. “Hoje é sábado”, disse eu, quando nos sentamos à mesa para jantar pão com queijo e cerveja. “Mais cinco dias, e então vamos estar na véspera do grande dia! Eles vão passar depressa.” “É, Pip”, observou Joe, com uma voz que parecia vazia dentro do caneco de cerveja. “Vai passar depressa.” “Muito, muito depressa”, disse Biddy . “Estive pensando, Joe, que quando eu for à cidade na segunda-feira, para mandar fazer roupas novas, é melhor dizer ao alfaiate que vou experimentá-las lá mesmo, ou então pedir que elas sejam entregues na casa do senhor Pumblechook. Aqui todo mundo ficaria me olhando, o que seria muito desagradável.” “O senhor e a senhora Hubble também iam gostar de te ver com tua nova aparência distinta, Pip”, disse Joe, laboriosamente cortando seu pão, já com o queijo, na palma da mão esquerda, e olhando de relance para meu jantar ainda intacto como se relembrasse o tempo em que comparávamos nossas fatias. “E o Wopsle também. E o pessoal da Três Barqueiros iam ficar sastifeito.” “É justamente o que eu não quero, Joe. Eles fariam tamanho escarcéu — de um jeito tão grosseiro e vulgar — que eu não ia aguentar a mim mesmo.” “Ah, sim, Pip!”, respondeu Joe. “Se tu não ias aguentar a ti mesmo…” Biddy perguntou-me então, enquanto segurava o prato de minha irmã: “Já pensaste em quando vais te apresentar ao senhor Gargery, e à tua irmã, e a mim? Vais te apresentar a nós, não vais?”. “Biddy ”, retruquei, um tanto ressentido, “tu és tão incrivelmente rápida que é difícil acompanhar-te.” (“Ela sempre foi rápida”, observou Joe.) “Se tivesses esperado mais um instante, Biddy, me ouvirias dizer que vou trazer minhas roupas aqui numa trouxa uma noite — provavelmente na véspera da minha partida.” Biddy não disse mais nada. Perdoando-a com generosidade, despedi-me afetuosamente dela e de Joe, e fui me deitar. Quando entrei em meu quartinho, sentei-me e olhei por um bom tempo para aquele quartinho estreito e vulgar do qual em breve eu me afastaria, para ficar muito acima dele, para sempre. Ele era mobiliado com lembranças frescas e jovens também, e naquele exato momento me vi no mesmo estado de confusão, dividido entre ele e os quartos melhores que seriam meus no futuro, tal como me sentira tantas vezes dividido entre a ferraria e a casa da sra. Havisham, entre Biddy e Estella. O sol passara todo o dia batendo forte no telhado de meu sótão, e o quarto estava quente. Abri a janela e fiquei a olhar para fora, quando vi Joe sair com passos lentos da porta escura lá em baixo, e dar uma ou duas voltas para tomar ar; e depois vi Biddy sair também, trazendo um cachimbo e fogo para ele. Joe nunca fumava tão tarde da noite, e tive a impressão de que ele precisava ser confortado, por algum motivo. Depois de algum tempo ele parou à porta, imediatamente abaixo de mim, fumando seu cachimbo, e Biddy ficou a seu lado, falando-lhe em voz baixa, e eu sabia que eles conversavam sobre mim, pois ouvi meu nome mencionado com ternura pelos dois, mais de uma vez. Eu não quereria ouvir mais, mesmo se pudesse escutar o que diziam: assim, afastei-me da janela e sentei-me em minha única cadeira junto à cama, achando muito triste e estranho que esta primeira noite de minha vida nova fosse a noite mais solitária que eu jamais vivera. Olhando em direção à janela aberta, eu via espirais de luz vindas do cachimbo de Joe a pairar no ar, e imaginei que eram uma espécie de bênção de Joe — não imposta a mim, nem exibida diante de mim, porém espalhando-se pelo ar que compartilhávamos. Apaguei minha luz e deitei-me; e agora aquela cama era intranquila, e nunca mais voltei a dormir nela meu velho sono profundo. * Submetida a um interrogatório detalhado: no original, cross-examined, isto é, submetida a um interrogatório pela parte adversa: as testemunhas de acusação devem ser interrogadas também pelo advogado de defesa, e as testemunhas de defesa, pelo promotor. (n. t.) 19 A manhã fez uma diferença considerável na minha visão geral da vida, tornando-a tão mais positiva que nem parecia a mesma de antes. O que mais me pesava era a consciência de que seis dias ainda me separavam do dia da partida; pois eu não conseguia me livrar da apreensão de que alguma coisa poderia acontecer com Londres nesse ínterim tal que, quando eu chegasse lá, a cidade ou estaria muito deteriorada ou simplesmente teria desaparecido. Joe e Biddy eram muito carinhosos e agradáveis sempre que eu lhes falava sobre nossa separação próxima, mas só se referiam a ela quando eu o fazia. Depois do desjejum, Joe pegou meu contrato de aprendizagem, guardado no armário na sala de visitas de cerimônia, e o pusemos no fogo, e senti que estava livre. Com toda a novidade de minha emancipação ardendo em mim, fui à igreja com Joe, e pensei que talvez o pastor não tivesse lido aquela passagem sobre o rico e o reino dos céus,1 se ele estivesse sabendo de tudo. Após almoçarmos cedo, saí para caminhar sozinho, com o objetivo de me despedir do charco logo de uma vez. Quando passei pela igreja, senti (como havia sentido durante o culto naquela manhã) uma compaixão sublime pelas pobres criaturas que estavam fadadas a ir lá, domingo após domingo, durante todas as suas vidas, para por fim repousarem, obscuras, em meio àqueles montículos verdes. Prometi a mim mesmo que faria alguma coisa por elas um dia desses, e esbocei o plano de conceder um almoço composto de carne assada e pudim de passas, uma garrafa de cerveja e um galão de condescendência a cada habitante da aldeia. Se eu pensara muitas vezes antes, com algo próximo à vergonha, em minha cumplicidade com o fugitivo que eu vira mancando em meio àquelas sepulturas, que pensamentos teria eu naquele domingo, quando o lugar me fez pensar no miserável, esfarrapado e tiritando, com seus grilhões e distintivo de forçado! O que me tranquilizava era que a coisa acontecera muito tempo antes, e que ele certamente já teria sido degredado anos antes, e que estava morto para mim, e podia muito bem estar morto de verdade. Nunca mais aquelas várzeas alagadas, nunca mais os diques e eclusas, nunca mais aquele gado a passar — embora essas coisas parecessem, à sua maneira tediosa, ostentar um ar mais respeitoso agora, e virar-se para olhar-me, para contemplar pelo máximo de tempo possível o detentor de tão grandes esperanças — adeus, monótonos conhecidos de minha infância; doravante cabiam-me Londres e a grandeza: e não a ferraria e vós! Caminhei exultante até a bateria, e, deitando-me para cogitar se a sra. Havisham me destinava a Estella, adormeci. Quando acordei, constatei com muita surpresa que Joe estava sentado a meu lado, fumando seu cachimbo. Ele me saudou com um sorriso alegre quando abri os olhos, e disse: “Como era a última vez, Pip, resolvi ir atrás.” “Pois, Joe, fizeste muito bem.” “Obrigado, Pip.” “Podes ter certeza, meu querido Joe”, prossegui, depois que trocamos um aperto de mãos, “que nunca vou me esquecer de ti.” “Não, não, Pip!”, disse Joe, num tom tranquilo, “disso eu tenho certeza. Claro, claro, meu velho! Deus te abençoe, disso, depois que entra na cabeça da gente, não pode haver dúvida, não. Mas levou um tempo pra entrar, porque a mudança foi tão derrepentemente, não é?” Por algum motivo, não fiquei muito feliz de ver que Joe se sentia tão seguro em relação a mim. Eu preferiria que ele manifestasse alguma emoção, ou dissesse: “Que bom que dizes isso, Pip”, ou algo assim. Assim, eu nada disse a respeito do primeiro comentário de Joe, limitando-me a observar, sobre o segundo, que as coisas realmente haviam acontecido de modo repentino, mas que eu sempre quisera ser um cavalheiro, e muitas vezes me pusera a especular sobre o que eu faria se de fato fosse um cavalheiro. “Pensaste mesmo?”, exclamou Joe. “Espantoso!” “É uma pena, Joe”, comentei, “que tu não progrediste um pouco mais, quando tínhamos nossas lições aqui, não é?” “Ah, não sei, não”, retrucou ele. “Eu sou muito bronco. Só entendo mesmo do meu ofício. Sempre foi uma pena eu ser tão bronco; mas agora não é mais do que era — um ano atrás — não vês?” O que eu queria dizer era que, quando me apoderasse de minha propriedade e pudesse fazer alguma coisa por Joe, seria muito mais agradável se ele estivesse mais qualificado para uma ascensão social. Ele não percebeu em absoluto o que eu queria dizer, porém, tanto assim que achei melhor falar depois com Biddy . Assim, depois que voltamos para casa e tomamos chá, levei Biddy para nosso pequeno jardim perto da rua e, depois de dizer em termos gerais, com o intuito de animá-la, que jamais me esqueceria dela, acrescentei que tinha um favor a lhe pedir. “E o que te peço, Biddy ”, prossegui, “é que jamais percas uma oportunidade de ajudar o Joe a progredir um pouquinho.” “Ajudá-lo a progredir, como assim?”, perguntou Biddy , com um olhar fixo. “Bem! O Joe é uma pessoa adorável — eu diria até que é a pessoa mais adorável que já existiu — mas é um tanto atrasado sob certos aspectos. Por exemplo, Biddy , quanto à sua instrução e suas boas maneiras.” Embora eu estivesse olhando para Biddy enquanto falava, e embora ela arregalasse os olhos bastante depois que falei, Biddy não olhou para mim. “Ah, as boas maneiras dele! Então elas não servem?”, perguntou Biddy, arrancando uma folha de groselheira-preta. “Minha cara Biddy , elas servem muito bem aqui…” “Ah! Elas servem muito bem aqui?”, interveio Biddy, olhando com atenção para a folha que segurava. “Ouve-me — mas se eu levasse Joe para uma esfera mais elevada, como espero fazer quando tiver total controle sobre minha propriedade, elas não lhe fariam justiça.” “E tu pensas que ele não sabe disso?”, perguntou ela. Era uma pergunta tão provocadora (pois jamais me ocorrera nem de longe) que reagi, irritado: “Biddy , o que queres dizer?”. Tendo esmigalhado a folha entre os dedos — e desde então o cheiro de uma groselheira-preta sempre evoca para mim aquela tarde no jardinzinho perto da rua — Biddy perguntou: “Nunca te ocorreu que ele possa ter orgulho?”. “Orgulho?”, repeti, com uma ênfase desdenhosa. “Ah! Há muitos tipos de orgulho”, disse Biddy, encarando-me e sacudindo a cabeça; “o orgulho não é de apenas um tipo…” “Sim? Por que paraste?”, insisti. “Não é de apenas um tipo”, retomou Biddy. “Ele pode ser orgulhoso demais para deixar que o tirem de um lugar que ele tem competência para ocupar, e ocupar bem e com respeito. Para te dizer a verdade, acho que ele tem orgulho, sim: ainda que pareça pretensão minha dizer-te isso, pois tu o conheces muito melhor do que eu.” “Ora, Biddy ”, repliquei, “lamento muito ver isso em ti. Não esperava vê-lo. Tu tens inveja, Biddy , e ressentimento. Estás insatisfeita por ter eu subido na vida, e não consegues não demonstrá-lo.” “Se és capaz de pensar assim, podes dizê-lo”, devolveu Biddy. “Podes dizêlo. Podes dizê-lo vez após vez, se és capaz de pensar assim.” “Se tu és capaz de ser assim, é o que queres dizer, Biddy ”, retruquei, num tom virtuoso e superior; “não o atribuas a mim. Lamento muito ver isso, que é… é um lado ruim da natureza humana. Eu realmente pretendia pedir-te que aproveitasse qualquer oportunidade que tivesses depois de minha partida, de ajudar meu querido Joe a progredir. Mas, depois disso, não te peço nada. Lamento muitíssimo ver isso em ti, Biddy ”, repeti. “É um… é um lado ruim da natureza humana.” “Não importa se me condenas ou se me aprovas”, retrucou a pobre Biddy, “podes sempre contar comigo, pois vou tentar fazer tudo que posso, sempre. E, qualquer que seja a opinião que tenhas de mim, isso não vai alterar nada minha lembrança de ti. Mas um cavalheiro não deve ser injusto”, disse Biddy, virando o rosto. Mais uma vez, repeti com ênfase que aquilo era um lado ruim da natureza humana (um sentimento que, malgrado a má aplicação no caso, verifiquei posteriormente ser correto), e me afastei de Biddy enquanto ela voltava para dentro de casa, e saí pelo portão do jardim e fiquei a caminhar, desanimado, até a hora do jantar, mais uma vez achando que era muito triste e estranho que aquela noite, a segunda da minha nova vida, fosse tão solitária e frustrante quanto a primeira. A manhã, porém, mais uma vez tornou minha visão mais positiva, e estendi minha clemência a Biddy, e não tocamos mais no assunto. Vestindo as melhores roupas que tinha, fui à cidade assim que me pareceu que as lojas já estariam abertas e apresentei-me ao sr. Trabb, o alfaiate: ele estava tomando seu desjejum na sala de visita nos fundos de sua loja, e não achou que valia a pena sair para me atender, preferindo chamar-me para ir até ele. “Sim!”, exclamou o sr. Trabb, com uma cordialidade superficial. “Como vai, e como posso ajudá-lo?” O sr. Trabb havia cortado seu pão quente em três colchõezinhos separados, e estava passando manteiga entre os cobertores, e juntando-os. Era um solteirão próspero, e a janela aberta de sua sala dava para um jardinzinho e um pomar prósperos, e havia um próspero cofre de ferro encaixado na parede ao lado da lareira, e eu não tinha dúvida de que sua prosperidade estava guardada ali dentro, em sacos. “Senhor Trabb”, disse eu, “é uma coisa desagradável de se dizer, porque pode parecer que estou me gabando; mas herdei uma propriedade considerável.” Uma mudança ocorreu no sr. Trabb. Ele esqueceu a manteiga sobre a cama, levantou-se da cabeceira e limpou os dedos na toalha de mesa, exclamando: “Valha-me Deus!”. “Vou ter com meu tutor em Londres”, disse eu, tirando do bolso alguns guinéus, com um gesto displicente, e olhando para eles, “e quero umas roupas boas pra levar nessa viagem. Queria pagar por elas” — acrescentei, para que ele não pensasse que eu estava apenas fazendo de conta — “adiantado.” “Meu caro senhor”, disse o sr. Trabb, curvando-se respeitosamente, abrindo os braços e tomando a liberdade de tocar-me nos dois cotovelos, “não me constranja mencionando tal coisa. O senhor me permite que o congratule? O senhor me faria o obséquio de entrar na minha loja?” O empregado do sr. Trabb era o mais audaz de toda a região. Quando entrei, ele estivera a varrer a loja, e para tornar mais agradável sua tarefa ele varrerame também. Continuava varrendo quando voltei à loja com o sr. Trabb, e ele esbarrou a vassoura em todos os cantos e obstáculos, para deixar claro (foi assim que entendi) que ele estava à altura de qualquer ferreiro, vivo ou morto. “Para com esse barulho”, exclamou o sr. Trabb, com a maior severidade, “senão eu te arranco a cabeça! Faça-me o obséquio de sentar-se, meu senhor. Isto aqui”, disse o sr. Trabb, pegando um corte de tecido e abrindo-o sobre o balcão, preparando-se para pôr a mão debaixo dele para mostrar o brilho, “é artigo de primeira. Posso recomendá-lo ao senhor, porque realmente é da maior qualidade. Mas vou lhe mostrar outros também. Pega cá o número quatro!” (Dirigindo-se ao rapaz, e com um olhar de severidade terrível: prevendo o perigo de que aquele malfeitor roçasse o corte de tecido em mim, ou desse algum outro sinal de familiaridade.) O sr. Trabb não tirou o olho severo do rapaz enquanto este não pôs o número quatro no balcão e se afastou a uma distância prudente. Então lhe ordenou que trouxesse o número cinco e o número oito. “E não me venhas com tretas”, disse o sr. Trabb, “senão vais te arrepender, seu sacripantazinho, ah, se não vais.” Em seguida, o sr. Trabb debruçou-se sobre o número quatro, e numa espécie de confidência respeitosa recomendou-o a mim como um artigo leve para uso no verão, muito em voga entre os nobres, e que seria uma honra para ele saber que um distinto conterrâneo (se lhe fosse permitido conceder-me tal título) o havia usado. “Vais me trazer os números cinco e oito, seu tratante”, disse o sr. Trabb ao empregado depois disso, “ou vou ter que expulsar-te da loja a pontapés e ir pegálos eu mesmo?” Escolhi o tecido para um terno, com a ajuda do sr. Trabb, e voltei à sala para que ele me tomasse as medidas. Pois, embora o sr. Trabb já tivesse minhas medidas, e antes estivesse perfeitamente satisfeito com elas, ele disse, como se pedindo desculpas, que elas “não servem nas atuais circunstâncias, meu senhor — não servem em absoluto”. Assim, o sr. Trabb mediu-me e calculou-me, na sala, como se eu fosse um terreno e ele, um agrimensor de escol, e o fez com tamanhos escrúpulos que tive a impressão de que não havia roupa no mundo que pudesse compensar tanto trabalho. Quando terminou por fim, e ficou acertado que os artigos seriam enviados à casa do senhor Pumblechook na tarde de quintafeira, ele disse, com a mão na porta da sala: “Eu sei, meu senhor, que não se pode exigir que os cavalheiros londrinos frequentem lojas das províncias; mas se o senhor pudesse me prestigiar de vez em quando, na qualidade de conterrâneo, eu ficaria muito grato. Bom dia, meu senhor, e muito obrigado. — Porta!”. A última palavra foi gritada para o empregado, que não atinara em absoluto com seu significado. Mas vi que ele desabou ao ver seu patrão desfazer-se em mesuras ao despedir-se de mim, e minha primeira experiência decisiva com o poder estupendo do dinheiro foi verificar que ele moralmente derrubou o empregado do sr. Trabb. Depois desse evento memorável, fui ao chapeleiro, e ao sapateiro, e ao vendedor de meias, e me senti como o cachorro da velha Hubbard,2 cujo traje exigia os serviços de tantos artesãos. Fui também ao escritório do serviço de diligências para reservar um lugar no carro das sete da manhã de sábado. Não era necessário explicar em todos os lugares que eu havia herdado uma propriedade considerável; mas sempre que eu mencionava o fato, a atenção do comerciante em questão deixava de se desviar para a janela da rua e concentrava-se em mim. Tendo encomendado tudo que queria, dirigi-me à casa de Pumblechook, e, ao aproximar-me da casa de comércio desse cavalheiro, vio parado à porta. Ele me aguardava com muita impaciência. Havia saído cedo em sua carruagem, fora até a ferraria e ouvira a notícia. Tinha preparado um lanche para mim na sala da leitura de Barnwell, e também ele deu ordem a seu empregado que “saísse do caminho” quando minha sagrada pessoa passou a seu lado. “Meu caro amigo”, disse o sr. Pumblechook, tomando minhas duas mãos, quando eu, ele e o lanche estávamos a sós, “eu te felicito pela sua boa sorte. Bem merecido, bem merecido!” Isso era relevante, e pareceu-me uma maneira sensata de se exprimir. “E pensar”, disse o sr. Pumblechook, depois de fungar em admiração a mim por alguns momentos, “que fui eu o humilde instrumento que levou a isso, é uma recompensa de que me orgulho.” Implorei ao sr. Pumblechook que se lembrasse de que nada poderia ser dito ou mesmo insinuado quanto a esse assunto. “Meu querido amigo”, disse o sr. Pumblechook, “se me permites que o trate assim…” Murmurei: “Certamente”, e o sr. Pumblechook tomou minhas duas mãos outra vez, e comunicou um movimento a seu colete, o qual tinha uma aparência emocional, embora fosse um tanto baixo: “Meu querido amigo, podes confiar em mim que farei o pouco de que sou capaz na tua ausência, lembrando o Joseph desse fato. — O Joseph!”, exclamou o sr. Pumblechook, no tom de uma adjuração passional. “O Joseph!! O Joseph!!!” Em seguida, sacudiu a cabeça e deu um tapinha nela, para exprimir a deficiência de Joseph. “Mas, meu querido amigo”, disse o sr. Pumblechook, “deves estar com fome, deves estar exausto. Senta-te. Eis um frango que mandei vir do Javali, e uma língua que mandei vir do Javali, uma ou duas coisinhas que mandei vir do Javali, que espero tu não desprezes. Mas será que vejo”, disse o sr. Pumblechook, levantando-se um instante depois de ter-se sentado, “diante de mim, aquele mesmo com quem brinquei em sua infância feliz? E posso… posso…?” A esse “posso?”, cujo sentido era “posso apertar-te a mão?”, consenti, e ele o fez com fervor, e depois voltou a sentar-se. “Eis o vinho”, disse o sr. Pumblechook. “Bebamos, agradecendo à Fortuna, e que ela sempre escolha seus favoritos com o mesmo critério! E, no entanto, não posso”, disse o sr. Pumblechook, levantando-se outra vez, “ver diante de mim uma pessoa… e do mesmo modo beber a essa pessoa… sem novamente manifestar…. posso… posso…?” Respondi que ele podia, sim, e ele apertou-me a mão novamente, e esvaziou seu copo e virou-o de cabeça para baixo. Fiz o mesmo; e se eu próprio me tivesse virado de cabeça para baixo antes de beber, o vinho não teria ido de modo mais direto para a minha cabeça. O sr. Pumblechook me serviu a asa do fígado3 e a melhor fatia da língua (agora não eram mais aqueles becos sem saída de porco), e para si próprio, em termos relativos, não pegou quase nada. “Ah, frango, frango! Nem imaginavas”, disse o sr. Pumblechook, apostrofando a ave na travessa, “quando ainda eras um pinto, o que o destino te reservava. Nem imaginavas que serviria de alimento, sob este humilde teto, para alguém que… Chama isto de fraqueza, se quiseres”, disse o sr. Pumblechook, levantando-se mais uma vez, “mas posso… posso…?” Já estava se tornando desnecessário responder que ele podia, sim, portanto ele o fez de imediato. Como que repetiu o gesto tantas vezes sem se ferir com minha faca, isso não sei. “E tua irmã”, prosseguiu, depois de alguns momentos comendo a sério, “que teve a honra de te criar com a mão! É uma tristeza pensar que ela não pode se dar conta da honra. Posso…” Vi que ele ia atacar outra vez, e o detive. “Vamos beber à saúde dela”, disse eu. “Ah!”, exclamou o sr. Pumblechook, jogando-se para trás em sua cadeira, flácido de admiração, “é assim que se conhece uma pessoa, meu senhor!” (Não sei quem era o senhor em questão, mas certamente eu não era, e não havia uma terceira pessoa presente.) “É assim que se conhece uma mente nobre, meu senhor! Sempre perdoando, sempre afável. Para uma pessoa comum”, disse o servil Pumblechook, pondo sobre a mesa o copo intacto apressadamente e levantando-se de novo, “pode parecer uma repetição… mas posso…?” Feito isso, voltou a sentar-se e bebeu à saúde de minha irmã. “Não devemos ser cegos”, disse o sr. Pumblechook, “para o fato de que ela tinha um gênio difícil, mas podemos crer que as intenções eram boas.” Mais ou menos a essa altura, comecei a observar que ele estava ficando com o rosto vermelho; quanto a mim, eu me transformara num grande rosto, encharcado de vinho e ardendo. Expliquei ao sr. Pumblechook que eu gostaria que minhas roupas novas fossem entregues em sua casa, e ele entrou em êxtase ao saber que eu lhe conferia tal distinção. Expliquei-lhe que era porque eu não queria ser observado na aldeia, e ele cobriu-me de elogios. Não havia outra pessoa, ele deu a entender, que merecesse minha confiança, e — em suma, ele podia? Então perguntou-me carinhosamente se eu me lembrava de nossa brincadeira infantil de fazer contas, e do dia em que fôramos juntos ao tribunal para eu me tornar aprendiz, e de como ele sempre fora meu predileto, meu amigo do peito? Mesmo se eu tivesse bebido dez vezes a quantidade de vinho que bebera, eu teria consciência de que ele jamais fora tal coisa para mim, e no fundo do coração repudiaria tal ideia. E, no entanto, apesar de tudo, lembro que me senti convicto de que eu me enganara muito a seu respeito, e que ele era um sujeito sensato, prático, de bom coração, uma flor de pessoa. Pouco a pouco, ele foi revelando tanta confiança em mim que começou a pedir meu conselho com relação a seus negócios. Comentou que havia oportunidade para uma grande consolidação e monopólio no comércio de cereais e grãos com base em seu estabelecimento, porém ampliado, tal como jamais ocorrera antes, naquela região e em qualquer outra. A única coisa que faltava para que fosse conquistada uma grande fortuna, a seu ver, era mais capital. Eram estas as duas palavrinhas: mais capital. Ora, na opinião dele (Pumblechook), se entrasse capital naquele negócio, através de um sócio comanditário, meu senhor — o qual não teria nada a fazer senão entrar, ele próprio ou um seu representante, quando bem entendesse, para examinar os livros — e aparecer duas vezes por ano para embolsar seus lucros, à taxa de cinquenta por cento — na sua opinião, isso poderia interessar a um jovem cavalheiro que tivesse iniciativa tanto quanto propriedade, seria algo que mereceria sua atenção. Mas o que pensava eu? Ele tinha grande confiança na minha opinião, e o que pensava eu? Dei minha opinião. “Espere aí!” A imensidão e a originalidade dessa opinião de tal modo o surpreenderam que ele já não me perguntou se podia trocar um aperto de mãos comigo, porém disse que precisava fazê-lo — e foi o que fez. Bebemos todo o vinho, e o sr. Pumblechook comprometeu-se vez após vez a manter Joseph na linha (não sei que linha) e a me prestar serviços constantes e eficientes (não sei que serviços). Também me revelou, pela primeira vez em minha vida, e após ter mantido o segredo de maneira extraordinária, que sempre dissera a meu respeito: “Esse menino não é um qualquer, e escrevam o que estou dizendo, a sorte dele não vai ser a de qualquer um, não”. Disse, com um sorriso lacrimoso, que era curioso pensar nisso agora, e eu concordei com ele. Por fim, saí ao ar livre, com a vaga percepção de que havia algo de inusitado no comportamento da luz solar, e verifiquei que havia chegado até a estrada principal como se dormindo, sem me dar conta do caminho. Lá, fui despertado pela voz do sr. Pumblechook a me chamar. Estava a uma boa distância de mim na rua ensolarada, fazendo gestos expressivos para que eu parasse. Parei, e ele se aproximou, ofegante. “Não, meu caro amigo”, disse ele, depois que recuperou o fôlego. “Não há como não fazê-lo. Esta ocasião não vai passar sem essa afabilidade da sua parte. — Posso, como um velho amigo que te quer bem? Posso?” Trocamos um aperto de mãos pela centésima vez, no mínimo, e ele gritou com um jovem carreteiro para que saísse de minha frente, com a maior indignação. Em seguida, abençoou-me e ficou a acenar para mim até que eu dobrasse a curva da estrada; em seguida, entrei num campo e tirei um longo cochilo à sombra de uma sebe antes de retomar o caminho de casa. Era pequena a bagagem que eu levaria para Londres, pois poucas de minhas poucas posses eram adequadas a minha nova condição. Porém comecei a fazer as malas naquela mesma tarde, e de modo insensato pus na mala coisas que eu sabia que teriam de ser usadas no dia seguinte, fazendo de conta que não havia um momento a perder. Assim passaram-se terça, quarta e quinta-feira; e na manhã de sexta fui à casa do sr. Pumblechook, para vestir minhas novas roupas e visitar a sra. Havisham. O sr. Pumblechook cedeu-me seu próprio quarto para que nele eu me vestisse, e nele havia toalhas limpas a enfeitá-lo, expressamente para aquela ocasião. Minhas roupas me decepcionaram muito, é claro. É provável que toda roupa nova, ansiosamente aguardada, desde que foram inventadas as roupas, sempre tenha ficado aquém das expectativas do dono. Mas depois que vesti meus trajes novos, após cerca de meia hora fazendo uma infinidade de poses diante do limitadíssimo espelho do sr. Pumblechook, numa vã tentativa de ver minhas pernas, eles pareceram me servir melhor. Como era dia de feira numa cidadezinha a cerca de dez milhas da nossa, o sr. Pumblechook não estava em casa. Eu não lhe dissera exatamente quando pretendia ir embora, e o mais provável era que não pudesse trocar um aperto de mãos com ele de novo antes de partir. Isso era de se esperar, e assim saí com minha roupa nova: morto de vergonha por ter de passar pelo empregado, e temendo que aquilo me colocasse numa situação de desvantagem, tal como a roupa de domingo de Joe. Segui em direção à casa da sra. Havisham por vielas secundárias, da maneira mais indireta, e toquei a campainha com dificuldade, porque as luvas deixavam meus dedos rígidos. Sarah Pocket veio abrir o portão, e quase caiu para trás quando me viu tão mudado; e seu rosto de casca de noz mudou de castanho para verde e amarelo. “Você?”, disse ela. “É você, Deus do céu! O que é que você quer?” “Vou para Londres, senhora Pocket”, respondi, “e quero me despedir da senhora Havisham.” Eu não era esperado, pois ela me deixou trancado no quintal, enquanto ia perguntar se devia me deixar entrar. Após um intervalo bem curto ela voltou e veio me conduzir até o andar de cima, olhando espantada para mim o tempo todo. A sra. Havisham estava se exercitando na sala da mesa comprida, apoiandose em sua bengala. A sala estava iluminada tal como antes, e ao ouvir-nos chegar ela parou e virou-se. Estava justamente ao lado do bolo de casamento apodrecido. “Fique aí, Sarah”, disse ela. “Mas sim, Pip?” “Vou para Londres amanhã, senhora Havisham”, respondi, medindo escrupulosamente minhas palavras, “e imaginei que a senhora não se incomodaria se eu viesse me despedir.” “Estás muito bem, Pip”, disse ela, gesticulando com sua bengala a meu redor, como se ela, a fada madrinha que havia causado a mudança em mim, estivesse dando os toques finais. “Tive muita sorte desde a última vez que a vi, senhora Havisham”, murmurei. “E estou muito grato!” “Sei, sei!”, disse ela, olhando com prazer para Sarah, que estava desconcertada e invejosa. “Falei com o senhor Jaggers. Já estou sabendo de tudo, Pip. Então partes amanhã?” “Sim, senhora.” “E foste adotado por uma pessoa rica?” “Sim, senhora.” “Não identificada?” “Não, senhora.” “E o senhor Jaggers é seu tutor?” “Sim, senhora.” A sra. Havisham se deliciava com essas perguntas e respostas, tal era o prazer que lhe dava o desânimo invejoso de Sarah Pocket. “Muito bem!”, ela prosseguiu; “tens uma carreira promissora pela frente. Sê bom — sê merecedor — segue as instruções do senhor Jaggers.” Olhou para mim, e olhou para Sarah, e a expressão do semblante de Sarah arrancou-lhe do rosto atento um sorriso cruel. “Adeus, Pip! — Teu nome será sempre Pip, tu sabes.” “Eu sei, sim, senhora Havisham.” “Adeus, Pip!” Ela estendeu a mão, e ajoelhei-me e levei-a aos lábios. Eu não havia planejado o modo como me despediria dela; fiz o que me ocorreu naturalmente na hora. Ela olhou para Sarah Pocket com uma expressão de triunfo, e assim deixei minha fada madrinha, com as duas mãos apoiadas na bengala, em pé no meio da sala fracamente iluminada, ao lado do bolo podre oculto em meio às teias de aranha. Sarah Pocket conduziu-me escada abaixo, como se eu fosse um fantasma que fosse necessário levar para fora da casa. Não conseguia acostumar-se com minha aparência, e estava absolutamente atônita. Despedi-me dela: “Adeus, senhora Pocket”; ela, porém, ficou de olhar parado, e parecia não ter consciência de que eu havia falado. Saindo de lá, voltei para a casa de Pumblechook, despi minhas roupas novas, fiz com elas uma trouxa e voltei para minha casa usando as roupas velhas — para dizer a verdade — bem mais à vontade, muito embora tivesse que carregar a trouxa. E agora, aqueles seis dias que deveriam ter-se passado tão devagar, haviam voado e terminado, e o dia de amanhã me encarava de modo bem mais direto do que eu podia encará-lo. À medida que as seis noites foram se esvaindo, reduzindo-se a cinco, a quatro, a três, a dois, eu dava cada vez mais valor à companhia de Joe e Biddy. Nessa última noite, vesti as roupas novas, para deliciá-los, e assim fiquei, em todo meu esplendor, até a hora de me deitar. Nessa ocasião, tivemos um jantar quente, coroado pelo inevitável frango assado, e o arrematamos com um pouco de ponche. Estávamos todos muito tristes, e não nos alegrava nem um pouco a obrigação de fingir alegria. Ficara combinado que eu partiria de nossa aldeia às cinco da manhã, levando minha maleta de mão, e eu havia combinado com Joe que preferia ir embora sozinho. Creio — e temo — que isso se devia à ideia que eu formara do contraste que haveria entre mim e Joe se fôssemos até a diligência juntos. Eu me convencera a mim mesmo de que nossa combinação não era conspurcada por tal cálculo; mas quando subi para meu quartinho nessa última noite, senti-me obrigado a admitir que talvez o fosse, e senti um impulso de descer a escada e insistir com Joe para que ele caminhasse comigo na manhã seguinte. Não o fiz. Durante toda a noite, meu sono espasmódico foi povoado por diligências que iam para o lugar errado em vez de para Londres, e presos aos tirantes ora eram cães, ora gatos, ora porcos, ora homens — jamais cavalos. Viagens fantasticamente fracassadas me ocuparam até que o dia nasceu e os pássaros começaram a cantar. Então me levantei e comecei a me vestir, e sentei-me à janela para olhar para fora pela última vez, e assim adormeci. Biddy havia se levantado tão cedo para preparar meu desjejum que, embora eu não chegasse a dormir por uma hora à janela, senti o cheiro da fumaça da cozinha quando acordei de súbito com a terrível impressão de que já devia ser o final da tarde. Mas muito depois disso, e muito depois de ouvir os estalidos das xícaras de chá e estar perfeitamente pronto, faltava-me a resolução para descer a escada. E acabei ficando em meu quarto, a destrancar e desafivelar minha maleta e trancá-la e afivelá-la outra vez, até que Biddy me chamou, dizendo que eu estava atrasado. Foi um desjejum apressado, em que não senti o gosto da comida. Levanteime da mesa, dizendo num tom enérgico, como se só agora me tivesse ocorrido a ideia: “É, acho que preciso ir!”. Em seguida, beijei minha irmã, que estava rindo e balançando a cabeça e tremendo em sua cadeira habitual, e beijei Biddy, e abracei o pescoço de Joe. Então peguei minha maleta e saí. Vi-os pela última vez quando ouvi um barulho atrás de mim, e voltando-me para olhar vi Joe jogando um sapato velho4 em minha direção e Biddy jogando outro sapato velho. Então parei, para acenar com meu chapéu, e meu querido Joe acenou com o braço forte levantado, gritando com voz rouca: “Hurra!”, e Biddy cobriu o rosto com o avental. Afastei-me com passos rápidos, pensando que era mais fácil ir embora do que eu pensara, e refletindo que não seria admissível que jogassem um sapato velho atrás da diligência, à vista de todo mundo na High-street. Assobiei, como se partir não fosse nada demais. Mas a aldeia estava muito tranquila e silenciosa, e as névoas leves estavam subindo solenemente, como se para mostrar-me o mundo, e eu fora tão inocente e pequeno ali, e tudo que havia além da aldeia era tão desconhecido e grande, que no instante seguinte, arfando e soluçando forte, comecei a chorar. Isso se deu junto ao poste indicador ao final da aldeia, e pus a mão nele, dizendo: “Adeus, ó meu querido, querido amigo!”. Deus sabe que não há por que nos envergonharmos de nossas lágrimas jamais, pois elas são a chuva que cai sobre a poeira da terra que nos cega, descendo sobre nossos corações endurecidos. Depois de chorar, senti-me melhor do que estava antes — mais triste, mais cônscio de minha própria ingratidão, mais delicado. Se eu tivesse chorado antes, teria Joe a meu lado naquele momento. De tal modo me afetaram aquelas lágrimas, e as que irromperam outra vez durante aquela caminhada silenciosa, que já na diligência, depois que ela saíra da aldeia, cheguei a pensar, com uma dor no coração, se não devia saltar quando parássemos para trocar os cavalos e voltar a pé, para passar mais uma noite em casa e me despedir melhor no dia seguinte. Chegamos à posta, e eu ainda não me decidira, e continuava a pensar, para me confortar, que ainda seria perfeitamente possível saltar e voltar a pé quando parássemos para a segunda muda de cavalos. E enquanto eu me ocupava com essas deliberações, eu imaginava uma semelhança exata entre Joe e um homem que eu via na estrada aproximando-se de nós, e meu coração batia mais forte. Como se fosse possível ele estar ali! Mudamos de cavalos outra vez, e mais outra, e agora era tarde demais, e eu estava longe demais, para voltar atrás, e segui em frente. E todas as névoas haviam se dissipado solenemente, e o mundo se abria para mim.5 fim da primeira parte das grandes esperanças de pip volume ii 1 A viagem da nossa cidadezinha à metrópole levava cerca de cinco horas. Passava um pouco do meio-dia quando a diligência de quatro cavalos em que eu ia como passageiro chegou ao trecho de tráfego pesado na vizinhança da Cross Key s,1 Wood-street, Cheapside, Londres. Nós, britânicos, naquela época tínhamos certeza de que constituía traição duvidar que tudo que havia de nosso era sempre o melhor: não fosse por isso, embora me assustasse a imensidão de Londres, creio que teria me ocorrido uma impressão vaga de que a cidade era feia, torta, estreita e suja. O sr. Jaggers me havia enviado seu endereço; era em Little Britain, e ele acrescentara em seu cartão: “logo depois de Smithfield, e perto da estação da diligência”. No entanto, um cocheiro de fiacre, que parecia usar tantos mantos por cima do sobretudo seboso quantos anos tinha de idade, colocou-me dentro de sua carruagem e espremeu-me dentro dela com uma escadinha dobrável, que tinia e estalava, como se fosse levar-me numa viagem de cem quilômetros. Para subir em sua boleia, a qual, lembro-me bem, era enfeitada com um pano verdeervilha, velho, reduzido a um farrapo pelas traças, ele levou um tempo considerável. Era uma carruagem maravilhosa, com seis grandes diademas2 pintados no exterior, e umas coisas esfarrapadas atrás para não sei quantos lacaios nelas se segurarem, e um rastelo por baixo, para impedir que lacaios amadores caíssem em tentação. Mal tive tempo de aproveitar o fiacre e pensar que ele era muito semelhante a um celeiro de feno, e, no entanto, lembrava também um belchior, e me perguntar por que motivo as cevadeiras dos cavalos eram guardadas dentro dele, quando vi que o cocheiro estava começando a descer, como se estivéssemos prestes a parar. E foi o que de fato aconteceu logo em seguida, numa rua escura, diante de um prédio de escritórios com a porta aberta, onde havia um letreiro pintado: sr. jaggers. “Quanto é?”, perguntei ao cocheiro. Respondeu ele: “Um xelim — a menos que o senhor queira pagar mais”. Naturalmente, retruquei que não queria pagar mais. “Então há de ser um xelim”, observou o cocheiro. “Não quero meter-me em confusão. Eu conheço esse aí!” Piscou um olho para o nome do sr. Jaggers, e sacudiu a cabeça. Tendo ele recebido seu xelim, e tendo depois de algum tempo completado a ascensão a sua boleia, e ido embora (o que aparentemente lhe proporcionou alívio), entrei na antessala com minha maleta e perguntei: o sr. Jaggers estava? “Não está, não”, respondeu o funcionário. “No momento, está no tribunal. Estou falando com o senhor Pip?” Informei-lhe que ele estava de fato falando com o sr. Pip. “O senhor Jaggers mandou dizer para o senhor esperar no gabinete dele. Não sabia quanto tempo ia demorar, por estar com um cliente. Mas como o tempo dele é valioso, não deve demorar mais do que o estritamente necessário.” Com essas palavras, o funcionário abriu uma porta e me conduziu a um recinto interior. Lá encontramos um cavalheiro caolho, com paletó de belbutina e calções, o qual enxugou o nariz na manga quando sua leitura do jornal foi interrompida. “Espere lá fora, Mike”, disse o funcionário. Comecei a dizer que esperava não estar interrompendo — quando o funcionário pôs o cavalheiro para fora com a maior sem-cerimônia, e jogando seu boné de pele para ele depois que ele saiu, deixou-me a sós. O gabinete do sr. Jaggers era iluminado apenas por uma claraboia, e era um lugar muito lúgubre; a claraboia era cheia de remendos excêntricos, lembrando uma cabeça quebrada, e as casas vizinhas distorcidas pareciam estar se torcendo para olhar para mim através dela. Vi menos papéis ali do que esperava encontrar; e havia alguns objetos que eu não esperava encontrar — como uma velha pistola enferrujada, uma espada embainhada, algumas caixas e embrulhos de aparência estranha e duas máscaras de gesso horrendas numa prateleira, de rostos inchados de maneira inusitada, e narizes retorcidos. A cadeira de espaldar alto do sr. Jaggers era de crina, de um negrume mortal, contornada por fileiras de pregos de latão, como um ataúde; e imaginei-o recostando-se nela, mordendo o indicador para seus clientes. O cômodo era pequeno, e os clientes pareciam ter o costume de encostar-se na parede: pois a parede, especialmente no trecho em frente à cadeira do sr. Jaggers, estava ensebada pelo contato com muitos ombros. Lembrei, também, que o cavalheiro caolho havia roçado na parede ao sair, quando inocentemente acabei fazendo com que ele fosse expulso dali. Sentei-me na cadeira dos clientes, situada em frente à do sr. Jaggers, fascinado com a atmosfera lúgubre do lugar. Ocorreu-me que o funcionário tinha, tal como seu patrão, um ar de quem sabe dos podres de todo mundo. Eu me perguntava quantos outros funcionários não haveria no andar de cima, e se todos eles também ostentariam o mesmo domínio deletério sobre seus semelhantes. Eu me perguntava qual seria a história por trás daqueles objetos aleatórios espalhados pela sala, e como eles haviam chegado ali. Eu me perguntava se aqueles dois rostos inchados seriam de parentes do sr. Jaggers, e, se ele tivera o infortúnio de possuir dois parentes de tão má aparência, por que motivo eles os colocava naquele poleiro elevado, para servir de pouso a baratas e moscas, em vez de encontrar-lhes um lugar em sua casa. É bem verdade que eu jamais vivera a experiência de um dia de verão em Londres, e meu ânimo talvez estivesse oprimido pelo ar quente e viciado, e pela poeira e a terra que formavam uma camada espessa sobre todos os objetos. Porém fiquei sentado, pensando e esperando na saleta do sr. Jaggers, até que me dei conta de que não suportava mais ver as duas máscaras na prateleira acima da cadeira do sr. Jaggers, e assim levantei-me e saí. Quando expliquei ao funcionário que ia sair para tomar ar enquanto esperava, ele me aconselhou a dar a volta na esquina, pois eu me veria em Smithfield.3 Assim, cheguei a Smithfield; e aquele lugar vergonhoso, todo coberto de imundície, gordura, sangue e escuma, pareceu grudar-se em mim. Por isso livrei-me dele o mais depressa que pude entrando numa rua onde vi a grande cúpula negra da catedral de são Paulo a protuberar por detrás de uma estrutura de pedra sinistra que um transeunte me disse ser a prisão de Newgate. Seguindo ao longo do muro da prisão, observei que a pista estava coberta de palha para atenuar o barulho dos veículos que passavam; e com base nesse fato, e na quantidade de pessoas que estavam paradas ali, com um hálito pesado de cerveja e aguardente, inferi que havia julgamentos em curso. Enquanto eu olhava a meu redor, um agente da justiça extremamente sujo e parcialmente bêbado perguntou-me se eu gostaria de entrar e assistir a algum julgamento: informando-me que por meia coroa ele poderia indicar-me um lugar na primeira fila, do qual eu teria uma visão desimpedida do presidente do Supremo Tribunal, de peruca e beca — mencionando essa personagem tremenda como se fosse um boneco de cera, e depois de algum tempo oferecendo-o pelo preço reduzido de dezoito pence. Como declinei a oferta alegando um compromisso, ele teve a bondade de levar-me a um pátio e mostrar-me o lugar onde ficava a forca, e também o lugar onde as pessoas eram publicamente açoitadas, e em seguida levou-me à porta dos devedores, da qual saíam os réus para serem enforcados: atiçando meu interesse por aquela porta horrenda ao dar a entender que “quatro deles” sairiam dali dois dias depois às oito da manhã, para serem mortos um depois do outro. Isso era horrível e me proporcionou uma péssima imagem de Londres: ainda mais porque o proprietário do presidente do Supremo Tribunal trajava (desde o chapéu até as botas, passando pelo lenço) roupas mofadas que claramente não lhe pertenciam originalmente, e que ele, disso parecia não haver dúvida, comprara barato do verdugo. Sob tais circunstâncias, pareceu-me que um xelim era um bom preço para me ver livre dele. Passei no escritório para perguntar se o sr. Jaggers já havia chegado, fui informado de que ele ainda tardava, e voltei a sair. Dessa vez, dei uma volta por Little Britain e entrei na Bartholomew Close; e então me dei conta de que havia outras pessoas além de mim aguardando o sr. Jaggers. Dois homens com um ar de segredo faziam hora na Bartholomew Close, a encaixar os pés nas rachaduras da calçada, pensativos, enquanto conversavam, e um deles disse ao outro, quando passaram por mim pela primeira vez, que “Jaggers faria a coisa se fosse possível fazê-la”. Havia um grupo de três homens e duas mulheres parados numa esquina, e uma das mulheres chorava com o rosto enfiado no xale sujo, enquanto a outra a confortava dizendo, enquanto cobria os ombros com o seu próprio xale: “O Jaggers está trabalhando pra ele, ’Melia, o que mais que você podia querer?”. Um judeuzinho de olhos vermelhos entrou na Close enquanto eu estava por lá, acompanhado de um segundo judeu que o primeiro despachou em alguma missão; e depois que o outro partiu, fiquei a observar o judeuzinho, que era de temperamento muito nervoso, a dançar uma espécie de giga de ansiedade sob um lampião, acompanhando seus próprios movimentos, numa espécie de frenesi, com as palavras: “Ah, Jaggers, Jaggers! perto dó senhór, ós outrros não valem nada, eu querro é Jaggers!”. Esses testemunhos da popularidade de meu tutor me impressionaram profundamente, e minha admiração e meu espanto aumentaram ainda mais. Por fim, enquanto eu olhava pelo portão de ferro da Bartholomew Close para Little Britain, vi o sr. Jaggers atravessando a rua, vindo em minha direção. Todos os outros que estavam à espera o viram também ao mesmo tempo, e uma tremenda multidão correu em seu encalço. O sr. Jaggers, pondo uma das mãos em meu ombro e caminhando comigo a seu lado sem me dizer nada, dirigia-se a seus seguidores. Primeiro, dirigu-se aos dois homens com ar de segredo. “A vocês, não tenho nada a dizer”, disse o sr. Jaggers, apontando para eles com seu dedo. “Não quero saber mais do que já sei. Quanto ao resultado, é uma questão de sorte. Eu lhes disse desde o começo que só dependia da sorte. Vocês pagaram o Wemmick?” “Juntamos o dinheiro hoje, senhor”, disse um dos homens, submisso, enquanto o outro examinava o rosto do sr. Jaggers. “Não estou lhe perguntando quando vocês juntaram o dinheiro, ou onde, ou mesmo se conseguiram juntá-lo. O dinheiro está com o Wemmick?” “Sim, senhor”, disseram os dois homens juntos. “Muito bem; então podem ir embora. Não, não quero ouvir nada!”, disse o sr. Jaggers, fazendo sinal para que os dois ficassem para trás. “Se me disserem uma só palavra, eu largo o caso.” “Nós pensamos, senhor Jaggers…”, um dos homens começou a dizer, tirando o chapéu. “Foi justamente o que eu disse para vocês não fazerem”, interrompeu o sr. Jaggers. “Vocês pensaram! Eu é que penso por vocês, e basta. Se eu precisar de vocês, sei onde encontrá-los; não quero que vocês me procurem. Não quero ouvir mais nada. Nem uma palavra.” Os dois homens entreolharam-se enquanto o sr. Jaggers fez sinal para que eles recuassem outra vez, e humildemente eles ficaram para trás, e não disseram mais nada. “E agora vocês!”, disse o sr. Jaggers, parando de súbito e virando-se para as duas mulheres de xale, das quais os três homens haviam se afastado, submissos. “Ah! É você, Amelia?” “Sou eu, sim, senhor Jaggers.” “E você está lembrada”, retorquiu o sr. Jaggers, “de que se não fosse eu você não estaria aqui e não poderia estar aqui?” “Ah, sim, senhor!”, exclamaram as duas mulheres juntas. “Que Deus abençoe o senhor, a gente sabemo disso muito bem!” “Então”, perguntou o sr. Jaggers, “por que é que vocês estão aqui?” “O meu Bill, senhor!”, implorou a mulher que chorava. “Pois escute o que vou lhe dizer!”, exclamou o sr. Jaggers. “De uma vez por todas. Se você não sabe que o seu Bill está em boas mãos, eu sei. E se você vier aqui me incomodar com histórias do seu Bill, eu faço de você e do seu Bill um exemplo, e largo mão do caso. Você pagou o Wemmick?” “Paguei, sim, senhor! Direitinho.” “Muito bem. Então você já fez tudo que tinha que fazer. Se me disser mais uma palavra — uma única palavra — o Wemmick lhe devolve o seu dinheiro.” Essa terrível ameaça fez com que as duas mulheres ficassem para trás na mesma hora. Agora só restava o judeu nervoso, que já levara aos lábios a fralda do casaco do sr. Jaggers várias vezes. “Não conheço este homem!”, disse o sr. Jaggers, no mesmo tom devastador. “O que quer este sujeito?” “Meu carro senhor Jaggers. O irmom de Abrraham Lazarrus!” “Quem é ele?”, perguntou o sr. Jaggers. “Largue o meu casaco.” O peticionário, beijando de novo a bainha do casaco antes de soltá-lo, respondeu: “Abrraham Lazarrus, suspéito”. “Você chegou muito tarde”, disse o sr. Jaggers. “Já estou indo.” “Déus do céu, senhór Jaggers!”, exclamou o homenzinho nervoso, empalidecendo, “nom me diga que o senhór está contrra Abrraham Lazarrus!” “Estou”, disse o sr. Jaggers, “e não se fala mais nisso. Saia da minha frente.” “Senhór Jaggers! Méio momento apenas! Meu prrimo foi ter com o senhor Vemmick nésse instante, parra lhe oferrecer quaisquer condiçõs. Senhór Jaggers! Um oitavo de um momento! Se o senhór se dignar a ser comprrado pela outrra parte — a um prrésso maior, qualquer que séja! — dinheirra nom é prroblema! — Senhór Jaggers! — Senhór…” Meu tutor livrou-se de seu suplicante com suprema indiferença, e deixou-o dançando na calçada como se o chão estivesse em brasa. Sem outras interrupções, chegamos à antessala, onde encontramos o funcionário e o homem com paletó de belbutina e boné de pele. “Este é o Mike”, disse o funcionário, levantando-se de seu banco e aproximando-se do sr. Jaggers, num tom confidencial. “Ah!”, exclamou o sr. Jaggers, virando-se para o homem, o qual puxava um cacho de cabelo caído no meio da testa, como o Touro na história do Tordo, puxando a corda do sino;4 “o homem vem hoje à tarde. E então?” “Bom, siô Jaggers”, respondeu Mike, com a voz de quem sofre de um resfriado constante, “deu um mucado de trabalho, mas acabei achando um que deve servir.” “Ele está disposto a jurar o quê?” “Bom, siô Jaggers”, disse Mike, dessa vez enxugando o nariz no boné, “de modo geral, ele pode jurar quarquer coisa.” O sr. Jaggers de repente ficou indignadíssimo. “Olhe, eu já lhe avisei uma vez”, disse ele, apontando o dedo para o cliente apavorado, “que se você voltasse a falar desse jeito aqui, eu faria de você um exemplo. Seu patife infernal, como é que você ousa dizer isso a mim?” O cliente parecia assustado, mas também perplexo, como se não entendesse o que havia feito de errado. “Bestalhão!”, disse o funcionário em voz baixa, cutucando-o com o cotovelo. “Palerma! Precisa dizer isso assim na cara?” “Volto a lhe perguntar, seu basbaque”, disse meu tutor, muito severo, “de novo, e pela última vez: esse homem que você trouxe aqui está disposto a jurar o quê?” Mike olhou fixamente para meu tutor, como se tentasse aprender uma lição a partir de seu rosto, e lentamente respondeu: “Ou atestar a reputação dele, ou então falar que ficou junto com ele o tempo todo na noite em questão”. “Agora, tenha cuidado. Qual é a condição social desse homem?” Mike olhou para o boné, e olhou para o chão, e olhou para o teto, e olhou para o funcionário, e olhou até para mim, antes de começar a responder, nervoso: “A gente vestiu ele de…”, quando então meu tutor explodiu: “O quê? Você insiste, é?” (“Bestalhão!”, acrescentou o funcionário novamente, com outra cutucada.) Depois de olhar para todos os lados, impotente, Mike animou-se e recomeçou: “Ele está vestido que nem um pasteleiro de respeito. Uma espécie de confeiteiro.” “Está aqui?”, perguntou meu tutor. “Eu deixei ele”, disse Mike, “sentado num degrau ali na esquina.” “Faça-o passar por aquela janela, para que eu o veja.” A janela indicada era a do escritório. Nós três fomos para perto dela, por trás da corrediça de metal, e logo em seguida vimos o cliente passar, como por acaso, com um indivíduo alto, com cara de assassino, trajando um paletó curto de linho branco com um chapéu de papel. Esse confeiteiro inocente não estava de modo algum sóbrio, e tinha um olho roxo em recuperação, já ficando esverdeado, o qual estava pintado. “Diga-lhe que leve embora essa testemunha imediatamente”, disse meu tutor ao funcionário, “e pergunte a ele que ideia foi essa de me trazer um sujeito assim.” Em seguida, meu tutor levou-me a seu gabinete, e enquanto almoçava, em pé, com uma caixa de sanduíche e um frasco de bolso de xerez (ele parecia ameaçar o próprio sanduíche que comia), informou-se a respeito dos preparativos que fizera para mim. Eu deveria ir para o “Barnard’s Inn”5 e procurar os aposentos do jovem sr. Pocket, onde uma cama fora instalada para mim; eu ficaria com o jovem sr. Pocket até segunda-feira; na segunda-feira eu iria com ele visitar seu pai, para ver se eu gostava de lá. Além disso, meu tutor me disse qual seria minha mesada — era uma quantia muito generosa — abriu uma gaveta e entregou-me alguns cartões de visitas de certos comerciantes com os quais eu deveria obter toda espécie de roupas, e quaisquer outras coisas que eu desejasse. “O senhor vai verificar que seu crédito é bom, senhor Pip”, disse meu tutor, cujo frasco de xerez trescalava como se fosse um barril inteiro, quando ele rapidamente tomou mais um gole, “mas dessa maneira poderei verificar suas contas, e cortar suas asas se começar a gastar mais do que pode. É claro que de algum modo o senhor há de acabar fazendo o que não deve, mas disso não tenho culpa.” Depois que ponderei um pouco essas palavras animadoras, perguntei ao sr. Jaggers se eu podia mandar vir um fiacre. Ele respondeu que não valia a pena, pois eu estava bem perto do lugar aonde ia; Wemmick caminharia comigo até lá, se eu o desejasse. Foi então que compreendi que Wemmick era o funcionário que ficava na antessala. Outro funcionário foi chamado do andar de cima para substituí-lo na sua ausência, e saí com ele para a rua, depois de trocar um aperto de mãos com meu tutor. Encontramos mais um grupo de pessoas esperando lá fora, mas Wemmick passou por elas dizendo-lhes num tom tranquilo, porém decisivo: “Eu lhes garanto que é perda de tempo; ele não tem nada a dizer a nenhum de vocês”; logo as deixamos para trás, e seguimos caminhando lado a lado. 2 Voltando a vista para o sr. Wemmick enquanto caminhávamos, para ver como ele era à luz do dia, observei que era um homem seco, de baixa estatura, com o rosto quadrado e impassível, cuja expressão parecia ter sido entalhada de modo imperfeito com um cinzel cego. Nele havia algumas marcas que poderiam ser covinhas, se o material fosse mais macio e o instrumento mais afiado, mas, sendo ele tal como era, não passavam de mossas. O cinzel fizera três ou quatro dessas tentativas de enfeitar-lhe o rosto acima do nariz, mas desistira sem se esforçar no sentido de aplainar a superfície. Concluí que devia ser solteiro, pois sua camisa estava puída, e que parecia ter sofrido muitas perdas, pois usava no mínimo quatro anéis de luto,1 além de um broche que representava uma senhora e um salgueiro-chorão diante de um túmulo em que havia uma urna. Notei também que havia anéis e selos pendendo da corrente de seu relógio, como se ele arcasse com o fardo de lembranças de amigos falecidos. Tinha olhos que brilhavam — pequenos, penetrantes e negros — e lábios finos, largos e mosqueados; e teria, eu calculava, de quarenta a cinquenta anos. “Então o senhor nunca esteve em Londres antes?”, perguntou-me o sr. Wemmick. “Não”, respondi. “Também eu já fui novo aqui”, disse o sr. Wemmick. “Engraçado pensar isso agora!” “Agora o senhor conhece bem a cidade?” “Ah, conheço, sim”, respondeu. “Conheço bem suas manhas.” “É um lugar muito pecaminoso?”, perguntei, mais para dizer alguma coisa do que para pedir uma informação. “Pode-se ser enganado, roubado e assassinado em Londres. Mas há muitas pessoas em qualquer lugar dispostas a isso.” “Se houver animosidade entre a vítima e o agressor”, comentei, para suavizar um pouco sua observação. “Ah! Não estou falando em animosidade”, retrucou o sr. Wemmick; “não se trata disso. Eles fazem essas coisas para levar alguma vantagem.” “Pior ainda.” “O senhor acha?”, indagou o sr. Wemmick. “Dá no mesmo, mais ou menos, a meu ver.” Ele usava o chapéu no cocuruto, e olhava bem para a frente: caminhava de modo absorto, como se não houvesse nada nas ruas que merecesse sua atenção. Sua boca assemelhava-se a uma caixa de correio, tanto assim que seu sorriso parecia mecânico. Foi só quando chegamos ao alto de Holborn Hill que percebi que era apenas uma semelhança mecânica, pois ele não estava sorrindo em absoluto. “Sabe onde mora o senhor Matthew Pocket?”, perguntei. “Sei”, respondeu, indicando com a cabeça a direção. “Em Hammersmith, a oeste de Londres.” “É longe?” “Bem… uns oito quilômetros.” “O senhor o conhece?” “Mas o senhor parece um promotor num tribunal!”, exclamou o sr. Wemmick, olhando-me com um ar de aprovação. “Conheço, sim. E como!” Havia um tom de tolerância ou crítica em suas palavras que me desanimou bastante; e eu continuava a olhar de lado para aquele rosto inflexível, à procura de algum toque mais esperançoso, quando ele disse que havíamos chegado a Barnard’s Inn. Meu desânimo não foi aliviado por tal informação, pois eu imaginava que o estabelecimento em questão fosse um hotel administrado por um sr. Barnard, em comparação com o qual o Javali Azul de nossa aldeia não passaria de um botequim. Verifiquei, no entanto, que o tal Barnard não passava de um espírito desencarnado, ou uma ficção, e seu hotel era na verdade um miserável amontoado de prédios reles espremidos numa esquina fétida, para servirem como um clube para gatos. Entramos nesse refúgio por um postigo, e fomos vomitados por um corredor inicial numa pracinha melancólica que me pareceu um cemitério plano. Pareceu-me que lá estavam as árvores mais desoladoras, e os pardais mais desoladores, e os gatos mais desoladores, e as casas mais desoladoras (cerca de meia dúzia delas) que eu jamais vira. Pareceu-me que as janelas dos cômodos em que eram divididas essas casas estavam nos mais variados estados de corrediças e cortinas esfarrapadas, vasos de plantas aleijados, vidros rachados, abandono empoeirado e arremedo de conserto; e “Aluga-se Aluga-se Aluga-se” encaravam meu olhar das salas vazias, como se a elas jamais viesse nenhum novo infeliz, e a vingança da alma de Barnard estivesse cumprindo-se pouco a pouco pelo gradual suicídio dos atuais ocupantes e seu enterro profano sob o cascalho do chão. Uma manhã bafienta de fuligem e fumaça vestia essa melancólica criação de Barnard, espargindo cinzas em sua cabeça, e ela penitenciava-se e humilhava-se na condição de um mero buraco cheio de poeira. Até aí me levava minha visão; enquanto isso, o caruncho, o mofo e todas as podridões silenciosas que apodrecem num telhado e num porão abandonados — podridão de ratazana e camundongo e barata e das estrebarias vizinhas, ainda por cima — apelavam sutilmente para meu olfato, gemendo: “Experimente a Mistura de Barnard”. Tão imperfeita foi essa realização da primeira das minhas grandes esperanças que olhei com desânimo para o sr. Wemmick. “Ah!”, exclamou ele, compreendendo mal minha reação; “o silêncio o faz pensar no campo. A mim também.” Ele levou-me até uma esquina e fez-me subir um lanço de escada — cujos degraus me pareciam estar lentamente se dissolvendo em serragem, de modo que um belo dia os moradores dos andares de cima abririam a porta e se veriam impossibilitados de descer — chegando a um conjunto de aposentos no andar mais alto. sr. pocket, jr., estava pintado na porta, e havia na caixa de correspondência uma etiqueta: “Volto logo”. “Ele não imaginava que o senhor viria tão cedo”, explicou o sr. Wemmick. “Não precisa mais de mim?” “Não, obrigado”, respondi. “Como eu cuido do dinheiro”, observou o sr. Wemmick, “é bem provável que nos encontremos com frequência. Bom dia.” “Bom dia.” Estendi minha mão, e o sr. Wemmick de início pareceu pensar que eu queria algo. Então olhou-me e, corrigindo-se, disse: “Ah, sim! Claro. O senhor tem o hábito de apertar a mão?” Fiquei um tanto confuso, pensando que devia estar fora de moda em Londres, mas respondi que sim. “Pois eu livrei-me dele!”, disse o sr. Wemmick. “Só nas despedidas. Mas, sim, muito prazer em conhecê-lo. Bom dia!” Depois que trocamos um aperto de mãos e ele partiu, abri a janela da escada e quase fiquei sem a cabeça, pois a corda estava tão podre que o caixilho despencou como numa guilhotina. Por sorte, caiu tão depressa que eu ainda não tivera tempo de pôr a cabeça para fora. Depois de escapar por um triz, contenteime com uma vista bem enevoada do Inn pela vidraça imunda, olhando para fora com tristeza e dizendo a mim mesmo que, sem dúvida, Londres era superestimada. Para o sr. Pocket, Jr., o significado de “jᔠnão era o mesmo que tinha a palavra para mim, pois eu estava ficando enlouquecido de tanto olhar pela janela por meia hora, tendo escrito meu nome com o dedo várias vezes na poeira de todas as vidraças que nela havia, quando ouvi passos subindo a escada. Pouco a pouco foram surgindo diante de mim o chapéu, a cabeça, o lenço de pescoço, o colete, as calças e as botas de um homem que teria mais ou menos a mesma condição social que eu. Levava um saco de papel debaixo de cada braço e um pequeno cesto de morangos numa das mãos, e estava ofegante. “Senhor Pip?”, ele perguntou. “Senhor Pocket?”, perguntei eu. “Ah, Deus!”, exclamou. “Lamento muitíssimo; mas sabendo que viria uma diligência da sua região ao meio-dia, imaginei que o senhor viesse nela. Na verdade, eu estava justamente fazendo algo pelo senhor — não que isso seja uma desculpa — pois achei que, como o senhor é do interior, talvez fosse de seu agrado comer umas frutas após o almoço, e fui até o mercado de Covent Garden para comprar frutas frescas.” Por um certo motivo, tive a impressão de que meus olhos iam saltar das órbitas. Agradeci sua intenção de modo incoerente, e comecei a pensar que estava sonhando. “Ah, Deus!”, exclamou o sr. Pocket, Jr. “Esta porta prende sempre!” Como estava rapidamente transformando em geleia as frutas que levava ao debater-se com a porta tendo os sacos de papel debaixo dos braços, pedi-lhe que me permitisse segurá-los. Ele entregou-me os sacos com um sorriso simpático, e atacou a porta como se ela fosse uma fera selvagem. Ela cedeu de modo tão súbito, por fim, que ele caiu para trás em cima de mim, e eu caí para trás sobre a porta em frente, e nós dois rimos. Porém, eu continuava tendo a impressão de que meus olhos iam saltar das órbitas, e de que aquilo devia ser um sonho. “Entre, por obséquio”, disse o sr. Pocket, Jr. “Se me permite, vou à frente. As instalações aqui são um tanto austeras, mas espero que o senhor fique razoavelmente confortável até segunda-feira. Meu pai julgou que seria mais agradável para o senhor esperar até amanhã comigo do que com ele, e talvez quisesse dar uma volta por Londres. Certamente terei muito prazer em lhe mostrar a cidade. Quanto à nossa mesa, o senhor verá que não é muito mal servida, pois somos abastecidos pelo café daqui,2 e (é preciso deixar isto claro) a conta vai para o senhor, pois são essas as ordens do sr. Jaggers. Quanto aos nossos aposentos, não são de modo algum esplêndidos, porque sou eu que me sustento, e meu pai não tem nada para me dar, e mesmo se tivesse eu não aceitaria. Esta é a nossa sala de estar — as cadeiras e mesa e tapete e tudo mais, como o senhor vê, são coisas que estavam sobrando lá em casa. Não me elogie a toalha de mesa, os talheres e os galheteiros, pois pertencem ao café. Este é meu quartinho; um tanto bolorento, porque o Barnard’s é mesmo bolorento. Este é o seu quarto; os móveis foram alugados para a ocasião, mas espero que sirvam; se quiser alguma coisa, é só me pedir. Os aposentos são retirados, e vamos ficar juntos aqui só nós dois, mas não vamos brigar, creio eu. Mas, ah, Deus, o senhor está esse tempo todo segurando as frutas. Por favor, deixe-me ficar com esses sacos. Peço desculpas.” Enquanto eu, parado em frente ao sr. Pocket, Jr., lhe entregava os sacos, primeiro um, depois o outro, vi surgir em seus olhos a expressão de espanto que eu sabia estar nos meus, e ele disse, recuando: “Que Deus me guarde, o senhor é o garoto intruso!” “E o senhor”, disse eu, “é o jovem cavalheiro pálido!” 3 O jovem cavalheiro pálido e eu ficamos a contemplar um ao outro no Barnard’s Inn, até que nós dois caímos na gargalhada. “Mas como pode ser o senhor!”, exclamou ele. “Como pode ser o senhor!”, devolvi. E então voltamos a contemplar um ao outro, e rimos outra vez. “Bom!”, disse o jovem cavalheiro pálido, estendendo-me a mão, bem-humorado, “está tudo acabado, espero, e será magnanimidade de sua parte me perdoar por ter lhe dado tamanha surra.” Com base nessa fala, concluí que o sr. Herbert Pocket (pois Herbert era o nome do jovem cavalheiro pálido) continuava confundindo sua intenção com sua execução. Porém dei-lhe uma resposta modesta, e trocamos um caloroso aperto de mãos. “Naquela ocasião, o senhor ainda não tinha tido seu golpe de sorte?”, perguntou Herbert Pocket. “Não”, respondi. “Não”, ele concordou; “ouvi dizer que a coisa é muito recente. Eu mesmo, naquela época, bem que estava querendo um golpe de sorte assim.” “É mesmo?” “É, sim. A senhora Havisham chamou-me à sua casa, para ver se ela se interessaria por mim. Mas não conseguiu — ou, seja como for, o fato é que não se interessou.” Por delicadeza, observei que isso me surpreendia. “Mau gosto”, disse Herbert, rindo, “mas é fato. É verdade, ela me convocou a título de experiência, e se eu tivesse sido aprovado, imagino que teria sido favorecido; talvez tivesse virado como-se-diz da Estella.” “O quê?”, perguntei, subitamente sério. Ele estava dispondo as frutas em pratos enquanto conversávamos, e foi por estar com a atenção dividida que a palavra lhe faltou. “Noivo”, explicou, ainda ocupado com as frutas. “Comprometido. Prometido. Ou lá o que seja. Qualquer uma dessas palavras.” “Como foi que o senhor suportou a decepção?”, indaguei. “Ora!”, exclamou. “Não foi nenhuma grande decepção. Ela é uma megera.” “A senhora Havisham?”, arrisquei. “Também ela, sim, mas eu me referia à Estella. Essa moça é dura, orgulhosa, caprichosa até não poder mais, e foi criada pela senhora Havisham para se vingar de todo o sexo masculino.” “Qual o parentesco dela com a senhora Havisham?” “Nenhum”, ele respondeu. “Foi só adotada por ela.” “Mas por que se vingar de todo o sexo masculino? Que vingança é essa?” “O quê, senhor Pip!”, exclamou. “O senhor não sabe?” “Não”, respondi. “Ah, Deus! É uma história e tanto, e vou guardá-la para o almoço. E agora vou tomar a liberdade de lhe fazer uma pergunta. Como é que o senhor foi parar lá, naquele dia?” Respondi sua pergunta, e ele prestou atenção até eu terminar a narrativa; depois caiu na gargalhada outra vez, e me perguntou se eu tinha ficado doído depois. Não lhe perguntei como ele ficara, pois minha convicção quanto a esse ponto era absoluta. “O senhor Jaggers é seu tutor, imagino?”, ele prosseguiu. “É.” “O senhor sabe que ele é o advogado da senhora Havisham e o encarregado de seus negócios, e que é a única pessoa em quem ela confia?” Isso estava me levando (senti) para um terreno perigoso. Respondi, com um constrangimento que não fiz nenhuma tentativa de disfarçar, que tinha visto o sr. Jaggers na casa da sra. Havisham no exato dia de nossa luta, mas só essa vez, e que eu imaginava que ele não se lembrasse de me ter visto lá. “O senhor Jaggers chegou a sugerir que meu pai fosse seu tutor, e foi falar com ele para fazer a proposta. É claro que o conhecia através da senhora Havisham. Meu pai é primo dela; mas não tem contato com ela, pois não tem vocação para cortesão e se recusa a lhe fazer agrados.” Herbert Pocket tinha um jeito franco e espontâneo que era muito cativante. Eu nunca conhecera, e nunca mais conheci, alguém que manifestasse de modo mais enfático, no olhar e no tom de voz, uma incapacidade inata de fazer alguma coisa secreta ou mesquinha. Havia algo de maravilhosamente esperançoso em sua expressão, e algo que ao mesmo tempo me sussurrava que ele jamais teria muito sucesso nem muito dinheiro. Não sei como me veio essa ideia. Ela se apossou de mim naquela primeira ocasião, antes mesmo de nos sentarmos para almoçar, mas não sei dizer de que modo isso se deu. Ele continuava a ser um jovem cavalheiro pálido, e exibia certo langor de derrota em meio a sua animação e sua vivacidade que não parecia indicar uma força natural. Seu rosto não era belo, mas era melhor do que isso: extremamente simpático e alegre. Seu corpo era um pouco desajeitado, tal como no tempo em que meus punhos tomaram tamanhas liberdades com ele, mas sua aparência indicava que haveria de permanecer sempre leve e jovem. Se o produto da alfaiataria provinciana do sr. Trabb ficaria melhor nele que em mim é uma questão em aberto; mas sei que ele fazia muito melhor figura com suas roupas um tanto surradas do que eu com meu traje novo. Por ser ele tão comunicativo, parecia-me que qualquer reserva da minha parte seria uma má retribuição, pouco adequada à nossa juventude. Assim, contei-lhe minha pequena história, enfatizando que não tinha permissão de fazer indagações a respeito da identidade de meu benfeitor. Disse-lhe também que fora criado por um ferreiro no interior, e que nada entendia de boas maneiras, e que seria muita bondade de sua parte orientar-me sempre que me visse em estado de perplexidade ou fazendo a coisa errada. “Com prazer”, disse ele, “se bem que me arrisco a profetizar que não vai precisar quase nunca da minha orientação. Creio que vamos estar juntos boa parte do tempo, e não quero que haja nenhum constrangimento desnecessário entre nós. Pode me fazer o obséquio de me chamar a partir de agora pelo meu nome de batismo, Herbert?” Agradeci e concordei. Em troca, informei-lhe que o meu era Philip. “Não gosto de Philip”, disse ele, sorrindo, “pois me lembra o menino moralista da cartilha,1 que de tão preguiçoso caiu no lago, ou que de tão gordo não enxergava porque a gordura cobria seus olhos, ou que de tão avarento trancou seu bolo no armário até que os ratos o comeram, ou que de tão decidido a pegar um ninho de passarinho acabou sendo comido pelos ursos que estavam ali por perto só para isso. Vou lhe dizer o que me agradaria. Somos tão harmoniosos, e você já foi ferreiro — você se incomodaria?” “Nada que você proponha há de me incomodar”, respondi, “mas não entendi.” “Você se incomodaria se eu o apelidasse de Handel? Há uma música encantadora de Handel chamada ‘O ferreiro harmonioso’.”2 “Isso me agradaria muito.” “Então, meu caro Handel”, disse ele, virando-se enquanto a porta se abria, “eis o almoço, e peço-lhe que fique à cabeceira, já que é você quem paga a conta.” Não aceitei a proposta de modo algum, e assim ele se instalou à cabeceira, e eu fiquei de frente para ele. Foi um almoço agradável — a mim, na época, pareceu-me um banquete digno do prefeito de Londres — e tinha por atrativo adicional ser consumido naquelas circunstâncias de independência, sem nenhuma pessoa velha por perto, e Londres se espraiando à nossa volta. Além disso, o efeito era acentuado por certa atmosfera cigana que caracterizava nosso banquete; pois, ainda que houvesse sobre a mesa, como diria o sr. Pumblechook, tudo do bom e do melhor — os itens todos sendo provenientes do café local —, a região circunjacente da nossa sala era de caráter relativamente árido e improvisado: isso impunha ao garçom os hábitos nômades de pôr as tampas das travessas no chão (onde ele tropeçava nelas), a manteiga derretida3 na poltrona, o pão na estante de livros, o queijo no balde de carvão e o frango cozido na minha cama, no quarto ao lado — onde encontrei boa parte da manteiga com salsa em estado de coagulação quando fui me deitar à noite. Tudo isso tornava o festim uma delícia, e quando o garçom não estava presente para me observar, meu prazer era absoluto. O almoço já estava em andamento quando lembrei Herbert de sua promessa de me falar sobre a sra. Havisham. “É verdade”, respondeu ele. “Vou cumpri-la agora mesmo. Antes de iniciar a história, Handel, devo lhe dizer que em Londres não é comum levar a faca à boca — para evitar acidentes — e que embora o garfo seja usado com esse fim, ele só é enfiado na boca até onde é necessário fazê-lo. Nada de importante, apenas não custa fazer como fazem as outras pessoas. Além disso, segura-se a colher não com a mão por baixo, mas por cima. Isso tem duas vantagens. Chegase com mais facilidade à boca (que, afinal, é o objetivo), e a posição do cotovelo direito não faz pensar que se está a abrir ostras.” Herbert ofereceu essas sugestões simpáticas de modo tão animado que nós dois rimos, e eu quase não corei. “Bem”, prosseguiu, “vamos à senhora Havisham. A senhora Havisham, é preciso dizer, foi uma criança estragada. A mãe morreu-lhe quando ela ainda era bebê, e o pai não lhe negava nada. Ele era um cavalheiro do interior, lá da sua região, e era dono de uma cervejaria. Não entendo por que motivo é tão admirável ser cervejeiro; mas é inquestionável que, embora seja impossível ser cavalheiro e ser padeiro, pode-se ser a fina flor do cavalheirismo e ser cervejeiro. É coisa que se vê todos os dias.” “Mas um cavalheiro não pode ter um botequim, não é?”, perguntei. “De modo algum”, retrucou Herbert; “mas um botequim pode ter um cavalheiro. Pois bem! O senhor Havisham era muito rico e muito orgulhoso. E a filha dele também.” “Ela era filha única?”, arrisquei. “Espere um pouco; eu chego lá. Não, não era filha única; tinha um meioirmão. O pai dela casou-se de novo em segredo4 — com a cozinheira, creio eu.” “Mas ele não era orgulhoso?”, indaguei. “Meu bom Handel, orgulhoso ele era. Casou-se com a segunda esposa em segredo por ser orgulhoso, e depois de algum tempo ela também morreu. Com a esposa morta, creio que só então contou à filha o que havia feito, e a partir daí o filho entrou para a família, indo morar na casa que você conheceu. Quando ficou rapaz, tornou-se licencioso, extravagante, desobediente — um péssimo filho. Por fim o pai o deserdou; porém amoleceu quando estava a ponto de morrer, e legou-lhe uma fortuna razoável, ainda que muito menor que a que ficou com a senhora Havisham. Tome mais um copo de vinho, e não me leve a mal se eu lhe disser que na sociedade não é necessário ser tão consciencioso ao esvaziar o copo a ponto de virá-lo de cabeça para baixo, com a borda encostada no nariz.” Eu vinha fazendo isso mesmo, por estar excessivamente atento à sua narrativa. Agradeci e pedi desculpas. Ele disse: “Não há por que se desculpar”, e prosseguiu. “A senhora Havisham agora era uma herdeira, e pode-se imaginar que todos a consideravam um excelente partido. O meio-irmão tinha bastante dinheiro outra vez, mas logo se endividou e gastou a torto e a direito em suas loucuras, e voltou à penúria. Havia mais diferenças agora entre ele e ela do que antes entre ele e o pai, e acredita-se que ele nutrisse um rancor profundo e mortal contra a irmã, julgando que ela influenciara a raiva do pai. Agora vem a parte cruel da história — a qual interrompo, meu caro Handel, apenas para comentar que o guardanapo não cabe dentro do copo.” Por que motivo eu estava tentando enfiar meu guardanapo no meu copo, não faço a menor ideia. Só sei que dei por mim, com uma perseverança digna de uma causa bem melhor, fazendo as tentativas mais extenuantes de comprimi-lo dentro de tais limites. Mais uma vez, agradeci e pedi desculpas, e mais uma vez ele retrucou, da maneira mais alegre: “Não há do que se desculpar, em absoluto!”. E retomou a narrativa. “Eis que então entrou em cena — digamos, no hipódromo, ou nos bailes públicos, ou onde você quiser — um certo homem, que fez a corte da senhora Havisham. Nunca conheci esse homem, pois isso foi há vinte e cinco anos (quando nem eu nem você ainda éramos nascidos, Handel), mas ouvi meu pai dizer que era um exibido, o tipo de homem adequado para esse tipo de coisa. Mas era impossível tomá-lo, salvo por ignorância ou preconceito, por um cavalheiro, isso meu pai afirma com veemência; pois ele tem por princípio que nenhum homem que não seja um cavalheiro de verdade no âmago jamais foi, desde que o mundo é mundo, um cavalheiro de verdade na aparência. Segundo ele, não há verniz que esconda os veios da madeira; e quanto mais se enverniza a madeira, mais os veios se manifestam. Pois bem! Esse homem assediou a senhora Havisham com insistência, afirmando sua devoção a ela. Creio que ela não demonstrara muita suscetibilidade até então; porém, toda a suscetibilidade que possuía veio à tona nesse momento, e ela apaixonou-se perdidamente pelo tal. Sem dúvida, ela o idolatrava. De modo tão sistemático esse homem exerceu seu afeto sobre a senhora Havisham que dela obteve quantias vultosas, e convenceua a comprar de seu irmão sua participação na cervejaria (que o pai, num momento de fraqueza, legara ao filho) por um preço altíssimo, argumentando que depois de casados ele exigia a posse e controle completos da empresa. O seu tutor, Handel, nessa época não era um dos consultores da senhora Havisham, e ela era tão orgulhosa, e estava tão apaixonada, que não ouvia conselhos de ninguém. Seus parentes eram pobres e traiçoeiros, com exceção de meu pai; pobre ele era, mas não era nem bajulador nem invejoso. Sendo o único parente independente da senhora Havisham, ele a alertou, dizendo-lhe que estava fazendo coisas demais por esse homem, e entregando-se sem reservas ao poder dele. Na primeira oportunidade, ela expulsou meu pai de sua casa, num acesso de raiva, na presença do tal homem, e meu pai nunca mais a viu.” Lembrei-me de tê-la ouvido dizer: “O Matthew há de vir me ver no final, quando eu estiver estendida nessa mesa, morta”; e perguntei a Herbert se seu pai continuava tão inflexível em relação a ela. “Não se trata disso”, ele respondeu. “A questão é que ela o acusou, na presença do noivo, de estar decepcionado em sua tentativa de bajulá-la para ser favorecido por ela. Assim, se meu pai voltasse a procurá-la agora, a acusação pareceria verdadeira — até mesmo para ele — até mesmo para ela. Mas voltemos ao homem e terminemos com ele. A data do casamento foi marcada, o vestido de noiva foi comprado, a viagem nupcial foi planejada, foram despachados os convites para a festa. Chegou o dia, mas o noivo não chegou. Ele escreveu uma carta para ela…” “A qual ela recebeu”, interrompi, “quando estava se vestindo para a cerimônia? Às vinte para as nove?” “Na exata hora”, concordou Herbert, “em que depois ela parou todos os relógios. O que havia nessa carta, além do cancelamento cruel do casamento, não posso lhe dizer, porque não sei. Depois que se recuperou de uma doença grave que então lhe acometeu, ela deixou que toda a propriedade caísse aos pedaços, tal como você a viu, e desde então nunca mais viu a luz do dia.” “Isso é tudo?”, perguntei, depois de pensar um pouco. “É tudo que sei; e na verdade o que sei foi obtido aos pedaços, pois meu pai sempre evita o assunto; e a senhora Havisham, mesmo quando me convidou para ficar lá, só me contou o que era absolutamente necessário que eu soubesse. Porém esqueci uma coisa. Especula-se que o homem que traiu a confiança da senhora Havisham estava agindo em conluio com o meio-irmão dela, que foi tudo uma conspiração montada pelos dois, e que eles dividiram os lucros.” “Não entendo por que ele não se casou com ela e ficou com toda a propriedade”, argumentei. “Talvez ele já fosse casado, e a crueldade da mortificação fosse parte da trama do meio-irmão dela”, disse Herbert. “Mas, veja lá, isso eu não sei se é mesmo verdade.” “Que fim levaram os dois homens?”, perguntei, depois de pensar um pouco, como antes. “Mergulharam ainda mais fundo na vergonha e na degradação — se tal coisa é possível — e na ruína.” “Ainda estão vivos?” “Não sei.” “Você disse ainda há pouco que a Estella não era parenta da senhora Havisham, porém foi adotada por ela. Adotada quando?” Herbert deu de ombros. “Desde que ouço falar na senhora Havisham que a Estella está lá. Não sei mais nada. E agora, Handel”, disse ele, como pondo pontofinal na história, “agora está tudo claro entre nós. Tudo que sei sobre a senhora Havisham você também sabe.” “E tudo que eu sei”, retorqui, “você também sabe.” “É o que acredito. De modo que não pode haver competição nem perplexidade entre nós. E quanto à condição de que depende a sua subida na vida — isto é, a de que você não deve fazer indagações nem conversar sobre a identidade do seu benfeitor — pode estar certo de que ela jamais será violada, nem de longe, por mim, nem por ninguém ligado a mim.” De fato, Herbert disse isso com tamanha delicadeza que senti que o assunto estava encerrado, ainda que eu viesse a viver na casa de seu pai por anos e anos. Entretanto, ele falou num tom que me fez pensar que para ele estava tão claro quanto estava para mim que minha benfeitora era a sra. Havisham. Não me ocorrera antes que ele havia abordado aquele assunto com o objetivo de remover qualquer obstáculo entre nós; mas nos sentimos tão mais leves e descontraídos depois dessa conversa que nesse momento me dei conta do fato. Ficamos muito alegres e sociáveis, e eu lhe perguntei, durante a conversa, o que ele era na vida. Respondeu-me Herbert: “Capitalista — segurador de navios”. Creio que ele me viu olhando à minha volta em busca de alguma coisa associada a navios ou ao capital, pois acrescentou: “Na City”. Eu tinha uma concepção grandiosa da riqueza e importância dos seguradores de navios que trabalhavam na City de Londres, e comecei a pensar, com espanto, que havia derrubado um jovem segurador, arroxeado seu olho empreendedor e feito um corte em sua cabeça responsável. Porém, mais uma vez, para meu alívio, veio-me aquela estranha impressão de que Herbert Pocket jamais teria muito sucesso nem muito dinheiro. “Não vou me contentar apenas com aplicar meu capital em seguros de navios. Vou comprar umas boas ações de seguro de vida, e diversificar-me nessa direção. Quero também mexer um pouco com mineração. Nenhuma dessas coisas vai me impedir de fretar alguns milhares de toneladas por minha conta. Creio que vou comerciar”, disse ele, recostando-se na cadeira, “com as Índias Orientais — sedas, xales, especiarias, corantes, drogas e madeiras de lei. É um comércio interessante.” “E os lucros são grandes?”, perguntei. “Imensos!”, respondeu. Oscilei mais uma vez, e comecei a pensar que as esperanças dele eram maiores que as minhas. “Creio que vou comerciar também”, disse ele, enfiando os polegares nos bolsos do colete, “com as Índias Ocidentais — açúcar, fumo e rum. E também com o Ceilão, especialmente presas de elefantes.” “Vai precisar de muitos navios”, comentei. “Uma frota perfeita”, disse ele. Muito impressionado com a magnificência dessas transações, perguntei-lhe onde comerciavam no momento os navios de que ele fazia o seguro. “Ainda não entrei no ramo de seguros”, respondeu ele. “Ainda estou olhando à minha volta.” De algum modo, isso me pareceu mais condizente com o Barnard’s Inn. Exclamei (num tom de convicção): “Ah-ah!”. “É. Estou num escritório de contabilidade, e estou olhando à minha volta.” “Um escritório de contabilidade dá lucro?”, perguntei. “Para… você se refere ao rapaz que trabalha nele?”, Herbert indagou, em resposta. “É, para você.” “Ora, n-não: não para mim.” Disse isso com o ar de quem pensa com cuidado e faz uma afirmação equilibrada. “Não diretamente. Quer dizer, não me paga nada, e eu tenho que… me sustentar.” Pelo visto, a coisa não era lá muito lucrativa, e sacudi a cabeça como para dizer que seria difícil acumular muito capital com tal fonte de renda. “Mas a vantagem”, disse Herbert Pocket, “é que posso olhar à minha volta. Isso é que é fundamental. Você está num escritório de contabilidade, você sabe, e olha à sua volta.” Parecia-me uma implicação curiosa de sua afirmação que não estando num escritório de contabilidade, você sabe, você não podia olhar à sua volta; mas em silêncio submeti-me à sua experiência. “Então chega uma hora”, disse Herbert, “em que você vê a sua oportunidade. E você entra, e aproveita, e faz o seu capital, e pronto! Uma vez obtido o capital, não há mais nada a fazer senão empregá-lo.” Isso era muito semelhante a sua maneira de agir durante o embate no jardim; muito semelhante. Também seu modo de enfrentar a pobreza correspondia com precisão ao modo como ele enfrentara aquela derrota. Parecia-me que ele suportava todos os golpes e estocadas agora com o mesmo ar que suportara os meus. Estava claro que ele só tinha à sua volta as necessidades mais básicas, pois tudo mais em que eu reparara ou havia sido encomendado do café por minha conta ou então vinha de algum outro lugar. No entanto, embora já tendo feito sua fortuna mentalmente, ele era tão despretensioso a respeito dela que eu sentia gratidão por ele não ser orgulhoso. Era um acréscimo agradável a seu jeito naturalmente agradável, e nos entendemos às mil maravilhas. À noite fomos caminhar nas ruas, e pagamos meia-entrada no teatro;5 no dia seguinte fomos ao culto na abadia de Westminster, e à tarde passeamos nos parques; e eu me perguntava quem haveria de ferrar todos aqueles cavalos, e desejava que fosse Joe. Numa computação moderada, já se haviam passado muitos meses, naquele domingo, desde o dia em que me despedi de Joe e Biddy. O espaço que me separava deles fazia parte desse distanciamento, e nosso charco parecia remotíssimo. Que eu pudesse ter ido à nossa velha igreja com minhas velhas roupas de domingo, naquele domingo último de todos, parecia uma combinação de impossibilidades, geográficas e sociais, solares e lunares. No entanto, nas ruas de Londres, tão apinhadas de gente e tão fortemente iluminadas no lusco-fusco do entardecer, havia sinais deprimentes de reproche por ter eu me afastado de tal modo de nossa pobre velha cozinha; e no silêncio da madrugada, os passos de algum pretenso porteiro a zanzar pelo Barnard’s Inn, supostamente montando guarda, ecoavam vazios no meu coração. Na manhã de segunda-feira, às quinze para as nove, Herbert foi ao escritório de contabilidade para apresentar-se — e para olhar à sua volta também, imagino — e acompanhei-o. Ele deveria sair dentro de uma ou duas horas para ir comigo a Hammersmith, e fiquei de esperá-lo. Parecia-me que os ovos de que nasciam os jovens seguradores eram incubados na poeira e no calor, tal como os ovos dos avestruzes, a julgar pelos lugares onde esses futuros gigantes iam trabalhar nas manhãs de segunda. Tampouco o escritório de contabilidade onde Herbert trabalhava me parecia de modo algum um bom observatório, pois ficava nos fundos de um segundo andar num pátio, encardido sob todos os aspectos, e dava vista para os fundos de outro segundo andar, e não para a rua. Esperei até meia-hora e fui até a Bolsa,6 e vi homens cobertos de poeira sentados debaixo dos cartazes sobre navios, homens que julguei serem grandes comerciantes, embora não entendesse por que todos pareciam estar desanimados. Quando Herbert chegou, fomos almoçar numa casa célebre que na época me inspirava veneração, mas que agora considero ter sido a mais abjeta superstição da Europa, e onde não tive como não reparar, mesmo naquele momento, que havia muito mais molho nas toalhas e nas facas e nas roupas dos garçons do que nos bifes. Feita esta refeição a um preço módico (levando-se em conta a sujeira, a qual não foi cobrada), voltamos para o Barnard’s Inn, onde peguei minha maleta, e em seguida tomamos a diligência para Hammersmith. Chegamos às duas ou três da tarde e caminhamos um trecho bem pequeno até a casa do sr. Pocket. Levantando a aldraba de um portão, entramos num jardinzinho com vista para o rio, onde os filhos do sr. Pocket estavam a brincar. E a menos que eu esteja enganado a respeito de algo que nada tem a ver com meus interesses e minhas preocupações, os meninos e meninas do sr. e da sra. Pocket não estavam crescendo nem sendo criados, e sim caindo de um lado para o outro. A sra. Pocket estava sentada numa cadeira no jardim à sombra de uma árvore, lendo, com as pernas apoiadas em outra cadeira; e as duas amas da sra. Pocket olhavam à sua volta enquanto as crianças brincavam. “Mamãe”, disse Herbert, “este rapaz é o senhor Pip.” Ao ouvir isso, a sra. Pocket recebeu-me com um ar de dignidade simpática. “Alick e Jane”, gritou uma das amas para duas das crianças, “se vocês se jogar nesses arbusto vocês vai cair no rio e se afogar, e aí o que é que o pai de vocês vai dizer!” Ao mesmo tempo, essa ama pegou no chão o lenço da sra. Pocket, dizendo: “Ora, se não é a sexta vez que a senhora deixou ele cair!”. Ao ouvir isso, a sra. Pocket riu e disse: “Obrigada, Flopson”, e reinstalando-se numa única cadeira retomou a leitura. Seu rosto assumiu de imediato uma expressão concentrada e atenta, como se estivesse lendo há uma semana, mas antes de ter tido tempo de ler meia dúzia de linhas fixou os olhos em mim, dizendo: “E sua mamãe está bem, eu espero?”. Essa pergunta inesperada me colocou numa dificuldade tamanha que comecei a dizer, do modo mais absurdo, que se tal pessoa existisse ela sem dúvida estaria muito bem e agradeceria e mandaria seus cumprimentos, quando então a ama veio em meu socorro. “Ora!”, ela exclamou, pegando o lenço, “se não é a sétima vez! Mas o que a senhora está fazendo hoje!” A sra. Pocket recebeu sua propriedade, de início com um ar de surpresa indizível, como se nunca a tivesse visto antes, e disse: “Obrigada, Flopson”, e esqueceu-se de mim, e continuou a ler. Observei, agora que tinha tempo de contá-los, que havia nada menos que seis Pocketzinhos no jardim, caindo de diversas maneiras. Pouco depois de minha chegada, um sétimo se fez ouvir, como se nas regiões aéreas, chorando melancolicamente. “Ora se não é o bebê!”, exclamou Flopson, parecendo surpreender-se com essa descoberta. “Vá logo, Millers.” Millers, a outra ama, foi para dentro de casa, e pouco a pouco o choro da criança foi diminuindo e cessou, como se fosse um pequeno ventríloquo cuja boca tivesse sido tapada. Enquanto isso, a sra. Pocket lia, e eu estava curioso para saber que livro seria aquele. Esperávamos, creio eu, que o sr. Pocket saísse para ter conosco; fosse como fosse, ficamos à espera, e assim tive oportunidade de observar um notável fenômeno familiar: cada vez que alguma das crianças se aproximava da sra. Pocket no meio de seus folguedos, elas quase sempre davam um jeito de tropeçar e cair por cima dela — o que sempre causava grande espanto momentâneo na mãe, e uma tristeza um pouco mais duradoura nas crianças. Eu não conseguia entender essa circunstância surpreendente, e não podia deixar de me entregar a especulações a seu respeito, até que por fim Millers desceu com o bebê, que foi entregue a Flopson, a qual Flopson foi entregá-lo à sra. Pocket, quando também ela quase caiu de cabeça em cima da sra. Pocket, com bebê e tudo, sendo salva por Herbert e por mim. “Deus me acuda, Flopson!”, disse a sra. Pocket, desviando a vista do livro por um momento, “todo mundo está caindo!” “Deus acuda a senhora, sim!”, retrucou Flopson, com o rosto muito vermelho. “O que é que a senhora tem aí?” “O que eu tenho, Flopson?”, indagou a sra. Pocket. “Ora, se não é o seu escabelo!”, exclamou Flopson. “E se a senhora deixa ele aí debaixo das suas saia, como é que a gente pode não cair! Tome! A senhora fique com o bebê, e me dê o seu livro.” A sra. Pocket fez o que a outra disse, e sem muito jeito balançou a criança no colo um pouco, enquanto as outras brincavam ao redor dela. Isso durou apenas alguns instantes, pois logo a sra. Pocket deu ordens sumárias de que todos fossem levados para dentro de casa para uma soneca. Assim fiz minha segunda descoberta nessa primeira ocasião, que o método de criação adotado com os Pocketzinhos era ora cair, ora ficarem deitados. Nessas circunstâncias, depois que Flopson e Millers levaram as crianças para dentro de casa, como um pequeno rebanho de carneiros, e o sr. Pocket dela saiu para me receber, não me surpreendeu muito verificar que o sr. Pocket era um cavalheiro com uma expressão um tanto perplexa no rosto, e com os cabelos muito grisalhos despenteados, como se ele não conseguisse organizar coisa alguma. 4 O sr. Pocket disse que era um prazer me ver, e que esperava que eu não lamentasse vê-lo. “Pois na verdade”, acrescentou, com o sorriso do filho, “não sou uma pessoa assustadora.” Era um homem de aparência jovem, apesar de suas perplexidades e de seu cabelo muito grisalho, e seu jeito parecia muito natural. Uso a palavra “natural” no sentido de não ter qualquer afetação; havia algo de cômico em seu ar de preocupação, que pareceria de fato ridículo se ele próprio não tivesse consciência de que estava às raias do ridículo. Depois de falar comigo um pouco, dirigiu-se à sra. Pocket, com uma contração um tanto ansiosa das sobrancelhas, que eram negras e belas: “Belinda, espero que você tenha dado as boas-vindas ao senhor Pip”. E ela levantou a vista do livro e respondeu: “Dei”. Em seguida, sorriu para mim com um ar distraído, e perguntou-me se eu gostava do sabor de água de flor de laranjeira. Como a pergunta não tinha nenhuma relação, próxima ou remota, com nenhuma afirmação anterior ou posterior, concluo que foi feita, tal como suas intervenções anteriores, por pura condescendência social. Algumas horas depois, fiquei sabendo, e devo dizê-lo logo de uma vez, que a sra. Pocket era filha única de certo cavaleiro que morrera de forma muito acidental, e que havia convencido a si próprio de que seu falecido pai só não foi feito baronete por causa da oposição cerrada de uma pessoa movida por razões inteiramente pessoais — já não sei que pessoa, se é que algum dia soube — o rei, o primeiro-ministro, o lorde chanceler, o arcebispo de Cantuária, alguém — e vivia grudado nos nobres deste mundo com base nesse fato totalmente hipotético. Creio que ele fora feito cavaleiro por atacar a gramática inglesa com a ponta de sua pena, num discurso desesperado traçado em pergaminho, por ocasião do lançamento da pedra fundamental de sei lá qual prédio, e por entregar a alguma personagem real ou a colher de pedreiro ou a argamassa. Fosse como fosse, ele havia criado a sra. Pocket desde o berço como alguém que, no curso natural dos coisas, haveria de desposar um nobre, e que devia ser protegida da aquisição de conhecimentos domésticos plebeus. Foi tão bem-sucedido em tal propósito esse pai judicioso que ela se tornou uma criatura altamente ornamental, porém de todo incapaz e inútil. Tendo seu caráter se estabelecido desse modo feliz, ainda na flor da juventude ela conheceu o sr. Pocket, o qual também estava na flor da juventude e ainda não decidira se haveria de sentar-se na almofada de lã ou de proteger a cabeça com uma mitra.1 Como fazer uma ou outra coisa era mera questão de tempo, ele e a sra. Pocket haviam agarrado o Tempo pelo topete 2 (e, a julgar pelo comprimento, o Tempo devia estar precisando de um barbeiro), e se casaram sem o conhecimento do pai judicioso. Este, não possuindo nada que pudesse legar ou negar ao casal senão sua bênção, generosamente conferiu-a aos dois após um curto conflito, e informou o sr. Pocket de que sua esposa era “um tesouro digno de um príncipe”. Desde então, o sr. Pocket investiu seu tesouro de príncipe nas atividades mundanas, o que não lhe parecia ter rendido lucros muito vultosos. Mesmo assim, a sra. Pocket era alvo de uma curiosa mistura de piedade e respeito, por não ter-se casado com um nobre, enquanto o sr. Pocket era alvo de uma curiosa mistura de reproche e perdão, por não ter jamais se tornado nobre. O sr. Pocket levou-me para dentro da casa e mostrou-me o meu quarto, o qual era agradável e mobiliado de tal modo que eu podia utilizá-lo confortavelmente também como minha sala particular. Em seguida, bateu às portas de dois outros quartos semelhantes e apresentou-me a seus ocupantes, Drummle e Startop. Drummle, um jovem com cara de velho e uma arquitetura de uma ordem pesada, estava assobiando. Startop, mais jovem em idade e em aparência, estava lendo e segurando a cabeça, como se julgasse correr o perigo de fazê-la explodir com uma carga de conhecimento excessivamente forte. Tanto o sr. Pocket quanto sua esposa tinham um ar tão óbvio de estarem nas mãos de alguma outra pessoa que eu me perguntava quem seria o verdadeiro proprietário da casa que lhes permitia morar ali, até que descobri que esse poder desconhecido pertencia aos criados. Era uma maneira tranquila de viver, talvez, no sentido de evitar problemas; porém parecia ser cara, pois os criados julgavam ter a obrigação de ser exigentes quanto à comida e à bebida, e de receber muitas visitas no andar de baixo. Concediam uma mesa bem farta ao sr. Pocket e sua esposa, e, no entanto, eu tinha sempre a impressão de que a melhor parte da casa para se hospedar seria a cozinha — desde que o hóspede fosse capaz de se defender, pois, antes mesmo de eu completar uma semana na casa, uma senhora vizinha conhecida da família mandou um bilhete dizendo que tinha visto Millers dando um tapa no bebê. Isso causou grande sofrimento à sra. Pocket, que se debulhou em lágrimas ao receber o bilhete, dizendo que era extraordinário como os vizinhos se metiam na vida alheia. Aos poucos fiquei sabendo, principalmente a partir de Herbert, que o sr. Pocket estudara em Harrow* e Cambridge, onde obtivera distinção; mas que, ao ter a felicidade de desposar a sra. Pocket ainda muito jovem, sua carreira foi prejudicada e ele assumiu a ocupação de “explicador”. Tendo dado lustre a um certo número de alunos de pouco brilho — sendo notável o fato de que seus pais, quando eram pessoas influentes, sempre prometiam ajudá-lo, mas sempre se esqueciam de cumprir o prometido depois que terminavam as explicações —, ele se cansou desse trabalho mal pago e veio para Londres. Ali, pouco a pouco frustrado em suas esperanças mais elevadas, estudava com alguns que não tiveram oportunidades ou que as desperdiçaram, preparava vários outros para ocasiões especiais, e utilizava seus talentos nas tarefas de compilação e correção literária, e com base nesses recursos, além de uma renda pessoal muito modesta, conseguia ainda manter a casa que conheci. O sr. Pocket e sua esposa tinham uma lambe-botas por vizinha, viúva de natureza tão solidária que concordava com todos, abençoava a todos e dispensava sorrisos e lágrimas a todos, conforme as circunstâncias. Seu nome era sra. Coiler, e eu tive a honra de descer com ela para a sala de jantar no dia em que me instalei na casa. Ao descer a escada, ela me deu a entender que era terrível para a querida sra. Pocket que o querido sr. Pocket se visse obrigado a receber cavalheiros para estudar como ele. O comentário não se estendia a mim, ela me disse numa explosão de amor e confiança (naquele momento, eu a conhecia há menos de cinco minutos); se todos fossem como eu, aí seria muito diferente. “Mas a querida senhora Pocket”, disse a sra. Coiler, “depois de sua primeira decepção (não que o querido senhor Pocket tivesse alguma culpa), exige tanto luxo e elegância…” “Sim, senhora”, disse eu, para detê-la, pois temia que ela começasse a chorar. “E ela tem um temperamento tão aristocrático…” “Sim, senhora”, repeti, com o mesmo objetivo de antes. “… que é muito difícil”, prosseguiu a sra. Coiler, “fazer com que o querido senhor Pocket dedique tempo e atenção a qualquer outra coisa que não seja a querida senhora Pocket.” Não pude evitar o pensamento de que talvez fosse ainda mais difícil se o açougueiro dedicasse menos tempo e atenção à querida sra. Pocket; porém não disse nada; a necessidade de vigiar minhas boas maneiras discretamente já me ocupava o bastante. Fiquei sabendo, através da conversa entre a sra. Pocket e Drummle enquanto eu prestava atenção no garfo, na faca, na colher, nos copos e nos outros instrumentos de autodestruição, que Drummle, cujo nome de batismo era Bentley, na verdade vinha logo depois do herdeiro de um título de baronete na linha de sucessão. Também fiquei sabendo que o livro que eu vira a sra. Pocket lendo no jardim dizia respeito a títulos de nobreza, e que ela sabia a data exata em que seu avô teria entrado no livro, se tal houvesse de fato acontecido. Drummle não dizia muita coisa, mas lá à sua maneira limitada (ele parecia um sujeito rabugento) falava como um dos eleitos, e reconhecia a sra. Pocket como mulher e como irmã. Ninguém, além deles dois e da sra. Coiler, a vizinha lambebotas, manifestava qualquer interesse nessa parte da conversa, a qual parecia constranger Herbert; entretanto, a conversa prometia estender-se por algum tempo quando entrou o pajem anunciando um problema doméstico. O que acontecera fora que a cozinheira havia perdido a carne. Para meu indizível espanto, vi pela primeira vez o sr. Pocket aliviar sua tensão através de um comportamento que me pareceu absolutamente insólito, mas que não causou impressão em mais ninguém, e com o qual terminei por me acostumar tal como os outros. Ele largou o trinchante e o garfo — pois estava trinchando naquele momento —, pôs as duas mãos nos cabelos despenteados e pareceu fazer uma tentativa extraordinária de levantar a si próprio pelos cabelos. Feito isso, e não tendo conseguido levantar-se nem um pouco, continuou em silêncio a fazer o que estava fazendo antes. Nesse ponto a sra. Coiler mudou de assunto e começou a bajular-me. Por alguns momentos aquilo me agradou, mas a bajulação era tão gritante que o prazer logo passou. Ela possuía um jeito serpenteante de se aproximar de mim quando afetava um interesse profundo pelos amigos e lugares que eu deixara para trás, um jeito positivamente ofídico; e quando ela vez por outra dava o bote em Startop (que lhe dizia muito pouco) ou Drummle (que dizia menos ainda), eu sentia certa inveja dos dois por estarem do outro lado da mesa. Depois do jantar, as crianças foram trazidas para a sala, e a sra. Coiler fez comentários elogiosos sobre seus olhos, narizes e pernas — uma maneira sagaz de lhes estimular a inteligência. Eram quatro meninas e dois meninos, além do bebê que poderia ser uma coisa ou outra, e do sucessor do bebê, que ainda não era nem uma coisa nem outra. Foram trazidas por Flopson e Millers, tal como se as duas fossem oficiais subalternos incumbidos de recrutar crianças em algum lugar que tivessem acabado de alistar aquelas: enquanto isso, a sra. Pocket contemplava os futuros nobres que elas deveriam ser, com um ar de quem tinha a impressão de que já tivera o prazer de inspecioná-las antes, mas não sabia muito bem o que pensava delas. “Vamos! A senhora me passe o garfo e fique com o bebê”, disse Flopson. “Não segura assim não, senão a cabeça dele vai ficar debaixo da mesa.” Devidamente alertada, a sra. Pocket pegou a criança do jeito errado, ficando a sua camisa debaixo da mesa; fato esse que foi anunciado a todos os presentes por uma concussão prodigiosa. “Meu Deus, meu Deus! Me devolve ele”, disse Flopson; “vem cá, Jane, vem dançar pro bebê!” Uma das meninas, uma coisinha pequena que parecia ter prematuramente assumido uma parcela de responsabilidade sobre as outras, e que estava a meu lado, começou a dançar para o bebê, aproximando-se e afastando-se dele até que o pequenino parou de chorar e riu. Então todas as crianças riram, e o sr. Pocket (que nesse ínterim havia tentado levantar a si próprio pelos cabelos duas vezes) riu, e todos nós rimos e ficamos alegres. Flopson, dobrando o bebê em todas as articulações como se ele fosse uma boneca alemã,3 colocou-o são e salvo no colo da sra. Pocket e deu-lhe para brincar o quebra-nozes, ao mesmo tempo recomendando à sra. Pocket que ficasse atenta para o fato de que as pontas desse instrumento não fariam bem se entrassem em choque com os olhos da criança, e advertindo severamente a pequena Jane para que ficasse atenta pelo mesmo motivo. Em seguida, as duas amas saíram da sala, e tiveram um entrevero animado com um pajem dissipado que havia servido o jantar e que havia claramente perdido metade dos seus botões na mesa de jogo. Fiquei muito preocupado quando a sra. Pocket entrou numa discussão com Drummle a respeito de dois títulos de baronete, enquanto comia uma laranja fatiada embebida em açúcar e vinho e esquecendo-se por completo do bebê que tinha no colo, o qual fazia as coisas mais apavorantes com o quebra-nozes. Por fim, a pequena Jane, percebendo que o cérebro do bebê corria risco, discretamente saiu de seu lugar e por meio de artifícios sutis afastou a arma perigosa. A sra. Pocket, terminando de comer a laranja mais ou menos nesse momento e não aprovando o que Jane fizera, disse a ela: “Menina levada, onde já se viu? Vai sentar-te agora mesmo!” “Mamãessinha”, ceceou a garota, “o bebê ia furar os olinhos dele.” “Onde já se viu, dizer-me uma coisa dessas?”, retorquiu a sra. Pocket. “Vai sentar-te na tua cadeira agora mesmo!” A dignidade da sra. Pocket era tão esmagadora que fiquei intimidado, como se eu próprio tivesse feito alguma coisa para feri-la. “Belinda”, protestou o sr. Pocket, da outra extremidade da mesa, “você não está sendo nada razoável. A Jane só interferiu para proteger o bebê.” “Não permito que ninguém interfira”, disse a sra. Pocket. “Fico admirada, Matthew, de você me expor à afronta da interferência.” “Meu Deus!”, exclamou o sr. Pocket, numa explosão de desespero desolado. “Então vamos deixar que um quebra-nozes leve uma criança para o túmulo sem que ninguém faça nada?” “Não permito que Jane interfira comigo”, disse a sra. Pocket, dirigindo um olhar majestoso à pequena transgressora inocente. “Então eu não tenho consciência da posição ocupada pelo meu pobre avô? Ora, a Jane, imagine!” O sr. Pocket enfiou as mãos nos cabelos novamente, e dessa vez conseguiu de fato levantar-se alguns centímetros da cadeira. “Ouçam só!”, bradou ele, impotente, para os elementos. “Então temos que deixar um bebê ser assassinado por um quebra-nozes, por conta da posição ocupada por um pobre avô!” Em seguida, voltou a sentar-se e calou-se. Todos nós ficamos a olhar para a toalha, constrangidos, enquanto essas coisas se passavam. Seguiu-se uma pausa, durante a qual o bebê honesto e irreprimível dirigiu uma série de saltos e gritos à pequena Jane, a qual parecia ser o único membro da família (sem contar a criadagem) com o qual ele parecia estar de fato familiarizado. “Senhor Drummle”, disse a sra. Pocket, “por favor, chame Flopson com a campainha. Jane, menina desobediente, já para a cama. Vem cá, meu bebê querido, vem com a mamãe!” O bebê, cuja honra era sem jaça, protestou com toda a sua força. Ele dobrou-se para o lado errado sobre o braço da sra. Pocket, exibindo aos presentes um par de sapatinhos de tricô e tornozelos com covinhas em vez do rosto suave, e foi levado da sala em estado de rebelião completa. E acabou conseguindo o que queria, pois alguns minutos depois vi pela janela que a pequena Jane estava cuidando dele. Por acaso as outras cinco crianças foram deixadas à mesa, porque Flopson foi ocupar-se com um assunto pessoal e não havia mais ninguém tomando conta delas. Foi assim que verifiquei de que modo elas se relacionavam com o sr. Pocket, o que pode ser exemplificado pelo que se segue. O sr. Pocket, com a perplexidade normal de seu rosto acentuada e os cabelos despenteados, contemplou-as por alguns minutos, como se não entendesse por que motivo elas estavam morando e comendo naquela casa, em vez de terem sido instaladas pela natureza na casa de outro alguém. Então, de um modo distante, como se fosse um missionário, dirigiu-lhes algumas perguntas — por exemplo, por que o pequeno Joe tinha um furo em seu babado; o menino respondeu que a Flopson, papai, ia remendá-lo assim que tivesse tempo — e por que a pequena Fanny estava com aquele panarício; a menina respondeu que a Millers, papai, ia colocar um cataplasma nela quando se lembrasse. Por fim, ele derreteu-se em ternuras paternas e deu um xelim a cada uma, dizendo-lhes que saíssem e fossem brincar; enquanto elas saíam, após uma única tentativa muito enfática de se levantar pelos cabelos ele deixou de lado aquela questão insolúvel. À tarde, fomos remar no rio. Como Drummle e Startop tinham, cada, um barco, resolvi pegar um para mim e passar os dois para trás. Eu era muito bom na maioria dos exercícios a que se dedicam os meninos do interior, mas, cônscio de que me faltava a elegância de estilo necessária no Tâmisa — para não falar de outras águas —, resolvi me colocar na condição de discípulo do vencedor de uma competição de barcas que fazia ponto na nossa casa. Essa autoridade prática me confundiu muito ao dizer que eu tinha braço de ferreiro. Se ele soubesse que seu elogio por um triz não o faria perder o aluno, creio que ele não teria dito tal coisa. Foi servida uma ceia quando voltamos para casa à noite, e imagino que todos nós teríamos nos divertido se não fosse por um episódio doméstico um tanto desagradável. O sr. Pocket estava alegre quando uma empregada entrou e disse: “Com licença, eu queria falar com o senhor”. “Falar com o seu patrão?”, exclamou a sra. Pocket, cuja dignidade mais uma vez foi ferida. “Onde já se viu uma coisa dessas? Vá falar com a Flopson. Ou então comigo — numa outra hora.” “Com licença, madame”, insistiu a empregada, “eu queria falar agora, e falar com o patrão.” Nesse ponto, o sr. Pocket saiu da sala, e ficamos sem saber o que fazer até ele voltar. “Essa é demais, Belinda!”, disse o sr. Pocket, voltando com um rosto que exprimia dor e desespero. “A cozinheira está estatelada no chão da cozinha, totalmente bêbada, com um embrulho grande de manteiga fresca na despensa, pronta para ser vendida como gordura!” A sra. Pocket imediatamente demonstrou muitas emoções amigáveis, dizendo: “Isso é coisa dessa peste da Sophia!”. “Como assim, Belinda?”, perguntou o sr. Pocket. “Foi a Sophia que lhe disse isso”, replicou a sra. Pocket. “Então eu não vi com meus próprios olhos, e não ouvi com meus próprios ouvidos, a Sophia entrar na sala agora mesmo e pedir para falar com você?” “Mas ela não me levou lá embaixo, Belinda”, devolveu o sr. Pocket, “e me mostrou a mulher, e o embrulho também?” “E você defende essa bisca, Matthew”, disse a sra. Pocket, “que está fazendo intrigas?” O sr. Pocket emitiu um gemido de desânimo. “Então eu, a neta de meu avô, não conto nada nesta casa?”, disse a sra. Pocket. “Além disso, a cozinheira sempre foi uma mulher muito boa e respeitosa, e me disse da maneira mais natural, quando veio procurar emprego, que sentia que eu nascera para ser duquesa.” Havia um sofá ao lado do sr. Pocket, e ele caiu sobre esse móvel na posição do Gladiador Moribundo.4 Ainda nessa atitude, ele disse, com uma voz cavernosa: “Boa noite, senhor Pip”, quando então julguei aconselhável despedirme dele e ir me deitar. * Harrow: uma das mais exclusivas escolas para meninos da elite britânica. (n. t.) 5 Depois de dois ou três dias, quando eu já estava instalado em meu quarto, tinha ido e voltado de Londres algumas vezes e havia encomendado tudo que eu queria de meus abastecedores, tive uma longa conversa com o sr. Pocket. Ele sabia mais a respeito da carreira que eu pretendia seguir do que eu mesmo sabia, pois observou que o sr. Jaggers lhe dissera que eu não estava preparado para nenhuma profissão liberal, e minha formação deveria ser suficiente para meu destino desde que eu conseguisse me manter “em pé de igualdade” com a média dos jovens mais prósperos. Concordei, é claro, pois não sabia de nada em sentido contrário. Ele aconselhou-me a frequentar certos lugares em Londres, para adquirir alguns rudimentos que me eram necessários, e a atribuir-lhe as funções de explicador e diretor de todos os meus estudos. Imaginava que eu, se recebesse uma orientação inteligente, não teria motivos para desanimar, e em pouco tempo não precisaria da ajuda de nenhuma outra pessoa que não ele. Dizendo essas coisas e muitas outras semelhantes, colocava-se numa relação confidencial comigo de um modo admirável; e devo dizer de saída que ele foi de tal modo zeloso e honrado quanto a cumprir seus compromissos comigo, que me tornou zeloso e honrado em retribuição. Se ele se mostrasse indiferente como professor, eu teria agido de igual modo como aluno; ele não me deu tal desculpa, e um fez justiça ao outro. Tampouco jamais percebi nada de ridículo nele — nada que não fosse sério, honesto e bom — em sua relação de professor comigo. Tendo estabelecido esses pontos, e tendo eu começado a trabalhar a sério, ocorreu-me que, se pudesse manter meu quarto no Barnard’s Inn, minha vida seria agradavelmente variável, e minhas boas maneiras só teriam a ganhar por efeito da convivência com Herbert. O sr. Pocket não fez nenhuma objeção a isso, porém insistiu que antes de tomar qualquer decisão eu deveria consultar meu tutor. Imaginei que essa delicadeza fosse motivada pela ideia de que o plano proporcionaria alguma economia a Herbert, e assim fui a Little England comunicar meu desejo ao sr. Jaggers. “Se me fosse possível comprar a mobília que está alugada para mim”, disse eu, “e mais uma ou duas coisas pequenas, eu me sentiria perfeitamente em casa aqui.” “Pois compre!”, disse o sr. Jaggers, com um riso seco. “Eu lhe disse que o senhor ia se dar bem. Quanto o senhor quer?” Respondi que não sabia quanto. “Ora!”, redarguiu o sr. Jaggers. “Quanto? Cinquenta libras?” “Ah, não, bem menos que isso.” “Cinco libras?”, perguntou ele. Foi uma queda tão grande que respondi, constrangido: “Ah! Mais do que isso”. “Mais do que isso, não é?”, repetiu o sr. Jaggers, à minha espreita, com as mãos nos bolsos, a cabeça inclinada para um lado e os olhos fixos na parede atrás de mim. “Mais quanto?” “É tão difícil especificar uma quantia”, disse eu, hesitando. “Ora!”, disse o sr. Jaggers. “Vamos chegar a ela. Cinco vezes dois; isso é bastante? Cinco vezes três; isso é bastante? Quatro vezes cinco; isso é bastante?” Respondi que daria folgadamente. “Quatro vezes cinco dá folgadamente, não é?”, repetiu o sr. Jaggers, franzindo o sobrolho. “Então, quanto o senhor calcula que seja quatro vezes cinco?” “Quanto eu calculo?” “Ah!”, exclamou o sr. Jaggers. “Quanto?” “O senhor diria que são vinte libras”, respondi, sorrindo. “Não importa o que eu diria, meu amigo”, observou o sr. Jaggers, com um meneio de cabeça astuto. “Quero saber o que você diria.” “Vinte libras, é claro.” “Wemmick!”, chamou o sr. Jaggers, abrindo a porta de seu gabinete. “Anote o pedido do senhor Pip, e pague-lhe vinte libras.” Essa maneira tão enfática de fazer negócios causou-me uma impressão enfática, e não muito agradável. O sr. Jaggers jamais ria; porém, usava botas compridas, lustradas, que rangiam, e ao mudar de posição, com a cabeçorra virada para baixo e as sobrancelhas franzidas, aguardando uma resposta, por vezes fazia as botas rangerem, como se elas estivessem rindo de um modo seco e desconfiado. Como Wemmick também estava saindo no momento, e era uma pessoa direta e conversadora, comentei com ele que não conseguia entender o jeito do sr. Jaggers. “Diga-lhe isso, que ele vai tomá-lo como um elogio”, disse-me Wemmick; “ele não quer que o senhor o entenda. Ah!”, exclamou, pois fiz uma expressão de surpresa. “Não é nada pessoal; é profissional: só isso.” Wemmick estava à sua mesa, almoçando — e mastigando ruidosamente — um biscoito seco e duro, pedaços do qual ele de vez em quando punha na nesga da boca, como se os pusesse numa caixa de correio. “Ele sempre me dá a impressão”, disse Wemmick, “de estar montando uma armadilha e ficar olhando para ela. De repente — pleque! — você está preso!” Sem comentar que as armadilhas não faziam parte das amenidades da vida, observei que imaginava que ele fosse muito astuto. “Quando a gente ainda está aqui”, disse Wemmick, “ele já está lá na Austrália.” Com a pena apontava para o chão do escritório, exprimindo que a Austrália, para os fins daquela sua imagem, era o ponto simetricamente oposto do globo. “Se houvesse algum lugar mais longe”, acrescentou Wemmick, levando a pena ao papel, “ele estaria lá.” “Nesse caso”, disse eu, “imaginava que ele teria uma firma muito próspera”, e Wemmick concordou: “Mui-tí-ssi-mo!”. Em seguida, perguntei quantos funcionários ele tinha. “Não temos muitos, porque só existe um Jaggers, e as pessoas não o querem de segunda mão. O senhor gostaria de vê-los? O senhor é um de nós, por assim dizer.” Aceitei a oferta. Depois que o sr. Wemmick terminou de pôr o biscoito no correio, e me deu o dinheiro que estava guardado numa caixa dentro do cofre, cuja chave ele escondia em algum lugar nas suas costas, retirando-a do colarinho do casaco como se fosse um rabicho de ferro, subimos para o segundo andar. O prédio era escuro e maltratado, e os ombros sebosos que haviam deixado suas marcas no gabinete do sr. Jaggers pareciam subir e descer a escada há muitos anos. Na sala da frente, um funcionário cuja aparência sugeria algo intermediário entre um taberneiro e um apanhador de ratos — um homem grande, pálido e inchado — estava muito envolvido com pessoas maltrapilhas as quais tratava sem nenhuma cerimônia, tal como todos tratavam as pessoas que contribuíam para os cofres do sr. Jaggers. “Recolhendo provas”, disse o sr. Wemmick, depois que saímos, “para o Bailey.” 1 Na sala em cima dela, um funcionariozinho que parecia um terrier flácido de cabelos longos (pelo visto, não fora tosado quando filhote) estava igualmente envolvido com um homem de vista fraca, que me foi apresentado pelo sr. Wemmick como o dono de uma fundição que sempre mantinha a caldeira acesa, e que fundiria qualquer coisa que eu quisesse — e que suava muito, como se estivesse praticando seu ofício em si próprio. Numa sala de fundos, um homem de ombros altos com uma flanela suja amarrada em torno do rosto nevrálgico, trajando roupas negras velhas que pareciam ter sido enceradas, debruçava-se sobre sua mesa, passando a limpo as anotações dos dois outros cavalheiros, para serem usadas pelo sr. Jaggers. A isso se resumia o escritório. Quando descemos a escada, Wemmick levoume até o gabinete de meu tutor, dizendo: “Este o senhor já conhece”. “Por favor”, perguntei, quando minha vista novamente se fixou nas duas detestáveis máscaras de rostos careteiros, “quem são aqueles dois?” “Esses aí?”, respondeu Wemmick, subindo numa cadeira e soprando a poeira daquelas cabeças horrorosas antes de pegá-las. “Esses dois são célebres. São dois famosos clientes nossos, que nos deram muito crédito. Este cidadão (ora, deves ter descido lá de cima no meio da noite para ficares bisbilhotando o tinteiro, senão não estarias com essa mancha na sobrancelha, seu malandro!) matou o patrão, e levando-se em conta que ele não entendia nada de provas, até que não planejou a coisa mal.” “É uma cópia fiel?”, perguntei, recuando da carantonha enquanto Wemmick cuspia na sobrancelha e a esfregava com a manga. “Cópia fiel? Não é cópia, é o próprio. A máscara foi feita em Newgate, logo depois que o desceram da forca.2 Tu gostavas muito de mim, não era, Tinhoso?”, disse Wemmick. Em seguida, explicou esse apelido afetuoso, levando a mão ao broche que representava a dama e o salgueiro-chorão diante do túmulo com uma urna, e dizendo: “Mandou fazer pra mim!”. “A dama é alguma pessoa em particular?”, indaguei. “Não”, respondeu Wemmick. “Só uma presa dele. (Bem que tu gostavas desse tipo de presa, não é?) Não; não havia nenhuma dama na história, senhor Pip; ou por outra, havia uma só — e não era desse tipo de dama esguia e refinada, e essa eu garanto que nunca havia de ir visitar a urna dele — a menos que na urna houvesse alguma coisa de beber.” Como sua atenção fora atraída para o broche, Wemmick largou a máscara e lustrou o broche com o lenço. “Aquela outra criatura teve o mesmo fim?”, perguntei. “Porque tem o mesmo ar.” “O senhor tem razão”, disse Wemmick, “é o ar autêntico. Parece que uma das narinas enganchou num anzol. É verdade, esse teve o mesmo fim; o que cá por estas bandas é o fim natural, eu lhe digo. Este janota forjava testamentos, e quem sabe aproveitava e matava o testador também. Mas tu eras um cavalheiro de verdade” (o sr. Wemmick estava mais uma vez apostrofando), “e dizias que sabias escrever grego. Grandessíssimo parlapatão! Mas que mentiroso tu eras. Nunca conheci alguém tão mentiroso assim!” Antes de recolocar seu falecido amigo na prateleira, Wemmick tocou o maior de seus anéis de luto, dizendo: “Mandou comprar pra mim, na véspera”. Enquanto punha a segunda máscara na prateleira e descia da cadeira, ocorreu-me que todas as suas joias teriam origem semelhante. Como não demonstrava reticência em relação a esse tema, tomei a liberdade de lhe fazer essa pergunta enquanto ele batia a poeira das mãos. “Ah, sim”, respondeu ele, “são todos presentes desse mesmo tipo. Um leva ao outro, o senhor entende; é assim que são as coisas. Eu sempre aceito. São curiosidades. E são valores. Podem não valer muito, mas sempre valem alguma coisa, e são portáteis. Não são grande coisa pra uma pessoa como o senhor, com um futuro brilhante, mas pra mim, minha estrela-guia sempre foi esta: ‘Acumule valores portáteis’.” Quando elogiei esse pensamento, ele prosseguiu, dizendo, num tom simpático: “O dia em que o senhor não tiver nada melhor pra fazer, podia me visitar lá em Walworth, que posso oferecer-lhe uma cama, e pra mim seria uma honra. Não tenho muita coisa pra lhe mostrar, mas uma ou duas curiosidades que tenho talvez o interessem; e gosto do meu jardinzinho, com um pavilhão.” Respondi que seria para mim um prazer aceitar sua hospitalidade. “Obrigado”, disse ele; “então vamos considerar que a coisa é certa, quando for conveniente para o senhor. Já jantou com o senhor Jaggers?” “Ainda não.” “Bem”, disse Wemmick, “ele há de lhe servir vinho, e vinho do bom. Eu vou lhe servir ponche, um ponche nada mau. E agora vou lhe dizer uma coisa. Quando for jantar com o senhor Jaggers, observe a empregada dele.” “Vou ver alguma coisa de muito incomum?” “Bem”, disse Wemmick, “o senhor vai ver uma fera selvagem domada. Nada de muito incomum, o senhor dirá. E eu lhe respondo: depende do grau de ferocidade original da fera, e do grau de domesticação. Sua opinião dos poderes do senhor Jaggers será reforçada. Preste bem atenção.” Afirmei que o faria, com todo o interesse e toda a curiosidade que essa preparação despertara em mim. Enquanto eu me despedia, ele me perguntou se eu gostaria de dedicar cinco minutos à observação do sr. Jaggers “em ação”. Por mais de um motivo, sendo um dos mais importantes o fato de eu não entender muito bem que espécie de “ação” o sr. Jaggers estaria praticando, respondi na afirmativa. Mergulhamos na City, e subimos à tona num juizado de causas criminais apinhado de gente, onde um parente de sangue (no sentido criminoso da palavra) do falecido que gostava de broches sofisticados estava diante do tribunal, mastigando alguma coisa, visivelmente contrafeito; enquanto meu tutor interrogava uma mulher — não sei se testemunha sua ou se da outra parte — infundindo nela, e nos magistrados, e em todos os outros presentes, um medo terrível. Se alguém, fosse quem fosse, pronunciasse uma palavra que lhe causasse desagrado, na mesma hora ele solicitava que ela fosse “registrada”. Se alguém não admitia algo, ele dizia: “Ainda vou arrancá-lo do senhor!”. E se alguém admitia algo, ele dizia: “Agora o peguei!”. Os magistrados tremiam cada vez que ele mordia o dedo. Os ladrões e os perseguidores de ladrões, fascinados e temerosos, atentavam para cada palavra sua, e encolhiam-se quando um fio de suas sobrancelhas apontava na direção deles. De que lado ele estava, não consegui descobrir, pois parecia impor a mesma opressão a todo o tribunal; só sei que, quando saí de cena na ponta dos pés, ele não estava do lado da magistratura, pois as pernas do velho cavalheiro que presidia a sessão estavam tremendo convulsivamente debaixo da mesa, por estar o sr. Jaggers denunciando sua conduta na condição de representante da lei e da justiça britânicas naquele tribunal naquele dia. 6 Bentley Drummle, sujeito tão rabugento que encarava um livro como se o autor o houvesse ofendido, encarava os conhecidos de modo igualmente desagradável. Pesado em matéria de corpo, movimentos e entendimento — na tez preguiçosa do rosto, e na língua grande e desajeitada que parecia vagar em sua boca tal como ele próprio vagava pela sala — era ocioso, orgulhoso, avarento, reservado e desconfiado. Vinha de uma família rica de Somersetshire, a qual acalentara aquele composto de qualidades até fazer a descoberta de que ele se transformara num adulto e num idiota. Assim, Bentley Drummle veio ficar com o sr. Pocket quando já tinha uma cabeça mais de altura que aquele cavalheiro, e uma cabeça doze vezes mais dura do que as cabeças da maioria dos cavalheiros. Startop fora estragado por uma mãe fraca e mantido em casa quando deveria estar na escola, porém tinha por ela uma devoção desmedida. Suas feições eram de uma delicadeza feminina, e eram — “como você pode ver, embora nunca a tenha visto”, disse-me Herbert — exatamente iguais às da mãe. Era natural que eu simpatizasse com ele mais do que com Drummle, e que, mesmo nas primeiras tardes em que saímos de barco, eu e ele voltássemos para casa com nossos barcos lado a lado, conversando, enquanto Bentley Drummle vinha em nossa cola, sozinho, à sombra dos barrancos elevados e em meio aos juncos. Ele sempre se aproximava da costa vagarosamente, como uma criatura anfíbia sem jeito; e sempre me lembro dele vindo atrás de nós na escuridão ou pelo remanso, enquanto nossos dois barcos rasgavam o poente ou o luar no meio do rio. Herbert era meu companheiro íntimo e amigo. Dei-lhe de presente metade de meu barco em sociedade, e assim com frequência ele vinha a Hammersmith; sendo inquilino de metade de seus aposentos, eu ia muito a Londres. Costumávamos caminhar de um dos lugares ao outro a qualquer hora do dia ou da noite. Tenho um certo afeto pela estrada ainda hoje (embora a estrada não seja mais tão agradável quanto era naquele tempo), um afeto que se formou na juventude, época impressionável, de pouca experiência e muita esperança. Quando eu já estava vivendo um ou dois meses com a família do sr. Pocket, o sr. Camillo e a sra. Camilla apareceram. Georgiana, a qual eu vira na casa da sra. Havisham na mesma ocasião, também veio. Era uma prima — uma solteirona dispéptica, que chamava sua rigidez de religião, e seu fígado de amor. Essas pessoas me odiavam com o ódio da cupidez e da decepção. Como era de se esperar, bajulavam-me agora que eu estava próspero da maneira mais vil. Em relação ao sr. Pocket, uma criança grande incapaz de reconhecer seus próprios interesses, eles demonstravam a tolerância complacente que eu já os ouvira manifestar. Quanto à sra. Pocket, desprezavam-na; porém admitiam que a pobre criatura sofrera uma terrível decepção em sua vida, pois tal admissão refletia uma luz pálida sobre eles. Tal foi o meio em que me instalei, e onde passei a cuidar da minha própria educação. Não demorei para adquirir hábitos caros, e comecei a gastar quantias que, em poucos meses, me pareceriam fabulosas; mal ou bem, no entanto, apeguei-me a meus livros. Nisso não havia nenhum mérito, apenas bom senso suficiente para perceber minhas deficiências. Com a ajuda do sr. Pocket e de Herbert, fiz progressos rápidos; e, sempre com um ou o outro a meu lado para me dar a mãozinha de que eu necessitava e tirar os obstáculos da minha frente, eu teria que ser um idiota tão completo quanto Drummle para fazer menos do que fiz. Eu não via o sr. Wemmick há algumas semanas quando me ocorreu a ideia de escrever-lhe um bilhete propondo acompanhá-lo até sua casa numa determinada tarde. Respondeu-me ele que seria um grande prazer, e que me esperaria no escritório às seis horas. Para lá fui, e lá o encontrei, jogando para trás das costas a chave do cofre enquanto o relógio dava as horas. “O senhor estava pensando em ir a pé até Walworth?”, perguntou-me. “Certamente”, respondi, “se o senhor aprovar a ideia.” “Com entusiasmo”, foi o que ele me disse, “pois passei o dia inteiro com as pernas debaixo da escrivaninha, e esticá-las me fará bem. Vou lhe dizer o que tenho para a ceia, senhor Pip. Tenho carne cozida — preparada em casa — e um frango assado frio — esse foi comprado. Creio que está macio, pois o dono da loja foi jurado num dos nossos casos recentes, e não lhe demos muito trabalho. Lembrei o ocorrido a ele quando comprei um frango, dizendo: ‘Melhor escolher um que seja bom, meu velho, porque, se quiséssemos obrigá-lo a ficar no tribunal mais um ou dois dias, poderíamos fazê-lo com facilidade’. Ele respondeu: ‘Vou lhe dar de presente o melhor frango da loja’. Aceitei, é claro. Pois é um valor e é portátil. O senhor não tem nada contra um pai idoso, eu espero?” Realmente, pensei que continuasse falando sobre o frango, até que ele acrescentou: “Pois tenho um pai idoso morando comigo”. Dei a resposta que a polidez requeria. “Então o senhor ainda não jantou com o senhor Jaggers?”, ele insistiu, enquanto caminhávamos. “Ainda não.” “Ele me disse isso hoje à tarde, quando soube que o senhor viria encontrar-se comigo. Imagino que ele lhe fará um convite amanhã. Vai convidar os seus amigos, também. São três, não é?” Embora não fosse meu costume incluir Drummle entre meus amigos mais próximos, respondi que sim. “Pois bem, ele vai convidar todo o bando”, uma palavra que não me pareceu um elogio, “e o que ele der a vocês será de qualidade. Não espere variedade, e sim excelência. E há mais uma coisa engraçada a respeito da casa dele”, continuou Wemmick, após uma pausa breve, como se desse prosseguimento ao comentário a respeito da empregada; “ele nunca deixa que tranquem nenhuma porta ou janela à noite.” “E nunca é roubado?” “Justamente!”, retrucou Wemmick. “Ele diz, e o diz em público: ‘Quero ver quem é homem capaz de roubar a minha casa’. Por tudo que é mais sagrado, já o ouvi dizer isso umas cem vezes, e dizer isso a mais de um gatuno aqui no escritório. ‘Você sabe onde eu moro; lá não há tranca em lugar algum; por que não arrisca alguma coisa comigo? Venha; então não posso tentá-lo?’ Nenhum deles, meu senhor, tem coragem de arriscar, de jeito nenhum.” “Eles têm tanto medo dele assim?”, perguntei. “Medo dele”, disse Wemmick. “Ora se eles têm medo dele! E além de desafiá-los, ele também é muito esperto. Nada de prata, meu senhor. Não há talher lá que não seja de metal Britânia.”1 “Assim, eles não ganhariam muito”, observei, “mesmo se…” “Ah! Mas ele ganharia muito”, interrompeu Wemmick, “e eles sabem disso. Ele ganharia a vida deles, de dezenas deles. Quantos quisesse ganhar. E é impossível saber o que ele não seria capaz de obter, se realmente resolvesse obtê-lo.” Eu estava começando a meditar sobre a grandeza de meu tutor quando Wemmick comentou: “Quanto à ausência de prata, e isso é apenas a esperteza natural dele, você sabe. É tão profunda quanto deve ser. Olhe para a corrente do relógio dele. A corrente é de verdade.” “É bem pesada”, comentei. “Pesada?”, repetiu Wemmick. “E como! E o relógio dele é de ouro, um relógio de repetição,2 e vale cem libras, cem libras por baixo. Senhor Pip, deve haver uns setecentos ladrões nesta cidade que sabem muito bem desse relógio; não há entre eles um homem, mulher ou criança que não seja capaz de identificar o menor elo daquela corrente, e que não a deixaria cair no chão como se estivesse em brasa, se alguém o levar a pegá-la, por meio de algum embuste.” De início com essa conversa, e depois com assuntos mais gerais, o sr. Wemmick e eu matávamos o tempo enquanto caminhávamos, até que ele me deu a entender que havíamos chegado ao bairro de Walworth. Parecia ser um emaranhado de becos, valas e jardins pequenos, dando-lhe um aspecto de recolhimento um tanto monótono. A casa de Wemmick era uma casinha de madeira cercada de canteiros de jardim, e seu telhado era recortado e pintado como se fosse uma bateria de artilharia. “Eu mesmo que fiz”, disse Wemmick. “Ficou bonito, não é?” Desmanchei-me em elogios. Creio que era a menor casa que eu jamais vira; com as mais estranhas janelas góticas (em sua maioria esmagadora, imitação de gótico) e uma porta também gótica, tão pequena que era quase impossível passar por ela. “Esse mastro de bandeira é de verdade, está vendo?”, disse Wemmick. “E aos domingos eu hasteio uma bandeira de verdade. Olha aqui. Depois que atravesso essa ponte, eu a recolho — veja — e assim fico isolado.” A ponte era uma tábua, e ela cruzava uma vala de pouco mais de um metro de largura e pouco mais de meio metro de profundidade. Mas era muito agradável ver com que orgulho ele levantava a prancha e a prendia; sorrindo enquanto o fazia, com um prazer real, e não apenas de modo mecânico. “Às nove horas da noite, todas as noites, hora de Greenwich”,3 disse Wemmick, “a arma dispara. Lá está ela, está vendo? E quando o senhor ouvi-la disparando, creio que vai dizer que é mesmo Poderosa.” A peça de artilharia a que ele se referia estava montada num outro forte, construído com treliças. Protegia-a das intempéries uma engenhosa geringonça de lona que lembrava um guarda-chuva. “Então, nos fundos”, disse Wemmick, “onde ninguém vê, pra que a ideia de uma fortificação não seja comprometida — pois pra mim é uma questão de princípios, se a pessoa tem uma ideia, há que pô-la em prática e levá-la adiante —, não sei se o senhor é da mesma opinião…” Respondi que era, sem dúvida. “Nos fundos, tem um porco, e galinhas e coelhos; então, eu mesmo faço uma estufa fria,4 o senhor sabe, e planto pepinos; e no jantar o senhor vai me dizer o que acha da minha salada. Assim”, disse Wemmick, sorrindo de novo, porém sério ao mesmo tempo, sacudindo a cabeça, “se o senhor imaginar essa casinha sitiada, em matéria de provisões ela conseguiria se sustentar por um bom tempo.” Em seguida, conduziu-me a um pavilhão a pouco mais de dez metros dali, mas ao qual se chegava por um caminho tão engenhosamente tortuoso que se levava um tempo considerável para atingir o destino; e nesse refúgio nossos copos já estavam preparados. O ponche esfriava num laguinho ornamental, à margem do qual se elevava o pavilhão. Esse espelho d’água (com uma ilha no meio que poderia servir de salada para nosso jantar) era de forma circular, e Wemmick construíra uma fonte nele, a qual, quando se fazia funcionar um pequeno moinho e se desarrolhava um cano, esguichava água suficiente para molhar as costas da mão. “Sou meu próprio engenheiro, carpinteiro, encanador e jardineiro, meu próprio pau pra toda a obra”, disse Wemmick, quando o elogiei. “Bom, isso é uma coisa boa, o senhor sabe. Serve para afastar as teias de aranha de Newgate, e agrada o idoso. O senhor não se incomodaria se eu o apresentasse de imediato ao idoso, não é? Não seria um constrangimento para o senhor?” Manifestei a disposição que de fato sentia, e entramos no castelo. Lá dentro encontramos, sentado ao lado da lareira, um homem muito velho com um casaco de flanela: limpo, alegre, bem instalado e bem cuidado, porém completamente surdo. “Bem, pai idoso”, disse Wemmick, apertando-lhe a mão de modo cordial e jocoso. “Como vai o senhor?” “Bem, John; bem!”, respondeu o velho. “Este aqui é o senhor Pip, pai idoso”, disse Wemmick, “e é uma pena o senhor não poder ouvir o nome dele. Acene bastante com a cabeça para ele, senhor Pip; é disso que ele gosta. Pode acenar bastante, se o senhor não se incomoda, como quem pisca o olho!” “Uma beleza, esta casa do meu filho, meu senhor”, disse o velho, enquanto eu balançava a cabeça com toda força. “É um lugar muito agradável, meu senhor. Este lugar e as coisas tão bonitas construídas nele deviam ser mantidas pela nação, depois que meu filho se for, para o desfrute da população.” “O senhor está feliz como o filho do padre, não é, idoso?”, disse Wemmick, contemplando o velho, com um toque real de suavidade em seu rosto duro; “vou acenar para o senhor”, acenando com a cabeça de modo tremendamente enfático, “e mais uma vez”, repetindo o gesto com uma ênfase maior ainda; “o senhor gosta, não gosta? Se não estiver cansado, senhor Pip — embora eu saiba que é cansativo para os desconhecidos — podia acenar mais uma vez? O senhor não imagina o quanto ele gosta.” Acenei para ele mais algumas vezes, e o velho ficou felicíssimo. Deixamo-lo levantando-se para dar comida às galinhas, e fomos tomar nosso ponche no pavilhão; lá Wemmick me disse, enquanto fumava seu cachimbo, que levara muitos anos para conseguir fazer com que sua propriedade atingisse seu atual estado de perfeição. “A propriedade é sua, senhor Wemmick?” “É, sim”, respondeu Wemmick. “Consegui adquiri-la, pouco a pouco. É propriedade alodial, ora se não é!” “Não diga! Espero que o senhor Jaggers a admire!” “Nunca a viu”, respondeu Wemmick. “Nunca ouviu falar nela. Nunca viu o idoso. Nunca ouviu falar nele. Não; o escritório é uma coisa, e a vida privada é outra. Quando vou pro escritório, deixo o castelo pra trás, e quando venho pro castelo, deixo o escritório pra trás. Se não for desagradável pro senhor, peço-lhe que faça o mesmo. Não gostaria que isso aqui fosse mencionado em caráter profissional.” Naturalmente, percebi que minha boa-fé estava envolvida na observância desse pedido. Como o ponche era muito gostoso, ficamos a beber e conversar até quase as nove horas. “Quase na hora da salva”, disse então Wemmick, largando o cachimbo. “É a delícia do idoso.” Voltando para dentro do castelo, encontramos o idoso aquecendo o atiçador da lareira, os olhos cheios de expectativa, como preparativo para o desempenho dessa grande cerimônia diária. Wemmick ficou com o relógio na mão, até chegar o momento em que ele retirava o atiçador em brasa da mão do idoso e ia para a bateria. Ele o pegou e saiu, e pouco depois a Poderosa disparou, com uma explosão que fez a caixinha frágil daquela casinha estremecer como se ela fosse cair aos pedaços, e fez tinirem todos os copos e xícaras que havia dentro dela. Ao ouvir o som, o idoso — o qual, creio-o eu, teria sido lançado de sua poltrona se não estivesse agarrado a ela — gritou, exultante: “Ela disparou! Eu ouvi!”, enquanto eu acenava para ele até, sem exagero, não conseguir enxergá-lo mais. No intervalo entre essa hora e o jantar, Wemmick exibiu-me sua coleção de curiosidades. Em sua maioria, as peças eram de natureza criminosa; lá estavam a caneta com que fora perpetrada uma célebre falsificação, uma ou duas navalhas de distinção, vários cachos de cabelo e várias confissões manuscritas compostas após a condenação — às quais o sr. Wemmick atribuía valor em particular por serem, para citar suas exatas palavras, “todas elas mentirosas, meu senhor”. Estavam dispostas, de modo atraente, em meio a diversos pequenos espécimes de porcelana e vidro, vários objetos engenhosos feitos pelo proprietário do museu e alguns calcadores de fumo5 entalhados pelo idoso. Todas essas peças ficavam em exposição naquele cômodo do castelo a que eu fora conduzido ao entrar nele, e que funcionava não apenas como sala de estar geral mas também como cozinha, a julgar pela presença de uma caçarola junto à lareira, e um anel de latão acima do fogo feito para nele pendurar-se um espeto giratório.6 Uma menina bem asseada punha a mesa; era ela quem cuidava do idoso durante o dia. Depois que ela estendeu a toalha de mesa, a ponte foi baixada para a menina ir embora, e ela se foi. O jantar foi excelente; e embora o castelo fosse muito sujeito ao caruncho, o que lhe dava um gosto de noz estragada, e embora o porco pudesse estar mais distante da sala, fiquei muito satisfeito com a refeição. Também não me desagradou meu quartinho no torreão, se bem que era tão fino o teto que me separava do mastro da bandeira que me dava a impressão de ser eu obrigado a equilibrá-lo na minha testa a noite toda. Wemmick levantou-se muito cedo, e creio tê-lo ouvido limpando minhas botas. Depois disso, foi cuidar do jardim, e de minha janela gótica vi que ele fingia atribuir tarefas ao idoso, acenando para ele com extrema dedicação. Nosso desjejum foi tão bom quanto a ceia, e às oito e meia em ponto partimos para Little Britain. Enquanto caminhávamos, pouco a pouco Wemmick foi ficando mais seco e mais duro, e sua boca voltou a ficar tensa, reduzindo-se à condição de fenda de caixa de correio. Por fim, quando chegamos a seu escritório e ele tirou a chave do colarinho do casaco, Wemmick parecia não ter qualquer consciência de sua propriedade em Walworth, como se o castelo, e a ponte levadiça, e o pavilhão, e o lago, e a fonte, e o idoso, tivessem todos sido lançados ao espaço pelo último tiro da Poderosa. 7 Tal como fora previsto por Wemmick, logo tive oportunidade de comparar a moradia de meu tutor com a de seu guarda-livros e empregado. Meu tutor estava em seu gabinete, lavando as mãos com seu sabonete perfumado, quando entrei no escritório vindo de Walworth; ele chamou-me e dirigiu a mim e a meus amigos o convite que Wemmick já me havia preparado para receber. “Nada de cerimônias”, estipulou ele, “e nada de traje a rigor, e pode ser amanhã.” Perguntei-lhe aonde deveríamos ir (pois eu não fazia ideia de onde ele morava), e creio que foi sua relutância em geral a atender qualquer pedido que o levou a responder: “Venham aqui, que eu os levo para casa comigo”. Aproveito esta oportunidade para comentar que ele se lavava de seus clientes como se fosse um cirurgião ou um dentista. Tinha em seu gabinete um armário adaptado para esse fim, que cheirava a sabonete perfumado como se fosse uma perfumaria. Nele havia uma toalha rolante de tamanho extraordinário adaptada do lado de dentro da porta, e ele lavava as mãos e as enxugava e secava nessa toalha, sempre que vinha do tribunal de causas criminais ou despachava um cliente em seu gabinete. Quando eu e meus amigos chegamos a seu gabinete às seis da tarde do dia seguinte, ele parecia estar envolvido num caso mais tenebroso do que de costume, pois o encontramos com a cabeça enfiada nesse armário, lavando não apenas as mãos mas também o rosto, e gargarejando. Mesmo depois de fazer tudo isso, e dar uma volta completa na toalha rolante, tirou do bolso um canivete e raspou debaixo das unhas os últimos vestígios do caso antes de vestir o paletó. Lá fora havia pessoas à espreita como sempre, quando saímos para a rua, pessoas que estavam claramente ansiosas para falar com ele; mas havia algo de tão conclusivo no halo de sabonete perfumado em torno de sua presença que elas desistiram de abordá-lo naquele dia. Enquanto caminhávamos em direção ao oeste, ele foi reconhecido várias vezes por rostos na multidão, e sempre que isso acontecia ele falava mais alto comigo; mas jamais reconhecia ninguém, nem dava atenção a ninguém que o reconhecesse. Levou-nos à Gerrard-street, no Soho, até uma casa no lado sul da rua. Uma casa um tanto imponente, porém muito precisada de uma demão de tinta, e com janelas sujas. Ele tirou do bolso a chave e abriu a porta, e todos nós entramos num saguão de pedra, nu, escuro e pouco utilizado. Daí subimos uma escada parda escura e chegamos a uma série de três aposentos pardos e escuros no andar de cima. Nas almofadas das portas havia grinaldas entalhadas na madeira, e quando ele se colocou entre elas dando-nos as boas-vindas, pensei na espécie de laços em que aquelas formas me faziam pensar. O jantar foi servido no melhor desses aposentos; o segundo era o quarto de vestir; o terceiro, o quarto de dormir. Ele nos disse que alugava a casa toda, mas quase nunca usava os outros cômodos que não estávamos vendo. A mesa era farta — não havia prata, é claro — e ao lado de sua cadeira ficava um aparador móvel avantajado, com uma variedade de garrafas e quatro pratos de frutas para a sobremesa. Percebi que, durante toda a refeição, ele mantinha tudo à mão, e distribuía tudo ele próprio. Havia uma estante no recinto; vi, pelas lombadas, que eram obras sobre direito probatório, direito penal, biografias de criminosos, processos, leis e coisas semelhantes. Os móveis eram todos muito sólidos e bons, tal como a corrente de seu relógio. Tinham, porém, um aspecto oficial, e não havia nada à vista que fosse puramente ornamental. Num canto havia uma mesinha cheia de papéis com um abajur: pelo visto, ele parecia trazer o escritório para casa também sob esse aspecto, e dedicar-se ao trabalho à noite. Como até então mal vira meus três companheiros — pois eu e ele viéramos caminhando lado a lado — o sr. Jaggers plantou-se no tapete diante da lareira, depois de tocar o sino, e ficou a perscrutá-los atentamente. Para minha surpresa, demonstrou de imediato estar interessado principalmente, se não exclusivamente, em Drummle. “Pip”, disse ele, pondo a manzorra no meu ombro e levando-me até a janela. “Não sei distinguir um do outro. Quem é o Aranha?” “Aranha?”, indaguei. “O sujeito de pele manchada, grandalhão, fechado.” “É Bentley Drummle”, respondi; “o de rosto delicado é Startop.” Sem dar a menor importância ao de “rosto delicado”, ele me disse: “Então o nome dele é Bentley Drummle? Gostei da cara do sujeito”. E pôs-se na mesma hora a conversar com Drummle; não se incomodou nem um pouco com o jeito do outro de responder de modo pesado e lacônico, porém esse fato parecia estimulá-lo a arrancar palavras dele. Eu estava a olhar para os dois quando se colocou entre mim e eles a empregada, pondo sobre a mesa a primeira travessa. Era uma mulher de cerca de quarenta anos, pareceu-me — mas é possível que eu a tenha tomado por mais jovem do que era. Um tanto alta, um corpo esguio e ágil, extremamente pálida, com olhos grandes de cor desmaiada, e uma abundância de cabelos lisos. Não sei dizer se alguma doença do coração fazia com que seus lábios ficassem entreabertos como se ela estivesse ofegante, e emprestava a seu rosto uma curiosa expressão de alarme e agitação; mas sei que eu já assistira a Macbeth no teatro, uma ou duas noites antes, e que seu rosto me parecia distorcido pelo fogo no ar, tal como os rostos que eu vira elevando-se do caldeirão das bruxas.1 Ela pôs sobre a mesa a travessa, tocou meu tutor de leve no braço com o dedo para avisá-lo de que o jantar estava servido e desapareceu. Sentamo-nos em torno da mesa redonda, e meu tutor fez Drummle instalar-se num de seus lados, colocando Startop do outro lado. A empregada pusera sobre a mesa um peixe finíssimo, em seguida foi-nos servido um carneiro de igual qualidade, e por fim uma ave de igual qualidade. Os molhos, os vinhos, todos os acessórios de que necessitávamos, tudo do bom e do melhor, eram distribuídos por nosso anfitrião, que os retirava da despensa móvel a seu lado; e quando completavam o circuito da mesa, ele os recolocava no lugar. Do mesmo modo, entregava-nos pratos e talheres limpos para cada prato, e jogava os usados em duas cestas que ficavam ao lado de sua cadeira, no chão. Não apareceu nenhum outro criado além da empregada. Ela trazia cada prato; e eu sempre via em seu rosto um rosto saído do caldeirão. Anos depois, obtive uma imagem terrível daquela mulher, fazendo com que um rosto cuja única semelhança com o dela era a longa cabeleira lisa passasse por trás de um recipiente com álcool em chamas numa sala escura. Tendo sido levado a prestar atenção na empregada, tanto por sua própria aparência surpreendente quanto pela recomendação de Wemmick, observei que sempre que estava na sala ela mantinha os olhos atentos voltados para meu tutor, e que retirava as mãos de qualquer travessa que punha diante dele, hesitante, como se temesse que ele a chamasse de volta, e quisesse que ele lhe dirigisse a palavra quando ela estava presente, se tivesse algo a dizer. Imaginei perceber que ele tinha consciência desse fato, e que fazia questão de mantê-la sempre em suspense. O jantar foi alegre, e, embora meu tutor parecesse acompanhar os assuntos que surgiam em vez de propô-los, eu sabia que ele estava arrancando de nós as nossas maiores fraquezas. Quanto a mim, dei-me conta de estar manifestando minha tendência a fazer gastos excessivos, e a tratar Herbert com condescendência, e a gabar-me de meu futuro promissor, antes mesmo de me dar conta de que tinha aberto os lábios. O mesmo se deu com cada um de nós, mas principalmente com Drummle: ele foi levado a manifestar sua tendência a fechar-se de modo ressentido e suspeito diante dos outros antes mesmo que a travessa do peixe fosse retirada da mesa. Não foi nesse momento, e sim quando já estávamos no queijo, que a conversa recaiu sobre nossos feitos aquáticos, e que Drummle foi ridicularizado por vir remando atrás de nós daquele seu jeito lerdo e anfíbio. Ao ouvir isso, Drummle disse a nosso anfitrião que preferia o quarto à nossa companhia, e que como remador ele era um mestre em relação a nós, e que em matéria de força ele podia jogar-nos para o alto como se fôssemos palha. De algum modo invisível, meu tutor conseguiu levá-lo quase à ferocidade a partir dessa insignificância; e Drummle chegou a desnudar o braço e contraí-lo para exibir os músculos, e todos nós começamos a fazer o mesmo do modo mais ridículo. Ora, a essa altura a empregada estava tirando a mesa; meu tutor, sem dar atenção a ela, com o rosto virado para o outro lado, estava encostado em sua cadeira, mordendo o lado do dedo indicador e demonstrando um interesse por Drummle que, para mim, parecia quase inexplicável. De súbito, pousou a manzorra sobre a mão da empregada como se fosse uma armadilha, no momento em que a mulher tinha a mão aberta sobre a mesa. Fez isso de modo tão súbito e engenhoso que todos nós interrompemos nossa tola exibição. “Já que o assunto é força”, disse o sr. Jaggers, “vou mostrar a vocês o que é um punho. Molly , mostra a eles o teu punho.” A mão da empregada estava presa sobre a mesa, porém ela já havia colocado a outra atrás da cintura. “Patrão”, disse ela, em voz baixa, com os olhos fixos nele, atentos, implorando. “Não!” “Vou mostrar a vocês o que é um punho”, repetiu o sr. Jaggers, com uma determinação irremovível. “Molly , mostra a eles o teu punho.” “Patrão”, ela murmurou outra vez. “Por favor!” “Molly ”, disse o sr. Jaggers, sem olhar para ela, porém fixando a vista de modo obstinado no lado oposto da sala, “mostra a eles os teus dois punhos. Mostra. Vamos!” Ele tirou sua mão de cima da dela, e virou-lhe o punho para cima sobre a mesa. A empregada tirou a outra mão de trás das costas e exibiu ambas lado a lado. A segunda mão estava muito desfigurada — cheia de sulcos e cicatrizes profundas de um lado ao outro. Ao exibir as duas mãos, ela desviou o olhar do sr. Jaggers e voltou-o, atenta, para cada um de nós, um por um. “São mãos poderosas”, disse o sr. Jaggers, percorrendo friamente os tendões com o dedo. “Pouquíssimos homens têm punhos fortes como os dessa mulher. É notável a força preensil dessas mãos. Já tive oportunidade de examinar muitas mãos; mas nunca vi tão fortes quanto estas, nem em homens, nem em mulheres.” Enquanto o sr. Jaggers dizia essas palavras num tom crítico e tranquilo, a empregada continuava a olhar para cada um de nós sucessivamente. Tão logo seu patrão se calou, ela voltou a olhar para ele. “Está bem, Molly ”, disse o sr. Jaggers, com um ligeiro aceno de cabeça; “já foste admirada; podes ir.” Ela retirou as mãos da mesa e saiu da sala, e o sr. Jaggers, pegando na despensa móvel as garrafas, encheu sua taça e passou o vinho. “Às nove e meia, senhores”, disse ele, “temos que nos recolher. Por favor, aproveitem da melhor maneira seu tempo. Foi uma satisfação vê-los a todos. Senhor Drummle, a sua saúde.” Se seu objetivo ao destacar Drummle fora atiçá-lo ainda mais, seu sucesso foi absoluto. Com um mau humor triunfal, Drummle manifestou sua má opinião de todos nós, tornando-se cada vez mais ofensivo, até ficar realmente intolerável. Em cada uma das etapas desse processo, o sr. Jaggers o observava com o mesmo interesse estranho. Era como se Drummle desse mais sabor ao vinho do sr. Jaggers. Com nossa indiscrição juvenil, creio que bebemos demais, e sei que falamos demais. Ficamos particularmente indignados quando Drummle fez um comentário grosseiro a respeito do modo como desperdiçávamos nosso dinheiro. Isso me levou a observar, com mais zelo do que discrição, que era ingratidão de sua parte dizer tal coisa, pois Startop lhe havia emprestado dinheiro na minha presença cerca de uma semana antes. “Ora”, retorquiu Drummle, “ele vai ser pago.” “Não estou dizendo o contrário”, disse eu, “mas esse fato talvez devesse fazê-lo não nos criticar por gastarmos tanto dinheiro, eu diria.” “O senhor diria!”, exclamou Drummle. “Ah, meu Deus!” “Eu diria”, prossegui, com intenção de ser muito severo, “que o senhor não emprestaria dinheiro a nenhum de nós, se lhe pedíssemos.” “Tem razão”, disse Drummle. “Eu não emprestaria a vocês nem seis pence. Eu não emprestaria seis pence a ninguém.” “Nesse caso, me parece um tanto mesquinho pedir dinheiro emprestado, eu diria.” “O senhor diria”, repetiu Drummle. “Ah, meu Deus!” Isso era tão irritante — ainda mais porque eu sentia que não conseguia nada contra sua obtusidade carrancuda — que prossegui, ignorando as tentativas de Herbert no sentido de me conter: “Ora, senhor Drummle, já que estamos falando sobre isso, vou lhe dizer o que se passou entre Herbert e mim, quando o senhor pegou aquele dinheiro emprestado.” “Eu não quero saber o que se passou entre Herbert e o senhor”, rosnou Drummle. E creio que acrescentou, num rosnado mais baixo, que nós dois podíamos ir para o inferno. “Mas vou lhe dizer assim mesmo”, insisti, “querendo ou não. Dissemos, no momento em que o senhor punha o dinheiro no bolso, muito satisfeito por tê-lo conseguido, que o senhor parecia achar muita graça de ver que nós éramos fracos o bastante para lhe fazer o empréstimo.” Drummle riu abertamente, e ficou rindo de nós, com as mãos nos bolsos e os ombros redondos levantados: deixando bem claro que aquilo era verdade e que ele nos desprezava a todos, por sermos um bando de idiotas. Neste ponto Startop passou a dirigir-se a ele, ainda que de modo mais delicado que eu, exortando-o a ser um pouco mais agradável. Sendo Startop um rapaz animado e inteligente, e sendo Drummle exatamente o contrário, este sempre guardava ressentimentos em relação àquele, vendo no outro uma afronta pessoal dirigida a ele. Assim, deu-lhe uma resposta grosseira e estúpida, e Startop tentou desviar o assunto dizendo algum gracejo que nos fez a todos rir. Encarando esse pequeno sucesso como a maior afronta de todas, Drummle, sem qualquer ameaça ou aviso, tirou as mãos dos bolsos, abaixou os ombros arredondados, solou uma imprecação, pegou um copo grande e o teria jogado na cabeça de seu adversário se nosso anfitrião com muita destreza não o tivesse agarrado num momento em que ele o levantou com tal fim. “Senhores”, disse o sr. Jaggers, pondo sobre a mesa o copo com um gesto decidido e consultando o relógio de ouro, pendurado em sua corrente pesada, “lamento muitíssimo informar-lhes que são nove e meia.” Diante dessas palavras, todos nos levantamos para ir embora. Antes de chegarmos à porta da rua, Startop já estava chamando Drummle “meu velho”, como se nada houvesse acontecido. Mas “meu velho” não apenas não respondeu como também se recusou a caminhar até Hammersmith pela mesma calçada que ele; assim, Herbert e eu, que íamos ficar na cidade, vimos os dois caminhando pela rua cada um de um lado; Startop à frente, e Drummle a uma certa distância atrás, pelas sombras das casas, tal como fazia em seu barco. Como a porta ainda não estava fechada, resolvi deixar Herbert a minha espera por um momento e subi correndo para falar com meu tutor. Encontrei-o em seu quarto de vestir, cercado por sua provisão de botas, já lavando suas mãos de nós. Disse-lhe que havia voltado para dizer que lamentava muito o incidente tão desagradável que ocorrera, e que eu esperava que ele não pusesse a culpa em mim. “Ora!”, exclamou ele, jogando água no rosto e falando por entre as gotas d’água, “não foi nada, Pip. Mas gostei do tal do Aranha.” Havia se virado para mim e sacudia a cabeça, e bufava, enquanto se enxugava. “Agrada-me que o senhor tenha gostado dele”, retruquei; “mas eu não gosto.” “Não, não”, disse meu tutor; “é bom não se envolver muito com ele. Mantenha distância dele se puder. Mas eu gosto do sujeito, Pip; esse é um tipo verdadeiro. Ora, se eu fosse vidente…” Olhando por detrás da toalha, fixou meu olhar. “Mas não sou vidente”, prosseguiu, afundando a cabeça na toalha e enxugando as duas orelhas. “Você sabe o que eu sou, não sabe? Boa noite, Pip.” “Boa noite, senhor Jaggers.” Cerca de um mês depois desse incidente, expirou o prazo de residência do Aranha com o sr. Pocket, e para grande alívio de todos na casa, menos da sra. Pocket, ele voltou para a toca de sua família. 8 “Meu caro sr. Pip: Escrevo a pedido do sr. Gargery , para informá-lo de que ele vai amanhã a Londres na companhia do sr. Wopsle, e gostaria de ter permissão de visitar o senhor. Ele chegaria ao Barnard’s Hotel na manhã de terça às nove horas, e pede que avise se essa hora não lhe for propícia. Sua pobre irmã está do mesmo jeito que estava quando o senhor partiu. Falamos a seu respeito na cozinha todas as noites, e queremos muito saber o que o senhor anda dizendo e fazendo. Se eu estiver tomando uma liberdade excessiva, peço desculpas em nome dos dias pobres de outrora. É tudo, caro sr. Pip, de Sua criada obrigada, com afeto, biddy . P. S. Ele me pede com insistência que eu escreva grandes patuscadas. Diz ele que o senhor há de compreender. Espero que para o senhor seja um prazer vê-lo, e tenho certeza de que será, muito embora o senhor agora seja um cavalheiro, pois seu coração sempre foi bom e ele é um homem muito muito honrado. Li para ele toda essa carta, omitindo apenas essa última frase, e ele insiste comigo que eu escreva de novo grandes patuscadas.” Essa carta me foi entregue pelo correio na manhã de segunda-feira, e assim o encontro seria no dia seguinte. Deixem-me confessar exatamente com que sentimentos eu aguardava a chegada de Joe. Não com prazer, embora tantos vínculos me unissem a ele; não; com muita perturbação, certa mortificação e uma intensa sensação de incongruência. Se eu pudesse mantê-lo afastado pagando determinada quantia, certamente o teria feito. O que mais me tranquilizava era saber que ele viria ao Barnard’s Inn, e não a Hammersmith, e, por conseguinte, não teria contato com Bentley Drummle. Não me incomodava que ele fosse visto por Herbert ou por seu pai, duas pessoas que tinham meu respeito, porém desagradava-me muito a ideia de ele ser visto por Drummle, que eu desdenhava. Assim é que, no decorrer de nossas vidas, nossas maiores fraquezas e mesquinharias costumam ser motivadas pelas pessoas que mais desprezamos. Eu havia adquirido o hábito de viver reformando meus aposentos das maneiras mais desnecessárias e impróprias, e muito me custavam esses embates com o Barnard’s Inn. A essa altura, os aposentos já estavam muito diferentes do que eram quando lá fui morar, e eu tinha a honra de ocupar algumas páginas de destaque nos livros de um estofador da vizinhança. Nos últimos tempos, havia até mesmo passado a empregar um rapaz de botas1 — botas de cano alto — de quem se podia dizer que eu havia me tornado escravo. Pois, tendo criado o monstro2 (a partir do refugo da família de minha lavadeira) e tendo-o vestido com um paletó azul, um colete amarelo-canário, um lenço branco no pescoço, calças creme e as botas já mencionadas, eu era obrigado a providenciar-lhe alguma coisa para fazer e muita coisa para comer; e com essas duas horrendas exigências ele atormentava minha vida. Esse fantasma vingador recebeu ordem de apresentar-se para o trabalho às oito da manhã de terça-feira no hall de entrada (um quadrado com sessenta centímetros de lado, conforme a conta da lona3 para o soalho), e Herbert sugeriu alguns itens para o desjejum que imaginava haveriam de agradar a Joe. Embora eu me sentisse sinceramente agradecido por ele demonstrar tanto interesse e consideração, uma estranha suspeita semi-induzida me levava a pensar que, se Joe tivesse vindo visitar a ele, Herbert não seria tão expedito. Entretanto, vim à cidade na noite de segunda a fim de me preparar para Joe, e levantei-me cedo na manhã seguinte, e dei a aparência mais esplêndida possível à sala de estar e à mesa de desjejum. Infelizmente, era uma manhã de garoa, e nem mesmo um anjo teria conseguido ocultar o fato de que o Barnard estava chorando lágrimas de fuligem do lado de fora da janela, como se fosse um limpa-chaminés gigantesco, porém fraco. À medida que se aproximava a hora, eu tinha vontade de fugir, porém o vingador, obedecendo às ordens recebidas, estava no hall, e depois de algum tempo ouvi Joe subindo a escada. Sabia que era ele, por seu jeito desajeitado de subir as escadas — suas botas de domingo eram sempre grandes demais para ele — e pelo tempo que levou para ler os nomes nos outros andares no decorrer de sua ascensão. Quando por fim parou diante da porta, ouvi seu dedo a percorrer as letras pintadas de meu nome, e depois ouvi claramente sua respiração no buraco da fechadura. Finalmente, deu uma única batida fraca na porta, e Pepper — era esse o nome comprometedor* do rapaz vingador — anunciou: “O senhor Gargery !”. Pareceu-me que ele jamais ia terminar de limpar os pés no capacho, e que seria necessário ir até lá para arrastá-lo para dentro, mas por fim ele entrou. “Joe, como estás, Joe?” “Pip, como está, Pip?” Com seu rosto bom e honesto brilhando, e o chapéu posto no chão entre nós, tomou minhas duas mãos e ficou a sacudi-las para cima e para baixo, como se eu fosse um novo modelo de bomba recém-patenteado. “É um prazer ver-te, Joe. Dá-me teu chapéu.” Mas Joe, pegando-o cuidadosamente com as duas mãos, como se fosse um ninho cheio de ovos de pássaros, recusou-se a separar-se daquela sua propriedade, e continuou em pé, falando por cima do chapéu de modo muito desconfortável. “O cujo está tão crescido”, disse Joe, “e tão engordado, e cavalheirado”, Joe pensou um pouco antes de encontrar a palavra, “que certamente há de ser uma honra para o seu rei e o seu país.” “E tu, Joe, estás muitíssimo bem.” “Graças a Deus”, disse Joe, “não sou mais pior que ninguém. E a sua irmã, ela não está mais pior do que já estava. E a Biddy, essa continua muito boa e prestativa. E os amigo, nenhum não foi pra trás nem foi pra frente, não. Tirando o Wopsle; esse aí piorou.” Todo esse tempo (enquanto as duas mãos continuavam segurando cuidadosamente o ninho de passarinho), os olhos de Joe davam voltas e mais voltas pela sala, e voltas e mais voltas pelo padrão de florzinha do meu roupão. “Piorou, Joe?” “Ah, piorou, sim”, disse Joe baixando a voz, “largou da Igreja e deu de ser ator. Pela cuja ideia de ser ator é que veio a Londres conjuntamente comigo. E ele pediu”, disse Joe, colocando o ninho debaixo do braço esquerdo por um momento e procurando um ovo dentro dele com a mão direita, “se não te for incômodo, pra mim entregar isso.” Peguei o que Joe me deu, e verifiquei que era o programa amassado de um pequeno teatro metropolitano, anunciando a primeira aparição, naquela exata semana, do “célebre amador provinciano de renome rosciano, cujo incomparável desempenho nas mais elevadas passagens trágicas do nosso bardo nacional4 recentemente causou tamanha sensação nos círculos dramáticos locais.” “E foste assistir o desempenho dele, Joe?”, perguntei. “Fui, sim”, respondeu Joe, com ênfase e solenidade. “E foi mesmo uma grande sensação?” “Ora”, disse Joe, “até que jogaram umas casca de laranja.5 Inda mais na hora que ele vê o fantasma. Se bem que eu pergunto se é coisa que se faça com um homem de bom coração ficar se metendo entre ele e o fantasma, com ‘amém!’ Está certo que ele teve lá os seus pobrema e já foi da Igreja”, disse Joe, abaixando a voz e adotando um tom argumentativo e solidário, “mas nem por isso se pode fazer uma coisa dessa numa hora dessa. Quer dizer, se nem o fantasma do pai dele pode falar com ele, então quem é que pode, o senhor não acha? E o pior é que a roupa de luto dele é tão pequena que o peso das penas pretas faz ela cair a toda hora, mesmo ele puxando pra cima o tempo todo.” Uma expressão de quem estava vendo um fantasma, surgida no rosto de Joe, me informou que Herbert havia entrado no recinto. Assim, apresentei Joe a Herbert, o qual lhe estendeu a mão, mas Joe recuou, agarrando-se a seu ninho de passarinho. “Seu criado, senhor”, disse Joe, “o cujo eu espero que o senhor e o Pip” — nesse momento, viu o vingador, que estava colocando torradas sobre a mesa, e de tal modo manifestou a intenção de incorporar aquele jovem cavalheiro à família que o fuzilei com o olhar, confundindo-o ainda mais — “quer dizer, os dois cavalheiros presentes — os cujos eu espero que esse lugar fechado não faz mal pra saúde dos senhores? Porque essa estalage pode até ser muito boa, de acordo com as opiniães londrinas”, disse Joe, em tom confidencial, “o que pode até ser verdade; mas eu por mim é que não ia guardar nem o meu porco aqui dentro — se eu quisesse que ele ficasse bem gordinho e saudave e com um gosto bem suave.” Tendo dado esse depoimento lisonjeiro com referência aos méritos de nossa moradia, e tendo demonstrado sua tendência a me chamar de senhor, Joe, sendo convidado a sentar-se à mesa, correu os olhos por toda a sala procurando um lugar adequado em que deixar seu chapéu — como se fossem muito poucas as substâncias existentes na natureza que lhe podiam servir de local de repouso — e, por fim, colocou-o no canto mais distante do console da lareira, de onde ele passou a cair de quando em quando. “O senhor toma chá ou café, senhor Gargery ?”, perguntou Herbert, que sempre presidia os desjejuns. “Obrigado, senhor”, respondeu Joe, rígido dos pés à cabeça, “eu tomo o que o senhor mais preferir.” “Que tal café?” “Obrigado, senhor”, disse Joe, claramente desanimado com essa perspectiva, “já que o senhor tem a bondade de escolher o café, não vou contrariar suas opiniães. Mas o senhor não acha que esquenta um de pouco demais?” “Então chá”, disse Herbert, servindo. Nesse momento o chapéu de Joe caiu do console, e ele levantou-se da cadeira num salto e recolocou-o exatamente no mesmo lugar. Como se a boa educação exigisse que ele voltasse a cair em breve. “Quando o senhor chegou à cidade, senhor Gargery ?” “Foi ontem à tarde?”, disse Joe, após tossir atrás da mão, como se já tivesse tido tempo de pegar coqueluche desde sua chegada. “Não, não foi não. Foi, sim. Foi. Foi ontem à tarde” (com um ar que combinava sabedoria, alívio e absoluta imparcialidade). “O senhor já viu alguma coisa de Londres?” “Ah, vi, sim, senhor”, disse Joe, “Eu e o Wopsle fumo direto ver a Casa da Graxa.6 Mas a gente achamos que era muito diferente da figura que aparece naqueles cartaz vermelho que eles põe nas porta das loja; ou seja”, acrescentou Joe, didático, “na figura é muito mais arquitequitequitônico.” Creio mesmo que Joe teria prolongado a palavra (o que aliás evoca em minha mente muito bem algumas obras de arquitetura que conheço) até transformá-la num verdadeiro estribilho, se sua atenção não tivesse sido providencialmente atraída pelo chapéu, que estava quase caindo. De fato, essa peça de vestuário exigia sua atenção constante, e uma presteza de olho e mão não inferior à do jogador de críquete. Seu desempenho era extraordinário, e sua destreza era imensa; ora corria e pegava o chapéu com jeito no chão; ora limitava-se a pegá-lo em pleno ar no momento da queda, socando-o e acariciando-o em vários pontos da sala, esfregando-o em diversos trechos do papel de parede, até sentir que podia deixá-lo de lado sem perigo; por fim, deixou-o cair na tigela de restos de chá, onde tomei a liberdade de pegá-lo. Quanto ao colarinho da camisa e ao colarinho do casaco de Joe, eles provocavam muita perplexidade — eram ambos mistérios insolúveis. O que levaria um homem a arranhar-se a tal ponto, para que pudesse considerar-se bem vestido? Por que motivo ele julgaria necessário purificar-se pelo sofrimento vestindo aqueles trajes de domingo? Além disso, Joe mergulhava em inescrutáveis períodos de meditação, o garfo pousado a meio caminho entre o prato e a boca; seus olhos se voltavam para as direções mais estranhas; ele era acometido de notáveis acessos de tosse; por ficar muito afastado da mesa, deixava cair mais comida do que conseguia levar a boca, e depois fingia que não havia deixado cair nada; assim, fiquei profundamente animado quando Herbert se despediu e foi para o trabalho. Eu não tinha nem bom senso nem bons sentimentos o bastante para saber que tudo aquilo era culpa minha, que se eu tivesse ficado mais à vontade com Joe, Joe teria ficado mais à vontade comigo. Ele me inspirava impaciência e irritação; e assim estava eu quando ele despejou brasas sobre minha cabeça. “Agora que nós dois estamos a sós, senhor…”, começou Joe. “Joe”, interrompi, implicante, “que história é essa de me chamar de senhor?” Joe olhou-me por um breve instante com algo que parecia um tímido lampejo de recriminação. Por mais absurdo que fosse o lenço em torno de seu pescoço, tanto quanto seus colarinhos, percebi que havia uma espécie de dignidade em seu olhar. “Agora que nós dois estamos a sós”, retomou Joe, “e não tendo eu intenção nem capacidade de ficar muito mais tempo, assim vou concluir — ou pelo menos começar — dizendo o que foi que me fez ter esta honra. Pois”, disse Joe, com sua velha expressão de explicação lúcida, “se meu único desejo não fosse lhe ser útil, eu não teria tido a honra de repartilhar uma refeição na companhia de dois cavalheiro.” Para não ter que ver aquele olhar outra vez, não me opus àquele tom de voz. “Pois bem, senhor”, prosseguiu Joe, “assim é que foi. Estava eu na Três Barqueiros uma noite dessas, Pip” — sempre que ele se tornava afetuoso, chamava-me Pip, e sempre que recaía na polidez, chamava-me senhor — “quando chegou na carruage dele o Pumblechook. O cujo”, disse Joe, tomando uma direção diferente, “tem vez que me deixa meio que aperreado, espalhando pra tudo que é lado que ele foi grande amigo seu quando menino e que lhe tinha por companheiro de brincadeira.” “Bobagem. Tu é que eras meu companheiro, Joe.” “O qual eu sempre achei que foi, Pip”, disse Joe, com um movimento brusco de cabeça, “se bem que isso agora pouco importa, senhor. Pois bem, Pip; esse mesmo cujo, com aquele jeito dele de fanfarrão, vem me procurar na Três Barqueiros (um cachimbo e um caneco de cerveja é muita coisa na vida de um trabalhador, senhor, sem excesso), e ele vira e diz assim: ‘Joseph, a senhora Havisham quer falar contigo’.” “A senhora Havisham, Joe?” “‘Ela quer’, foi o que disse o Pumblechook, ‘falar contigo.’” E Joe ficou olhando para o teto, revirando os olhos. “E aí, Joe? Continua, por favor.” “No dia seguinte, senhor”, olhando-me como se eu estivesse a uma grande distância dele, “depois de me lavar fui ter com a senhora A.” “Senhora A., Joe? A senhora Havisham?” “Foi como eu disse, senhor”, respondeu Joe, com um ar de formalidade legal, como se estivesse fazendo seu testamento. “A senhora A., ou senhora Havisham. A qual então falou como se segue: ‘Senhor Gargery. O senhor mantém correspondência com o senhor Pip?’. Tendo recibo carta sua, eu pude com veracidade dizer: ‘Sim’ (quando eu me desposei com a senhora sua irmã, eu disse ‘sim’; e quando eu respondi a sua amiga, Pip, eu disse ‘sim’). ‘Nesse caso’, disse ela, ‘peço que o senhor diga a ele que a Estella está de volta e gostaria de vê-lo.’” Senti que meu rosto pegava fogo enquanto eu olhava para Joe. Espero que uma das causas desse fenômeno tenha sido minha consciência de que, se eu soubesse qual o objetivo da visita de Joe, eu teria sido mais receptivo. “A Biddy ”, prosseguiu Joe, “quando eu cheguei em casa e pedi que ela escrevesse uma mensagem para si, ela meio que relutou. A Biddy falou assim: ‘Sei que ele vai gostar muito de ver-te em pessoa, é feriado, queres vê-lo, então vai!’. Falei e disse, senhor”, concluiu Joe, levantando-se de sua cadeira, “e, Pip, espero que tu progredas e prospires a uma altitude cada vez maior.” “Mas não estás indo embora agora, Joe?” “Estou sim”, respondeu Joe. “Mas voltas para o almoço, Joe?” “Volto não”, respondeu Joe. Nossos olhares encontraram-se, e o “senhor” esvaiu-se daquele coração viril no momento em que ele me estendeu a mão. “Pip, meu querido, a vida é feita de muitas separação soldada uma na outra, por assim dizer, e um homem é ferreiro, o outro é funileiro, o outro é ourive, o outro é caldeireiro. As separação ocorre sempre, e o jeito é enfrentar elas. Se alguém tem culpa do que houve hoje, fui eu. Eu e tu não é pra se encontrar em Londres; nem em nenhum outro lugar que não seja em particular, entre amigos. Não é que eu seje orgulhoso, mas é que eu quero ficar bem, e nunca mais vais me ver com uma roupa assim. Eu não fico bem com essa roupa. Não fico bem fora da ferraria, da cozinha, nem longe do chaco. Não hás de pôr defeito em mim se pensares em mim com minha roupa de ferreiro, com um martelo na mão, ou até um cachimbo. Não hás de pôr defeito em mim, no caso de quereres me visitar, quando puseres a cabeça na janela da ferraria e vires Joe, o ferreiro, lá na bigorna de sempre, com o velho avental queimado, fazendo seu trabalho de sempre. Eu sou muito bronco, mas acho que consegui dizer alguma coisa direito finalmente. E assim, que deus te abençoe, meu querido Pip, meu velho companheiro, deus te abençoe!” Eu não estava enganado quando imaginei haver uma dignidade simples nele. Seu traje não era nenhum obstáculo para o sentido dessas palavras, como também não haveria de ser para ele nas portas do Céu. Joe tocou-me de leve na testa e saiu. Assim que consegui recuperar-me o bastante, saí às pressas atrás dele e procurei-o nas ruas vizinhas, porém Joe já se fora. * O nome comprometedor: A palavra pepper significa “pimenta”. (n. t.) 9 Estava claro que eu teria de ir à nossa cidadezinha no dia seguinte, e ainda sob o primeiro impacto de meu arrependimento estava igualmente claro que eu teria de ficar na casa de Joe. Porém, depois que reservei meu lugar ao lado do cocheiro na diligência do dia seguinte e fui à casa do sr. Pocket e de lá voltei, não estava mais de modo algum seguro a respeito do segundo ponto, e comecei a inventar razões e desculpas para me hospedar no Javali Azul. Eu daria trabalho a Joe se ficasse em sua casa; eu não era esperado por lá; e minha cama não estaria pronta; eu estaria muito longe da sra. Havisham, e ela era exigente e talvez não gostasse. Todos os outros trapaceiros do mundo não são nada em comparação com aquele que frauda a si próprio, e foi desse modo que enganei a mim mesmo. Sem dúvida, é uma coisa curiosa. Que eu inocentemente aceitasse uma moeda forjada por alguém é até razoável; mas que eu, com conhecimento de causa, desse valor à moeda falsa por mim mesmo fabricada! Um estranho prestativo, com a desculpa de estar dobrando de modo compacto as minhas cédulas por uma questão de segurança, fica com as cédulas e me entrega cascas de nozes; mas em matéria de prestidigitação, como comparar o que ele faz com o que eu faço, a dobrar eu mesmo as cascas de nozes e embolsá-las como dinheiro! Tendo decidido que ficaria no Javali Azul, fui tomado por uma terrível indecisão quanto a levar ou não o vingador. Seduzia-me a imagem daquele mercenário dispendioso a arejar suas botas em público no pátio do Javali Azul; pensava com seriedade em levá-lo, com ar displicente, à oficina do alfaiate, para confundir a atitude desrespeitosa do empregado de Trabb. Por outro lado, o empregado de Trabb poderia insinuar-se na sua intimidade e dizer-lhe coisas; ou então, afoito e desesperado como era, como bem eu sabia, seria capaz de apupálo na High-street. Minha protetora, além disso, poderia ouvir falar dele e não aprovar. Assim, pensando bem, decidi não levar o vingador. Eu havia reservado um lugar na diligência da tarde, e como já estávamos no inverno eu só chegaria duas ou três horas depois do anoitecer. Partiríamos da Cross Key s às duas da tarde. Cheguei ao terminal um quarto de hora antes, acompanhado pelo vingador — se faz sentido usar essa expressão para me referir a alguém que só me servia quando não havia outro jeito. Naquela época, era comum transportar forçados até o estaleiro por diligência. Como eu já ouvira dizer várias vezes que eles viajavam do lado de fora, e mais de uma vez vira na estrada suas pernas, presas por grilhões, pendendo do alto da carruagem, não me surpreendi quando Herbert, encontrando-se comigo no terminal, disse-me que dois forçados viajariam comigo. Porém eu tinha um motivo, já antigo, para hesitar toda vez que ouvia a palavra “forçado”. “Você não se incomoda com eles, Handel?”, disse Herbert. “Absolutamente!” “Eu tinha a impressão de que você não gostava deles.” “Não diria que gosto, como imagino que você também não goste. Mas não me incomodo, não.” “Olhe! Lá estão eles”, disse Herbert, “saindo do bar. Que cena mais degradante e vil!” Imagino que haviam bebido junto com o guarda que vinha com eles, pois os três saíram enxugando os lábios nas costas da mão. Os dois prisioneiros estavam presos um ao outro por algemas, e levavam ferros nas pernas — grilhões de um tipo que eu conhecia bem. Usavam o traje que eu também conhecia bem. O guarda estava munido de um par de pistolas, e tinha também um porrete grosso debaixo do braço; mas mantinha boas relações com os prisioneiros, e parado ao lado deles contemplava a preparação dos cavalos, com um ar que dava a impressão de que os forçados eram uma exposição interessante que ainda não fora inaugurada, da qual ele era o curador. Um dos homens era mais alto e robusto que o outro, e parecia ter recebido, como era de se esperar, segundo a lógica misteriosa do mundo dos prisioneiros e dos homens livres, roupas pequenas demais para ele. Seus braços e pernas pareciam grandes almofadas de alfinetes, e seu traje o disfarçava de modo absurdo; mas reconheci seu olho semicerrado de imediato. Lá estava o homem que eu vira sentado no banco da Três Barqueiros Alegres numa noite de sábado, e que me atingira com uma arma invisível! Não foi difícil perceber que, até então, ele não me reconhecera; era como se jamais me tivesse visto na vida. Olhou para mim de relance, avaliou com o olhar a corrente de meu relógio; então cuspiu e disse alguma coisa ao outro forçado, e os dois riram e viraram-se, com um estalido metálico das algemas que os uniam, e passaram a olhar para outra coisa. Os números avantajados escritos em suas costas, como se eles fossem portas de casas; sua aparência exterior esquálida e grosseira, como se fossem animais inferiores; suas pernas presas com grilhões, timidamente enfeitados com lenços; e o modo como todas as pessoas os olhavam e mantinham-se afastadas deles — tudo isso resultava (como dissera Herbert) num espetáculo muito desagradável e degradante. Mas isso não era o pior. Fomos informados de que toda a parte de trás da diligência seria ocupada por uma família que estava se mudando de Londres, e que não restavam outros lugares para os dois prisioneiros que não no banco da frente, atrás do cocheiro. Ao ouvir isso, um cavalheiro colérico, que havia reservado o quarto lugar naquele banco, teve um violento acesso de raiva, e disse que era uma infração contratual obrigá-lo a viajar com aquela companhia infame, que era venenoso e pernicioso e infame e vergonhoso e não sei que mais. A essa altura a carruagem estava pronta e o cocheiro estava impaciente, e os prisioneiros haviam se aproximado juntamente com o guarda — e mais aquele curioso odor de cataplasma de pão, baeta, estopa e pó de pedra1 que sempre acompanha a presença de forçados. “Não se apoquente tanto assim, senhor”, pediu o guarda, dirigindo-se ao passageiro irritado. “Eu fico sentado junto ao senhor. Eles ficam do outro lado. Eles não vão incomodá-lo, senhor. Faça de conta que eles não estão lá.” “E não ponha a culpa em mim”, rosnou o forçado que eu havia reconhecido. “Eu é que não quero ir. Por mim, eu ficava aqui mesmo. Se alguém quiser, pode ir no meu lugar.” “Ou no meu”, disse o outro, ríspido. “Se dependesse da minha vontade, eu não ia incomodar ninguém.” Então os dois riram, e começaram a quebrar nozes e cuspir as cascas. — Creio que era o que eu mesmo teria feito, se me visse no lugar deles, sendo alvo de tanto desprezo. Por fim, decidiu-se que não havia nada a fazer a respeito do cavalheiro irritado, o qual teria de ir com seus companheiros indesejáveis ou então desistir da viagem. Assim, ele assumiu seu lugar, ainda reclamando, e o guarda instalouse a seu lado, enquanto os forçados se acomodaram como puderam; aquele que eu havia reconhecido sentou-se atrás de mim, de modo que eu sentia sua respiração nos meus cabelos. “Até logo, Handel!”, gritou Herbert quando partimos. Pensei que era uma sorte ele resolver me chamar de outra coisa que não Pip. É impossível exprimir a intensidade com que eu sentia a respiração do presidiário, não apenas na minha nuca, mas ao longo de toda a minha espinha dorsal. Era como ser tocado na medula por alguma substância pungente e ácida, algo que me fazia trincar os dentes. Ele parecia respirar mais do que os outros homens, e de modo mais ruidoso; e eu me dava conta de que estava levantando um dos ombros, para afastar-me dele. Era um dia pavoroso, e os dois xingavam o frio. A temperatura nos tornou a todos letárgicos em pouco tempo, e quando estávamos na metade do caminho, cochilávamos, tiritávamos e permanecíamos calados. Quanto a mim, adormeci pensando se deveria devolver as duas libras daquela criatura antes de perdê-la de vista, e como poderia fazer tal coisa da melhor maneira. Quando eu estava me inclinando para a frente, como se fosse me banhar em meio aos cavalos, acordei assustado e recomecei a pensar na questão. Mas devo ter dormido mais do que imaginava, pois, ainda que não pudesse reconhecer nada na escuridão, nem à luz incerta de nossos lampiões, senti a presença dos charcos no vento frio e úmido que soprava sobre nós. Encolhidos para a frente a fim de aquecer-se e usar-me como proteção contra o vento, os forçados estavam mais próximos de mim do que antes. As primeiras palavras que os ouvi trocar quando recuperei a consciência eram as mesmas que ocupavam meus pensamentos: “Duas nota de uma libra”. “Como que ele arranjou?”, disse o prisioneiro que eu nunca vira antes. “Como é que eu vou saber?”, retrucou o outro. “Guardava escondido em algum lugar, sei lá. Algum amigo que deu para ele, imagino.” “Que falta”, disse o outro, xingando o frio, “isso me faz agora.” “Dinheiro ou amigo?” “Dinheiro. As duas nota de uma libra. Eu vendia todos os amigos que eu já tive por uma libra, e ia achar que fiz um ótimo negócio. E aí? Aí ele falou o quê?” “Aí ele falou”, prosseguiu o presidiário que eu reconhecera, “— a coisa toda aconteceu em meio minuto, atrás de uma pilha de lenha no estaleiro — ‘Você vai ser solto?’ Eu ia ser solto, sim. Eu prometia que ia procurar o garoto que deu comida a ele e guardou o segredo dele, e dar as duas nota de uma libra pra ele? Eu falei que prometia, sim. E foi o que eu fiz.” “Uma besta é o que você é”, rosnou o outro. “Se fosse eu, gastava tudo em comida e bebida. Esse sujeito devia ser muito bobo. Entonce ele não sabia nada sobre você?” “Coisa nenhuma. De um outro bando e de um outro navio. Foi a julgamento de novo porque fugiu da prisão, e aí pegou perpétua.” “E essa vez — palavra de honra! — foi a única que você cumpriu pena aqui nessas bandas?” “A única vez.” “E o que é que você acha daqui?” “Lugar horroroso. Lama, nevoeiro, pântano e trabalho; trabalho, pântano, nevoeiro e lama.” Os dois reclamaram do lugar num linguajar muito pesado, e de tanto rosnar acabaram se calando, não tendo mais nada a dizer. Tendo ouvido esse diálogo, eu certamente teria saltado da diligência e procurado a solidão e a escuridão da estrada, se não estivesse certo de que o homem não tinha nenhuma suspeita a respeito da minha identidade. De fato, eu estava não apenas tão modificado pela passagem natural do tempo, mas também vestido de modo tão diferente e em circunstâncias tão diversas que era muito improvável que ele me reconhecesse se ninguém o ajudasse a tal. Mesmo assim, a coincidência de nos encontrarmos na diligência era estranha o bastante para me inspirar o medo de que alguma outra coincidência a qualquer momento associasse minha pessoa a meu nome, e ele escutasse. Por esse motivo, resolvi saltar assim que chegássemos à cidade, para que ele não pudesse ouvir nada. Foi o que fiz, com sucesso. Minha pequena valise estava no bagageiro sob meus pés; bastava abrir uma portinhola para pegá-la; joguei-a na rua, saltei em seguida e assim me vi junto ao primeiro lampião nas primeiras pedras do calçamento da cidade. Quanto aos prisioneiros, eles seguiram viagem, e eu sabia em que lugar que eles seriam transportados para o rio. Na minha imaginação, vi o navio com sua tripulação de presidiários à espera deles na escada coberta de limo — mais uma vez ouvi o grito “Força, vocês aí!”, como uma ordem dada a um cão — mais uma vez vi a arca de Noé perversa sobre as águas negras. Eu não seria capaz de dizer o que me inspirava medo, pois era um sentimento totalmente indefinido e vago, porém um medo imenso pairava sobre mim. Enquanto caminhava em direção ao hotel, sentia que um pavor muito maior do que a mera expectativa de um reconhecimento doloroso ou desagradável me fazia tremer. Estou certo de que esse medo não tinha nenhuma forma distinta, e que era o redespertar, por alguns minutos, dos terrores da infância. A sala do café do Javali Azul estava vazia, e eu já havia não apenas feito o pedido do meu jantar como também começado a comer quando o garçom me reconheceu. Depois de pedir desculpas pelo lapso de memória, perguntou-me se deveria mandar o criado chamar o sr. Pumblechook. “Não”, respondi, “de modo algum.” O garçom (fora ele quem viera transmitir a queixa dos comerciantes no dia em que me fiz aprendiz) pareceu surpreso, e na primeira oportunidade pôs um exemplar velho e sujo de um jornal local tão perto de mim que o peguei e li o seguinte parágrafo: Nossos leitores ficarão sabendo, não sem algum interesse, a respeito da recém-ocorrida e romântica virada ocorrida na vida de um jovem artífice de ferro da nossa vizinhança (um excelente tema, diga-se de passagem, para a pena mágica desse nosso conterrâneo que ainda não é universalmente reconhecido, tooby , o poeta de nossas colunas!) que o primeiro protetor, companheiro e amigo do jovem em questão foi um indivíduo muito respeitado, de algum modo associado ao comércio de cereais e sementes, cujo estabelecimento comercial, muitíssimo conveniente e amplo, situa-se num raio de cem quilômetros da High-street. Não é de todo indiferente a nossos sentimentos pessoais o fato de ser ele o Mentor do nosso jovem Telêmaco, pois é bom saber que nossa cidadezinha produziu o fundador da fortuna desse jovem. Será que o cenho franzido do sábio local ou o olho reluzente da beldade local se pergunta a quem pertence tal fortuna? Cremos que Quentin Matsy s era o ferreiro de Antuérpia. verb. sap.2 Tenho uma convicção, fundada em larga experiência, de que, se em meus tempos de prosperidade eu tivesse ido ao Polo Norte, lá teria encontrado alguém, fosse um esquimó nômade ou um civilizado, o qual me teria dito que Pumblechook fora meu primeiro protetor e o fundador de minha fortuna. 10 De manhã cedo me levantei e saí. Ainda não era hora de ir à casa da sra. Havisham, portanto fiquei a perambular pelo campo no lado da cidade onde ficava a casa dela — que não era o lado da casa de Joe; eu poderia ir lá no dia seguinte — pensando na minha protetora e pintando imagens magníficas dos planos que ela teria para mim. Ela havia adotado Estella, praticamente havia adotado a mim, e sua intenção não poderia ser senão a de nos unir. Caberia a mim, segundo seus planos, reformar a casa desolada, deixar o sol entrar nos cômodos escuros, dar corda nos relógios, acender o fogo nas lareiras frias, limpar as teias de aranha e exterminar os insetos — em suma, realizar todos os feitos brilhantes de um jovem cavaleiro andante e desposar a princesa. Eu havia parado para ver a casa ao passar por ela; e suas paredes de tijolos vermelhos ressequidos, janelas fechadas e hera verde espessa enredando até mesmo as chaminés com seus ramos e tendões, como se fossem braços velhos e musculosos, compunham um mistério rico e atraente, do qual eu era o protagonista. Estella era a inspiração, o âmago de tudo, é claro. Porém, embora ela se houvesse apossado de mim de modo tão poderoso, embora minha fantasia e minha esperança estivessem de tal modo investidas nela, embora ela houvesse exercido uma influência imensa sobre minha vida e meu caráter quando menino, nem mesmo naquela manhã romântica eu lhe concedia outros atributos que não os que ela de fato possuía. Menciono isso aqui com um objetivo específico, pois é a pista por meio da qual é necessário me seguir em meu pobre labirinto. De acordo com minha experiência, o conceito convencional de apaixonado não pode ser sempre verdadeiro. A verdade pura e simples é que, ao amar Estella com um amor viril, eu a amava simplesmente por achá-la irresistível. De uma vez por todas; eu tinha a dolorosa consciência, muitas vezes, ainda que nem sempre, de que eu a amava apesar da razão, apesar das probabilidades, apesar da minha paz, apesar das minhas esperanças, apesar da minha felicidade, apesar de tudo aquilo que me desanimava. De uma vez por todas; eu não a amava menos por saber o que sabia, e o que eu sabia não tinha o menor efeito no sentido de me desestimular; era tal como se eu estivesse absolutamente convicto de que ela era a própria encarnação da perfeição humana. Programei minha caminhada de tal modo que chegasse ao portão da casa na hora costumeira. Tendo tocado a campainha com mão trêmula, dei as costas para o portão, tentando conter a respiração ofegante e impedir que o coração batesse forte demais. Ouvi abrir-se a porta lateral, e ouvi passos atravessando o pátio; mas fingi que nada ouvia, mesmo quando o portão se abriu, rangendo nos gonzos enferrujados. Quando alguém tocou meu ombro, assustei-me e virei-me. Então assusteime com muito mais naturalidade, ao ver diante de mim um homem com um sóbrio traje cinzento. A última pessoa que eu imaginava encontrar fazendo as vezes de porteiro da casa da sra. Havisham. “Orlick!” “Ah, patrãozinho, há coisas que mudaram ainda mais que o senhor. Mas entre, entre. É contra minhas ordens manter o portão aberto.” Entrei e ele fechou o portão, trancou-o e pegou a chave. “Pois é!”, disse ele, virando-se para mim, depois de dar alguns passos à minha frente em direção à casa. “Agora estou aqui!” “Como é que você veio para cá?” “Vim pra cá”, ele retorquiu, “a pé. Meu baú foi trazido num carrinho de mão.” “Você veio para ficar?” “O senhor acha que eu vim pra não ficar, patrãozinho?” Eu não o via com bons olhos. Fiquei a pensar nas suas palavras enquanto ele levantava lentamente o olhar pesado do chão, subindo minhas pernas e braços, até pousar em meu rosto. “Então você largou a ferraria?”, perguntei. “Isso aqui tem cara de ferraria?”, respondeu Orlick, olhando à sua volta com ar de indignação. “Tem?” Perguntei-lhe há quanto tempo ele saíra da ferraria de Gargery . “Aqui um dia é tão igual ao outro”, ele respondeu, “que só sei fazendo as contas. Mas vim pra cá um tempo despois que o senhor foi embora.” “Isso até eu sabia, Orlick.” “Ah!”, ele respondeu, seco. “Mas pra saber isso tem que ter estudo.” A essa altura já havíamos chegado a casa, onde verifiquei que o quarto dele ficava logo depois da porta lateral, com uma pequena janela que dava para o pátio. Era um cômodo reduzido, semelhante ao que costuma ser reservado aos porteiros em Paris. Havia na parede algumas chaves penduradas, e a elas Orlick acrescentou a do portão; sua cama, coberta por uma colcha de retalhos, ficava num pequeno nicho interior. Havia ali um ar de confinamento, desmazelo e sono, como se o lugar fosse uma gaiola para um arganaz humano: e ele, um vulto escuro e pesado num canto à sombra junto à janela, parecia o exato arganaz humano para quem aquele quarto fora preparado — e era isso mesmo que ele era. “Nunca vi esse quarto”, comentei; “mas antigamente não havia porteiro nesta casa.” “Não”, ele respondeu; “foi só quando se espalhou a notícia que aqui não tinha proteção nenhuma, e começaram a achar que era perigoso, com esse tanto de forçado solto por aí. E então me recomendaram pro cargo como o tipo do homem que devolve aquilo que recebe, e eu aceitei. É mais fácil que mexer com fole e martelo. — Está carregada.” Meu olhar fora atraído por uma arma com coronha de latão, junto ao console da chaminé, e o olhar de Orlick seguira o meu. “Mas sim”, disse eu, não querendo prolongar aquela conversa, “não devo ir logo falar com a senhora Havisham?” “Macacos me mordam se eu sei!”, ele retorquiu, primeiro espreguiçando-se e depois sacudindo-se; “minhas ordens só vai até aqui, patrãozinho. Eu dou uma martelada nesse sino aqui, e o senhor vai andando pelo corredor até encontrar alguém.” “Estão à minha espera, imagino?” “Macacos me mordam e remordam se eu sei!”, respondeu. Diante dessa resposta, entrei no longo corredor que eu pisara pela primeira vez com minhas botas grosseiras, e ele fez o sino soar. Ao final do corredor, enquanto o sino ainda reverberava, vi Sarah Pocket, a qual parecia ter adquirido em caráter permanente um tom verde e amarelo, de inveja de mim. “Ah!”, ela exclamou. “É o senhor, senhor Pip?” “Sou eu, sim, senhora Pocket. Tenho o prazer de lhe dizer que o senhor Pocket e sua família vão bem de saúde.” “E criaram juízo?”, indagou Sarah, sacudindo a cabeça com desânimo; “o importante era eles terem juízo, mais que saúde. Ah, Matthew, Matthew! O senhor conhece o caminho, não é?” Mais ou menos, pois subira aquela escada no escuro, muitas vezes. Subi-a agora, com botas mais leves que as de outrora, e bati à maneira de sempre à porta da sra. Havisham. “É a batida do Pip”, ouvi-a dizer imediatamente; “entra, Pip.” Ela estava sentada na sua cadeira ao lado da velha mesa, com o velho vestido, as duas mãos cruzadas sobre a bengala, o queixo apoiado nelas, os olhos voltados para o fogo. Sentada a seu lado, segurando o sapato branco que nunca fora usado, e olhando para ele com a cabeça baixa, estava uma mulher elegante que eu jamais vira. “Entra, Pip”, a sra. Havisham continuava murmurando, sem olhar para os lados nem levantar a vista. “Entra, Pip, como vais, Pip? Então beijas minha mão como se eu fosse uma rainha, hein? — E então?” De repente, ela levantou a vista para mim, movendo apenas os olhos, e repetiu, num tom brincalhão implacável: “E então?” “Eu soube, senhora Havisham”, disse eu, um tanto perdido, “que a senhora teve a bondade de me pedir para vir, e assim vim imediatamente.” “E então?” A mulher que eu nunca vira antes levantou os olhos e fitou-me com malícia, e então vi que aqueles olhos eram os olhos de Estella. Mas ela estava tão mudada, tão mais bonita, tão mais feminina, estava tão diferente sob todos os aspectos dignos de admiração, que eu parecia não ter mudado nada. Imaginei, olhando para ela, que regredia, impotente, à condição de garoto grosseiro e vulgar de outrora. Ah, a sensação de distância e disparidade que me dominou, e o ar de inacessibilidade que ela assumiu! Estella me estendeu a mão. Gaguejei que era um prazer voltar a vê-la, e que há muito, muito tempo eu aguardava aquele momento. “Achas que ela está muito mudada, Pip?”, perguntou a sra. Havisham, com seu olhar ávido, e bateu com a bengala numa cadeira que estava entre elas, como sinal para que eu me sentasse ali. “Quando entrei, senhora Havisham, pensei que não havia nada de Estella no rosto nem no corpo; mas agora, curiosamente, tudo parece formar a mesma…” “O quê? Você ia dizer a mesma Estella de antigamente?”, interrompeu a sra. Havisham. “Ela era orgulhosa e desdenhosa, e tu querias fugir dela. Não lembras?” Respondi, confuso, que aquilo fora muitos anos antes, e que na época eu era ignorante, e coisas semelhantes. Estella sorriu, com perfeita tranquilidade, e disse que eu sem dúvida tinha razão, ela fora muito desagradável. “Ele está mudado?”, a sra. Havisham perguntou a ela. “E muito”, disse Estella, olhando para mim. “Menos grosseiro e vulgar?”, perguntou a sra. Havisham, brincando com o cabelo de Estella. Estella riu, e olhou para o sapato que tinha na mão, e riu novamente, e olhou para mim, e largou o sapato. Ela continuava a tratar-me como um menino, porém me instigava. Ali, naquele quarto de sonho, em meio às estranhas influências de outrora que tanto me haviam afetado, fiquei sabendo que ela acabava de voltar da França, e que estava indo para Londres. Orgulhosa e caprichosa como sempre, havia submetido essas qualidades a sua beleza de tal modo que era impossível e antinatural — ou assim me parecia — separá-las de sua beleza. Em verdade, era impossível dissociar sua presença de todos aqueles miseráveis anseios por dinheiro e refinamento que haviam perturbado minha meninice — de todas aquelas aspirações desregradas que me fizeram pela primeira vez ter vergonha de minha casa e de Joe — de todas aquelas visões que faziam o rosto dela surgir da fornalha, brotar do ferro malhado na bigorna, aparecer na escuridão da noite à janela de madeira da ferraria para desvanecer-se em seguida. Em suma, erame impossível separá-las, no passado ou no presente, do que de mais íntimo havia na minha vida. Ficou combinado que eu ficaria lá o resto do dia, e voltaria para o hotel à noite, e no dia seguinte iria para Londres. Depois de conversarmos por algum tempo, a sra. Havisham mandou-nos sair para caminhar no jardim abandonado; quando voltássemos para dentro de casa, disse ela, eu a levaria a passear em sua cadeira como antigamente. Assim, eu e Estella fomos para o jardim pelo portão através do qual eu havia saído para encontrar-me com o jovem cavalheiro pálido, o atual Herbert; eu, tremendo por dentro e adorando a barra do vestido dela; ela, perfeitamente tranquila e claramente não adorando a barra de minha calça. Quando nos aproximamos do lugar do encontro, ela parou e disse: “Eu devia ser uma criaturinha muito estranha, para esconder-me e assistir àquela luta naquele dia: mas foi o que fiz, e me diverti muito.” “Tu me recompensaste muito.” “É mesmo?”, ela replicou, como se falasse por falar. “Lembro que sentia muita aversão pelo teu adversário, pois não gostei que o trouxessem aqui para maçar-me com sua companhia.” “Eu e ele agora somos amicíssimos”, disse eu. “É mesmo? Mas creio que me lembro que estudaste com o pai dele, não foi?” “Foi, sim.” Reconheci esse fato com alguma relutância, porque parecia me tornar infantil, e ela já me tratava como se eu fosse um menino. “Depois que a tua vida mudou, mudaste de amigos”, disse Estella. “Naturalmente”, concordei. “E é claro”, ela acrescentou, num tom altivo, “que as companhias que te eram apropriadas não seriam nem um pouco apropriadas agora.” Na minha consciência, duvido muito que eu ainda tivesse alguma intenção de ir visitar Joe; mas se eu a tinha, essa observação teve o efeito de dissipá-la. “Nem imaginavas que terias essa boa sorte, naquele tempo?”, perguntou Estella, com um gesto leve na mão que indicava o tempo da luta. “De modo algum.” O ar de completude e superioridade com que ela caminhava a meu lado, e o ar de imaturidade e a submissão com que eu caminhava ao lado dela formavam um contraste que eu sentia de modo intenso. Isso me haveria incomodado mais do que de fato me incomodou se eu não julgasse que era eu mesmo que o provocava, por me sentir escolhido para ela e atribuído a ela. O jardim estava tão tomado pelo mato que não era fácil caminhar por ele, e depois de darmos duas ou três voltas voltamos para o pátio da cervejaria. Mostrei a ela com precisão o lugar onde eu a vira caminhando sobre os barris, naquele primeiro dia, e ela disse, olhando na direção por mim indicada de modo frio e descuidado: “É mesmo?”. Apontei para o lugar por onde ela saíra da casa trazendo-me carne e bebida, e ela disse: “Não me lembro”. “Não te lembras que me fizeste chorar?”, perguntei. “Não”, ela respondeu, e sacudiu a cabeça enquanto olhava à sua volta. Sou capaz de jurar que o fato de que ela não lembrava e não se importava nem um pouco com isso me fez chorar novamente, por dentro — e não há pranto mais doloroso que esse. “É importante que saibas”, disse Estella, com o tom de condescendência de uma mulher brilhante e bela, “que não tenho coração — se é que isso tem alguma coisa a ver com a minha memória.” De algum modo tartamudeei que eu tomava a liberdade de discordar dessa afirmação. Que eu sabia que não era assim. Que era impossível tanta beleza não ter coração. “Ah! Eu tenho um coração para levar uma punhalada ou um tiro, disso não tenho dúvida”, disse Estella, “e é claro que se ele parasse de bater eu deixaria de existir. Mas tu sabes o que quero dizer. Não tenho nada de suave ali, não — piedade — sentimento — essas bobagens.” O que foi que surgiu na minha mente quando ela se deteve e ficou olhando para mim com atenção? Alguma coisa que eu vira na sra. Havisham? Não. Em alguns olhares e gestos dela, havia algo de semelhante à sra. Havisham, a espécie de semelhança que muitas vezes observamos nas crianças, adquirida de adultos com que elas tiveram muito contato e com quem viveram em isolamento, e que, quando a infância fica para trás, produz uma notável semelhança de expressão ocasional entre rostos os quais, sob outros aspectos, são bem diferentes. E, no entanto, eu não conseguia associar aquilo que eu percebera à sra. Havisham. Olhei mais uma vez, e embora ela continuasse olhando para mim, a impressão havia desaparecido. O que seria? “Estou falando sério”, disse Estella, não exatamente franzindo a testa (pois sua fronte estava lisa), porém com uma sombra no rosto; “se calhar de nos encontrarmos com certa frequência, é bom que entendas isso de uma vez por todas. Não!”, fazendo com que eu me calasse quando abri os lábios. “Minha ternura não está voltada em nenhuma outra direção. Nunca tive tal coisa.” No instante seguinte, vimo-nos dentro da cervejaria há tanto tempo em desuso, e ela apontou para a galeria elevada de onde eu a vira saindo naquele primeiro dia, e disse-me que se lembrava de que estivera ali, e que me vira cá embaixo, assustado. Enquanto meu olhar seguia sua mão alva, mais uma vez aquela vaga impressão se apossou de mim. Meu estremecimento involuntário fez com que ela pousasse a mão em meu braço. No mesmo instante, o fantasma desapareceu mais uma vez. O que seria? “O que houve?”, indagou Estella. “Estás com medo de novo?” “Eu estaria, se acreditasse no que disseste ainda pouco”, respondi, para desviar o assunto. “Então não acreditas? Muito bem. O fato é que foste avisado. A senhora Havisham vai querer que cumpras tua antiga função agora, embora a meu ver isso devesse ser deixado de lado, juntamente com outras velharias. Vamos dar mais uma volta no jardim e depois entrar em casa. Venha! Hoje não vais chorar por causa da minha crueldade; hoje serás meu pajem, e me darás teu ombro.” Seu vestido elegante antes estava se arrastando no chão. Agora ela levantouo com uma das mãos, e com a outra tocou de leve meu ombro enquanto caminhávamos. Demos mais duas ou três voltas no jardim destruído, e para mim ele estava em flor. Se o mato verde e amarelo que crescia nas fendas do velho muro fossem as flores mais preciosas que jamais se abriram, elas não seriam mais preciosas na minha memória. Não havia discrepância em anos entre nós, que a distanciasse muito de mim; éramos quase da mesma idade, embora, é claro, ela parecesse ser mais velha do que eu; porém o ar de inacessibilidade que sua beleza e seus modos lhe atribuíam atormentava-me no meio de meu enlevo, e no auge de minha confiança senti que nossa protetora nos havia escolhido um para o outro. Infeliz rapaz! Por fim voltamos para dentro da casa, e lá ouvi, surpreso, que meu tutor tinha vindo de Londres para discutir assuntos de negócios com a sra. Havisham, e voltaria para o jantar. Os velhos ramos hibernais dos candelabros da sala onde ficava a mesa cheia de podridão haviam sido acendidos enquanto estávamos no jardim, e a sra. Havisham estava em sua cadeira esperando por mim. Foi como se eu empurrasse a cadeira de volta para o passado, quando demos início ao velho circuito lento em torno das cinzas da festa de casamento. Porém Estella, naquela sala fúnebre, com aquela figura saída do túmulo inclinada na cadeira olhando-a fixamente, parecia mais luminosa e bela do que antes, e o encantamento que exercia sobre mim ficou ainda mais forte. O tempo passou tão depressa que já se aproximava a hora do jantar1 da sra. Havisham, que jantava cedo, e Estella foi preparar-se. Havíamos parado perto do centro da mesa comprida, e a sra. Havisham, com um de seus braços mirrados estendidos para fora da cadeira, pousou o punho cerrado sobre a toalha de mesa amarelada. Enquanto Estella olhava para trás antes de sair da sala, a sra. Havisham beijou a sua mão em direção a ela, com uma intensidade ávida que, à sua maneira, era verdadeiramente terrível. Então, depois que Estella saiu e nós dois ficamos a sós, ela virou-se para mim e disse, num sussurro: “Ela é bonita, graciosa, alta? Tu a admiras?” “Todos que a veem a admiram, senhora Havisham.” Ela pôs o braço em torno de meu pescoço e aproximou minha cabeça da dela, sem se levantar da cadeira. “Ama-a, ama-a, ama-a! Como ela te trata?” Antes que eu pudesse responder (se pudesse responder uma pergunta tão difícil), ela repetiu: “Ama-a, ama-a, ama-a! Se ela te aceitar, ama-a. Se ela te magoar, ama-a. Se ela despedaçar teu coração — e à medida que ele ficar mais velho e mais forte, há de se despedaçar mais a fundo — ama-a, ama-a, amaa!”. Eu jamais vira uma avidez tão passional quanto a que ela exprimiu ao pronunciar essas palavras. Sentia os músculos do braço fino em torno do meu pescoço incharem com a veemência que a possuía. “Ouve-me, Pip! Eu adotei-a para ela ser amada. Criei-a e eduquei-a para ser amada. Fiz com que se tornasse o que ela é hoje para ser amada. Ama-a!” Ela repetia aquela palavra muitas vezes, e não podia haver dúvida que era isso mesmo que ela queria dizer; mas se a palavra tão repetida fosse em vez de amor desespero — vingança — morte cruel — não poderia ter soado mais sinistra, como uma maldição, em seus lábios. “Vou dizer-te”, ela prosseguiu, com o mesmo sussurro rápido e passional, “o que é o verdadeiro amor. É devoção cega, é humilhar-se sem questionar nada, submeter-se por completo, confiar e crer contra ti próprio e contra todo o mundo, é entregar todo o teu coração e tua alma a quem te golpeia — tal como eu fiz!” Quando ela disse essas palavras, e soltou um grito enlouquecido, segurei-a pela cintura. Pois ela se levantara da cadeira, com aquele vestido que era mais uma mortalha, e pôs-se a golpear o ar como se quisesse jogar-se contra a parede e matar-se. Tudo isso se passou em uns poucos segundos. Quando a fiz sentar-se outra vez em sua cadeira, senti um perfume que conhecia bem, e ao virar-me deparei com meu tutor, ali mesmo na sala. Ele sempre levava no bolso (ainda não mencionei esse fato, creio) um lenço de seda fina e proporções impressionantes, que lhe era muito útil em sua profissão. Já o vi encher de terror um cliente ou uma testemunha desdobrando cerimoniosamente esse lenço como se estivesse prestes a assoar o nariz, e então fazendo uma pausa, como se soubesse que não teria tempo de assoá-lo antes que o cliente ou a testemunha se entregasse, de tal modo que a pessoa em questão imediatamente se entregava, inevitavelmente. Quando o vi ali na sala, ele segurava aquele lenço expressivo com as duas mãos, e olhava para nós. Ao encontrar meu olhar, disse com naturalidade, fazendo uma pausa momentânea e silenciosa em sua atitude: “Deveras? Curioso!”, e em seguida utilizou seu lenço para sua finalidade apropriada de modo extraordinariamente eficaz. A sra. Havisham o vira no mesmo momento que eu, e (como todo mundo) tinha medo dele. Fez uma tentativa heroica de recuperar o autocontrole e comentou, gaguejando, que ele fora pontual como sempre. “Pontual como sempre”, ele repetiu, aproximando-se de nós. “(Como vai, Pip? Quer que eu empurre um pouco, senhora Havisham? Uma volta completa?) Quer dizer que você está aqui, Pip?” Eu lhe disse quando havia chegado, e que a sra. Havisham manifestara a vontade de que eu viesse ver Estella. Ao ouvir isso, ele exclamou: “Ah! Uma jovem de qualidade!”. Em seguida, começou a empurrar a cadeira da sra. Havisham com uma de suas manzorras, ficando com a outra no bolso da calça, como se o bolso estivesse cheio de segredos. “Mas sim, Pip! Quantas vezes você já viu a senhorita Estella antes?”, perguntou-me ele, quando parou. “Quantas vezes?” “Ah! Quantas vezes. Dez mil vezes?” “Ah, não! Muito menos, certamente.” “Duas vezes?” “Jaggers”, interrompeu a sra. Havisham, para grande alívio meu, “deixe em paz o meu Pip, e vá jantar com ele.” Ele obedeceu, e juntos descemos, tateando, a escada escura. Enquanto ainda estávamos a caminho daqueles aposentos que ficavam do outro lado do pátio de fundos, ele me perguntou quantas vezes eu já vira a sra. Havisham comer e beber; como sempre, ofereceu-me as opções de cem vezes e uma só vez. Pensei e respondi: “Nunca”. “E nunca vai ver, Pip”, ele retorquiu, com um sorriso carrancudo. “Ela jamais permitiu que ninguém a visse fazendo tais coisas, desde que começou a levar a vida que leva agora. À noite fica a andar pela casa, e é então que come o que encontra.” “Por favor”, repliquei, “posso fazer uma pergunta?” “Pode”, respondeu, “e posso me recusar a responder. Faça a sua pergunta.” “O sobrenome de Estella. É Havisham ou…?”, eu não tinha nada mais a acrescentar. “Ou o quê?”, ele perguntou. “É Havisham?” “É Havisham.” A essa altura, já estávamos chegando à mesa de jantar, onde ela e Sarah Pocket nos aguardavam. O sr. Jaggers ficou na cabeceira, Estella sentou-se à sua frente e eu fiquei em frente à minha amiga verde e amarela. Comemos muito bem, e fomos servidos por uma criada que eu jamais vira em todas as minhas andanças pela casa, mas que podia muito bem ter vivido naquela casa misteriosa desde sempre. Depois do jantar, uma garrafa de finíssimo vinho do Porto envelhecido foi colocada diante de meu tutor (sem dúvida, ele conhecia bem aquele vinho), e as duas senhoras se levantaram da mesa. Reticência tão determinada quanto a do sr. Jaggers naquela casa jamais vi em nenhum lugar, nem sequer nele. Ele controlava até mesmo o olhar, e praticamente não pôs os olhos no rosto de Estella uma única vez durante o jantar. Quando ela se dirigia a ele, o sr. Jaggers escutava, e depois de algum tempo respondia, mas jamais a olhava, até onde eu o percebesse. Por outro lado, Estella olhava-o repetidamente, com interesse e curiosidade, se não desconfiança, mas o rosto dele jamais traiu a menor consciência do fato. Durante todo o jantar ele se divertiu fazendo Sarah Pocket ficar ainda mais verde e mais amarela, com referências a minhas perspectivas, dirigindo-se a mim; porém nisso, também, ele não demonstrava nenhuma consciência, e até mesmo dava a impressão de que arrancava — e era o que de fato fazia, embora eu não saiba dizer como — essas referências de minha própria boca inocente. E quando eu e ele ficamos a sós, o sr. Jaggers permaneceu com um tal ar de estar guardando para si informações que possuía, que quase não conseguia me conter. Ele era capaz de interrogar até o vinho que tomava, não havendo nada mais apropriado à sua frente. Segurava a taça diante da vela, saboreava o vinho do Porto, deixava que ele resvalasse sobre a língua, engolia-o, olhava para a taça mais uma vez, cheirava o vinho, provava-o, bebia-o, voltava a encher a taça e mais uma vez interrogava-a, até que fiquei tão nervoso quanto ficaria se soubesse que o vinho estava lhe falando mal de mim. Três ou quatro vezes senti uma vontade débil de puxar assunto; mas sempre que ele percebia que eu ia lhe perguntar alguma coisa, olhava para mim com a taça na mão, fazendo o vinho resvalar sobre a língua, como se para que eu entendesse que não adiantava, pois ele não ia responder-me nada. Creio que a sra. Pocket tinha consciência de que a minha presença era capaz de fazê-la correr o risco de enlouquecer, talvez a ponto de arrancar a touca — a qual era horrenda, mais parecendo um esfregão de musselina — e jogar seus cabelos no chão — pois aqueles cabelos certamente não haviam crescido na cabeça dela. Ela não apareceu quando, mais tarde, subimos para o quarto da sra. Havisham, e ficamos os quatro a jogar uíste. Nesse ínterim, a sra. Havisham, a seu modo extravagante, havia colocado algumas das joias mais belas que tinha em sua penteadeira no cabelo de Estella, em seu colo e seus braços; e percebi que até mesmo meu tutor olhava para ela por baixo de suas sobrancelhas espessas e as arqueava um pouco, quando a beleza da jovem estava à sua frente, com aqueles toques magníficos de brilho e cor. A respeito do modo e do grau como ele tomou nossos trunfos e terminou com cartas de baixo valor, diante das quais a glória de nossos reis e damas foi fragorosamente derrotada, nada direi, tal como nada direi a respeito da sensação que tive ao me dar conta de que ele nos encarava como se fôssemos três enigmas muito óbvios que ele já havia resolvido há muito tempo. O que me causava sofrimento era a incompatibilidade entre a presença fria de meu tutor e meus sentimentos em relação a Estella. Não por eu saber que não suportaria falar-lhe a respeito de Estella, por saber que não suportaria ouvi-lo fazer suas botas ranger para ela, por saber que não suportaria vê-lo lavar as mãos após o contato com ela; era por estar minha admiração a um metro de distância dele — por estarem meus sentimentos no mesmo lugar que ele — era isso que me torturava. Jogamos até as nove horas, e então foi combinado que quando Estella fosse a Londres eu seria avisado, e viria recebê-la quando chegasse sua diligência; em seguida, despedi-me dela, e toquei-a, e afastei-me dela. Meu tutor, no Javali, estava hospedado no quarto ao lado do meu. Até altas horas da madrugada, as palavras da sra. Havisham — “Ama-a, ama-a, ama-a!” — soavam nos meus ouvidos. Adaptei-as para minha própria repetição, e disse a meu travesseiro — “Amo-a, amo-a, amo-a!” — centenas de vezes. E um frêmito de gratidão apossou-se de mim, por ela me ser destinada, a mim que fora outrora aprendiz de ferreiro. E pensei que se ela, como eu temia, ainda não se sentisse nem um pouco grata por eu lhe ser destinado, então quando é que começaria a se interessar por mim? Quando eu haveria de despertar aquele coração que agora estava mudo e adormecido? Ai de mim! Tais emoções me pareciam grandes e elevadas. Mas nunca me ocorreu que fosse pequena e baixa minha atitude de afastar-me de Joe, porque eu sabia que ela haveria de desprezá-lo. Apenas um dia antes Joe fizera lágrimas brotar em meus olhos; elas haviam secado logo — que Deus me perdoe — haviam secado logo. 11 Depois de pensar bem na questão enquanto me vestia no Javali Azul, na manhã seguinte, resolvi dizer a meu tutor que, na minha opinião, Orlick não era a pessoa indicada para ocupar um cargo de confiança na casa da sra. Havisham. “Ora, é claro que ele não é a pessoa indicada, Pip”, respondeu meu tutor, que já tinha opinião formada sobre o assunto, “porque a pessoa que preenche um cargo de confiança nunca é a pessoa indicada.” Ele parecia bastante animado pela constatação de que aquele cargo em particular não era uma exceção à regra sobre pessoas apropriadas, e ficou a escutar-me com uma expressão satisfeita enquanto eu lhe dizia o que sabia a respeito de Orlick. “Muito bem, Pip”, observou ele quando concluí; “vou lá pagar nosso amigo e despachá-lo.” Um tanto preocupado com essa ação sumária, argumentei que seria bom esperar um pouco, e até mesmo dei a entender que nosso amigo talvez criasse dificuldades. “Ah, não há perigo”, disse meu tutor, indicando sua carteira com absoluta confiança; “eu gostaria de vê-lo discutir o assunto comigo.” Como íamos voltar juntos para Londres na diligência do meio-dia, e como fiz meu desjejum com tanto pavor de Pumblechook que mal conseguia segurar a xícara, isso me deu uma oportunidade de dizer que gostaria de fazer uma caminhada, que eu iria seguindo pela estrada de Londres enquanto o sr. Jaggers realizava sua tarefa, e de pedir-lhe que avisasse o cocheiro que eu tomaria meu lugar quando a diligência me alcançasse. Assim, pude fugir do Javali Azul imediatamente após o desjejum. Dando uma volta de cerca de três quilômetros pelo campo aberto, passando por trás da loja de Pumblechook, retomei a Highstreet um pouco à frente daquele lugar perigoso, e senti-me relativamente a salvo. Era interessante ver-me de volta na minha velha aldeia silenciosa, e não era desagradável de vez em quando ser reconhecido de súbito e tornar-me alvo de olhares atentos. Um ou dois comerciantes chegaram mesmo a sair correndo de suas lojas e caminhar pouco à minha frente, para depois dar meia-volta e passar por mim frente a frente — ocasiões nas quais não sei dizer quem era o pior fingidor, eu ou os comerciantes; eles fingindo que não estavam fazendo o que estavam fazendo, e eu fingindo que não os via a fazê-lo. Fosse como fosse, o fato é que eu era uma pessoa distinta, e isso não me desagradava em absoluto, até que o destino pôs no meu caminho aquele patife indomável, o empregado de Trabb. Lançando um olhar à minha frente num determinado ponto da minha trajetória, vi o empregado de Trabb se aproximando, debatendo-se com uma sacola azul vazia. Imaginando que contemplá-lo com ar sereno e indiferente seria o mais adequado, e a atitude que melhor poderia deter seus propósitos malignos, segui em frente com tal expressão no rosto, e já estava me felicitando pelo meu sucesso quando de repente os joelhos do empregado de Trabb começaram a entrechocar-se, seu cabelo levantou-se, seu boné caiu, ele começou a estremecer violentamente da cabeça aos pés e saiu para o meio da rua, cambaleando e gritando para o populacho: “Me segurem! Estou apavorado!”, fingindo estar num paroxismo de terror e contrição causado pela dignidade da minha pessoa. Quando passei por ele, o empregado de Trabb batia o queixo ruidosamente, e em seguida, com todos os sinais de extrema humilhação, prostrou-se no chão. Isso era difícil de suportar, mas ainda não era nada. Eu não havia avançado mais do que cem metros quando, para meu indizível terror, minha surpresa e indignação, mais uma vez vi o empregado de Trabb se aproximando. Ele dobrava uma esquina estreita. A sacola azul estava jogada sobre o ombro, os olhos brilhavam de industriosidade honesta, o passo rápido indicava a determinação alegre de chegar logo ao local de trabalho. Com espanto, percebeu minha presença, e teve outro ataque semelhante ao anterior; mas dessa vez o movimento foi rotativo, e ele ficou a girar em torno de mim, cambaleando, os joelhos ainda mais trêmulos, com as mãos levantadas, como se implorando piedade. Seus sofrimentos foram saudados do modo mais efusivo por um grupo de espectadores, e senti-me completamente perplexo. Eu não havia chegado ainda sequer até os correios quando mais uma vez vi o empregado de Trabb sair de uma transversal. Agora ele estava de todo mudado. Levava a sacola azul como eu levava meu sobretudo e caminhava pela calçada em direção a mim pelo outro lado da rua, acompanhado por um grupo de jovens amigos deliciados para os quais de vez em quando ele exclamava, gesticulando: “Não conheço ’ocês não!”. Não tenho palavras para exprimir a indignação e a mortificação que o empregado de Trabb me proporcionou quando, passando a meu lado, levantou o colarinho da camisa, retorceu os cabelos, pôs uma mão na cintura e, com um sorriso afetadíssimo, sacudindo os cotovelos e o corpo, rosnou para seus acompanhantes: “Não conheço ’ocês, não conheço ’ocês, juro por Deus que não conheço ’ocês!”. A vergonha que senti quando logo em seguida ele se pôs a cacarejar, correndo atrás de mim na ponte como se fosse um galo extremamente aborrecido, que me conhecera no tempo em que eu era ferreiro, foi o ultraje final que marcou minha saída da cidade, sendo, por assim dizer, expulso por ela para o campo aberto. Mas a menos que eu matasse o empregado de Trabb naquela ocasião, realmente não sei até hoje o que eu poderia ter feito senão suportar tudo. Atracar-me com ele na rua, ou arrancar dele qualquer recompensa menor do que seu sangue vital, teria sido inútil e degradante. Além disso, ele era um rapaz que ninguém conseguia machucar; uma serpente invulnerável e arisca que, quando encurralada, escapulia por entre as pernas do agressor, gritando com escárnio. Contudo, no dia seguinte escrevi para o sr. Trabb, dizendo que doravante o sr. Pip não poderia mais usar os serviços de alguém que, desprezando os melhores interesses da sociedade, empregava um rapaz que despertava asco em todas as pessoas respeitáveis. A diligência, com o sr. Jaggers dentro, chegou no tempo devido, e retomei meu assento junto ao cocheiro, e cheguei a Londres a salvo — mas não são, pois meu coração estava destruído. Tão logo cheguei, como forma de penitência mandei entregar um bacalhau e um barril de ostras na casa de Joe (por não ter ido lá pessoalmente) e em seguida fui para o Barnard’s Inn. Encontrei Herbert comendo frios, e ele me recebeu efusivamente. Tendo despachado o vingador para comprar mais comida no café, senti-me impelido a me abrir naquela mesma noite com meu amigo e companheiro. Como seria impossível fazer confidências com o vingador no corredor, o qual haveria de funcionar como antessala para o buraco da fechadura, mandei-o ir ao teatro. Não poderia haver melhor prova da severidade da minha escravidão em relação àquele capataz do que as medidas degradantes a que eu era reduzido. Meu desespero era tal que por vezes eu o fazia ir até a esquina do Hy de Park para saber que horas eram.1 Terminado o jantar, estávamos sentados com os pés no guarda-fogo quando eu disse a Herbert: “Meu caro Herbert, tenho uma confissão a te fazer, muito em particular”. “Meu caro Handel”, ele respondeu, “ouvirei tua confidência com estima e respeito.” “Diz respeito a mim, Herbert”, prossegui, “e a outra pessoa.” Herbert cruzou as pernas, olhou para o fogo com a cabeça inclinada para um lado e, tendo esperado algum tempo em vão, virou-se para mim, por eu permanecer calado. “Herbert”, disse eu, pondo a mão em seu joelho. “Eu amo — eu adoro — Estella.” Em vez de ficar estarrecido, ele respondeu num tom perfeitamente natural: “Certo. E então?”. “E então, Herbert? É tudo que me dizes? E então?” “Então, o que é que vais fazer?”, perguntou Herbert. “Porque isso eu já sabia.” “Como assim, já sabias?”, indaguei. “Como assim, Handel? Ora, através de ti.” “Eu nunca te disse isso.” “Nunca me disseste! Tu nunca me dizes quando cortas o cabelo, mas eu tenho olhos para ver. Tu sempre a adoraste, desde que o conheço. Trouxeste tua adoração junto com a tua valise para cá. Nunca me disseste! Ora, não fazes outra coisa senão dizê-lo o dia inteiro. Quando me contaste a tua história, dissesteme com todas as letras que começaste a adorá-la a primeira vez em que a viste, quando ainda eras bem menino.” “Está bem”, concordei, embora isso para mim fosse algo de novo e não muito agradável, “nunca deixei de adorá-la. E ela voltou, uma criatura belíssima e elegantíssima. E estive com ela ontem. E se antes já a adorava, agora eu a adoro em dobro.” “Sorte tua então, Handel”, disse Herbert, “teres sido escolhido para ela e atribuído a ela. Sem pisarmos em território proibido, podemos dizer que não há dúvida quanto a esse fato. E já fazes alguma ideia do que Estella pensa a respeito de ser adorada?” Sacudi a cabeça, melancólico. “Ah! Ela está a milhares de quilômetros de mim.” “Paciência, meu caro Handel: dá tempo ao tempo, dá tempo ao tempo. Mas tens mais alguma coisa a dizer?” “Tenho vergonha de dizê-lo”, respondi, “e, no entanto, dizer não é pior do que pensar. Dizes que sou um sujeito de sorte. É claro que sou. Ainda ontem eu era aprendiz de ferreiro; e agora sou… sou o quê?” “Um bom sujeito, se queres uma expressão adequada”, completou Herbert, sorrindo e pondo sua mão sobre a minha, “um bom sujeito, impetuoso e hesitante, ousado e tímido, ativo e sonhador, uma mistura curiosa.” Parei por um momento para pensar se realmente existia tal mistura no meu caráter. De modo geral, eu não concordava com aquela análise, mas concluí que não valia a pena discutir o assunto. “Quando pergunto o que sou hoje, Herbert”, prossegui, “estou te transmitindo o que se passa pela minha cabeça. Tu me dizes que tenho sorte. Sei que não fiz nada para subir na vida, e que apenas o fado me elevou; é isso que é ter sorte. E no entanto, quando penso em Estella…” (“E quando é que não pensas nela?”, comentou Herbert, olhando para o fogo; um comentário que me pareceu bondoso e solidário.) “… Então, meu caro Herbert, eu não saberia exprimir o quanto me sinto dependente e inseguro, e exposto a centenas de eventualidades. Para evitar o território proibido, como fizeste ainda há pouco, posso dizer que é da constância de uma pessoa (a qual não identifico) que dependem todas as minhas esperanças. E na melhor das hipóteses, como é indefinido e frustrante, saber apenas de modo tão vago quais elas são!” Ao dizer isso, aliviei-me de um fardo que carregava em minha mente mais ou menos desde sempre, mas em particular desde a véspera. “Ora, Handel”, respondeu Herbert, com seu jeito alegre e esperançoso, “a meu ver, no desânimo causado pelos sentimentos mais tenros, estamos examinando com uma lupa os dentes do cavalo dado. Do mesmo modo, creio que, ao nos determos nesse exame, deixamos de lado uma das melhores qualidades do animal. Não me disseste que o teu tutor, o senhor Jaggers, desde o início deixou claro que o que tens não são apenas esperanças? E mesmo que ele não tivesse dito isso — o que é uma concessão muito grande — acreditarias que, de todas as pessoas que há em Londres, o senhor Jaggers haveria de manter contigo as relações que mantém se não tivesse certeza de onde está pisando?” Respondi que não podia negar que isso era uma qualidade. Disse isso (pessoas costumam fazê-lo em casos assim) como quem faz uma concessão relutante à verdade e à justiça — como se quisesse negá-lo! “Eu diria que é sem dúvida uma qualidade”, prosseguiu Herbert, “e diria também que seria difícil imaginar uma qualidade maior. No mais, tens que esperar o tempo que teu tutor achar necessário, tal como ele tem de esperar o tempo que o cliente dele achar necessário. Quando menos esperares, já estarás completando vinte e um anos, e então quem sabe não ficarás sabendo um pouco mais. Seja lá como for, mais dia, menos dia isso vai acontecer.” “Mas tu tens mesmo um ânimo otimista!”, exclamei, com gratidão. “Tenho que ter otimismo”, disse Herbert, “pois não tenho muito mais do que isso. Preciso reconhecer, aliás, que o bom senso do meu comentário vem não de mim, e sim de meu pai. A única observação que eu o ouvi fazer a respeito do teu caso foi esta: ‘A coisa está decidida, senão o senhor Jaggers não estaria envolvido’. E agora, antes que eu diga mais alguma outra coisa a respeito de meu pai, ou do filho de meu pai, fazendo uma confidência para corresponder à tua, vou dizer uma coisa que vai me tornar profundamente desagradável para ti por um momento — realmente repulsivo.” “Não vais conseguir”, disse eu. “Ah, mas vou, sim!”, ele insistiu. “Um, dois, três, e lá vou eu. Handel, meu caro” — embora seu tom fosse alegre, ele estava falando muito a sério — “estou pensando, desde que começamos esta conversa com os pés apoiados no guardafogo, que Estella certamente não pode ser uma condição da tua herança, se ela nunca foi mencionada pelo teu tutor. É verdade, quanto ao que me disseste, que ele jamais se referiu a ela, de modo direto ou indireto, em nenhuma ocasião? Jamais deu a entender, por exemplo, que o teu protetor talvez tivesse algum plano com relação ao teu casamento?” “Jamais.” “Ora, Handel, eu não sou homem de dizer, como disse a raposa, que as uvas estão azedas, palavra de honra! Como não estás comprometido com Estella, não podes desligar-te dela? Eu avisei que seria desagradável.” Virei a cabeça para o lado, pois, num assomo súbito, como os velhos ventos que vinham do mar e varriam o charco, um sentimento como aquele que havia me dominado no dia em que fui embora da ferraria, quando a névoa se elevava solene, quando pus a mão no poste indicador no final da aldeia, dominou meu coração outra vez. Fez-se o silêncio entre nós por algum tempo. “Sim; porém, meu caro Handel”, prosseguiu Herbert, como se tivéssemos dito algo e não permanecido calados, “o fato de que a coisa tem raízes tão profundas no peito de um rapaz que a natureza e as circunstâncias tornaram tão romântico, torna-a muito séria. Pensa no modo como ela foi criada, e pensa na senhora Havisham. Pensa no que ela é, ela própria (agora estou sendo repulsivo, e você me abomina). Isso pode terminar em muito sofrimento.” “Eu sei, Herbert”, respondi, ainda virado para o outro lado, “mas não posso fazer nada.” “Não podes desligar-te?” “Não. É impossível!” “Não podes tentar, Handel?” “Não. É impossível!” “Pois bem!”, exclamou Herbert, levantando-se e sacudindo-se com energia, como se estivesse acordando, e atiçando o fogo. “Agora vou tentar voltar a ser agradável!” Assim, ficou a andar pelo recinto, sacudindo as cortinas, recolocando as cadeiras em seus lugares, arrumando nas prateleiras os livros e outras coisas que estavam espalhadas; olhou para o corredor, examinou a caixa de correspondência, fechou a porta e voltou para sua cadeira junto à lareira: e sentou-se, segurando a perna esquerda com os dois braços. “Eu ia dizer uma ou duas coisas, Handel, sobre o meu pai e o filho de meu pai. Acho que o filho de meu pai nem precisa dizer que a casa de meu pai não prima pelas contas em ordem.” “Nunca falta nada, Herbert”, disse eu, para fazer algum comentário animador. “Ah, é verdade! É o que diz o lixeiro, creio eu, com muita ênfase, e também a loja de artigos para navios da rua de trás. Falando sério, Handel, pois o assunto é sério, tu sabes como é, tão bem quanto eu. Creio houve uma época em que meu pai não havia entregado os pontos; mas se houve, ela já passou. Posso te perguntar se já tiveste oportunidade de observar, lá na tua terra, que os filhos de casais não muito bem casados são sempre os que têm mais pressa de casar?” A pergunta era tão singular que a respondi com outra pergunta: “Isso é verdade?”. “Não sei”, respondeu Herbert. “É isso que quero saber. Porque certamente é o que acontece conosco. Minha pobre irmã, Charlotte, que vinha logo antes de mim e morreu quando ainda nem tinha catorze anos, é um exemplo claro. A pequena Jane é outro. Ela tem tanta vontade de se casar que quem vê até imagina que ela passou toda a sua breve existência na constante contemplação da felicidade conjugal. A pequena Alick já combinou que vai casar-se com um rapaz adequado de Kew. Aliás, acho que todos nós já estamos noivos, menos o bebê.” “Quer dizer que você está noivo?”, perguntei. “Estou, sim”, Herbert respondeu; “mas é segredo.” Prometi-lhe que guardaria o segredo, e implorei para que me desse mais detalhes. Ele falara de modo tão sensato e sentido a respeito da minha fraqueza que eu queria saber alguma coisa sobre a sua força. “Posso perguntar o nome?”, indaguei. “O nome é Clara”, disse Herbert. “Mora em Londres?” “Mora. Talvez eu deva dizer”, respondeu Herbert, que curiosamente ficara cabisbaixo e humilde desde que havíamos entrado naquele assunto interessante, “que ela está muito abaixo das exigências absurdas de minha mãe a respeito de famílias. O pai dela trabalhava na área de abastecimento de navios de passageiros. Creio que era uma espécie de tesoureiro.” “E agora ele é o quê?”, perguntei. “Um inválido”, Herbert. “Ele vive…?” “No andar de cima”, respondeu Herbert. Não fora esse, em absoluto, o sentido da minha pergunta, e sim seu meio de vida. “Nunca vi o pai, pois ele não sai do quarto dele lá em cima, desde que conheci a Clara. Mas eu o ouço constantemente. Ele cria os maiores tumultos — grita, e bate no chão com algum instrumento assustador.” Olhando para mim e depois rindo-se gostosamente, Herbert por algum tempo recuperou seu jeito animado costumeiro. “Não pretendes jamais vê-lo?”, perguntei. “Claro, estou sempre achando que vou vê-lo”, respondeu Herbert, “porque cada vez que o ouço tenho a impressão de que ele vai desabar do andar de cima, por um buraco no teto. Mas não sei quanto tempo ainda os caibros vão aguentar.” Depois de rir-se gostosamente mais uma vez, tornou a ficar humilde, e disseme que, assim que começasse a acumular algum capital, tinha intenção de desposar essa moça. Acrescentou, como se fosse uma proposição de veracidade óbvia, e desanimadora: “Mas não se pode casar, tu sabes, enquanto ainda se está olhando à volta”. Enquanto contemplávamos o fogo, e eu pensava o quanto era difícil acumular capital às vezes, pus as mãos nos bolsos, e um pedaço de papel que havia num deles atraiu minha atenção; desdobrei-o e vi que era um programa do espetáculo teatral que me fora entregue por Joe, a apresentação do célebre amador provinciano de renome rosciano. “E olha só”, acrescentei em voz alta, “é hoje!” Desse modo, mudamos de assunto na mesma hora, e decidimos apressadamente ir assistir à peça. Assim, depois que me comprometi a confortar e ajudar Herbert em suas questões amorosas por todos os meios práticos e impraticáveis, e depois que Herbert me disse que sua noiva já me conhecia por minha reputação e que eu seria apresentado a ela, e depois que trocamos um aperto de mãos caloroso, selando nossa confiança mútua, sopramos as velas, apagamos o fogo da lareira, trancamos a porta e saímos em busca do sr. Wopsle e da Dinamarca.2 12 Quando chegamos à Dinamarca, encontramos o rei e a rainha instalados em duas poltronas colocadas sobre uma mesa de cozinha, cercados por sua corte. Toda a nobreza do país estava presente; ela consistia num rapaz jovem que calçava botas de camurça herdadas de algum ancestral gigantesco, um venerável par do reino de cara suja que parecia ter-se destacado do populacho a uma altura avançada da vida, e a cavalaria dinamarquesa com um pente no cabelo e meias de seda branca, tendo todo o conjunto uma aparência bem feminina. Meu talentoso conterrâneo guardava certa distância dos outros, melancólico, de braços cruzados, e desejei que seus cachos e sua testa fossem um pouco mais verossímeis. Uma série de pequenas circunstâncias curiosas veio à tona enquanto a ação se desenrolava. Ao que parecia, o falecido rei do país não apenas sofria de uma tosse insistente no momento de sua morte, como também a havia levado para o túmulo, de onde ela emergira com ele. O fantasma real levava também um manuscrito espectral enrolado em seu porrete, e parecia consultá-lo, com um ar de ansiedade e uma tendência a perder o lugar da leitura que pareciam indicar um estado de mortalidade. Creio que foi isso que levou a galeria do teatro a aconselhar o espectro: “Vira a página!” — uma recomendação que ele recebeu muito mal. Observava-se também que essa majestosa aparição, embora sempre aparecesse dando a impressão de que estivera fora há muito tempo e caminhara uma distância imensa, na verdade vinha de uma parede bem perto dali. Por esse motivo, os terrores dessa criatura eram recebidos com gargalhadas irreverentes. A rainha da Dinamarca, uma senhora de carnes muito abundantes, tinha igual abundância de adereços de latão; seu queixo estava unido ao diadema por uma faixa larga feita desse metal (como se ela estivesse acometida de uma dor de dentes suntuosa), uma faixa semelhante lhe cingia a cintura e duas outras lhe adornavam os braços, o que levou o público a caracterizá-la abertamente como “a latoeira”. O rapaz nobre das botas ancestrais era incoerente; encarnava quase simultaneamente um marujo, um ator itinerante, um coveiro, um sacerdote e uma personagem da maior importância num duelo de esgrima na corte, cujo olho clínico e perícia profissional fundamentavam avaliações precisas de cada golpe. Esse fato gradualmente teve o efeito de granjear-lhe antipatia, a qual culminou — no momento em que ele foi visto em trajes clericais, recusando-se a ministrar um serviço fúnebre — numa indignação geral, que assumiu a forma de uma saraivada de nozes. Por fim, Ofélia sofria de uma loucura musical de tal lerdeza que quando ela por fim conseguiu retirar sua estola de musselina branca, dobrá-la e enterrá-la, um homem mal-humorado que já estava há algum tempo refrescando o nariz impaciente encostando-o à barra de ferro que circundava a galeria, rosnou: “Agora que puseram o bebê na cama, vamos jantar!”. Um comentário, no mínimo, impertinente. Todos esses incidentes acumularam-se sobre meu infeliz conterrâneo, com efeito hilariante. Sempre que aquele príncipe indeciso era obrigado a fazer uma pergunta ou exprimir uma dúvida, o público o ajudava. Assim, por exemplo, diante da questão de ser ou não mais nobre na mente sofrer, alguns gritaram que sim, outros que não, e ainda outros, indecisos, sugeriram: “Tira na cara ou coroa!”, o que deu origem a um acalorado debate. Quando ele perguntou o que fazia uma criatura como ele a rastejar entre a terra e os céus, a plateia reagiu com gritos animados de “Isso mesmo!”. Quando ele apareceu com a meia fora do lugar (o que foi representado, como manda a tradição, por uma dobra muito cuidadosa no alto da meia, que sempre me parece ter sido feita com um ferro de passar), entreouviu-se uma conversa na galeria a respeito da palidez de sua perna, que possivelmente teria sido causada pelo susto levado diante do fantasma. Quando o príncipe pegou uma flauta doce — muito semelhante a uma pequena flauta negra que fora recentemente tocada na orquestra e entregue pela porta — houve um clamor unânime, pedindo que ele tocasse a canção patriótica “Rule, Britannia”. Quando ele aconselhou o ator a não gesticular de modo exagerado, o homem mal-humorado interveio: “Segue tu mesmo esse conselho; és muito pior do que ele!”. E lamento acrescentar que gargalhadas gostosas saudaram o sr. Wopsle em cada uma dessas ocasiões. Porém ele enfrentou suas piores provações no cemitério, o qual parecia uma floresta primeva, equipada com uma espécie de pequena lavanderia eclesiástica de um lado e uma barreira de pedágio do outro. Quando surgiu o sr. Wopsle, com uma capa negra abrangente, junto à barreira, o coveiro foi devidamente alertado por uma voz simpática: “Cuidado! Lá vem o agente funerário, para ver se estás trabalhando direitinho!”. Creio que todos sabem num país civilizado que não seria possível o sr. Wopsle manusear um crânio, após filosofar a respeito dele, sem depois limpar os dedos num lenço branco retirado do bolso; mas até mesmo esse gesto inocente e indispensável evocou um comentário: “Garçom!”. A chegada do corpo a ser enterrado (numa caixa preta vazia cuja tampa caiu no chão) foi o sinal para uma manifestação de júbilo geral, o qual se intensificou ainda mais quando foi verificada, entre os homens que carregavam o esquife, a presença de um indivíduo cuja identificação causou indignação. Esse júbilo acompanhou o sr. Wopsle durante todo o decorrer de sua luta com Laertes à beira da orquestra e da sepultura, e prosseguiu até que ele derrubou o rei da mesa de cozinha e foi morrendo aos poucos, dos calcanhares para cima. Nós dois havíamos esboçado frágeis tentativas de aplaudir o sr. Wopsle no início, todavia era inútil insistir. Assim, assistimos ao espetáculo sentindo muita pena dele, porém ao mesmo tempo rindo sem parar. Embora tentasse me conter, ri o tempo todo, pois era tudo muito engraçado; e, no entanto, tinha a impressão latente de que havia algo de realmente belo na elocução do sr. Wopsle — não se tratava de nostalgia, creio eu, e sim do fato de ele falar de modo muito arrastado, muito lúgubre, subindo e descendo, como homem algum, em quaisquer circunstâncias de vida ou morte, jamais se manifestaria a respeito de qualquer assunto. Depois que terminou a tragédia, e que ele foi chamado ao palco e recebeu vaias, dirigi-me a Herbert: “Vamos embora logo, para não haver perigo de nos encontrarmos com ele”. Descemos a escada com toda a velocidade, mas não corremos o bastante. Parado à porta, um judeu com sobrancelhas anormalmente acentuadas olhoume nos olhos e disse, quando nos aproximamos dele: “Senhor Pip e amigo?” Confessamos nossas identidades de sr. Pip e amigo. “O senhor Waldengarver”, apresentou-se o homem, “gostaria de ter a honra.” “Waldengarver?”, repeti — quando então Herbert murmurou em meu ouvido: “Deve ser Wopsle”. “Ah!”, exclamei. “Sim. Devemos segui-lo?” “É logo ali, por favor.” Quando estávamos num beco transversal, ele virouse e perguntou: “O que o senhor achou da aparência dele? Fui eu que o vesti”. Eu não sabia o que dizer; a aparência dele evocara um enterro, com o acréscimo de um enorme sol ou estrela da Dinamarca pendurado em seu pescoço por uma fita azul, o que lhe dera a aparência de alguém que era segurado por um extraordinário corpo de bombeiros.1 Porém respondi que o achei muito bem. “Quando ele chegou na cova”, disse nosso guia, “ele mostrou a capa muito bem. Mas, depois, vendo lá dos bastidores, achei que quando ele viu o fantasma no quarto da rainha, ele podia ter mostrado melhor as meias.” Concordei, com modéstia, e todos nós entramos por uma porta de vaivém pequena e suja e entramos numa espécie de caixote quente. Dentro dele, o sr. Wopsle estava tirando suas roupas dinamarquesas, e ali havia apenas o espaço necessário para que olhássemos para ele um por cima dos ombros do outro, mas só se mantivéssemos aberta a porta, ou tampa, daquele caixote. “Senhores”, disse o sr. Wopsle, “estou orgulhoso por vê-los. Espero, senhor Pip, que me desculpe por tê-los chamado. Tenho a felicidade de o haver conhecido outrora, e essa tragédia sempre foi admirada pelos nobres e prósperos.” Enquanto isso, o sr. Waldengarver, suando profusamente, tentava livrar-se de seus negros trajes principescos. “Puxe a meia pra baixo, senhor Waldengarver”, disse o proprietário das roupas em questão, “senão vai rasgar. Se rasgar é trinta e cinco xelins. Nem mesmo Shakespeare teve uma meia melhor que essa. Fique sentado aí que eu mesmo tiro.” Dizendo isso, ajoelhou-se e começou a esfolar sua vítima; a qual, no momento em que foi retirada a primeira meia, só não caiu para trás com cadeira e tudo porque não havia espaço para tal. Até aquele momento, eu estava temendo a hora de fazer algum comentário a respeito do espetáculo. Mas o sr. Waldengarver nos dirigiu um olhar complacente e perguntou: “Senhores, o que acharam da peça, vista lá da frente?” Herbert respondeu, atrás de mim (e me cutucando ao mesmo tempo): “Excelente”. Assim, repeti: “Excelente”. “E o que acharam da minha leitura do personagem, senhores?”, perguntou o sr. Waldengarver num tom quase, ainda que não completamente, superior. Herbert respondeu, atrás de mim (mais uma vez me cutucando): “Abrangente e concreta”. Assim, respondi, como se eu tivesse tido a ideia, e me visse obrigado a insistir nela: “Abrangente e concreta”. “Agrada-me contar com a sua aprovação, senhores”, disse o sr. Waldengarver, com um ar de dignidade, embora estivesse sendo empurrado contra a parede no momento, segurando-se no assento da cadeira. “Mas vou lhe dizer uma coisa, senhor Waldengarver”, interveio o homem ajoelhado, “sobre essa sua leitura que eu não gostei. Escute só! E se alguém não concordar, paciência; é o que eu acho. O senhor não lê o Hamlet direito quando mostra as pernas de perfil. O último Hamlet que vesti fez o mesmo erro no ensaio, aí eu pus um pedaço de lacre vermelho grande em cada canela dele, e aí naquele ensaio (que era o último) fui lá pra plateia, junto da orquestra, e toda vez que ele ficava de perfil eu gritava: ‘Não estou vendo os lacres, não!’. E de noite a leitura dele foi muito boa.” O sr. Waldengarver sorriu para mim, como quem diz: “Um fiel servidor — eu perdoo sua tolice”; em seguida, disse em voz alta: “Minha leitura é um tanto clássica e filosófica demais para eles aqui, mas eles vão entender, vão entender”. Herbert e eu dissemos juntos: “Ah, sem dúvida, eles iriam entender”. “Os senhores observaram”, comentou o sr. Waldengarver, “que havia um homem na galeria tentando achincalhar o culto — quer dizer, o espetáculo?” Respondemos, cínicos, que tínhamos a vaga impressão de ter percebido tal coisa. Acrescentei: “Ele estava bêbado, certamente”. “Ah, não, senhor”, corrigiu o sr. Wopsle, “não estava bêbado, não. O patrão dele não deixa. O patrão dele não deixaria que ele ficasse bêbado.” “O senhor conhece o patrão dele?” O sr. Wopsle fechou os olhos e voltou a abri-los, realizando ambas as cerimônias muito lentamente. “Os senhores devem ter constatado, se me permitem o galicismo”, disse ele, “a presença de um idiota ignorante, de voz áspera e expressão vil e maligna, que interpretou — se é possível usar o termo em tal contexto — o papel de Cláudio, rei da Dinamarca. Este é o patrão dele, senhores. Esta é a profissão dele!” Sem saber bem se deveria sentir mais pena do sr. Wopsle se ele estivesse desesperado, eu sentia tanta pena dele naquela situação que aproveitei o momento em que ele nos deu as costas para colocar os suspensórios — o que nos obrigou a sair pela porta afora — para perguntar a Herbert se ele achava que devíamos convidá-lo para jantar conosco em nossa casa. Herbert respondeu que seria uma cortesia fazê-lo; assim, convidei-o, e ele acompanhou-nos até o Barnard’s Inn, agasalhado até os olhos, e esforçamo-nos ao máximo para agradar-lhe, e ele ficou conosco até as duas da madrugada, analisando seu sucesso e expondo seus planos. Já não me lembro bem dos detalhes, mas de modo geral ele ia começar reavivando a arte dramática e terminar esmagandoa, pois que sua morte a deixaria inteiramente desprovida de qualquer oportunidade e esperança. Profundamente infeliz, deitei-me, e profundamente infeliz pensei em Estella, e profundamente infeliz sonhei que todas as minhas esperanças haviam sido canceladas, e que eu seria obrigado a desposar a Clara de Herbert, ou então a representar o papel de Hamlet, sendo o fantasma encarnado pela sra. Havisham, diante de uma plateia de vinte mil pessoas, sem saber de cor nem vinte palavras do texto. 13 Um dia, estando eu ocupado com meus livros e com o sr. Pocket, recebi um bilhete entregue pelo correio, e só de olhar para o envelope fiquei profundamente perturbado, pois, embora jamais tivesse visto a letra com que ele estava endereçado, adivinhei a quem ela pertencia. Não havia no bilhete nenhuma introdução, como Caro sr. Pip , ou Caro Pip, ou Caro Senhor, ou Caro Alguma Coisa, porém seu teor era o seguinte: Chego a Londres depois de amanhã na diligência do meio-dia. Ficou combinado que você me receberia, não? Seja como for, é essa a impressão da sra. Havisham, e escrevo em obediência a ela. A sra. Havisham mandalhe saudações. Com estima, Estella. Se houvesse tempo, provavelmente eu teria encomendado vários trajes para essa ocasião; mas como não havia, era necessário contentar-me com as roupas que tinha. Meu apetite desapareceu no mesmo instante, e não tive mais paz de espírito até que chegou o dia. Não que a chegada do dia me trouxesse a paz; na verdade, fiquei pior do que nunca, e comecei a rondar o escritório das diligências na Wood-street, Cheapside, antes mesmo que a carruagem partisse do Javali Azul na nossa aldeia. Muito embora soubesse que isto não era necessário, mesmo assim eu sentia que não devia afastar-me do escritório das diligências por mais de cinco minutos; e nesse estado irracional havia gasto a primeira meia hora de uma espera de quatro ou cinco horas quando Wemmick deu comigo. “Ora, ora, senhor Pip”, disse ele, “como está? Jamais imaginei que o senhor frequentasse este lugar.” Expliquei que estava esperando alguém que chegaria na diligência, e perguntei-lhe como estavam o castelo e o idoso. “Os dois vão muito bem, obrigado”, disse Wemmick, “especialmente o idoso. Está em plena forma. Vai completar oitenta e dois anos. Estou pensando em disparar oitenta e dois tiros, se a vizinhança não reclamar, e se aquele canhão aguentar tanta pressão. Mas isso não é conversa que se tenha em Londres. Aonde o senhor acha que eu estou indo?” “Ao escritório?”, indaguei, pois ele se encaminhava nessa direção. “Bem ao lado dele”, respondeu sr. Jaggers. “Estou indo a Newgate. Estamos no momento cuidando de um caso que envolve um pacote de um banqueiro, e fui dar uma olhada no local, e agora preciso conversar um pouco com nosso cliente.” “O seu cliente cometeu o roubo?”, perguntei. “Deus me livre, não”, respondeu Wemmick, muito seco. “Mas está sendo acusado do roubo. Como podia ser eu ou o senhor. Qualquer um de nós pode ser acusado, o senhor sabe.” “Só que nem eu nem o senhor fomos acusados”, observei. “Isso mesmo!”, exclamou Wemmick, pondo o indicador no peito. “O senhor é muito esperto, senhor Pip! Gostaria de ir até Newgate? Tem algum tempo sobrando?” Eu tinha tanto tempo que a proposta me causou alívio, muito embora fosse incompatível com meu desejo latente de ficar de olho no escritório das diligências. Murmurei que ia indagar se teria tempo bastante para ir com ele, entrei no escritório e obtive do funcionário, com muita precisão e muito autocontrole da parte dele, um esclarecimento a respeito da primeira hora em que poderia chegar a diligência — coisa que eu já sabia tão bem quanto ele. Então fui ter outra vez com o sr. Wemmick, e fingindo que consultava meu relógio e me surpreendia com a informação que me fora fornecida, aceitei seu convite. Chegamos a Newgate em poucos minutos, passando pela guarita onde algemas pendiam das paredes nuas em meio aos regulamentos da instituição, e chegamos ao interior da cadeia. Naquele tempo, as cadeias eram muito negligenciadas, e o período de reação exagerada diante dos malfeitos das autoridades — e que é sempre sua punição mais pesada e mais prolongada — ainda estava distante. Assim, as acomodações e a alimentação dos presidiários não eram melhores que as dos soldados (para não falar nos indigentes), e eles raramente ateavam fogo a suas prisões com o objetivo desculpável de melhorar o sabor de sua sopa.1 Era hora de visitação quando Wemmick me levou lá; e um empregado de taverna estava entregando cerveja; e os prisioneiros, atrás das grades no pátio, estavam comprando cerveja e conversando com os amigos; era uma cena sórdida, feia, caótica e deprimente. Ocorreu-me que Wemmick caminhava em meio aos prisioneiros tal como um jardineiro entre suas plantas. Essa ideia surgiu em minha cabeça quando o vi observando um broto que havia surgido durante a noite e dizendo: “O quê? Capitão Tom? Você por aqui? Ora, essa!”, e também: “Aquele ali atrás da cisterna é o Black Bill? Porque não procurei você nos últimos dois meses? E como está você?”. Também quando parava junto às grades e escutava cochichos ansiosos — sempre um de cada vez — Wemmick, com sua caixa de correio em estado de imobilidade, olhava para eles enquanto os ouvia como se estivesse observando o progresso que haviam feito desde a última observação, preparando-se para aparecer em plena floração no tribunal. Ele era muito popular, e reparei que era responsável pelo departamento familiar dos negócios do sr. Jaggers, se bem que algo da eminência do sr. Jaggers também pairava em torno dele, impedindo uma aproximação além de certos limites. Seu reconhecimento pessoal de cada cliente sucessivo manifestava-se através de um aceno de cabeça e do gesto de ajeitar o chapéu na cabeça com as duas mãos; em seguida, estreitava a caixa postal e punha as mãos nos bolsos. Em um ou dois casos, surgiu uma dificuldade a respeito de um acréscimo nos honorários, e então o sr. Wemmick, recuando ao máximo do dinheiro insuficiente oferecido, dizia: “Não adianta, meu rapaz. Sou apenas um subordinado. Não posso aceitar. Não adianta insistir com um subordinado. Se você não consegue cobrir a quantia, meu rapaz, é melhor dirigir-se diretamente a um advogado; há muitos advogados, você sabe, e o que não interessa a um pode interessar a outro; é essa a recomendação que lhe posso dar, falando na posição de subordinado. Não adianta tentar medidas inúteis. Pra quê? Mas sim, quem é o próximo?”. Assim, fomos caminhando pela estufa de Wemmick, até que ele se virou para mim e disse: “Observe o homem a quem vou apertar a mão agora”. Eu haveria de observá-lo mesmo sem essa preparação, pois até aquele momento ele não apertara a mão de ninguém. Quase imediatamente depois que ele Wemmick, um homem corpulento, empertigado (o qual vejo agora, no momento em que escrevo), trajando uma sobrecasaca verde-oliva bem gasta, com uma palidez estranha sobrepondo-se à tez rubicunda, e olhos que ficavam a rodar quando ele tentava fixá-los, aproximou-se de um canto das grades e levou a mão ao chapéu — cuja superfície era ensebada e gordurenta, como caldo de carne frio — numa continência militar meio a sério, meio de brincadeira. “Coronel, salve!”, saudou-o Wemmick. “Como vai?” “Vou bem, senhor Wemmick.” “Tudo que podia ser feito foi feito, mas as provas eram fortes demais pra nós, coronel.” “Eram fortes demais, sim, senhor — mas eu não me importo.” “Não, não”, disse Wemmick, imperturbável, “ o senhor não se importa.” Em seguida, virando-se para mim: “Serviu a sua majestade, este homem. Foi soldado, serviu e pagou pra ter baixa”. Eu disse: “É mesmo?”, e os olhos do homem viraram-se para mim, e depois olharam por cima de minha cabeça, depois a meu redor, e por fim ele passou a mão pelos lábios e riu. “Acho que vou sair daqui na segunda-feira, senhor”, disse ele a Wemmick. “Talvez”, meu amigo, “mas não há como saber.” “Agradeço a oportunidade de me despedir do senhor”, disse o homem, e estendeu a mão por entre as grades. “Obrigado”, disse Wemmick, apertando-lhe a mão. “O mesmo da minha parte, coronel.” “Se o que eu tinha comigo quando fui preso fosse de verdade, senhor Wemmick”, disse o homem, sem querer soltar a mão do outro, “eu haveria de lhe pedir o favor de usar mais um anel — em reconhecimento a seu esforço.” “Aceito a intenção como se fosse o ato”, disse Wemmick. “A propósito, o senhor era um grande criador de pombos.” O homem olhou para o céu. “Soube que o senhor tinha uma raça notável de pombos volteadores.2 Será que podia falar com um amigo seu para me trazer um casal, se não for precisar mais deles?” “Vou atendê-lo, senhor Wemmick.” “Muito bem”, disse Wemmick, “eles vão ser bem cuidados. Boa tarde, coronel. Adeus!” Trocaram outro aperto de mãos, e enquanto nos afastávamos Wemmick me disse: “Um moedeiro, um artesão excelente. O relatório do juiz3 sai hoje, e é certo que ele seja executado na segunda-feira. Seja como for, como o senhor sabe, dois pombos não deixam de ser valores portáteis”. Tendo dito isso, olhou para trás e acenou com a cabeça para aquela planta morta, e olhou à sua volta enquanto saía do pátio, como se pensasse qual o vaso que ficaria melhor no lugar daquele. Ao sairmos da prisão através da guarita, observei que a grande importância de meu tutor era reconhecida pelos carcereiros, tanto quanto por aqueles que eles mantinham presos. “Diga lá, senhor Wemmick”, perguntou o carcereiro que nos manteve entre os dois portões reforçados e encimados por espigões, e que cuidadosamente trancou um antes de destrancar o outro, “o que o senhor Jaggers vai fazer com aquele assassinato à beira-rio? Vai fazer virar um homicídio culposo, ou o quê?” “Por que você mesmo não pergunta a ele?”, devolveu Wemmick. “Até parece!”, disse o carcereiro. “Com eles tem que ser assim, senhor Pip”, comentou Wemmick, virando-se para mim com sua caixa de correio alongada. “Eles perguntam qualquer coisa a mim, o subordinado; mas nunca fazem pergunta nenhuma a meu patrão.” “Esse jovem cavalheiro é um dos aprendizes lá da sua firma?”, perguntou o carcereiro, com um sorriso irônico provocado pelo gracejo do sr. Wemmick. “Está vendo? Lá vai ele outra vez!”, exclamou Wemmick. “Eu não disse? Fazendo a segunda pergunta pro subordinado quando a primeira ainda está no ar! Pois bem, e se o senhor Pip for um deles?” “Ora, nesse caso”, disse o carcereiro, sorrindo outra vez, “ele sabe como é o senhor Jaggers.” “Aah!”, exclamou Wemmick, batendo de repente no carcereiro de brincadeira, “você é tão burro quanto essa porta quando se trata do meu patrão, você sabe que é. Abra esse portão para nós, sua raposa velha, se não eu faço o homem processá-lo por cárcere privado.” O carcereiro riu, e desejou-nos bom-dia, e ficou rindo de nós por cima dos espigões do portão enquanto descíamos a escada em direção à rua. “Olhe, senhor Pip”, disse Wemmick ao pé de meu ouvido num tom sério, enquanto segurava meu braço para falar de modo mais confidencial; “o senhor Jaggers faz muito bem de se manter tão altivo. Ele é sempre muito altivo. Sua altivez constante é coerente com suas imensas capacidades. O tal do coronel não ousaria se despedir dele, tal como esse carcereiro não ousaria perguntar a ele quais as suas intenções em relação a um caso. Então, entre a altitude dele e essas pessoas, ele coloca o subordinado — está entendendo? — e desse modo controlaos por completo, corpo e alma.” Fiquei muito impressionado, e não pela primeira vez, com a sutileza de meu tutor. Para ser franco, desejei com todas as minhas forças, e não pela primeira vez, que meu tutor fosse um homem de menos capacidade. Eu e o sr. Wemmick nos despedimos no escritório na Little Britain, onde havia o contingente de sempre de suplicantes do sr. Jaggers perambulando na rua, e retomei minha vigília nas imediações do escritório das diligências, tendo ainda três horas para esperar. Consumi todo esse tempo pensando como era estranho que eu estivesse sempre envolvido por essa nódoa de prisão e crime; que, na minha infância, nos nossos charcos solitários numa noite de inverno, eu a houvesse encontrado pela primeira vez; que ela tivesse reaparecido em duas ocasiões, começando como uma nódoa desbotada, mas não desaparecida; que, desta nova maneira, ela impregnasse minha fortuna e minha ascensão. Enquanto minha mente estava ocupada com tais ideias, pensei na bela e jovem Estella, orgulhosa e refinada, vindo em direção a mim, e pensei com horror profundo no contraste entre a cadeia e ela. Lamentei que Wemmick se tivesse encontrado comigo, e que eu houvesse aceito seu convite de me juntar a ele, para que, justamente nesse dia, de todos os dias do ano, eu não tivesse o ar de Newgate no meu hálito e nas minhas roupas. Bati os pés no chão, enquanto andava de um lado para o outro, para me livrar da poeira da prisão, e sacudi minhas roupas com o mesmo objetivo, tal como esvaziei o ar de meus pulmões. Tão contaminado eu me sentia, pensando em quem estava vindo ter comigo, que a diligência acabou chegando depressa, tanto assim que eu ainda não estava livre da consciência maculada da estufa do sr. Wemmick quando vi o rosto de Estella à janela da carruagem, e sua mão acenando para mim. O que seria, então, a sombra sem nome que mais uma vez, naquele momento, passou por mim? 14 Com seu vestido de viagem forrado de pele, a beleza delicada de Estella parecia maior até do que me parecera antes, mesmo vista pelos meus olhos. Suas maneiras para comigo eram mais sedutoras do que nunca, e julguei ver nessa mudança o dedo da sra. Havisham. Estávamos parados no pátio da estalagem, e ela indicou para mim sua bagagem, e depois que todas as peças foram recolhidas me dei conta — pois até então me havia esquecido de tudo que não fosse ela — de que nada sabia a respeito de seu destino. “Vou para Richmond”, ela me informou. “O que nos disseram é que existem duas Richmonds, uma em Surrey e outra em Yorkshire, e que a minha é a de Surrey. São doze quilômetros até lá. Devo alugar uma carruagem, e tu deves levar-me. Eis aqui minha carteira, e deves pagar os custos com o dinheiro que está dentro dela. Ah, tens de aceitar o dinheiro! Não temos escolha, eu e tu, porém temos de seguir nossas instruções. Não temos liberdade de fazer nossas próprias escolhas, eu e tu.” Enquanto olhava para mim ao me entregar a carteira, eu desejava que houvesse um sentido oculto em suas palavras. Ela as pronunciara num tom depreciativo, mas não com desprazer. “Temos que mandar vir uma carruagem, Estella. Queres descansar aqui um pouco?” “Sim, devo descansar um pouco, e devo tomar chá e tu deves tomar conta de mim.” Ela tomou meu braço, como se aquilo tivesse de ser feito, e chamei um garçom, que estava olhando para a carruagem como se nunca tivesse visto tal coisa na vida, para lhe pedir que nos levasse a uma sala de espera particular. Ao ouvir isso, ele sacou um guardanapo, como se fosse uma pista mágica sem a qual ele não poderia encontrar o caminho do andar de cima, e levou-nos até o buraco negro do estabelecimento: lá havia um espelho que diminuía as imagens (um artigo um tanto supérfluo, levando-se em conta as proporções do buraco), uma galheta contendo molho de anchova e um par de tamancos que alguém deixara ali. Quando reclamei da escolha do lugar, ele nos levou a outro cômodo onde havia uma mesa de jantar com trinta lugares, e na grelha via-se uma folha queimada arrancada de um caderno sob uma pilha de pó de carvão. Após contemplar aquele fogo morto e sacudir a cabeça, ele anotou meu pedido, o qual, sendo apenas “um chá para a senhora”, o fez sair da sala em estado de profunda depressão. Julguei, e julgo até agora, que o ar daquele recinto, com sua combinação intensa de cheiro de cavalariça com cheiro de sopa, poderia levar à conclusão de que o departamento de carruagens não gozava de boa situação, e que o proprietário estava cozinhando os cavalos para servi-los aos fregueses. No entanto, aquela sala era tudo para mim, porque Estella estava dentro dela. Pensei que, em sua companhia, eu teria sido feliz lá para sempre. (Observe-se que naquele momento eu não estava de modo algum feliz, e tinha perfeita consciência do fato.) “Aonde vais, em Richmond?”, perguntei a Estella. “Vou morar”, respondeu ela, “pagando uma pequena fortuna, com uma senhora de lá que tem o poder — ou, ao menos, é o que ela diz — de me levar a lugares, me apresentar a pessoas e apresentar pessoas a mim.” “Imagino que vás gostar de tanta variedade e admiração, não é?” “Imagino que sim.” Ela respondeu com tamanha indiferença que me levou a dizer: “Tu falas sobre ti própria como se falasses de outra pessoa”. “Onde ficaste sabendo como é que eu falo de outras pessoas? Ora, ora”, disse Estella, com um sorriso delicioso, “não hás de querer que eu vá à escola contigo; falo do jeito que falo. E como estás te saindo com o senhor Pocket?” “É muito agradável morar lá; quer dizer…” Eu tinha a impressão de que estava perdendo uma oportunidade. “Quer dizer?”, repetiu Estella. “Tão agradável quanto é possível ser para mim um lugar longe de ti.” “Menino bobo”, disse Estella, com perfeito autocontrole, “como podes dizer tamanha bobagem? Teu amigo, o senhor Matthew, creio eu, é superior ao resto da família?” “Muito superior. Seu único inimigo…” “Não diga que é ele mesmo”, interrompeu Estella, “pois detesto esse tipo de homem. Mas ele realmente é uma pessoa desinteressada, muito acima de ciúmes e despeitos mesquinhos, pelo que ouvi dizer, não é?” “Tenho todos os motivos para dizer que sim.” “Mas não tens todos os motivos para dizer o mesmo do resto da família”, disse Estella, com uma expressão ao mesmo tempo séria e provocadora, “pois os outros vivem fazendo à senhora Havisham insinuações e relatos desabonadores a teu respeito. Eles te observam, mentem sobre ti, escrevem cartas sobre ti (algumas delas anônimas), e tu és o tormento e a ocupação da vida deles. Nem imaginas o ódio que essas pessoas têm de você.” “Elas não me prejudicam, espero?”, perguntei. Em vez de me responder, Estella caiu na gargalhada. Achei essa reação muito estranha, e fiquei a olhar para ela na mais completa perplexidade. Quando ela terminou — e não fora um riso lânguido, e sim uma gargalhada — comentei, da maneira tímida que eu adotava com ela: “Espero poder presumir que não acharias graça se eles me prejudicassem de fato.” “Não, não, podes ter certeza disso”, disse Estella. “Estejas certo de que estou rindo porque eles não conseguem. Ah, essas pessoas que vivem em torno da senhora Havisham, os suplícios que elas sofrem!” Ela riu outra vez, e mesmo agora, depois de me ter explicado a razão, seu riso continuava sendo muito estranho para mim, pois eu não duvidava que fosse autêntico, e, no entanto, me parecia excessivo. Parecia-me que deveria haver alguma coisa ali que eu não sabia; ela leu meus pensamentos e respondeu a eles. “Não é fácil nem mesmo para ti”, disse Estella, “saber a satisfação que me dá ver aquelas pessoas frustradas, nem como é agradável ver o quanto elas são ridículas quando são ridicularizadas. Porque não foste criado naquela casa desde pequeno: eu fui. Tu não tiveste de desenvolver as tuas defesas enfrentando as intrigas delas contra ti, oprimido e indefeso, disfarçadas de manifestações de carinho e de tudo o que há de suave e terno: eu tive. Tu não foste obrigado a amadurecer arregalando cada vez mais teus olhos de criança diante de uma impostora a calcular o estoque de paz de espírito que acumulava para quando ela acordasse no meio da noite: eu fui.” Agora Estella não estava rindo, nem estava evocando aquelas lembranças de nenhum lugar superficial. Apesar de todas as minhas esperanças, certamente não era eu quem estava provocando aquela expressão no rosto dela. “Posso dizer-te duas coisas”, ela prosseguiu. “Em primeiro lugar, apesar do provérbio de que água mole em pedra dura tanto bate até que fura, podes ter certeza de que essas pessoas jamais — nem mesmo se dispusessem de cem anos — vão conseguir abalar a opinião que a senhora Havisham tem a teu respeito, em relação a qualquer aspecto, pequeno ou grande. Em segundo lugar, sou grata a ti por tê-las mantido tão ocupadas com suas maldades em vão, e estendo-te a minha mão por isso.” Ela o fez de modo jocoso — pois o estado de espírito sombrio fora momentâneo — e eu tomei-lhe a mão e levei-a aos lábios. “Menino ridículo”, disse Estella. “Será que não aprendes? Ou beijas minha mão com o mesmo espírito com que uma vez eu te deixei me beijar o rosto?” “Que espírito?”, perguntei. “Deixe-me pensar um momento. Um espírito de desprezo pelos bajuladores e intrigantes.” “Se eu disser que sim, posso beijar teu rosto de novo?” “Devia ter perguntado antes de pegar na minha mão. Mas pode, sim, se quiser.” Abaixei-me, e seu rosto tranquilo parecia uma estátua. “Agora”, disse Estella, afastando-se de mim no momento em que toquei seu rosto, “tens que arranjar um chá para mim, e depois levar-me para Richmond.” Quando a ouvi reassumir aquele tom, como se nossa associação nos fosse imposta à força e não passássemos de fantoches, doeu-me o coração; mas tudo que se passava entre nós me fazia doer o coração. Qualquer que fosse o tom que ela adotasse comigo, eu não podia confiar nele, nem nutrir quaisquer esperanças; e, no entanto, eu seguia em frente, mesmo sem confiança, mesmo sem esperança. Por que repeti-lo mil vezes? Era sempre assim. Toquei a campainha e pedi chá, e o garçom, reaparecendo com sua pista mágica, começou a trazer, paulatinamente, cerca de cinquenta utensílios associados àquela bebida; mas quanto ao chá propriamente dito, nada. Uma bandeja, xícaras, pires, pratos, facas e garfos (inclusive facas de cortar carne), colheres (variadas), saleiros, um humilde bolinho cuidadosamente confinado sob uma forte tampa de ferro, Moisés em meio aos juncos representado por um pedacinho de manteiga mole no meio de uma abundância de salsa,1 um pão pálido com uma peruca empoada, duas impressões das barras da lareira da cozinha feitas em pedaços triangulares de pão, e por fim uma chaleira do tamanho de uma urna mortuária, carregando a qual o garçom entrou cambaleante, a exprimir no rosto esforço e sofrimento. Depois de uma longa ausência a essa altura dos acontecimentos, ele por fim voltou, trazendo um escrínio de aparência preciosa, contendo alguns gravetos. Mergulhei esses gravetos em água quente, e de todos esses aparatos extraí uma xícara de não sei o quê, para Estella. Tendo sido paga a conta, e lembrado o garçom, sem esquecer o palafreneiro, e levando também em conta a camareira — em suma, tendo subornado todo o estabelecimento, suscitando em todos sentimentos de desprezo e animosidade, e deixando bem mais leve a carteira de Estella — tomamos nossa diligência e partimos. Ao entrar em Cheapside e subir pela Newgate-street, logo passamos pelas muralhas que tanto me envergonhavam. “Que lugar é esse?”, Estella perguntou-me. Tolamente, fingi não reconhecê-lo de início, e em seguida disse a ela o que era. Estella olhou, recolheu a cabeça e murmurou: “Desgraçados!”. Eu não teria sido capaz de confessar que estivera lá naquela tarde por nada neste mundo. “O senhor Jaggers”, observei, para associar o local a outra pessoa, “tem a reputação de conhecer melhor os segredos desse lugar lúgubre do que qualquer homem em Londres.” “Ele conhece os segredos de todos os lugares, creio eu”, disse Estella, em voz baixa. “Costumas vê-lo com frequência, imagino?” “Costumo vê-lo com intervalos irregulares, desde que me tenho por gente. Mas não o conheço melhor agora do que no tempo em que ainda não havia aprendido a falar direito. Que experiência tens dele? Estás fazendo progressos com ele?” “Desde que me acostumei com seu jeito desconfiado”, respondi, “tenho me saído muito bem.” “Tornaram-se íntimos?” “Já jantei na casa dele.” “Imagino”, disse Estella, recuando, “que seja um lugar curioso.” “É um lugar curioso.” Eu devia ter o cuidado de não falar sobre meu tutor tão abertamente, nem mesmo com ela; mas teria prosseguido e relatado o jantar na Gerrard-street se nesse momento não tivéssemos passado por uma súbita explosão de luz de gás. Tudo parecia estar iluminado e vivo, enquanto durou, com aquela sensação inexplicável que eu já tivera antes; e quando passamos do lugar, fiquei por alguns momentos tão aturdido como se um relâmpago tivesse caído em mim. Assim, passamos a falar sobre outros assuntos, principalmente nosso meio de transporte e as regiões de Londres pelas quais passávamos, e coisas assim. A metrópole era quase uma novidade para ela, Estella me revelou, pois jamais havia saído do bairro da sra. Havisham até o dia em que foi para a França, e apenas passara por Londres na ida e na volta. Perguntei-lhe se meu tutor cuidara dela enquanto ela estivera lá. Ao ouvir isso, exclamou enfática: “Deus me livre!”, e nada mais disse. Era-me impossível não reparar que ela fazia questão de me atrair, que se fazia sedutora, e que me teria conquistado mesmo se essa tarefa exigisse algum esforço. No entanto, isso não me tornava mais feliz, pois mesmo se ela não tivesse assumido aquele tom de que estávamos apenas cumprindo ordens de terceiros, eu teria sentido que ela tinha meu coração na mão por puro cálculo, não porque ele lhe proporcionasse algum sentimento terno, e sim para esmagá-lo e jogá-lo fora. Quando passamos por Hammersmith, indiquei-lhe onde morava o sr. Matthew Pocket, e disse-lhe que não era longe de Richmond e que eu esperava vê-la de vez em quando. “Ah, sim, deves me visitar; deves vir sempre que julgar apropriado; deves ser mencionado para a família; aliás, já estás sendo mencionado.” Perguntei se a família de que ela ia fazer parte era grande. “Não; são apenas duas pessoas, mãe e filha. A mãe é uma dama com certa projeção, creio eu, mas com alguma necessidade de aumentar sua renda.” “Causa-me espanto que a senhora Havisham seja capaz de separar-se de ti outra vez tão cedo.” “Isso faz parte dos planos dela para mim, Pip”, disse Estella, com um suspiro, como se estivesse cansada; “tenho de escrever-lhe constantemente e visitá-la regularmente, e mantê-la informada sobre meus sucessos — meus e das joias — pois agora quase todas elas são minhas.” Era a primeira vez que ela me chamava pelo nome. É claro que ela o fizera de propósito, e sabia o valor que eu daria ao fato. Chegamos a Richmond depressa demais, e nosso destino lá era uma casa junto ao parque, uma casa velha e sóbria, onde saias-balões e perucas empoadas e moscas de enfeite outrora desfilaram muitas vezes. Algumas árvores venerandas à frente da casa ainda estavam podadas em formas tão rígidas e artificiais quanto as saias-balões e perucas; mas seus lugares marcados na grande procissão dos mortos não estavam distantes, e elas em breve iriam ocupá-los e mergulhar no silêncio, como todos os outros. Uma campainha com uma voz antiga — a qual, imagino, no passado muitas vezes dissera à casa: Eis as anquinhas verdes,2 eis a espada com punho de brilhantes, eis os sapatos de saltos vermelhos e a gravata azul — soou circunspecta ao luar, e duas criadas cor de cereja vieram correndo receber Estella. Logo a porta da frente absorveu sua bagagem, ela me deu a mão e um sorriso e disse boa-noite, e foi igualmente absorvida. Ainda fiquei parado olhando para a casa, pensando como eu seria feliz se vivesse lá com ela, sabendo que jamais era feliz com ela, porém sofreria sempre. Entrei na carruagem para ser levado de volta a Hammersmith, entrei com uma dor no coração e saí com uma dor no coração maior ainda. Chegando à porta da nossa casa, deparei com a pequena Jane Pocket, voltando de um passeio com um pequeno grupo, acompanhada de seu namoradinho; e invejei seu namoradinho, embora ele tivesse de obedecer a Flopson. O sr. Pocket não estava em casa; havia saído para dar uma conferência, pois ele falava muito bem sobre economia doméstica, e seus tratados a respeito dos cuidados com os filhos e os criados eram conhecidos como os melhores sobre tais temas. Porém a sra. Pocket estava em casa, e via-se em apuros por estar o bebê a brincar com uma caixa de agulhas, para que não desse trabalho durante a inexplicável ausência de Millers (que fora visitar um parente membro da infantaria). E havia desaparecido um número de agulhas que não podiam ser muito saudáveis para uma criança de tão tenra idade, nem se aplicadas externamente nem se ingeridas como tônico. Como o sr. Pocket era tão justamente reconhecido por dar conselhos práticos excelentes, por ter uma visão tão clara e sensata das coisas e uma mente tão judiciosa, cheguei a pensar, tamanha era a dor em meu coração, em implorarlhe para que ouvisse minhas confidências. Porém, quando levantei a vista e percebi que a sra. Pocket estava lendo seu livro sobre a nobreza depois de recomendar a cama como um santo remédio para o bebê, pensei: Bem… não, melhor não. 15 À medida que me acostumava com minhas esperanças, eu começara a perceber, pouco a pouco, o efeito delas sobre mim mesmo e os que me cercavam. Quanto à sua influência sobre o meu próprio caráter, ocultava-a de mim mesmo tanto quanto possível, mas sabia muito bem que não era de todo boa. Eu vivia num estado de mal-estar crônico com relação a meu comportamento para com Joe. Minha consciência não estava de modo algum tranquila quanto a Biddy . Quando acordava no meio da noite — tal como Camilla — punha-me a pensar, com uma espécie de desânimo, que eu seria mais feliz e uma pessoa melhor se nunca tivesse visto o rosto da sra. Havisham, e se houvesse chegado à idade adulta contente por ser sócio de Joe na velha e honesta ferraria. Muitas vezes, à noite, quando ficava sozinho olhando para o fogo, ocorria-me o pensamento de que, no final das contas, não havia fogo igual ao da ferraria e ao da cozinha da nossa casa. No entanto, era tão impossível separar Estella de toda a minha inquietude e desconforto mental que eu mergulhava num estado de confusão quando pensava nos limites de minha própria responsabilidade por esse estado de espírito. Isto é, supondo-se que minhas esperanças não existissem, e mesmo assim me preocupasse com Estella, não me era possível convencer-me de que eu me sairia muito melhor. Ora, quanto à influência da minha situação sobre os outros, eu não tinha essa espécie de dificuldade, e, portanto, percebia — ainda que, talvez, de modo não muito claro — que ela não era boa para ninguém, e acima de tudo, não era boa para Herbert. Meus hábitos perdulários levavam sua natureza dócil a incorrer em gastos acima de suas possibilidades, corrompiam a simplicidade de sua vida e perturbavam sua paz de espírito com ansiedades e arrependimentos. Eu não tinha qualquer remorso por ter levado, sem intenção de fazê-lo, os outros ramos da família Pocket a recorrerem àquelas tristes artes que praticavam: porque essa mesquinhez era sua tendência natural, e teria sido provocada por qualquer outra pessoa, se não fosse eu. Mas o caso de Herbert era muito diferente, e muitas vezes o remorso me pungia ao pensar que lhe fizera mal atulhando seus aposentos quase nus com móveis estofados incoerentes, e colocando o vingador, com seu traje cor de canário, à sua disposição. Assim, agora, como método infalível de fazer com que as pequenas preocupações se tornassem grandes, comecei a contrair uma quantidade de dívidas. Naturalmente, bastava que eu começasse para que Herbert me seguisse, e foi o que de fato logo aconteceu. Por sugestão de Startop, candidatamo-nos a um clube chamado Tentilhões do Arvoredo, uma instituição cujos objetivos jamais entendi, a menos que fosse apenas realizar uma dispendiosa reunião dos membros uma vez a cada quinzena, brigar uns com os outros tanto quanto possível após o jantar, e fazer com que seis garçons se embriagassem na escada. Só sei que esses gratificantes fins sociais eram atingidos tão invariavelmente que eu e Herbert não víamos outro sentido que não esse no primeiro brinde permanente da sociedade, o qual era o seguinte: “Senhores, que a atual promoção de bons sentimentos sempre predomine entre os Tentilhões do Arvoredo”. Os Tentilhões gastavam dinheiro de modo imprudente (o hotel em que jantávamos ficava em Covent-garden), e o primeiro Tentilhão que vi quando tive a honra de entrar para o Arvoredo foi Bentley Drummle, o qual no momento estava rodando pela cidade num cabriolé de sua propriedade, causando grandes danos aos postes nas esquinas. De vez em quando ele se projetava de seu veículo, de cabeça, caindo por cima da lona; e numa ocasião vi-o entregar sua própria pessoa à porta do Arvoredo dessa maneira não intencional — como se ele fosse uma porção de carvão. Mas estou me adiantando um pouco, pois eu ainda não era um Tentilhão, nem podia ser, de acordo com as sagradas leis da sociedade, enquanto não atingisse a maioridade. Com a confiança que tinha em meus próprios recursos, de bom grado teria assumido as despesas de Herbert; porém, Herbert era orgulhoso, e eu não conseguia fazer uma tal proposta a ele. Assim, ele acumulava problemas em todas as direções, e continuava a olhar à sua volta. Quando aos poucos fomos adquirindo o hábito de sair e receber até tarde, percebi que ele olhava à sua volta com desânimo na hora do desjejum; que começava a fazê-lo com mais esperança por volta do meio-dia; que desanimava quando vinha para o jantar; que parecia entrever o Capital ao longe com bastante clareza, depois do jantar; que praticamente conseguia obter o tal Capital em torno da meia-noite; e que mais ou menos às duas da madrugada voltava a ficar de tal modo desanimado que chegava a falar em comprar uma espingarda e ir para a América, com a intenção geral de obrigar os búfalos a lhe proporcionarem uma fortuna. Eu costumava passar cerca de metade da semana em Hammersmith, e quando lá estava fazia visitas recorrentes a Richmond: sobre isso, falarei mais adiante. Herbert vinha muito a Hammersmith quando eu estava lá, e creio que nessas oportunidades seu pai de vez em quando tinha alguma consciência de que a oportunidade que ele vivia procurando ainda não surgira. Mas na confusão geral da família, a confusão específica de seu filho era algo que haveria de se resolver de alguma maneira. Nesse ínterim, o sr. Pocket ficava cada vez mais grisalho, e tentava com cada vez mais frequência arrancar-se a si próprio de suas perplexidades puxando-se pelos cabelos. Enquanto isso, a sra. Pocket fazia sua família tropeçar em seu escabelo, lia seu livro sobre títulos de nobreza, perdia seu lenço, falava-nos sobre seu avô e ensinava os jovens a desabrochar, mandandoos para a cama assim que eles atraíam sua atenção.1 Como estou agora tecendo generalizações em torno de um período de minha vida com o objetivo de limpar o caminho à minha frente, nada melhor do que completar a descrição de nossos hábitos costumeiros no Barnard’s Inn. Gastávamos o máximo de dinheiro possível, obtendo o mínimo que as pessoas nos quisessem dar em troca. Estávamos o tempo todo mais ou menos infelizes, e a maioria de nossos conhecidos se encontrava no mesmo estado. Entre nós, mantínhamos a alegre ficção de que nos divertíamos, ocultando o esqueleto da verdade de que jamais o fazíamos. Por tudo que sei, nosso caso era, sob todos os aspectos, bastante comum. Todos os dias de manhã, com um ar sempre renovado, Herbert ia à City para olhar à sua volta. Muitas vezes eu o visitava numa saleta de fundos escura, onde ele se ocupava com um tinteiro, um cabide de chapéus, um depósito de carvão, uma caixa de barbante, um almanaque, uma escrivaninha e um banco, e uma régua; e não me lembro de vê-lo fazer outra coisa que não olhar à sua volta. Se todos nós fizéssemos o que pretendíamos fazer com tanto afinco quanto Herbert o fazia, viveríamos talvez numa república das virtudes. Ele não tinha outra ocupação, coitado, senão, a uma certa hora da tarde, “ir ao Lloy d’s” — para cumprir a cerimônia de ver seu patrão, imagino. Nunca fez qualquer outra coisa relacionada com o Lloy d’s, que eu saiba, senão voltar de lá. Quando concluía que seu caso estava mais sério do que de costume, e que realmente precisava de uma oportunidade, ia à Bolsa numa hora de intensa atividade, e lá ficava a entrar e sair, dançando uma espécie de quadrilha melancólica em meio aos magnatas reunidos. “Pois a meu ver”, disse Herbert a mim, vindo almoçar em casa numa dessas ocasiões especiais, “a verdade, Handel, é que a oportunidade não vem até nós, e sim nós é que temos que ir até ela — e foi o que fiz.” Se tivéssemos menos amizade um pelo outro, creio que sentiríamos um ódio mútuo regularmente, todas as manhãs. Eu detestava meus aposentos de tal modo que nem posso exprimi-lo, durante esse período de arrependimento, e não suportava sequer olhar para a libré do vingador, a qual tinha uma aparência mais cara e menos lucrativa nesse momento do que em qualquer outra das vinte e quatro horas do dia. À medida que nos endividávamos mais e mais, o desjejum se tornava uma formalidade cada vez mais vazia, e numa ocasião em que essa refeição foi ameaçada (via correio) por um processo legal, “de certo modo relacionado”, como diria o jornalzinho de minha terra, “à aquisição de joias”, cheguei mesmo a agarrar o vingador pelo colarinho azul, levantá-lo do chão a sacudi-lo — de modo que ele ficou realmente no ar, como um Cupido de botas — por ter ele presumido que nós queríamos pães. Em certas ocasiões — na verdade, ocasiões incertas, pois dependiam de nosso humor — eu dizia a Herbert, como se fosse uma descoberta notável: “Meu caro Herbert, vamos mal.” “Meu caro Handel”, retrucava Herbert, com toda sinceridade, “hás de me acreditar se eu te disser que, por uma estranha coincidência, eu ia dizer exatamente isso.” “Nesse caso, Herbert”, respondia eu, “vamos examinar a nossa situação.” Sempre nos dava uma satisfação profunda marcar uma reunião com esse objetivo. Sempre me parecia que era assim que se fazia, era assim que se enfrentava o problema, atacando o inimigo pela jugular. E sei que Herbert pensava o mesmo. Pedíamos alguma coisa especial para o jantar, juntamente com uma garrafa de algo fora do comum, a fim de fortalecer nossas mentes para a ocasião, e para que ficássemos à altura do que nos era exigido. Findo o jantar, pegávamos um maço de canetas, uma quantidade generosa de tinta e um bom provimento de papel almaço e mata-borrão. Pois havia algo de muito tranquilizador na abundância de material de papelaria. Então eu pegava uma folha de papel e escrevia, no alto, com uma letra caprichada: “Memorando das dívidas de Pip”, acrescentando “Barnard’s Inn” e a data, com todo o cuidado. Herbert também pegava uma folha de papel e, com uma formalidade semelhante, nela escrevia: “Memorando das dívidas de Herbert”. Em seguida, cada um de nós consultava uma pilha confusa de papéis a seu lado, papéis que haviam sido jogados em gavetas, enfiados em buracos nos bolsos, parcialmente queimados ao acender velas, grudados durante semanas no espelho, e danificados de outras maneiras. O som de nossas penas riscando o papel nos animava sobremaneira, tanto assim que por vezes era difícil, para mim, traçar uma distinção entre essa tarefa edificante e o ato em si de pagar a dívida. Consideradas como ações meritórias, as duas coisas pareciam mais ou menos iguais. Depois de escrever alguma coisa, eu perguntava a Herbert como ele estava se saindo. Na maioria das vezes Herbert estava coçando a cabeça melancolicamente ao ver as cifras que se acumulavam. “Estão aumentando, Handel”, dizia Herbert; “palavra de honra que estão aumentando.” “Seja firme, Herbert”, eu respondia, manejando minha caneta com muito afinco. “Encare a coisa de frente. Examine os seus problemas. Olhe para eles com firmeza que eles baixam os olhos.” “É a minha intenção, Handel, só que eles me olham e quem baixa os olhos sou eu.” Porém minha determinação surtia efeito, e Herbert retomava o trabalho. Depois de um tempo ele desistia outra vez, argumentando que lhe faltava a conta de Cobb, ou de Lobb, ou de Nobb, conforme o caso. “Então, Herbert, faça uma estimativa, uma estimativa com números redondos, e anote o valor.” “Mas como você é cheio de recursos!”, replicava meu amigo, com admiração. “Realmente, você tem muito talento para os negócios.” Eu também pensava que tinha. Nessas ocasiões, eu fortalecia em mim mesmo minha reputação de homem de negócios — ágil, decidido, enérgico, direto, sereno. Uma vez listadas todas as minhas responsabilidades, eu comparava cada uma delas com a respectiva conta e fazia uma marca a seu lado. O sentimento de autoaprovação que me proporcionava o gesto de assinalar cada item da lista era uma sensação realmente voluptuosa. Quando não restava mais item algum, eu dobrava todas as minhas contas de modo uniforme, identificava cada uma delas resumidamente no verso e prendia-as todas num maço simétrico. Depois fazia o mesmo para Herbert (o qual observava, modesto, que não tinha o meu gênio para questões administrativas), julgando ter esclarecido sua situação financeira para ele. Minhas práticas de contabilidade possuíam outra característica positiva, que eu denominava “deixar uma margem”. Por exemplo: digamos que as dívidas de Herbert totalizassem cento e sessenta e quatro libras, quatro xelins e dois pence. Eu dizia então: “Deixe uma margem e anote duzentos”. Ou então se a minha fosse quatro vezes maior, eu deixava uma margem, e anotava setecentos. A prática de deixar uma margem me parecia uma excelente ideia, mas hoje, olhando para trás, sou levado a reconhecer que era um dispositivo um tanto dispendioso. Pois sempre incorríamos em novas dívidas imediatamente, de modo a alcançar a tal margem, e às vezes, movidos pela sensação de liberdade e solvência, rapidamente nos aproximávamos de uma nova margem. Entretanto, havia uma tranquilidade, um repouso, uma pausa virtuosa, após esses exames de nossa situação, e consequentemente eu ficava por algum tempo com uma excelente opinião a respeito de mim mesmo. Apaziguado por meus esforços, por meu método e pelos elogios de Herbert, eu contemplava meu maço simétrico e o dele lado a lado em meio ao material de papelaria e sentia-me uma espécie de banco, e não uma pessoa física. Nessas ocasiões solenes, fechávamos a porta da rua para que não fôssemos interrompidos. Eu estava num desses estados de serenidade uma noite quando ouvimos uma carta sendo colocada na fenda da referida porta, e caindo no chão. “É para você, Handel”, disse Herbert, saindo e voltando com a carta na mão, “e espero que não seja nenhum problema.” Esse comentário era uma alusão ao pesado lacre preto e à borda negra do envelope. A carta era assinada por trabb & cia., e ela dizia apenas que eu, estimado senhor, estava sendo notificado de que a sra. J. Gargery havia falecido na última segunda-feira, às dezoito horas e vinte minutos, e que minha presença era solicitada para o enterro na próxima segunda-feira, às quinze horas. 16 Era a primeira vez que uma sepultura se abria na estrada da minha vida, e o rombo que ela formou na superfície lisa era extraordinário. A imagem de minha irmã sentada em sua cadeira junto à lareira da cozinha me perseguia dia e noite. A possibilidade de que aquele lugar não fosse ocupado por ela era algo que minha mente parecia incapaz de compreender; e muito embora minha irmã quase nunca figurasse em meus pensamentos ultimamente, passei agora a ter a estranha impressão de que ela vinha em minha direção da rua, ou que estava prestes a bater à minha porta. Também nos meus aposentos, com os quais ela jamais tivera qualquer associação, havia ao mesmo tempo o vazio da morte e a constante insinuação do som de sua voz ou de seu rosto ou de seu vulto, como se ela ainda estivesse viva e houvesse frequentado aquele lugar com regularidade. Qualquer que fosse minha situação na vida, dificilmente eu poderia relembrar minha irmã com muita ternura. Mas creio que há um choque de arrependimento que pode existir sem haver muita ternura. Sob sua influência (e talvez para compensar a ausência de sentimentos mais ternos) fui tomado por uma violenta indignação voltada para o agressor que lhe causara tanto sofrimento; e parecia-me que, se houvesse provas suficientes, para vingar-me eu seria capaz de perseguir Orlick, ou quem quer que fosse, até as últimas consequências. Depois de escrever para Joe, para lhe oferecer minhas condolências e garantir que eu estaria presente ao funeral, passei os dias que se seguiram no curioso estado mental que esbocei acima. Fui para minha cidadezinha de manhã bem cedo, e saltei em frente ao Javali Azul com bastante tempo para ir a pé até a ferraria. Era verão outra vez, o tempo estava bom, e enquanto caminhava, o tempo em que eu era uma criaturinha indefesa, e minha irmã não me poupava, voltoume à lembrança com muita nitidez. Porém voltou-me num tom mais suave, tanto assim que até mesmo o impacto do pau-de-cócega parecia atenuado. Pois agora, até o cheiro de feijão e o de trevo diziam a meu coração que algum dia seria bom para minha memória que outros, ao caminhar no sol, também tivessem pensamentos suaves quando se lembrassem de mim. Por fim vi a casa, e vi que trabb & cia. haviam realizado uma verdadeira execução funerária nela.1 Duas pessoas extraordinariamente ridículas, cada uma delas exibindo de modo ostensivo uma muleta envolta em bandagens pretas — como se esse instrumento pudesse proporcionar conforto a alguém — estavam posicionadas à porta da frente; uma delas, reconheci, era um postilhão que fora despedido do Javali Azul por ter jogado um jovem casal dentro de um buraco na manhã após a noite de núpcias, porque, por estar embriagado, conduziu um cavalo abraçando-lhe o pescoço com os dois braços. Todas as crianças da aldeia, e a maior parte das mulheres, estavam admirando esses guardiões de negro e as janelas fechadas da casa e da ferraria; e quando me aproximei, um dos dois guardiões (o postilhão) bateu à porta — dando a entender que, de tão exaurido de dor, eu não tinha forças suficientes para bater à porta. Outro guardião de preto (um carpinteiro, que uma vez comera dois gansos inteiros para ganhar uma aposta) abriu a porta e me levou para a melhor sala. Ali, o sr. Trabb havia se sentado à melhor mesa, tendo-a alongado com todas as suas tábuas de extensão, e estava realizando uma espécie de bazar negro, com o auxílio de uma quantidade de alfinetes negros. No momento em que cheguei, ele havia terminado de envolver o chapéu de alguém em panos negros, como se fosse um bebê africano; assim, estendeu a mão para que eu lhe desse o meu. Porém, sem compreender o sentido do gesto, e sentindo-me confuso naquela situação, tomei sua mão e apertei-a com todas as mostras de profundo afeto. Meu querido Joe, coitado, emaranhado numa pequena capa preta presa num grande laço debaixo do queixo, estava isolado das outras pessoas, na outra extremidade da sala; sem dúvida, fora posto ali, na condição de pessoa central do velório, por Trabb. Quando me abaixei e lhe disse: “Meu caro Joe, como estás?”, ele respondeu: “Pip, meu velho, tu conhecias ela no tempo que ela era uma bela de uma…”, segurou minha mão e nada mais disse. Biddy, muito asseada e discreta com seu vestido preto, andava silenciosamente de um lado para outro, muito prestativa. Depois de falar com Biddy, julgando que não era hora de conversas, fui sentar-me ao lado de Joe, e comecei a pensar em que cômodo da casa o corpo — minha irm㠗 estaria. O ar da sala recendia a bolo, e resolvi procurar a mesa do lanche; só consegui enxergá-la depois que minha vista se acostumou com a escuridão, e então vi que sobre a mesa havia um bolo de frutas fatiado, e também laranjas cortadas em pedaços, e sanduíches, e biscoitos, e duas garrafas ornamentais que eu conhecia muito bem como enfeites, mas que nunca vira serem usadas em toda a minha vida, uma com vinho do Porto e a outra com xerez. Diante da mesa, percebi a presença do servil Pumblechook envolto numa capa negra e metros e metros de fita de chapéu, ora devorando comida, ora fazendo gestos obsequiosos numa tentativa de atrair minha atenção. No momento em que logrou seu intento, aproximou-se de mim (com um bafo de xerez e bolo) e disse, em voz baixa: “Posso, meu caro senhor?”, e fez o que queria fazer. Então vi o sr. e a sra. Hubble, a qual estava num digno paroxismo de mudez num canto. Estávamos nos preparando para “acompanhar o féretro”, e estávamos todos sendo devidamente empacotados (por Trabb) em grupos ridículos. “Quer dizer, Pip”, Joe cochichou para mim enquanto estávamos sendo “formados”, no dizer do sr. Trabb, na sala de visitas, dois a dois — e a coisa parecia uma horrenda preparação para uma dança macabra — “quer dizer, sabe, eu preferia bem mais levar ela pra igreja, com mais três ou quatro gente amiga que viesse de vontade própia, mas diz que a vizinhança não ia achar direito, que era falta de respeito.” “Lenços a postos, todo mundo!”, exclamou o sr. Trabb neste momento, com uma voz compungida e eficiente. “Lenços a postos! Estamos prontos!” Assim, todos nós levamos nossos lenços ao rosto, como se estivéssemos com um sangramento no nariz, e saímos da casa aos pares: eu e Joe, Biddy e Pumblechook, o sr. e a sra. Hubble. Os restos mortais da minha pobre irmã haviam sido carregados pela porta da cozinha, e como a cerimônia da funerária exigia que os seis homens carregando o caixão ficassem sufocados e cegos sob um horrível dossel de veludo preto com borda branca, a coisa toda mais parecia um monstro cego com doze pernas humanas, arrastando-se confusamente sob a liderança de dois amestradores — o postilhão e seu camarada. A vizinhança, porém, aprovou enfaticamente esse cerimonial, e fomos muito admirados enquanto percorremos a aldeia; os membros mais jovens e vigorosos da comunidade saíam correndo à nossa frente de vez em quando, pondo-se à nossa espera para nos interceptar em lugares estratégicos. Nessas ocasiões, os mais exuberantes entre eles gritavam, excitados, quando nos viam emergir em alguma esquina: “Lá vêm eles!”, “Olha eles aí!”, e só faltava nos aplaudirem. No decorrer desse percurso, muito me incomodou o abjeto Publechook, o qual, estando atrás de mim, ficou o tempo todo ajeitando a fita do meu chapéu sacudida pelo vento e alisando meu manto. Meus pensamentos eram também desviados pelo orgulho excessivo do sr. e da sra. Hubble, os quais exibiam uma arrogância e uma vanglória extraordinárias por estarem participando de um cortejo tão distinto. E agora a extensão do charco se apresentava a nossos olhos, com as velas dos navios no rio destacando-se ao longe; e entramos no campo-santo, até chegar às sepulturas de meus pais desconhecidos, Philip Pirrip, paroquiano, e também Georgiana, esposa do acima. E ali minha irmã foi enterrada silenciosamente enquanto as cotovias cantavam no alto do céu, e a brisa a recobria de belas sombras de nuvens e árvores. A respeito do comportamento do mundano Pumblechook durante esses procedimentos, direi apenas que todo ele era dirigido a minha pessoa; e que até mesmo quando foram lidas as nobres passagens que lembram à humanidade que ela nada traz ao mundo2 e nada tira dele, e foge como uma sombra e não permanece, eu o ouvi resmungar que havia exceções, no caso de um jovem cavalheiro que inesperadamente herda uma extensa propriedade. Quando voltamos, ele teve a desfaçatez de me dizer que lamentava não ter minha irmã sabido que eu a honrara tanto, e deu a entender que ela julgaria que sua morte teria sido um preço razoável para conquistar tal honra. Depois disso, bebeu todo o resto do xerez, e o sr. Hubble bebeu o vinho do Porto, e os dois ficaram a conversar (coisa que já tive oportunidade de verificar ser costumeira em tais ocasiões) como se não pertencessem à mesma espécie que a falecida, e fossem sabidamente imortais. Por fim, ele foi-se embora com o sr. e a sra. Hubble — para fazer uma noitada, sem dúvida, e contar a todos os fregueses da Barqueiros Alegres que fora ele o fundador da minha fortuna e meu primeiro benfeitor. Depois que todos se foram, e que Trabb e seus homens — mas não seu criado: procurei por ele — haviam enfiado seus apetrechos em sacos e ido embora também, a atmosfera da casa ficou mais agradável. Pouco depois, eu, Biddy e Joe jantamos frios; mas comemos na melhor sala, e não na velha cozinha, e Joe foi tão cuidadoso ao manusear os talheres e o saleiro e tudo o mais que nos sentimos muito constrangidos. Mas após o jantar, quando o convenci a pitar seu cachimbo, e fui com ele até a ferraria, e nos sentamos lado a lado na grande pedra que ficava do lado de fora, começamos a nos entender melhor. Notei que depois do funeral Joe mudara de roupa, adotando uma indumentária intermediária entre o traje de domingo e a roupa de trabalho: e assim vestido meu querido amigo parecia mais natural, parecia o homem que de fato era. Ele ficou muito satisfeito quando lhe perguntei se podia dormir no meu velho quartinho, e eu também fiquei, pois sentia que realizara um grande feito ao fazer esse pedido. Quando as sombras da noite começaram a descer, aproveitei a oportunidade para ir ao jardim com Biddy para conversar um pouco. “Biddy ”, eu disse, “acho que tu poderias me ter escrito contando essas coisas tristes.” “É mesmo, senhor Pip?”, ela replicou. “Eu teria escrito se soubesse disso.” “Não pense que estou sendo cruel, Biddy, se eu disser que acho que devias saber disso.” “É mesmo, senhor Pip?” Ela era tão discreta e tinha um jeito tão educado, bondoso e agradável que a ideia de fazê-la chorar outra vez não me animava. Depois de olhar um pouco para ela, caminhando a meu lado de olhos baixados, resolvi não insistir mais naquele ponto. “Acho que agora vai ser difícil para ti continuar aqui, não é, minha cara Biddy ?” “Ah! Não posso ficar, senhor Pip”, disse Biddy, num tom de lamento, porém mesmo assim marcado por uma discreta convicção. “Estive conversando com a senhora Hubble, e vou visitá-la amanhã. Espero que eu e ela, juntas, possamos tomar conta do senhor Gargery , até ele tomar prumo.” “Como é que vais viver, Biddy ? Se precisares de di…” “Como é que vou viver?”, ela repetiu, enfática, com um toque de vermelho momentâneo no rosto. “Vou lhe dizer, senhor Pip. Vou tentar conseguir a vaga de professora na nova escola que estão quase terminando de construir aqui. Todos os vizinhos vão me dar boas recomendações, e espero conseguir ser trabalhadeira e paciente, e ensinar a mim mesma ao mesmo tempo que ensino aos outros. O senhor sabe”, prosseguiu Biddy, com um sorriso, levantando os olhos e olhando para mim, “as escolas novas não são como as antigas, mas de lá para cá aprendi muita coisa com o senhor, e tenho tido tempo depois disso para melhorar ainda mais.” “Acho que tu haverias de melhorar, Biddy , em quaisquer circunstâncias.” “Ah! Menos o lado ruim da minha natureza”, murmurou ela. Era menos uma queixa do que uma espécie de pensamento em voz alta irreprimível. Bem! Achei melhor não insistir naquele ponto também. Assim, caminhei mais um pouco com Biddy, olhando em silêncio para seus olhos voltados para baixo. “Ainda não sei nada a respeito dos detalhes da morte de minha irmã, Biddy .” “Há muito pouco a dizer, coitada. Ela andava numa de suas fases ruins — embora nos últimos tempos estivesse melhorando e não piorando — há quatro dias, quando melhorou à tarde, na hora do chá, e disse de maneira muito clara: ‘Joe’. Como ela não dizia uma palavra há muito tempo, saí correndo e fui chamar o senhor Gargery lá na ferraria. Ela fez sinal para mim que queria que ele se sentasse perto dela, e queria que eu pusesse os braços dela em torno do pescoço dele. Foi o que fiz, e ela pousou a cabeça no ombro dele e ficou muito contente. E assim, pouco depois voltou a dizer ‘Joe’, e uma vez ‘Perdão’, e uma vez ‘Pip’. E nunca mais levantou a cabeça, e uma hora depois nós a deitamos na cama, porque vimos que havia falecido.” Biddy chorou; o jardim cada vez mais escuro, e a rua, e as estrelas que surgiam no céu, turvaram-se na minha vista. “Nada foi descoberto, Biddy ?” “Nada.” “Sabes que fim levou Orlick?” “A julgar pela cor das roupas dele, deve estar trabalhando na pedreira.” “Então tu o tens visto? Por que estás olhando para aquela árvore escura na rua?”“ Eu o vi ali, na noite em que ela morreu.” “E não foi a última vez, não, certo?” “Não; eu o vi ali, enquanto estávamos caminhando aqui — não adianta”, disse Biddy, pondo a mão no meu braço, pois eu estava prestes a sair correndo, “eu não iria enganá-lo; ele ficou ali menos de um minuto, e já foi embora.” Fiquei extremamente indignado de saber que ela continuava sendo perseguida por aquele sujeito, e senti um ódio inveterado dele. Foi o que disse a Biddy, e disse também que seria capaz de gastar o dinheiro que fosse preciso e empenhar todos os esforços necessários para expulsá-lo da região. Pouco a pouco ela foi me fazendo falar de maneira mais equilibrada, e disse-me que Joe gostava muito de mim, que Joe jamais se queixava de nada — ela não disse: de mim, pois eu sabia o que ela queria dizer — porém cumpria as suas obrigações, com mão forte, boca calada e coração terno. “Realmente, qualquer elogio que se faça a ele é pouco”, concordei; “e, Biddy, precisamos falar muito sobre essas coisas, pois é claro que agora vou vir aqui sempre. Não vou deixar o pobre Joe sozinho.” Biddy não disse palavra. “Biddy , não estás me ouvindo?” “Estou, senhor Pip.” “E essa história de me chamar de senhor — isso me parece de mau gosto, Biddy — o que queres dizer com isso?” “O que eu quero dizer?”, indagou Biddy , tímida. “Biddy ”, insisti, num tom vigoroso e virtuoso, “peço que me digas o que queres dizer com isso!” “Com isso?”, repetiu Biddy . “Ora, não fiques repetindo”, retorqui. “Tu não fazias isso, Biddy .” “Não fazia isso!”, disse Biddy . “Ah, senhor Pip! Não fazia!” Bem! pensei. Também não insistiria naquele ponto. Depois de mais uma volta silenciosa no jardim, voltei à questão inicial. “Biddy ”, disse eu, “comentei ainda há pouco que viria aqui sempre, para ver o Joe, e tu recebeste meu comentário com um silêncio pronunciado. Faze-me o favor, Biddy , de me dizer por quê.” “Então é mesmo certo que o senhor virá vê-lo sempre?”, perguntou Biddy, parando na estreita alameda do jardim e olhando para mim à luz das estrelas com seus olhos límpidos e honestos. “Ah, meu Deus!”, exclamei, como se desistisse de Biddy em desespero. “Isso é mesmo um lado muito mau da natureza humana! Não me diga mais nada, por favor, Biddy . Estou muito chocado.” Por esse motivo razoável, mantive distância de Biddy durante a ceia, e quando subi para meu velho quartinho, despedi-me dela da maneira mais formal que me pareceu, no meu íntimo ressentido, compatível com a ida ao cemitério e o evento do dia. Durante toda a noite, sempre que me sentia inquieto, o que ocorria a cada quarto de hora, eu pensava na maldade, no insulto, na injustiça do que Biddy fizera comigo. No dia seguinte, de manhã cedo, eu haveria de partir. E de manhã cedo, saí de casa, e fiquei olhando para dentro sem ser visto, por uma das janelas de madeira da ferraria. Assim me detive por alguns minutos, olhando para Joe, já imerso no trabalho, com um tal brilho de saúde e força no rosto que era como se o sol brilhante que a vida lhe reservava o estivesse iluminando. “Adeus, querido Joe! Não — não limpe a mão, pelo amor de Deus, quero-a tal como está, enegrecida! Vou voltar em breve, e vou voltar sempre.” “Venha logo, senhor”, disse Joe, “e venha sempre, Pip!” Biddy estava esperando por mim à porta da cozinha, com um caneco de leite fresco e um pedaço de pão. “Biddy ”, eu disse, quando lhe dei a mão na despedida, “não estou zangado, mas estou magoado.” “Não, não fique magoado”, ela implorou, patética; “eu é que devo ficar magoada, se tiver sido pouco generosa.” Mais uma vez, a névoa começava a dissipar-se quando eu me afastava da casa. Se ela me revelasse, como imagino ter feito, que eu não voltaria, e que Biddy tinha toda a razão, tudo que posso dizer é que também a névoa tinha toda a razão. 17 Herbert e eu íamos de mal a pior, aumentando nossas dívidas, examinando nossa situação, deixando margens e realizando transações exemplares da mesma espécie; e o tempo passava, fosse como fosse, como sói acontecer; e tornei-me maior de idade — cumprindo a previsão de Herbert, segundo a qual eu atingia a maioridade antes de me dar conta do fato. O próprio Herbert já se havia tornado maior de idade, oito meses antes de mim. Como no seu caso a maioridade não implicava o recebimento de nenhuma herança, o acontecimento não causou nenhuma sensação profunda no Barnard’s Inn. Porém estávamos aguardando com muitas especulações e previsões a chegada de meus vinte e um anos, pois nós dois imaginávamos que meu tutor certamente não poderia deixar de fazer algum pronunciamento definitivo em tal ocasião. Eu fizera questão de deixar claro, em Little Britain, qual a data de meu aniversário. Na véspera, recebi um comunicado oficial de Wemmick, informando-me que o sr. Jaggers gostaria que eu o visitasse às dezessete horas desse dia auspicioso. Isso nos convenceu de que algo de grandioso haveria de acontecer, e assim eu estava numa agitação incomum quando fui ao escritório de meu tutor, um modelo de pontualidade. Na antessala, Wemmick deu-me parabéns, e por acaso esfregou no nariz um pedaço de papel dobrado cuja aparência me agradou. Entretanto, ele nada disse a respeito do papel e com um gesto convidou-me a entrar na sala de meu tutor. Era novembro, e o sr. Jaggers estava em pé diante da lareira, as costas apoiadas no console, as mãos embaixo das abas do paletó. “Bem, Pip”, disse ele, “hoje tenho de chamá-lo de senhor Pip. Parabéns, senhor Pip.” Trocamos um aperto de mão — os apertos de mão do meu tutor eram notavelmente breves — e agradeci. “Sente-se, senhor Pip”, disse meu tutor. Depois que me sentei, tendo ele permanecido em pé, a cabeça abaixada em direção às botas, senti-me numa posição de desvantagem, lembrando-me do dia em que fui colocado em cima de uma lápide. As duas máscaras de gesso horrendas estavam numa prateleira perto dele, e a expressão naqueles rostos parecia indicar que eles estavam tentando, de modo idiota e apoplético, acompanhar a conversa. “Meu jovem amigo”, começou meu tutor como se eu fosse uma testemunha num julgamento, “preciso lhe dizer algumas coisas.” “Sim, senhor.” “Na sua avaliação”, disse o sr. Jaggers, curvando-se para a frente e mirando o chão, e depois jogando a cabeça para trás e contemplando o teto, “na sua avaliação, quanto totalizam suas despesas costumeiras?” “Quanto totalizam?” “Quanto”, repetiu o sr. Jaggers, ainda olhando para o teto, “totalizam — suas — despesas?” Em seguida, correu os olhos por toda a sala e fez uma pausa com o lenço na mão, a meio caminho do nariz. Eu havia examinado minha situação tantas vezes que já não tinha a menor ideia de qual ela era exatamente. Com relutância, confessei-me de todo incapaz de responder à pergunta. Minha resposta pareceu agradar ao sr. Jaggers, que retrucou: “Tal como eu pensava!”, e assoou o nariz com um ar de satisfação. “Bem, eu lhe fiz uma pergunta, meu amigo”, disse o sr. Jaggers. “E você, tem alguma pergunta a me fazer?” “É claro que para mim seria um alívio lhe fazer algumas perguntas, mas lembro que o senhor me fez uma proibição.” “Faça uma pergunta”, insistiu o sr. Jaggers. “Hoje vou ser informado da identidade de meu benfeitor?” “Não. Faça outra.” “Essa revelação me será feita em breve?” “Vamos adiar essa por um momento”, respondeu meu tutor, “e faça outra.” Olhei à minha volta, mas concluí que não havia como evitar esta indagação: “Eu… vou… receber alguma coisa, senhor?”. Ao ouvir isso, o sr. Jaggers exclamou, triunfante: “Era o que eu pensava!”, e mandou Wemmick trazer aquele papel. Wemmick veio, entregou-o e saiu. “Bem, Pip”, disse o sr. Jaggers, “por favor, preste atenção. Você tem vindo aqui realizar saques com frequência; seu nome aparece muitas vezes no livro de registro de Wemmick; mas está endividado, não é mesmo?” “Infelizmente, tenho que responder na afirmativa, senhor.” “Você sabe que tem que responder na afirmativa, não é?”, insistiu o sr. Jaggers. “Sim, senhor.” “Não vou lhe perguntar quanto você deve, porque você não sabe; e se soubesse, não me diria; diria menos. Sim, isso mesmo, meu amigo”, exclamou o sr. Jaggers, de dedo em riste para me deter, quando fiz menção de protestar. “É bem provável que você pense que não faria isso, mas faria, sim. Você há de me desculpar, mas eu entendo melhor dessas coisas. Pois bem, pegue esse pedaço de papel. Muito bem. Agora desdobre-o e diga-me o que é.” “É um cheque”, respondi, “no valor de quinhentas libras.” “É um cheque”, repetiu o sr. Jaggers, “no valor de quinhentas libras. É uma quantia bem polpuda, a meu ver. Você concorda?” “E como poderia não concordar?” “Ah! Mas responda à pergunta”, insistiu o sr. Jaggers. “Sem dúvida.” “Para você, trata-se sem dúvida de uma quantia polpuda. Pois essa quantia polpuda, Pip, é sua. É um presente de aniversário, por conta das suas esperanças. E esta é a quantia anual, e só esta, que você terá para gastar, até que o seu benfeitor se manifeste. Ou seja, doravante você vai cuidar de seu dinheiro pessoalmente, e vai receber de Wemmick cento e vinte cinco libras por trimestre, até que tenha contato direto com a fonte, e não apenas o agente. Como já lhe disse, sou apenas o agente. Cumpro minhas ordens, e sou pago para fazêlo. A meu ver, essas ordens não são razoáveis, mas não estou sendo pago para dar minha opinião a esse respeito.” Comecei a manifestar minha gratidão a meu benfeitor, pela sua grande generosidade, quando o sr. Jaggers me deteve. “Não estou sendo pago, Pip”, disse ele, frio, “para transmitir suas palavras a outrem”; em seguida recolheu as abas do paletó, como para encerrar o assunto, e ficou a encarar as botas de cenho franzido, como se suspeitasse que elas estavam tramando contra ele. Após uma pausa, insisti: “Ainda há pouco, senhor Jaggers, fiz uma pergunta que o senhor me pediu que adiasse por um momento. Espero não estar fazendo nada de errado ao repeti-la.” “Que pergunta?” Eu deveria ter previsto que ele jamais me ajudaria, porém não esperava ter de formular a pergunta outra vez, como se fosse uma novidade. “É provável”, comecei, após hesitar, “que meu benfeitor, a fonte que o senhor mencionou ainda há pouco, em breve…”, e nesse ponto me detive, por delicadeza. “Em breve o quê?”, indagou o sr. Jaggers. “Isso não é uma pergunta, ainda.” “Em breve virá a Londres”, prossegui, após buscar uma formulação exata, “ou me mandará ir a algum lugar?” “Veja bem”, respondeu o sr. Jaggers, fixando em mim pela primeira vez seus olhos escuros e fundos, “voltemos àquela primeira noite em que nos encontramos na sua aldeia. O que foi que eu lhe disse nessa ocasião, Pip?” “O senhor me disse que talvez essa pessoa só aparecesse depois de vários anos.” “Exatamente”, replicou o sr. Jaggers; “essa é a minha resposta.” Enquanto nos encarávamos frontalmente, senti que minha respiração estava ofegante, por efeito de minha forte vontade de arrancar alguma coisa dele. E, sentindo que estava ofegante, e sentindo que ele o estava percebendo, dei-me conta de que era menos provável do que nunca que eu conseguisse arrancar alguma coisa dele. “O senhor acha que ainda vai levar alguns anos, senhor Jagger?” O sr. Jaggers fez que não com a cabeça — não respondendo à pergunta na negativa, e sim negando a própria possibilidade de que fosse me dar uma resposta — e as duas horrendas carantonhas deformadas de gesso olharam para mim, quando meus olhos subiram até elas, tal como se sua atenção suspensa tivesse chegado a um momento de crise, e elas estivessem prestes a espirrar. “Ora!”, exclamou o sr. Jaggers, aquecendo as coxas com as costas da mão, que estavam aquecidas, “vou ser direto com você, meu amigo Pip. Essa pergunta não deve ser feita. Você vai me compreender melhor se eu lhe disser que ela pode ter o efeito de comprometer a minha situação. Ora! Vou um pouco mais longe; vou me abrir um pouco mais com você.” Abaixou-se tanto, para encarar as botas de cenho franzido, que durante essa pausa pôde coçar as panturrilhas. “Quando essa pessoa se revelar”, disse o sr. Jaggers, empertigando-se, “você e essa pessoa vão acertar suas contas. Quando essa pessoa se revelar, minha participação nesse caso vai encerrar-se. Quando essa pessoa se revelar, não precisarei saber nada a respeito de nada. É tudo que eu tenho a dizer.” Entreolhamo-nos até que desviei a vista, e fiquei a olhar para o chão, pensativo. Com base nessa última fala, concluí que a sra. Havisham, por algum motivo ou sem motivo algum, não havia revelado a ele que me destinara a Estella; que esse fato o incomodava, e o tornava ciumento; ou então que ele realmente não aprovava tal plano, e fazia questão de não ter nenhum envolvimento com ele. Quando voltei a levantar a vista, verifiquei que esse tempo todo ele estivera a me dirigir seu olhar arguto, e que continuava a fazê-lo. “Se isso é tudo que o senhor tem a dizer”, observei, “então a mim não resta mais nada a dizer.” Ele concordou com um aceno, sacou do bolso aquele relógio que os ladrões tanto temiam e me perguntou onde eu ia jantar. Respondi que o faria nos meus próprios aposentos com Herbert. Senti-me obrigado a convidá-lo a nos honrar com sua presença, e ele de pronto aceitou o convite. Porém insistiu em caminhar comigo até minha morada, para que eu não fizesse nenhum preparativo especial para ele, só que antes tinha de escrever uma ou duas cartas e (é claro) lavar as mãos. Assim, respondi que eu iria para a antessala, para conversar com Wemmick. O fato é que, depois que pus no bolso as quinhentas libras, surgiu na minha cabeça uma ideia que já me ocorrera muitas vezes; e pensei que Wemmick seria a pessoa adequada a quem pedir um conselho a esse respeito. Ele já havia trancado seu cofre e feito seus preparativos para ir embora. Havia se levantado de sua mesa, colocado seus dois castiçais sebosos ao lado das espevitadeiras numa prateleira junto à porta, prontos para serem apagadas as velas; havia abafado as brasas da lareira, deixado bem à mão o chapéu e o sobretudo, e estava a bater no próprio peito com a chave do cofre, à guisa de exercício atlético após o trabalho. “Meu caro Wemmick”, disse eu, “quero pedir sua opinião. Eu gostaria muito de ajudar um amigo.” Wemmick estreitou sua caixa de correio e sacudiu a cabeça, como se fosse radicalmente contrário a qualquer fraqueza fatal dessa espécie. “O amigo em questão”, prossegui, “está tentando se estabelecer no mundo dos negócios, porém não tem dinheiro, e está sendo difícil e desanimador para ele dar os primeiros passos. Pois bem, quero fazer alguma coisa no sentido de ajudá-lo a dar os primeiros passos.” “Com dinheiro à vista?”, disse Wemmick, com uma voz mais seca do que serragem. “Um pouco de dinheiro à vista”, respondi, pois uma imagem nada tranquilizadora surgiu em minha mente daquela pilha simétrica de papéis na minha sala; “um pouco de dinheiro à vista, e talvez um adiantamento da renda que vou herdar.” “Senhor Pip”, disse Wemmick, “eu gostaria de contar nos dedos com o senhor as diversas pontes1 daqui até Chelsea Reach. Vejamos: a ponte London, uma; a Southwark, duas; Blackfriars, três; Waterloo, quatro; Westminster, cinco; Vauxhall, seis.” Ele assinalava cada ponte batendo com a chave do cofre na palma da mão. “Como o senhor vê, tem seis pontes pra escolher.” “Não estou entendendo”, respondi. “Escolha uma ponte, senhor Pip”, prosseguiu Wemmick, “e vá até ela, e jogue o seu dinheiro dentro do Tâmisa do arco central, e o senhor sabe o que acontece com ele. Ajude seu amigo com esse dinheiro, e o senhor também sabe o que acontece com ele — só que é uma coisa menos agradável e menos lucrativa.” Ele escancarou a boca de tal modo que daria para pôr no correio um jornal inteiro dentro dela. “Você está me desanimando”, observei. “É minha intenção”, retrucou Wemmick. “Quer dizer que, na sua opinião”, comecei a perguntar, com alguma indignação, “nunca se deve…” “Investir valores portáteis num amigo?”, completou Wemmick. “De modo algum. A menos que se tenha a intenção de se livrar do amigo — nesse caso, a questão é saber quantos valores portáteis vale a pena gastar para se livrar do amigo.” “Então é essa a sua opinião pensada, Wemmick?” “É essa”, ele respondeu, “a minha opinião pensada neste escritório.” “Ah!”, exclamei, pois imaginei ver ali uma possibilidade, e insisti: “Mas seria essa a sua opinião em Walworth?”. “Senhor Pip”, ele respondeu, muito sério, “Walworth é um lugar, e este escritório é outro. Do mesmo modo como o idoso é uma pessoa e o senhor Jaggers é outra. Não se pode fazer confusão entre uma coisa e a outra. Os meus sentimentos em Walworth devem ser recebidos em Walworth; apenas os meus sentimentos oficiais devem ser recebidos neste escritório.” “Muito bem”, disse eu, com grande alívio, “então vou procurá-lo em Walworth, o senhor pode contar com isso.” “Senhor Pip”, ele retrucou, “o senhor vai ser bem recebido lá, enquanto pessoa física.” Esta conversa toda se deu em voz baixa, pois sabíamos muito bem que os ouvidos de meu tutor eram extremamente aguçados. Neste momento ele apareceu à porta de sua sala, enxugando as mãos numa toalha, quando então Wemmick vestiu seu sobretudo e levantou-se para apagar as velas. Nós três saímos juntos, e chegando à porta da rua, Wemmick foi para um lado, enquanto eu e o sr. Jaggers fomos para o outro. Naquela noite, não pude conter o desejo, mais de uma vez, de que o sr. Jaggers tivesse um idoso na Gerrard-street, ou uma Poderosa, ou alguém ou alguma coisa que o fizesse relaxar um pouco a testa franzida. Era um tanto incômodo pensar, no dia em que eu completava vinte e um anos de idade, que atingir a maioridade não parecia valer muito a pena num mundo tão cauteloso e desconfiado, tal como ele o apresentava. Meu tutor era mil vezes mais bem informado e mais inteligente do que Wemmick, e, no entanto, eu preferiria mil vezes jantar com Wemmick. E o sr. Jaggers não fez com que apenas eu ficasse profundamente melancólico, pois, depois que ele se foi, Herbert, com os olhos fixos na lareira, observou que devia ter cometido um crime de cujos detalhes se esquecera, para se sentir de tal modo abatido e culpado. 18 Julgando que domingo seria o melhor dia para conhecer os sentimentos walworthianos do sr. Wemmick, dediquei a tarde do domingo seguinte a uma peregrinação ao castelo. Ao chegar diante das ameias, encontrei a bandeira britânica desfraldada e a ponte levadiça levantada; porém, sem deixar que essa demonstração de desafio e resistência me desanimasse, toquei a campainha e fui recebido do modo mais pacífico pelo idoso. “O meu filho”, disse o velho, após levantar a ponte levadiça, “imaginou que talvez o senhor aparecesse hoje, e mandou dizer que voltava logo da caminhada da tarde. Ele é muito sistemático quanto a essas caminhadas, o meu filho. É muito sistemático em tudo, o meu filho.” Concordei com um aceno de cabeça, tal como o próprio Wemmick teria feito, entrei e sentei-me junto à lareira. “O senhor conheceu o meu filho”, disse o velho, efusivo como sempre, enquanto aquecia as mãos no fogo, “no escritório dele, imagino?” Assenti com a cabeça. “Ah! me disseram que o meu filho é muito bom no que ele faz, não é?” Assenti com ênfase. “Sim; é o que me dizem. Ele trabalha com advocacia?” Assenti com ainda mais ênfase. “O que me admira”, disse o velho, “pois meu filho não foi criado pra ser advogado, e sim provador de vinho.”1 Curioso para saber até onde o ancião estava informado a respeito da reputação do sr. Jaggers, gritei seu nome para ele. Sua resposta deixou-me completamente confuso; ele riu gostosamente e me disse, com muita animação: “Não, sem dúvida; o senhor tem razão”. E até hoje não tenho a menor ideia do que ele quis dizer, nem qual foi o gracejo que me atribuiu. Como eu não podia ficar eternamente sentado naquela poltrona balançando a cabeça para ele, sem fazer nenhuma outra tentativa de interessá-lo, perguntei-lhe aos gritos se ele também havia trabalhado como “provador de vinho”. Após berrar a expressão mais vezes e dar tapinhas no peito do velho para associar o sentido dela à pessoa dele, por fim consegui fazê-lo me entender. “Não”, respondeu ele; “nos armazéns, nos armazéns. Primeiro, lá pra aqueles lados”, com um gesto que parecia indicar a chaminé, mas que entendi como uma referência a Liverpool; “e depois aqui em Londres. Porém, por ter uma deficiência — pois sou um tanto mouco, meu senhor…” Em pantomima, manifestei grande espanto. “Sim, um tanto mouco; e por conta dessa deficiência, meu filho meteu-se na advocacia e encarregou-se de mim, e pouco a pouco conseguiu essa propriedade tão bonita. Mas, pra voltar ao que o senhor disse”, insistiu o velho, mais uma vez rindo gostosamente, “digo e repito: não, sem dúvida; o senhor tem razão.” Eu estava a me perguntar, modesto, se, recorrendo a toda a minha argúcia, teria conseguido fazer um comentário que o faria rir a metade do que ele rira daquele gracejo imaginário, quando levei um susto ao ouvir um estalido súbito vindo da chaminé, e fantasmagoricamente abriu-se uma portinhola de madeira com o nome “john” escrito nela. O velho, seguindo a direção de meu olhar, exclamou triunfante: “Meu filho chegou!”, e fomos os dois até a ponte levadiça. A cena era impagável: Wemmick me saudando com um aceno do outro lado da vala quando poderia com a maior facilidade ter trocado um aperto de mãos comigo. O idoso manejava a ponte levadiça com tanto prazer que não me ofereci para ajudá-lo, porém permaneci em silêncio até que Wemmick atravessou a ponte e me apresentou à sra. Skiffins, que o acompanhava. A sra. Skiffins tinha uma aparência rígida, e, tal como o cavalheiro que a acompanhava, uma caixa de correio no lugar da boca. Teria talvez dois ou três anos menos que Wemmick, e deu-me a impressão de que possuía alguns valores portáteis. O corte de seu vestido da cintura para cima, tanto à frente quanto atrás, fazia com que sua silhueta lembrasse um papagaio de papel; e eu diria talvez que o vestido era um pouco laranja demais, e as luvas um pouco verdes demais. Porém parecia uma pessoa simpática e demonstrou muita consideração pelo idoso. Não demorou para que eu percebesse que ela visitava o castelo com frequência; pois, assim que entramos, e elogiei o método engenhoso através do qual Wemmick anunciava sua chegada, ele pediu-me que fixasse minha atenção por um momento no outro lado da chaminé, e desapareceu. Em seguida ouviu-se outro estalido, e outra portinhola se abriu, com o nome “Sra. Skiffins”; depois a sra. Skiffins se fechou e John se abriu; em seguida a sra. Skiffins e John se abriram juntos, e por fim fecharam-se juntos. Quando Wemmick reapareceu, após demonstrar suas invenções mecânicas, manifestei grande admiração por elas, e ele comentou: “Ora, essas coisas são agradáveis e úteis pro idoso. E vale a pena dizer, meu caro, que, de todas as pessoas que chegam a esse portão, o segredo dessas portinholas só é do conhecimento do idoso, da senhora Skiffins e de mim!”. “E o senhor Wemmick as fez”, acrescentou a sra. Skiffins, “com suas próprias mãos, e foi tudo tirado de sua própria cabeça.” Enquanto a sra. Skiffins retirava a touca (as luvas verdes ela manteve nas mãos durante toda a noite, como sinal externo e visível de que havia uma visita presente), Wemmick convidou-me para dar uma volta na propriedade com ele, para que eu visse como ficava a ilha no inverno. Pensando que isso me daria uma oportunidade de conhecer os seus sentimentos walworthianos, toquei no assunto assim que saímos do castelo. Tendo pensado na questão com cuidado, introduzi o tema como se jamais o tivesse mencionado antes. Disse a Wemmick que a situação de Herbert Pocket me preocupava, e contei-lhe como nos havíamos conhecido, narrando nossa luta. Falei rapidamente sobre a família de Herbert, seu caráter e sua dependência financeira em relação ao pai, cujo auxílio era incerto e nada pontual. Mencionei o quanto me fora vantajoso, quando eu ainda era muito cru e ignorante, o contato com ele, e confessei temer não haver retribuído de modo suficiente, e que talvez ele tivesse saído melhor se não fossem eu e minhas esperanças. Sem fazer qualquer alusão à sra. Havisham, ainda assim dei a entender que nós dois talvez tivéssemos disputado o mesmo patrocínio, e afirmei ter certeza de que ele possuía uma alma generosa e que estava muito acima de quaisquer desconfianças, retaliações ou tramas mesquinhas. Por todos esses motivos (disse eu a Wemmick), e porque ele era meu jovem companheiro e amigo, e eu tinha muito afeto por ele, era minha intenção fazer com que minha boa sorte tivesse algum impacto sobre ele, e assim sendo recorria aos conselhos de Wemmick, pessoa experiente, que conhecia os homens e os negócios, para saber qual seria a melhor maneira de tentar, com base em meus recursos, ajudar Herbert a obter alguma renda imediata — coisa de cem libras por ano, para mantê-lo esperançoso e animado — e pouco a pouco lhe dar uma participação em alguma pequena sociedade. Em conclusão, insisti para que Wemmick compreendesse que minha ajuda deveria ser dada a Herbert sem que ele soubesse ou sequer desconfiasse, e que não havia outra pessoa no mundo com quem eu poderia me aconselhar. Terminei pondo a mão em seu ombro e dizendo: “Sou obrigado a me abrir com você, embora saiba que deste modo estou a incomodá-lo; mas a culpa é sua, por ter me trazido aqui pela primeira vez”. Wemmick permaneceu calado por algum tempo, e em seguida disse, com certo sobressalto: “Olhe, senhor Pip, uma coisa eu tenho de lhe dizer. O senhor é generoso como o diabo”. “Então me ajude a ser generoso”, retruquei. “Ah”, disse Wemmick, sacudindo a cabeça, “não é esse o meu trabalho.” “E aqui não é seu lugar de trabalho”, devolvi. “O senhor tem razão”, ele concordou. “Acertou na mosca. Senhor Pip, vou pôr a cachola pra funcionar, e acho que o que o senhor quer fazer pode ser feito aos poucos. O Skiffins (o irmão dela) é contador e agente. Vou falar com ele e começar a trabalhar pro senhor.” “Agradeço muitíssimo.” “Pelo contrário”, disse ele, “eu é que agradeço, pois se bem que estamos atuando estritamente como pessoas físicas, não há como não ver que tem umas teias de aranha de Newgate por aqui, e desse modo a gente acaba com elas.” Depois de conversar mais um pouco sobre o assunto, voltamos ao castelo, onde encontramos a sra. Skiffins preparando o chá. A responsabilidade pelas torradas foi delegada ao idoso, e esse excelente cavalheiro estava de tal modo absorto na tarefa que parecia correr o risco de derreter seus próprios olhos. A refeição que íamos fazer não era apenas uma formalidade, e sim uma realidade vigorosa. O idoso preparou tamanha pilha de torradas amanteigadas que mal dava para vê-lo por trás delas, colocadas sobre um suporte de ferro preso na barra superior da lareira; e a sra. Skiffins fez uma tal quantidade de chá que o porco no quintal ficou muito alvoroçado, e repetidamente manifestou seu desejo de participar da festa. A bandeira foi içada, o canhão foi disparado, na hora apropriada, e senti-me confortavelmente isolado do resto de Walworth, como se a vala tivesse dez metros de largura e outros tantos de profundidade. Nada perturbava a paz do castelo, senão o ruído das portinholas de John e da sra. Skiffins a abrir-se de vez em quando, pois o mecanismo era sujeito a uma enfermidade espasmódica que me proporcionava um incômodo reativo, até que me acostumei. Concluí, com base na natureza metódica dos gestos da sra. Skiffins, que ela preparava chá ali todas as noites de domingo; e desconfiei que o broche clássico que ela usava, representando o perfil de uma mulher indesejável com um nariz muito reto e uma lua muito nova, era um valor portátil que lhe fora dado por Wemmick. Comemos todas as torradas e bebemos chá na mesma proporção, e foi delicioso perceber o quanto todos nós ficamos aquecidos e lambuzados depois. O idoso, em particular, poderia muito bem passar pelo velho chefe de uma tribo selvagem, limpo e recém-ungido. Depois de uma breve pausa para descanso, a sra. Skiffins — na ausência da criadinha, a qual, ao que parecia, recolhia-se ao seio da família nas tardes de domingo — lavou a louça, com ares de dama que se entrega a uma atividade na qualidade de amadora, de modo a não comprometer nenhum de nós. Em seguida voltou a calçar as luvas, reunimo-nos em torno da lareira e Wemmick disse: “Agora, pai idoso, leia o jornal pra nós”. Wemmick explicou-me, enquanto o idoso punha os óculos, que isso era uma tradição, e que o ancião ficava satisfeitíssimo quando lia as notícias em voz alta. “Não lhe peço desculpas”, prosseguiu Wemmick, “porque a ele já não restam muitos prazeres — não é, pai idoso?” “Está bem, John, está bem”, respondeu o velho, vendo que lhe dirigiam a palavra. “Basta acenar com a cabeça pra ele de vez em quando, sempre que ele levantar a vista do jornal”, disse Wemmick, “que ele vai ficar feliz como um rei. Estamos todos prestando atenção, idoso.” “Está bem, John, está bem!”, respondeu o velho, tão ocupado e tão alegre que a cena era realmente encantadora. A leitura do idoso me fez relembrar as aulas na casa da tia-avó do sr. Wopsle, com a peculiaridade ainda mais agradável de que ela parecia vir de um buraco de fechadura. Como o idoso queria que as velas ficassem perto dele, e como estava sempre correndo o risco de enfiar a cabeça ou o jornal nas chamas, ele exigia tanta atenção cuidadosa quanto uma fábrica de pólvora. Porém Wemmick era tão incansável quanto delicado em sua vigilância, e o idoso não interrompeu sua leitura, não se dando conta dos constantes atos de resgate. Sempre que olhava para nós, todos manifestávamos muito interesse e espanto, e balançávamos a cabeça até que ele retomasse a leitura. Como Wemmick e a sra. Skiffins estavam sentados lado a lado, e eu me colocara num canto mais escuro, observei um lento e gradual alongamento da boca do sr. Wemmick, que indicava claramente estar ele lenta e gradualmente colocando o braço na cintura da sra. Skiffins. Depois de algum tempo, vi sua mão surgir do outro lado daquela senhora; mas nesse momento a sra. Skiffins o deteve à perfeição com a luva verde, livrou-se do braço dele como quem se despe de uma peça de vestuário e colocou-o na mesa à sua frente. A tranquilidade da sra. Skiffins enquanto realizava esse gesto foi uma das coisas mais notáveis que eu jamais vira, e se me fosse possível conceber que aquele ato prescindia da volição, eu teria concluído que ela agira de modo mecânico. Algum tempo depois, percebi que o braço do sr. Wemmick começava a desaparecer outra vez, gradualmente, até sumir de todo. Logo em seguida, sua boca voltou a alargar-se. Após um intervalo de suspense para mim, fascinante e quase doloroso, vi sua mão aparecer do outro lado da sra. Skiffins. No mesmo instante ela a deteve com a precisão de um boxeador plácido, retirou aquela espécie de cinta tal como antes e colocou-a na mesa. Tomando a mesa como representante do caminho da virtude, posso afirmar que, durante todo o tempo da leitura do idoso, o braço de Wemmick ficou o tempo todo a desviar-se do caminho da virtude, sendo nela reposto pela sra. Skiffins. Por fim, de tanto ler o idoso acabou cochilando. Foi nesse momento que Wemmick pegou uma pequena chaleira, uma bandeja com taças e uma garrafa negra com uma rolha afixada a uma peça de porcelana, representando um dignitário clerical de aspecto rubicundo e sociável. Com a ajuda desses implementos, todos nós voltamos a beber algo de quente, inclusive o idoso, que logo acordou. A sra. Skiffins preparou as bebidas, e observei que ela e Wemmick usavam a mesma taça. Naturalmente, não me ofereci para levar a sra. Skiffins em casa, e dadas as circunstâncias julguei melhor ser o primeiro a partir: o que fiz, despedindo-me cordialmente do idoso, tendo passado uma noite agradável. Antes que se passasse uma semana, recebi um bilhete de Wemmick, enviado de Walworth, dizendo que esperava ter avançado um pouco em relação àquela questão que nos dizia respeito como pessoas físicas, e que gostaria que eu voltasse a visitá-lo para discutir o assunto. Assim, lá fui eu de novo a Walworth, e outra vez, e mais outra, e marquei encontros com ele no centro de Londres diversas vezes, porém jamais comentei o assunto com ele em Little Britain, nem em seus arredores. Como resultado, encontramos um jovem comerciante ou agente de embarque, honesto e ainda se iniciando no mundo dos negócios, que precisava de um auxiliar inteligente e precisava de capital, e que, no decorrer do tempo, haveria de precisar de um sócio. Eu e ele assinamos cláusulas secretas referentes a Herbert, e paguei-lhe metade das quinhentas libras que havia recebido, e comprometi-me a fazer uma série de outros pagamentos: alguns deles venceriam em certas datas com base em minha renda; outros, apenas quando eu recebesse toda a herança. O irmão da sra. Skiffins encarregou-se das negociações. Wemmick esteve o tempo todo atuando nos bastidores, mas seu nome jamais apareceu em nenhum papel. Toda a transação foi realizada de maneira tão engenhosa que Herbert jamais suspeitou que eu estivesse envolvido. Nunca me esquecerei do sorriso radiante com que ele chegou em casa numa tarde e me disse, como se fosse uma grande notícia, que se havia envolvido com um tal de Clarriker (o jovem comerciante), e que Clarriker havia manifestado um interesse extraordinário por ele, e que finalmente parecia ter surgido sua oportunidade. A cada dia, à medida que suas esperanças se tornavam mais sólidas e seu sorriso mais radiante, ele deve ter-me julgado um amigo cada vez mais afetuoso, pois era com muita dificuldade que eu continha minhas lágrimas de triunfo ao vê-lo tão feliz. Por fim, fechado o negócio, tendo ele se tornado sócio de Clarriker, e tendo conversado comigo a noite inteira, animado pelo prazer e pelo sucesso, cheguei mesmo a chorar quando me recolhi, de pensar que minhas esperanças haviam trazido algo de bom para alguém. Um grande acontecimento da minha vida, um momento decisivo de minha vida, agora se descortina. Porém, antes que eu possa relatá-lo, preciso dedicar um capítulo a Estella. Não é muita coisa, considerando-se que o tema ocupou por tanto tempo meu coração. 19 Se aquela casa velha e grave perto do rossio de Richmond vier a ser assombrada depois que eu morrer, certamente será pelo meu fantasma. Ah, as muitas e muitas noites e dias em que o espírito intranquilo dentro de mim assombrou aquela casa no tempo em que Estella nela morava! Estivesse onde estivesse meu corpo, meu espírito estava sempre vagando, vagando, vagando em torno daquela casa.A pessoa com quem Estella estava morando, uma certa sra. Brandley, era uma viúva que tinha uma filha alguns anos mais velha do que Estella. A mãe parecia jovem, e a filha, velha; a tez da mãe era rosada, e a da filha, amarelada; a mãe representava a frivolidade, e a filha, a teologia. As duas tinham o que é considerado uma boa posição, e visitavam e eram visitadas por muita gente. Havia pouca ou nenhuma comunhão de sentimentos entre elas duas e Estella, mas havia um entendimento de que Estella precisava delas e elas precisavam de Estella. A sra. Brandley fora amiga da sra. Havisham no tempo em que esta ainda não se havia isolado do mundo. Dentro ou fora da casa da sra. Brandley , eu sofria todas as formas e graus de tortura que Estella era capaz de me infligir. A natureza das minhas relações com ela, que me concedia familiaridade sem me garantir sua preferência, levava-me à loucura. Ela usava-me para provocar os outros admiradores, e lançava mão da familiaridade que havia entre nós para menosprezar constantemente minha dedicação a ela. Se eu fosse seu secretário, mordomo, meio-irmão, parente pobre — nem mesmo se fosse um irmão mais moço de seu noivo — eu não teria me sentido mais distante de minhas esperanças quanto mais próximo estivesse dela. O privilégio de chamá-la pelo nome e ouvi-la chamar-me pelo meu tornouse, naquelas circunstâncias, um fator agravante de meu sofrimento; e se isso provavelmente quase enlouquecia seus outros pretendentes, não tenho dúvida de que quase enlouqueceu a mim. Estella tinha uma infinidade de admiradores. Certamente meus ciúmes transformavam em admiradores todos os que dela se aproximavam, mas mesmo sem mim eles seriam numerosos. Eu a via com frequência em Richmond, dela ouvia falar com frequência na cidade, e com frequência a levava a passear de barco juntamente com as Brandley ; eram piqueniques, festas ao ar livre, idas ao teatro, à opera, às salas de concerto, bailes, todos os tipos de prazeres, em meio aos quais eu a perseguia — e todos eram para mim verdadeiras torturas. Jamais gozei de uma única hora de felicidade em sua presença, e, no entanto, minha consciência passava as vinte e quatro horas do dia sonhando com a felicidade de tê-la a meu lado até a morte. Durante essa fase de nosso relacionamento — a qual durou, como logo se verá, um período que na época me pareceu bem longo — ela habitualmente adotava aquele tom que dava a entender que nossa ligação nos fora imposta à força. Havia outras ocasiões em que esse tom e todos os outros inúmeros tons que ela adotava eram interrompidos de súbito, e Estella parecia apiedar-se de mim. “Pip, Pip”, disse-me ela certa vez, numa dessas interrupções, quando estávamos sentados afastados um do outro sob uma janela, ao anoitecer, na casa de Richmond, “será que nunca vais te acautelar?” “Quanto a quê?” “Quanto a mim.” “Não devo me sentir atraído por ti, é isso que queres dizer, Estella?” “Se é isso que quero dizer! Se não sabes o que quero dizer, estás cego.” Eu deveria ter respondido que o Amor costuma ser representado como um cego, não estivesse eu constantemente constrangido — e não era este o menor dos meus sofrimentos — pelo sentimento de que seria falta de generosidade da minha parte impor-me a ela, quando ela sabia que era obrigada a obedecer à sra. Havisham. Eu sempre temia que essa consciência da parte de Estella me colocasse numa situação muito desvantajosa em relação a seu orgulho, e me tornasse causador de sentimentos de rebeldia em seu coração. “Seja como for”, respondi, “não há como eu me acautelar desta vez, pois tu me escreveste pedindo-me que viesse te ver.” “É verdade”, disse Estella, com um sorriso frio e indiferente que sempre me gelava a alma. Depois de contemplar o crepúsculo por algum tempo, ela prosseguiu: “Chegou o momento em que a senhora Havisham quer que eu passe um dia com ela na Casa Satis. Ela pede que tu me leves lá e me tragas de volta, se quiseres. Ela não gosta que eu viaje sozinha, e não quer receber minha criada, pois sua sensibilidade a faz horrorizar-se só de pensar que uma pessoa desse tipo vai depois falar dela. Podes me levar?” “Se eu posso levar-te, Estella!” “Então podes? Depois de amanhã, por favor. Todas as despesas serão pagas com o dinheiro da minha bolsa. Estás ciente das condições de tua ida?” “E tenho que obedecer”, respondi. Foi essa toda a preparação que recebi para essa visita, como sempre ocorria em casos assim: a sra. Havisham jamais me escrevia; aliás, eu jamais vira a letra dela. Fomos dois dias depois, e a encontramos no quarto em que eu a vira pela primeira vez, e é desnecessário dizer que nada havia mudado na Casa Satis. A sra. Havisham estava ainda mais terrivelmente apaixonada por Estella do que da última vez em que eu as vira juntas; repito a palavra em plena consciência, pois havia mesmo algo de terrível no modo enérgico como ela a olhava e abraçava. Ela entregava-se à beleza de Estella, a suas palavras, a seus gestos, e ficava a morder seus próprios dedos trêmulos enquanto a contemplava, como se estivesse devorando o belo ser que havia criado. Voltava a vista de Estella para mim, com um olhar penetrante que parecia chegar ao coração e perscrutar suas feridas. “Como te trata ela, Pip, como te trata ela?”, perguntava-me, com sua avidez de bruxa, mesmo quando Estella estava presente. Porém, era quando ficávamos sentados ao lado dela junto à lareira, à noite, que a sra. Havisham agia de modo mais insólito; pois, mantendo a mão de Estella presa em seu braço e agarrando-a com a sua, arrancava da jovem, valendo-se do que ela lhe havia contado nas cartas que lhe enviava com regularidade, o nome e a condição social de cada um dos homens que ela fascinara; e a sra. Havisham, detendo-se nesse inventário com a intensidade de uma mente tomada por um ferimento e uma doença mortais, conservava a outra mão apoiada na bengala, e o queixo apoiado na mão, e os olhos mórbidos e luzidios fixos em mim, um verdadeiro espectro. Nesses momentos eu percebia, por mais que isso me tornasse infeliz, e despertasse em mim a consciência amarga da situação de dependência, de degradação, mesmo, em que me encontrava — eu percebia que Estella estava sendo usada pela sra. Havisham para se vingar dos homens, e que ela não me seria concedida enquanto a velha não gozasse essa vingança por um bom tempo. Eu percebia a razão pela qual Estella me fora atribuída. Ao enviá-la ao mundo para atrair, atormentar e torturar, a sra. Havisham fazia-o com a certeza maligna de que ela estaria fora do alcance de todos os admiradores, e de que todos que apostassem nela estavam fadados a ser derrotados. Eu percebia que também era atormentado pelo que havia de perverso naquele engenho, muito embora o prêmio estivesse reservado a mim. Percebia por que motivo eu era alvo de uma protelação tão demorada, e por que motivo meu antigo tutor se recusava a admitir que tinha conhecimento formal de tal plano. Em suma, eu percebia como era a sra. Havisham, tal como a tinha diante de meus olhos, e sempre a tivera diante de meus olhos; e percebia com clareza o que havia de sombrio e malsão na casa em que ela vivia sua vida escondida do sol. As velas que iluminavam aquele quarto ficavam em castiçais na parede. Elas situavam-se a uma altura considerável do chão e ardiam com aquele brilho constante e sem vida de uma luz artificial num ar raramente renovado. Enquanto eu olhava para elas, e para a penumbra fraca que elas geravam, e para o relógio parado, e para as peças fenecidas do traje de noiva que ficavam espalhadas sobre a mesa e pelo chão, e para a figura terrível daquela mulher, com seu reflexo espectral lançado pelo fogo, em tamanho ampliado, no teto e na parede, percebia em tudo aquilo a estrutura que minha mente havia construído, repetida e jogada de volta para mim. Meus pensamentos penetraram no salão do outro lado do patamar da escada, onde a mesa estava posta, e eu a via como se estivesse escrita nas teias de aranha que desciam do centro de mesa, no rastejar das aranhas sobre a toalha, nas trajetórias dos camundongos que corriam atrás dos lambris com seus coraçõezinhos acelerados, e nos movimentos espasmódicos das baratas no soalho. Nesta visita, aconteceu de Estella e a sra. Havisham trocarem algumas palavras ásperas. Era a primeira vez que eu as via discutir. Estávamos sentados junto à lareira, tal como relatei ainda há pouco, e a sra. Havisham ainda mantinha o braço de Estella preso no seu, e ainda agarrava a mão de Estella, quando a moça pouco a pouco começou a desprender-se dela. Já manifestara sua impaciência orgulhosa mais de uma vez, e sua atitude em relação àquele afeto feroz era mais tolerância do que aceitação ou retribuição. “O quê!”, exclamou a sra. Havisham, voltando o olhar faiscante para ela. “Estás cansada de mim?” “Só um pouco cansada de mim mesma”, respondeu Estella, soltando o braço e caminhando até o enorme console, onde ficou a contemplar o fogo. “Diz a verdade, sua ingrata!”, gritou a sra. Havisham, batendo com a bengala no chão com toda a força. “Estás cansada de mim.” Estella olhou-a com absoluta tranquilidade e voltou a olhar para o fogo. Seu vulto gracioso e seu belo rosto manifestavam uma calma indiferença à fúria da outra que chegava a ser cruel. “És pau, és pedra!”,1 exclamou a sra. Havisham. “Teu coração é de gelo, gelo!” “O quê?”, retrucou Estella, mantendo a atitude indiferente enquanto se encostava no console, movendo apenas os olhos. “A senhora me acusa de ser fria? A senhora?” “E não és?”, foi a resposta feroz. “A senhora há de saber”, disse Estella, “pois sou o que a senhora fez de mim. Todo o mérito é seu, e toda a culpa também; todo o sucesso é seu, e todo o fracasso; em suma, sou sua.” “Vejam só, vejam só!”, exclamou a sra. Havisham, com amargura. “Vejam só, tão dura e ingrata, diante da lareira onde ela foi criada! Onde eu a apertei contra esse meu peito infeliz, ainda sangrando das punhaladas recebidas, e onde por tantos anos eu derramei carinhos sobre ela!” “Pelo menos não assenti ao que foi combinado”, replicou Estella, “pois se eu soubesse andar e falar, quando tudo foi combinado, era tudo que eu poderia ter feito. Mas o que a senhora quer de mim? A senhora tem sido muito boa para mim, e eu lhe devo tudo que tenho e sou. O que a senhora quer?” “Amor”, respondeu a outra. “Pois a senhora o tem.” “Não tenho”, disse a sra. Havisham. “Mãe adotiva”, prosseguiu Estella, sem jamais abrir mão de sua atitude serena e graciosa, sem jamais levantar a voz como fazia sua interlocutora, “mãe adotiva, eu já disse que lhe devo tudo. Tudo que possuo é seu. Tudo que a senhora me deu, pode voltar a ser seu se a senhora assim desejar. Fora isso, nada mais tenho. E se a senhora me pede que eu lhe dê o que jamais me foi dado, minha gratidão e meu dever não podem fazer o que é impossível.” “Então eu nunca lhe dei amor!”, exclamou a sra. Havisham, virando-se enfurecida para mim. “Então eu nunca lhe dei um amor candente, inseparável do ciúme às vezes, e da dor mais intensa, enquanto ela me fala desse jeito! Ela que me chame de louca, que me chame de louca!” “Por que eu haveria de chamá-la de louca”, retrucou Estella, “logo eu? Haverá alguém vivo que conheça melhor do que eu os seus objetivos na vida? Haverá alguém vivo que conheça melhor do que eu a sua memória implacável? Eu, que me sentei diante dessa lareira naquele banquinho que está agora mesmo a seu lado, aprendendo as suas lições e olhando para o seu rosto, quando o seu rosto era desconhecido e me assustava!” “Tempos logo esquecidos!”, gemeu a sra. Havisham. “Logo esquecidos!” “Não, não foram esquecidos”, retorquiu Estella. “Não foram esquecidos, porém guardados com carinho na minha memória. Quando foi que traí seus ensinamentos? Quando foi que demonstrei esquecer as suas lições? Quando foi que a senhora me viu admitir aqui”, e levou a mão ao peito, “alguma coisa que a senhora proibisse? Não seja injusta comigo.” “Tão orgulhosa, tão orgulhosa!”, gemeu a sra. Havisham, jogando para trás com as duas mãos o cabelo grisalho. “Quem me ensinou a ser orgulhosa?”, devolveu Estella. “Quem me elogiou quando aprendi minha lição?” “Tão dura, tão dura!”, gemeu a sra. Havisham, repetindo o gesto anterior. “Quem me ensinou a ser dura?”, replicou Estella. “Quem me elogiou quando aprendi minha lição?” “Mas ser orgulhosa e dura comigo!”, a sra. Havisham praticamente gritou, enquanto estendia os braços. “Estella, Estella, Estella, orgulhosa e dura comigo!” Estella olhou-a por um momento com uma espécie de perplexidade tranquila, mas fora isso não parecia perturbada; passado o momento, voltou a olhar para o fogo. “Não consigo entender”, disse ela, levantando a vista após alguns momentos de silêncio, “por que a senhora age de modo tão pouco razoável quando venho visitá-la depois de estarmos há algum tempo separadas. Nunca me esqueci do seu ressentimento, e do que o causou. Nunca fui infiel à senhora nem aos seus ensinamentos. Nunca demonstrei nenhuma fraqueza de que eu possa me confessar culpada.” “Seria uma fraqueza corresponder a meu amor?”, exclamou a sra. Havisham. “Mas é claro que sim, ela diria que sim!” “Começo a achar”, disse Estella, pensativa, depois de mais um momento de perplexidade tranquila, “que estou quase entendendo o que está acontecendo. Se a senhora tivesse criado sua filha adotiva sempre nesses cômodos escuros e fechados, e se jamais tivesse dito a ela que existia a luz do dia, à qual ela jamais viu o seu rosto — se a senhora tivesse feito tal coisa, e então, por algum motivo, quisesse que ela entendesse o que era a luz do dia e soubesse tudo a seu respeito, a senhora ficaria decepcionada e zangada?” A sra. Havisham, com a cabeça nas mãos, gemia baixinho e balançava-se em sua cadeira, mas nada disse em resposta. “Ou então”, disse Estella, “para dar um exemplo mais apropriado, se a senhora lhe houvesse ensinado, desde que ela começou a entender as coisas, com toda a energia e vigor, que existia, sim, a luz do dia, mas que era uma coisa inimiga e destrutiva, e que ela devia sempre se voltar contra essa luz, pois essa luz causara a sua ruína e também causaria a dela, se ela não se cuidasse; se a senhora tivesse agido assim, e então, por algum motivo, quisesse que ela aceitasse com naturalidade a luz do dia, e ela não conseguisse fazê-lo, a senhora ficaria decepcionada e zangada?” A sra. Havisham a escutava (ou ao menos parecia, pois eu não podia ver seu rosto), mas permanecia sem dar resposta. “Assim”, disse Estella, “há que me aceitar tal como fui feita. O sucesso não é meu, o fracasso não é meu, mas eu sou a combinação dos dois.” A sra. Havisham havia se sentado, sem que eu entendesse bem como, no soalho, em meio às relíquias desbotadas de seu noivado ali espalhadas. Aproveitei-me da oportunidade — eu estava à procura de tal coisa desde o início — para sair do recinto, depois de atrair a atenção de Estella, com um gesto, para a sra. Havisham. Quando saí, Estella continuava parada junto ao enorme console, tal como antes. O cabelo grisalho da sra. Havisham estava esparramado no chão, em meio aos outros destroços do noivado, e era uma cena deplorável. Foi com o coração pesado que fiquei a caminhar à luz das estrelas por uma hora, ou mais, no pátio, e na cervejaria, e no jardim abandonado. Quando por fim criei coragem de voltar para o quarto, encontrei Estella sentada diante da sra. Havisham, alinhavando uma daquelas velhas peças de vestuário que estavam caindo aos pedaços, e que tantas vezes me são trazidas à lembrança quando vejo restos desbotados e esfarrapados de velhas bandeiras nas paredes das catedrais. Depois, eu e Estella jogamos cartas, tal como outrora — só que agora, mais sofisticados, jogávamos jogos franceses — e assim a noite transcorreu, e fui me deitar. Meu quarto ficava naquele prédio separado do outro lado do pátio. Era a primeira vez que eu me deitava para dormir na Casa Satis, e o sono se recusava a se aproximar de mim. Eu era assombrado por mil senhoras Havisham. Ela estava deste lado do travesseiro e daquele, à cabeceira, ao pé da cama, atrás da porta semiaberta do toucador, dentro do toucador, no quarto do andar de cima, no quarto do andar de baixo — por toda parte. Por fim, quando a noite se arrastava lentamente em direção às duas da madrugada, senti que realmente não conseguia mais suportar aquele lugar como um lugar em que me deitar, e que precisava me levantar. Assim, levantei-me, vesti-me e saí para o quintal, chegando ao longo corredor de pedra, com o objetivo de ir até o pátio externo e ficar caminhando lá, para aliviar minha mente. Porém, tão logo cheguei ao corredor, apaguei minha vela, pois vi a sra. Havisham caminhando nele como um fantasma, gemendo baixinho. Segui-a a certa distância, e vi-a subindo a escada. Ela levava na mão uma vela nua, a qual provavelmente pegara num dos castiçais de seu quarto, e à luz dessa vela constituía uma visão das mais insólitas. Parado ao pé da escada, senti o ar bolorento que vinha do salão de festa, sem vêla abrir a porta, e ouvi-a caminhar no salão, e depois voltar para seu quarto, e depois para o salão, sempre gemendo baixinho. Após algum tempo, tentei, naquela escuridão, sair dali ou voltar atrás, mas não consegui fazer nem uma coisa nem outra, até que a primeira luz do dia me mostrou onde pôr as mãos. Durante todo esse tempo, sempre que me aproximava do pé da cama eu via a luz da vela passando lá em cima, e ouvia o gemido incessante. Antes de irmos embora no dia seguinte, não voltou a ocorrer nenhum conflito entre a sra. Havisham e Estella, nem tal coisa reocorreu em qualquer outra ocasião semelhante; e houve quatro ocasiões semelhantes, se não me falha a memória. Tampouco sofreu qualquer mudança a atitude da sra. Havisham em relação a Estella, tirando, creio eu, o fato de que uma espécie de medo veio somar-se às características anteriores. Seria impossível virar essa página da minha vida sem colocar nela o nome de Bentley Drummle; se fosse possível, eu o faria, com muito prazer. Em certa ocasião em que os Tentilhões estavam reunidos em peso, e em que os bons sentimentos estavam sendo promovidos da maneira usual, todos discordando de todos, o Tentilhão que presidia a reunião chamou todo o Arvoredo à ordem, lembrando que o sr. Drummle ainda não havia feito um brinde a uma senhora, o que, segundo a constituição solene da sociedade, cabia àquele bruto fazer naquela ocasião. Julguei ver em seu rosto um olhar de deboche dirigido a mim no momento em que as garrafas estavam passando de mão em mão, mas como não havia nenhuma amizade a nos unir, isso era bem possível. Qual não foi minha surpresa tingida de indignação quando ele pediu que os comensais se unissem a ele num brinde a “Estella!” “Que Estella?”, perguntei. “Não importa”, retorquiu Drummle. “Estella de onde?”, insisti. “Isso você tem que responder.” E, de fato, como Tentilhão, ele era obrigado a fazê-lo. “De Richmond, senhores”, disse Drummle, ignorando a mim, “e de uma beleza inigualável.” “Como se aquela besta quadrada entendesse alguma coisa de belezas inigualáveis!”, cochichei para Herbert. “Conheço essa dama”, disse Herbert do outro lado da mesa, depois do brinde. “Conhece?”, perguntou Drummle. “Eu também”, acrescentei, com o rosto vermelho. “Conhece?”, perguntou Drummle. “Ah, meu Deus!” Era essa a única reação — se não fosse um copo, um prato arremessado — de que a lerda criatura era capaz; porém fiquei indignadíssimo, como se tivesse sido alvo de um sarcasmo ferino, e na mesma hora levantei-me e disse que era típico da insolência do nobre Tentilhão em questão vir ao Arvoredo — sempre falávamos em vir ao Arvoredo, como se fosse uma expressão parlamentar precisa — vir ao Arvoredo e brindar uma dama sobre a qual ele nada sabia. Ao ouvir isso, o sr. Drummle levantou-se e perguntou o que eu queria dizer com tal coisa. Em seguida, respondi, da maneira mais extremada, que julgava que ele soubesse onde me encontrar.2 Se era possível, num país cristão, proceder sem derramamento de sangue depois disso, era uma questão a respeito da qual os Tentilhões se dividiram. O debate tornou-se tão animado, aliás, que ao menos mais seis nobres membros disseram a outros seis, durante a discussão, que eles julgavam que os outros soubessem onde encontrá-los. Foi, porém, decidido por fim (pois que o Arvoredo era um tribunal de honra) que, se o sr. Drummle trouxesse a menor prova que fosse de que ele tinha a honra de conhecer a dama em questão, o sr. Pip teria que pedir desculpas, como cavalheiro e como Tentilhão, por “ter sido dominado por um impulso que…”.3 Decidiu-se que a prova deveria ser entregue no dia seguinte (para que nossa honra não pegasse um resfriado nesse ínterim), e no dia seguinte Drummle compareceu com um documento pequeno e delicado, escrito na letra de Estella, em que ela afirmava ter tido a honra de dançar com ele algumas vezes. Assim, é claro, não me restou outra opção senão desculpar-me por “ter sido dominado por um impulso que…”, e repudiar como insustentável a ideia de que seria possível encontrar-me em algum lugar. Eu e Drummle ficamos então bufando um para o outro por uma hora, cada um em sua cadeira, enquanto o Arvoredo se envolvia em contradições indiscriminadas, e por fim afirmou-se que os bons sentimentos haviam sido promovidos de modo extraordinário. Narro esse episódio em tom jocoso, mas para mim a coisa era muito séria. Pois nem sei como exprimir quanto sofrimento me causava a ideia de que Estella tivesse manifestado algum interesse por um pateta desprezível, desajeitado e mal-humorado, alguém tão abaixo da média. Até hoje, creio que foi uma espécie de fogo puro de generosidade e desinteresse de meu amor por ela que tornava insuportável a ideia de que ela pudesse rebaixar-se ao nível daquele cachorro. Sem dúvida, eu teria me sentido infeliz qualquer que fosse a pessoa por quem ela demonstrasse interesse, porém alguém mais merecedor me teria causado um sofrimento diferente em gênero e grau. Para mim foi fácil descobrir, como o fiz em pouco tempo, que Drummle havia começado a segui-la com afinco, e que ela lhe permitia tal coisa. Não demorou para que ele passasse a persegui-la o tempo todo, e assim eu e ele passamos a nos cruzar dia sim, dia não. Ele persistia, com uma obstinação cega, e Estella o estimulava, ora incentivando-o, ora desanimando-o, ora quase lisonjeando-o, ora desprezando-o abertamente, ora reconhecendo-o muito bem, ora mal se lembrando de quem ele era. O Aranha, como o apelidara o sr. Jaggers, estava acostumado a viver à espreita, porém, e possuía a paciência dos seres da sua espécie. Além disso, tinha uma confiança estúpida em seu dinheiro e na grandeza de sua família, os quais por vezes de fato lhe valiam — quase substituindo a concentração e a determinação. Assim, o Aranha, vigiando Estella obstinadamente, sustentava-se por mais tempo do que muitos outros insetos mais inteligentes que ele, e muitas vezes descia de sua teia e aparecia em cena no momento exato. Em certo baile de assembleia4 em Richmond (naquela época, havia bailes desse tipo na maioria dos lugares), no qual a beleza de Estella se impusera a todas as outras, o lamentável Drummle ficou de tal modo a acercar-se dela, e com tanta tolerância de sua parte, que resolvi falar com Estella a esse respeito. Aproveitei a primeira oportunidade, que ocorreu quando ela aguardava que a sra. Brandley a levasse para casa, sentada longe das outras pessoas em meio a algumas flores, pronta para partir. Eu estava com ela, pois quase sempre as acompanhava quando elas iam e vinham de tais lugares. “Estás cansada, Estella?” “Bastante, Pip.” “E não admira que estejas.” “Seria melhor se dissesses que eu não devia estar, pois tenho que escrever minha carta para a Casa Satis antes de me deitar.” “Relatando o triunfo de hoje?”, perguntei. “Um triunfo bem medíocre, Estella.” “O que queres dizer? Não estou sabendo de triunfo nenhum.” “Estella”, disse eu, “olha para aquele sujeito ali no canto, que está olhando para nós.” “Olhar para ele por quê?”, ela retrucou, voltando a vista para mim. “O que há naquele sujeito ali no canto — para usar as tuas palavras — que mereça o meu olhar?” “Pois é justamente essa pergunta que eu quero te fazer”, disse eu. “Pois ele passou a noite inteira esvoaçando em torno de ti.” “Mariposas e outras criaturas feias de toda espécie”, replicou Estella, olhando-o de relance, “ficam esvoaçando em torno de uma vela acesa. O que pode fazer a vela?” “Nada”, respondi, “mas a Estella não pode fazer alguma coisa?” “Ora!”, retrucou ela, rindo, após um momento, “Talvez. Sim. O que quiseres que eu faça.” “Mas Estella, ouve-me. Fico consternado ao ver-te dar confiança a um homem tão desprezado por todos quanto o Drummle. Tu sabes o quanto ele é desprezado.” “E então?”, exclamou ela. “Sabes que ele é tão feio por dentro quanto é por fora. Um sujeito limitado, mal-humorado, ranzinza, estúpido.” “E então?”, exclamou Estella. “Sabes que ele não tem nenhuma qualidade senão a de ter dinheiro, e uma lista ridícula de ancestrais desmiolados; sabes disso, não é?” “E então?”, ela repetiu; e cada vez que dizia isso arregalava os belos olhos mais um pouco. Para vencer o obstáculo daquela resposta lacônica, apropriei-me dela e disse, repetindo-o com ênfase: “E então? Pois é justamente por isso que fico arrasado”. Ora, se eu pudesse acreditar que ela dava confiança a Drummle com intenção de me fazer sofrer, a mim, eu teria encarado a coisa com mais equanimidade; mas Estella, à sua maneira habitual, me excluiu de consideração de tal forma que eu não podia supor tal hipótese. “Pip”, disse Estella, olhando à sua volta, “não sejas ridículo, de falar sobre seu efeito em ti. Pode ter efeito sobre outras pessoas, e talvez seja esta a intenção. Não vale a pena falar nisso.” “Vale a pena, sim”, insisti, “porque para mim é insuportável imaginar que as pessoas digam: ‘Ela joga fora sua graça e seus atrativos num boçal, o ser mais baixo em toda essa multidão’.” “Pois para mim não é”, disse Estella. “Ah! Não sejas tão orgulhosa, Estella, e tão inflexível.” “Chama-me de orgulhosa e inflexível ao mesmo tempo!”, exclamou Estella, abrindo as mãos. “E isso logo depois de criticar-me por me rebaixar a dar atenção a um boçal!” “Quanto a isso, não há dúvida”, disse eu, um tanto apressadamente, “pois já te vi dirigindo olhares e sorrisos a ele ainda há pouco, olhares e sorrisos do tipo que jamais diriges… a mim.” “Então queres de mim”, disse Estella, virando-se de súbito com um olhar fixo e sério, se não zangado, “que eu te engane e te atormente?” “Quer dizer que tu o enganas e o atormentas, Estella?” “Sim, e a muitos outros também — a todos, menos a ti. Eis que chega a senhora Brandley . Não digo mais nada.” E tendo dedicado um capítulo ao tema que tanto ocupava meu coração, e que tantas vezes o fazia doer vez após vez, passo a relatar, sem intervalo, o evento que pairava sobre mim há mais tempo ainda; o evento que começara a ser urdido antes mesmo que eu soubesse que havia uma Estella no mundo, e no tempo em que sua inteligência infantil começava a ser distorcida pelas mãos engelhadas da sra. Havisham. Na história oriental,5 o pesado bloco de pedra que cairia sobre a cama do conquistador no momento da vitória era lentamente retirado da pedreira, o túnel por que passaria a corda em que ele seria pendurado era lentamente escavado por léguas e léguas de rocha, o bloco era lentamente levantado e encaixado no teto, a corda era afixada a ele e lentamente passada por léguas e léguas de túnel até chegar ao grande aro de ferro. Depois que tudo isso era preparado com tanto trabalho, chegada a hora, o sultão era despertado na calada da noite, e o machado afiado que cortaria a corda do aro de ferro era posto em sua mão, e o sultão dava o golpe, e a corda rompia-se e fugia, e o teto desabava. Assim foi no meu caso; todo o trabalho, de perto e de longe, que culminaria naquele fim, fora realizado; e num instante o golpe foi desferido, e o teto de minha fortaleza desabou sobre mim. 20 Tinha eu vinte e três anos de idade. Nem uma palavra me fora dita a respeito do assunto das minhas esperanças, e uma semana já se passara desde meu aniversário. Havíamos nos mudado do Barnard’s Inn mais de um ano antes, e agora estávamos no Temple.1 Nossos aposentos ficavam em Garden-court, perto do rio. O sr. Pocket e eu já não mantínhamos há algum tempo nossos vínculos originais, embora continuássemos a nos dar muito bem um com o outro. Apesar da minha incapacidade de me decidir por alguma coisa — a qual, espero eu, era uma decorrência da natureza intranquila e incompleta da minha posse sobre meus bens — eu gostava de ler, e lia regularmente algumas horas por dia. Os negócios de Herbert continuavam em andamento, e minha situação permanecia sob todos os aspectos tal como estava no final do capítulo anterior. Os negócios haviam levado Herbert a empreender uma viagem a Marselha. Eu estava sozinho e tinha a consciência incômoda de que estava sozinho. Desanimado e ansioso, esperando há muito tempo que no dia seguinte ou na semana seguinte as coisas ficassem claras para mim, e há muito tempo decepcionado, faziam-me falta o rosto alegre e o jeito prestimoso de meu amigo. Fazia um tempo horrível; chuvoso e úmido, chuvoso e úmido; e lama, lama, muita lama em todas as ruas. Dia após dia, um véu extenso e pesado, vindo do leste, cobria toda a Londres, e não parava de vir, como se houvesse para os lados do leste uma eternidade de nuvem e vento. Eram tão furiosas as lufadas que chegavam a arrancar o chumbo dos telhados dos edifícios mais altos da cidade; e no campo, árvores eram arrancadas, e pás de moinhos eram levadas para longe; do litoral, chegavam notícias trágicas de naufrágios e mortes. A fúria do vento vinha acompanhada de aguaceiros violentos, e o dia que terminava no momento em que me sentei para ler tinha sido o pior de todos. De lá para cá, ocorreram mudanças naquela parte do Temple, e agora ele não tem mais um aspecto tão remoto quanto tinha na época, nem é tão exposto ao rio. Morávamos no andar de cima do último prédio, e o vento que vinha do rio sacudia a estrutura na noite em questão como se fossem disparos de canhão, ou ondas do mar a se quebrar. Quando a chuva começou a fustigar as janelas, pensei, levantando a vista e olhando para as vidraças a estremecer, que era como se eu estivesse num farol em plena tempestade. De vez em quando a fumaça descia da chaminé, como se nem ela suportasse sair numa noite assim; e quando abri as portas e olhei escada abaixo, vi que os lampiões da escada tinham sido apagados pelo vento; e quando, fazendo sombra com as mãos, olhei pelas janelas negras (abri-las, mesmo que fosse apenas uma fresta, estava fora de questão, com aquela chuva e aquele vento), percebi que também os lampiões do pátio tinham sido apagados, e que os lampiões das pontes e do litoral estremeciam, e que o fogo que ardia nas fornalhas de carvão das barcas no rio estava sendo lançado para a frente pelo vento, formando manchas de um vermelho ígneo na chuva. Eu lia com meu relógio sobre a mesa, tendo decidido fechar o livro às onze horas. Quando o fiz, os sinos da catedral de São Paulo, e os de todas as outras muitas igrejas da cidade — uns antecipando-se a eles, outros acompanhando-os, e outros ecoando-os — deram as horas. O som era curiosamente deformado pelo vento; e eu estava a escutar, e a pensar em como o vento o atacava e despedaçava, quando ouvi passos subindo a escada. Se uma fantasia nervosa me levou a sobressaltar-me, e a associar o ruído, de um modo horrendo, ao passo de minha irmã morta, isso não importa. A ideia só durou um instante, e voltei a escutar com atenção, e ouvi os passos tropeçarem na escada. Lembrei então que as luzes estavam apagadas, e assim peguei meu lampião de leitura e fui até o alto da escada. Fosse quem fosse a pessoa que estava lá em baixo, ela parou ao ver minha luz, pois fez-se silêncio. “Há alguém aí embaixo, não?”, perguntei em voz alta, olhando para a escuridão. “Há, sim”, disse uma voz na escuridão. “Que andar você procura?” “O último. O senhor Pip.” “Sou eu — algum problema?” “Problema nenhum”, respondeu a voz. E o homem recomeçou a subir. Permaneci com o lampião colocado no corrimão, e pouco a pouco o homem surgiu no círculo de luz. Havia um quebra-luz no lampião, para que apenas o livro fosse iluminado, e o círculo de luz era muito reduzido; assim, o homem só se tornou visível por um breve instante, e logo em seguida voltou à sombra. Naquele instante, eu vira um rosto que me era estranho, olhando para cima com um ar incompreensível de estar emocionado e satisfeito por me ver. Deslocando o lampião à medida que o homem subia, vi que ele estava bem vestido, mas com trajes rudes; era como um viajante num navio. Que tinha cabelos longos, grisalhos, cor de ferro. Que teria cerca de sessenta anos de idade. Que era musculoso, bronzeado e endurecido pela exposição ao tempo. Quando ele subia os dois últimos lanços, e a luz de meu lampião nos incluiu a ambos, vi, com uma espécie de perplexidade parva, que ele estendia as duas mãos para mim. “Por favor, o que o traz aqui?”, perguntei-lhe. “O que me traz aqui?”, ele repetiu, fazendo uma pausa. “Ah! Sim. Vou explicar o que me traz, com sua permissão.” “Quer entrar?” “Quero”, ele respondeu. “Quero entrar, sim, senhor.” Eu fizera a pergunta num tom nada hospitaleiro, pois não me agradava a expressão alegre e satisfeita de reconhecimento que ainda estava estampada em seu rosto. Não me agradava porque parecia dar a entender que ele esperava que eu correspondesse. Porém recebi-o no cômodo de que havia saído ainda há pouco, e depois que pus o lampião sobre a mesa pedi-lhe, no tom mais educado que me foi possível adotar, que se explicasse. Ele olhou à sua volta com um ar muito estranho — um ar de contentamento perplexo, como se tivesse tido alguma participação naquelas coisas que admirava —, despiu o sobretudo grosseiro e tirou o chapéu. Vi então que sua cabeça era calva, coberta de sulcos, e que os longos cabelos grisalhos só cresciam dos lados. Mas nada do que eu via proporcionava qualquer explicação. Pelo contrário, ele mais uma vez estendeu as duas mãos para mim. “O que é isso?”, exclamei, imaginando que talvez fosse um louco. Ele parou de olhar para mim e lentamente esfregou a mão direita na cabeça. “É meio decepicionante”, disse ele, com uma voz áspera e trêmula, “adespois de tanta expectativa, e de vir de tão longe, mas não é sua culpa — nem minha. Eu me explico em meio minuto. Por favor, me dê meio minuto.” Ele sentou-se numa cadeira colocada diante da lareira e cobriu a testa com as mãos grandes e morenas, cobertas de veias. Olhei-o com atenção, e sentindo um pouco de repulsa; porém eu não o conhecia. “Não tem ninguém aqui por perto”, disse ele, olhando para trás, “tem?” “Como é que um estranho, chegando à minha casa a esta hora da noite, me faz uma pergunta dessas?”, retruquei. “O senhor é esperto”, ele respondeu, sacudindo a cabeça para mim de modo calculadamente afetuoso, um gesto ao mesmo tempo ininteligível e profundamente irritante. “É bom ver que o senhor cresceu e ficou esperto! Mas não vá partir pra cima de mim, não. Despois o senhor ia se arrepender.” Desisti da intenção que ele percebera, pois o reconheci! Ainda não conseguia identificar um único traço seu, mas o reconheci! Se o vento e a chuva tivessem levado para longe todos os anos que haviam decorrido, espalhando todos os objetos que se interpunham, levando-nos de volta para o campo-santo onde havíamos ficado face a face pela primeira vez, em níveis tão diferentes, eu não teria reconhecido o meu forçado de modo mais nítido do que o fazia agora, na cadeira diante da lareira. Nem era necessário que ele tirasse do bolso uma lima e a mostrasse a mim; nem era necessário que tirasse o lenço do pescoço e o amarrasse em torno da cabeça; nem era necessário que abraçasse o próprio corpo com os dois braços e andasse a estremecer de frio, olhando para mim para que eu o reconhecesse. Reconheci-o antes mesmo que ele me desse a primeira dessas pistas, embora momentos antes eu não tivesse a menor ideia a respeito de sua identidade. Ele voltou para o lugar onde eu estava, e mais uma vez estendeu as duas mãos. Sem saber o que fazer — pois de tão atônito eu perdera meu autocontrole — com relutância estendi as duas mãos para ele. Ele as agarrou com avidez, levou-as aos lábios e beijou-as, e continuou a segurá-las. “Tu agiste de modo nobre, meu menino”, disse ele. “Nobre, Pip! E eu nunca me esqueci!” Alguma coisa em seu jeito indicou que ele ia me abraçar, e pus a mão para afastá-lo. “Espere!”, exclamei. “Não se aproxime! Se o senhor se sente grato pelo que fiz quando era menino, espero que tenha demonstrado sua gratidão mudando de vida. Se veio aqui para me agradecer, não era necessário. Seja como for que você me encontrou, há algo de bom no sentimento que o trouxe aqui, e não vou expulsá-lo; mas certamente tem que entender que… eu…” Minha atenção foi de tal modo atraída pelo que havia de singular no seu modo de olhar-me fixamente que as palavras morreram em minha língua. “Estavas dizendo”, depois de ficarmos a nos entreolhar em silêncio, “que eu certamente tenho de entender. Tenho de entender o quê?” “Que eu não posso querer renovar um contato que tivemos por acaso há tantos anos, em circunstâncias tão diferentes. Alegro-me de imaginar que o senhor se arrependeu e mudou de vida. Alegra-me dizer-lhe isso. Alegro-me de ver que, julgando que eu mereço um agradecimento, tenha vindo me agradecer. Mas nossos caminhos são diferentes, assim mesmo. O senhor está molhado e parece cansado. Quer beber alguma coisa antes de sair?” Ele havia recolocado o lenço no pescoço frouxamente, e em pé, observandome com atenção, mordiscava a ponta do lenço. “Eu acho”, ele respondeu, ainda com o lenço na boca e ainda a me observar, “que aceito, sim, tomar alguma coisa (obrigado) antes de ir embora.” Havia uma bandeja pronta num aparador. Fui pegá-la e coloquei-a sobre a mesa perto da lareira, e perguntei ao homem o que ele queria tomar. Tocou numa das garrafas sem olhar para ela nem dizer nada, e preparei-lhe rum com água. Eu tentava manter a mão firme enquanto preparava a bebida, mas o olhar do homem, confortavelmente sentado em sua cadeira com a ponta do lenço comprido e molhado entre os dentes — sem dúvida, ele se esquecera do lenço — tornava muito difícil mantê-la firme. Quando por fim levei-lhe o copo, vi atônito que seus olhos estavam rasos d’água. Até aquele momento, eu permanecera de pé, para não disfarçar minha vontade de que ele fosse embora logo. Porém, vendo que ele amolecia, eu próprio amoleci, e senti um pouco de arrependimento. “Espero”, disse eu, rapidamente vertendo alguma bebida num copo para mim e puxando uma cadeira para junto da mesa, “que não pense que fui áspero ainda há pouco. Não tive essa intenção, e peço-lhe desculpas se foi o que aconteceu. Desejo-lhe tudo de bom, e felicidade!” Quando levei meu copo aos lábios, ele olhou com espanto para a ponta do lenço, o qual caiu de sua boca quando ele a abriu, e me estendeu a mão. Retribuí o gesto, e então ele bebeu, e passou a manga da camisa nos olhos e na testa. “Como o senhor ganha a vida?”, perguntei-lhe. “Já criei ovelhas, vacas, e fiz outras coisas também, lá no Novo Mundo”, ele respondeu; “milhares de léguas de mar feroz daqui.” “Teve sucesso, espero?” “Muito sucesso. Tem gente que foi pra lá junto comigo e também se deu bem, mas ninguém chegou nem perto de mim. Fiquei famoso pelo sucesso que tive.”“ Alegro-me de saber disso.” “É bom te ouvir dizendo isso, meu querido menino.” Sem parar para tentar entender essas palavras e o tom em que elas foram ditas, resolvi mencionar algo que acabara de me ocorrer. “O senhor conhece o mensageiro que me mandou uma vez”, perguntei, “já que ele assumiu essa responsabilidade?” “Nunca vi o sujeito. Não tinha como.” “Ele veio fielmente, e me entregou as duas notas de uma libra. Eu era um menino pobre na época, como o senhor sabe, e para um menino pobre era uma pequena fortuna. Mas, tal como o senhor, tive sucesso desde então, e peço-lhe que me permita devolver a quantia. Pode usá-la em prol de algum outro menino pobre.” Tirei as notas da minha carteira. Ele ficou a olhar-me quando pus a carteira sobre a mesa e abri-a, e ficou a olhar-me enquanto eu separava as duas notas de uma libra. Eram limpas e novas, eu desdobrei-as e entreguei-as a ele. Sempre olhando para mim, o homem colocou-as uma sobre a outra, dobrou-as no sentido do comprimento, torceu-as, queimou-as no lampião e pôs as cinzas na bandeja. “Se me permites”, disse ele então, sorrindo como quem franze a testa, e franzindo a testa como quem sorri, “posso te perguntar como foi que te saíste tão bem, depois daquele dia em que eu e tu estava tiritando de frio lá no charco?” “Como?” “Ah!” Ele esvaziou o copo e pôs-se de pé junto ao fogo, com a mão bronzeada e pesada sobre o console. Pôs um dos pés sobre uma das grades, para esquentá-lo, e a bota úmida começou a emitir vapor; mas ele nem olhou para a bota nem para o fogo, porém ficou a olhar fixamente para mim. Foi só então que comecei a tremer. Quando meus lábios se entreabriram, e formaram algumas palavras sem som, obriguei-me a dizer ao homem (embora não conseguisse fazê-lo de modo claro) que eu fora escolhido para herdar uma propriedade. “Será que um bandido como eu pode perguntar que propriedade é essa?”, ele indagou. Gaguejei: “Não sei”. “Será que um bandido como eu pode perguntar de quem é essa propriedade?”, ele indagou. Gaguejei de novo: “Não sei”. “Posso então tentar adivinhar”, disse o presidiário, “a renda que recebes desde a maioridade? Só o primeiro número. Cinco?” Com o coração batendo como se fosse um martelo pesado e descontrolado, levantei-me da minha cadeira e apoiei a mão no espaldar, olhando para o homem com olhos esgazeados. “E o tutor”, ele prosseguiu. “Tinha que ter um tutor, ou coisa que o valha, enquanto eras menor de idade. Um adevogado, talvez. A primeira letra do nome do adevogado — não seria J?” Toda a verdade a respeito da minha situação surgiu diante de mim de súbito; e o que nela havia de decepção, perigo, vergonha, consequências de todo tipo, tudo isso veio de roldão, de tal modo que me senti esmagado, e era com esforço que conseguia respirar. “Imagina”, resumiu ele, “que o criente do tal adevogado com nome que começa com J, que pode bem ser Jaggers — imagina que ele veio de navio a Portsmouth, e desembarcou lá, e quer encontrar-te. ‘Seja como for que o senhor me encontrou’, disseste ainda há pouco. Pois bem! Como foi que te encontrei? Ora, escrevi pra uma pessoa em Londres pedindo teu endereço. O nome da tal pessoa? Ora, Wemmick.” Eu não teria conseguido pronunciar uma única palavra, nem que fosse para salvar minha própria vida. Permaneci parado, com uma das mãos no espaldar da cadeira e a outra no peito, pois eu parecia estar sufocando — permaneci assim, com o olhar esgazeado voltado para o homem, até que me agarrei à cadeira, pois todo o recinto começou a rodar à minha volta. Ele segurou-me, levou-me até o sofá, recostou-me nas almofadas e apoiado sobre um dos joelhos pôs aquele rosto que agora eu lembrava bem, e que me fazia estremecer, bem junto ao meu.“ Isso mesmo, Pip, meu querido menino, fiz um cavalheiro de ti! Foi eu que fez isso! Eu jurei naquele tempo que se algum dia eu ganhasse um guinéu, que fosse, esse guinéu havia de ser teu. Jurei adespois, que se algum dia eu fizesse especulação e enricasse, tu havias de enricar também. Vivi uma vida dura, pra que tu vivesses na moleza; me matei de trabalhar pra tu não precisar trabalhar. Quem diria, hein, meu menino? Pensas que te conto isso agora pra tu sentires que me deve alguma coisa? Nada disso. Te conto pra tu saberes que aquele cachorro sem dono que não deixaste morrer naquele monte de lixo, ele conseguiu subir tanto na vida que pôde fazer de alguém um cavalheiro — e, Pip, esse alguém é tu!” O horror que eu sentia por aquele homem, o pavor que tinha dele, a repugnância com que eu me esquivava dele não poderiam ter sido maiores se ele fosse uma fera terrível. “Olha aqui, Pip. Eu sou teu segundo pai. Tu és meu filho — és mais pra mim que qualquer filho. Eu guardei dinheiro só pra que pudesses gastar. Quando eu era pastor de ovelha contratado2 vivendo sozinho numa cabana, só vendo cara de ovelha, tanto que quase que cheguei a esquecer como que era cara de homem ou de mulher, eu só via a sua. Muitas vez eu larguei a faca quando eu almoçava ou jantava naquela cabana e falei pra mim mesmo assim: ‘Lá está o menino me olhando de novo, enquanto eu estou comendo e bebendo!’. Eu te vi muitas vez, que nem que te vi aquela vez no chaco, no meio da neblina. ‘Que Deus me mate mortinho!’, eu dizia todas as vez — e saía da cabana pra dizer isso a céu aberto —, ‘se, adespois que eu ganhar minha liberdade e ganhar dinheiro, eu não fizer daquele menino um cavalheiro!’ E foi o que eu fiz. Olha só pra ti, meu querido menino! Olha só esse lugar onde moras, que podia ser a casa de um lorde! De um lorde? Ah! Hás de apostar dinheiro com os lordes, e sair ganhando!” Na empolgação de seu triunfo, e cônscio de que por um triz eu não desmaiara, ele não percebia de que modo eu recebia todas essas informações. Era a única coisa que me aliviava. “Olha aqui!”, ele prosseguiu, tirando de meu bolso meu relógio, e virando para si um anel que eu tinha no dedo, enquanto eu me esquivava do contato com ele como se de uma cobra, “é de ouro, e é uma belezura: isso é coisa de cavalheiro, é ou não é? Um brilhante cercado de rubi: isso é coisa de cavalheiro, é ou não é? Olha só a tua camisa; coisa fina e bonita! Olha essas tuas roupa; melhor não há! E os teus livro, também”, olhando à sua volta, “enchendo as estante, um monte de livro! E tu lês tudo isso, não é? Vi que estavas lendo quando cheguei. Ha, ha, ha! Hás de ler esses livros pra mim, meu querido menino! E se estiver escrito em língua de estranja que eu não sei falar, vou me sentir tão orgulhoso que nem se entendesse tudo.” Mais uma vez, tomou minhas duas mãos e levou-as aos lábios, enquanto meu sangue gelava nas veias. “Não precisa falar, não, Pip”, disse ele, depois de novamente passar a manga da camisa nos olhos e na testa, com aquele estalo na garganta que eu lembrava bem — e quanto maior sua sinceridade, maior o horror que ele me inspirava, “o melhor a fazer é mesmo ficar calado, meu querido menino. Tu não ficaste tanto tempo esperando este momento, como eu fiquei; não estavas preparado pra ele, como eu estava. Mas nunca pensaste que podia ser eu?” “Ah, não, não, não”, respondi. “Nunca, nunca!” “Pois é, mas foi eu, sim, sozinho. Ninguém mais nessa história, só eu e o senhor Jaggers.” “Não havia mais ninguém?”, perguntei. “Não”, disse ele, com uma expressão de surpresa; “e quem havia de ser? E, meu querido menino, estás mesmo um belo de um rapagão! Em algum lugar, tem alguém de olhinhos vivos — não tem? Alguém de olhinhos vivos que tu estás sempre pensando nela?” Ah, Estella, Estella! “Esses olhinhos hão de ser teus, meu menino, se eles tiver preço em dinheiro. Não que um cavalheiro como tu, tão bem na vida como tu, precise de dinheiro pra conquistar esses olhinhos; mas que o dinheiro ajuda, isso ajuda! Deixa só eu terminar o que te estava contando, meu querido menino. Graças àquela cabana e àquele trabalho, ganhei o dinheiro que meu amo me deixou (pois ele morreu, e antes ele era que nem eu), e ganhei minha liberdade e fui fazer minha vida. Tudo que eu fiz, foi por ti que eu fiz. ‘Que Deus faça tudo ir pros ares’, eu dizia, fosse o que fosse, ‘se não for por ele!’ E tudo deu muito certo. Que nem eu te disse inda há pouco, fiquei até famoso. Foi o dinheiro que eu herdei, e os lucro dos primeiros anos que mandei pro senhor Jaggers — tudo pra ti — e aí ele foi te procurar, que nem que eu mandei ele fazer na minha carta.” Ah, se ele jamais tivesse me procurado! Se me tivesse deixado na ferraria — nem um pouco contente, e, no entanto, em comparação com o que eu era agora, feliz! “E sabes, meu querido menino, era uma recompensa pra mim, entendes, saber que em segredo eu estava fazendo de alguém um cavalheiro. Os cavalo puro-sangue dos colonos jogava pó em cima de mim quando eu caminhava; o que é que eu dizia? Eu dizia pros meus botão: ‘Eu estou fazendo de alguém um cavalheiro muito mais distinto do que tu jamais hás de ser!’. Quando um deles dizia pro outro: ‘Esse aí era um prisioneiro uns anos atrás, e agora tem muita sorte de ser um trabalhador qualquer, inguinorante’, o que é que eu dizia? Eu dizia pros meus botão: ‘Se eu não sou um cavalheiro, e se ainda não tenho estudo, eu sou dono de um. Vosmicês todos têm gado e terra; qual de vosmicês tem um cavalheiro bem criado em Londres?’. Era assim que eu seguia em frente. E assim eu dizia sempre a mim mesmo que um dia eu ia vir até aqui pra ver o meu menino, e me revelar pra ele, na casa dele.” Ele pôs a mão no meu ombro. Estremeci de pensar que aquela mão podia muito bem estar manchada de sangue. “Não foi fácil pra mim, não, Pip, vir lá daquela terra, e também ainda é perigoso. Mas eu cismei que vinha, e quanto mais difícil era, mais eu me esforçava, porque eu estava decidido, mais do que decidido. E finalmente eu consegui. Meu querido menino, eu consegui!” Tentei pôr ordem nas minhas ideias, porém sentia-me aturdido. O tempo todo eu parecia prestar mais atenção ao vento e à chuva do que ao que ele dizia; naquele exato instante, não me era possível separar a voz dele daquelas vozes, embora elas fossem tonitruantes e ele estivesse calado. “Onde vais me pôr?”, ele perguntou-me depois de algum tempo. “Tens que me pôr em algum lugar, meu querido menino.” “Para dormir?”, perguntei. “Isso. E dormir um bom tempo”, ele respondeu; “pois passei meses e meses num navio, jogado de um lado pro outro, com água pra todo lado.” “Meu amigo e companheiro”, disse eu, levantando-me do sofá, “viajou; pode ficar no quarto dele.” “Ele não volta amanhã, não?” “Não”, respondi, de modo quase mecânico, por mais que me esforçasse; “não volta amanhã, não.” “Porque, sabes, meu querido menino”, disse ele, baixando a voz, e pondo o dedo comprido no meu peito de modo expressivo, “há que ter cuidado.” “Como assim? Cuidado?” “Meu Deus, é coisa de vida ou morte!” “Como, ‘morte’?” “Fui degredado pro resto da vida. Voltar é morrer. 3 Muita gente tem voltado nos últimos anos, e se me pegam é forca na certa.” Só faltava mesmo isto: o desgraçado, depois de me desgraçar com suas cadeias de ouro e prata por tantos anos, arriscara a própria vida para me ver, e era eu que a protegia agora! Se ele me inspirasse amor e não horror; se ele me inspirasse muita admiração e afeição, em vez de uma repugnância fortíssima, não teria sido pior do que era. Pelo contrário, seria melhor, porque meu coração naturalmente haveria de querer preservá-lo. Minha primeira precaução foi fechar os estores, para que a luz não fosse vista da rua, e depois fechar e trancar as portas. Enquanto isso, ele ficou em pé diante da mesa bebendo rum e comendo biscoitos; e vendo-o de tal modo ocupado, voltei a ver meu forçado no charco fazendo sua refeição. Eu quase o imaginava prestes a abaixar-se para limar os grilhões da perna. Fui ao quarto de Herbert e fechei todas as comunicações entre ele e a escada além da sala em que transcorrera nossa conversa, e então lhe perguntei se não queria deitar-se. Ele disse que sim, mas pediu-me “uma roupa de cavalheiro” para vestir no dia seguinte. Separei algumas peças para ele, e mais uma vez meu sangue gelou nas veias quando ele mais uma vez tomou-me as duas mãos para me dar as boas-noites. Afastei-me dele, sem saber como o fiz, ajeitei a lenha na lareira da sala onde havíamos estado juntos e sentei-me junto ao fogo, com medo de me deitar. Passei uma hora ou mais tão aturdido que nem conseguia pensar; e foi só quando comecei de fato a pensar que me dei conta o quanto estava arrasado, o quanto estava despedaçado o navio em que eu embarcara. As intenções da sra. Havisham a meu respeito, tudo apenas um sonho; Estella, não mais destinada a mim; na Casa Satis eu não passava de um utensílio, um punitivo para parentes ávidos, um modelo com coração mecânico para servir de objeto na falta de outros; essas foram as primeiras pontadas de dor que senti. Mas a dor mais intensa e profunda de todas — fora por causa do forçado, culpado de sabia-se lá quais crimes, que podia a qualquer momento ser retirado daqueles aposentos, onde eu estava a pensar, e ser enforcado junto à porta de Old Bailey — era que eu abandonara Joe. Agora eu não voltaria para Joe, não voltaria para Biddy, por motivo algum; simplesmente, creio eu, porque a consciência do meu comportamento desprezível para com eles era maior do que qualquer outro motivo. Nenhuma sabedoria deste mundo poderia me dar o conforto que me deveria ter sido proporcionado pela simplicidade e fidelidade deles dois; mas eu jamais, jamais, jamais poderia desfazer o que havia feito. Em cada uivo de vento e pancada de chuva eu ouvia perseguidores. Por duas vezes, teria sido capaz de jurar que ouvira alguém batendo e cochichando à porta da rua. Dominado por esses temores, comecei a imaginar ou relembrar que havia tido prenúncios misteriosos da vinda desse homem. Que, nas últimas semanas, eu cruzara com rostos na rua que me pareceram semelhantes ao dele. Que esses rostos semelhantes se haviam tornado mais e mais numerosos à medida que o navio em que ele vinha se aproximava. Que seu espírito maligno de algum modo me enviara aqueles mensageiros ao meu, e que agora, naquela noite de tempestade, ele estava cumprindo o prometido, e viera ter comigo. Juntamente com essas reflexões vinha a consideração de que, com meus olhos de criança, eu vira o quanto ele era desesperadamente violento; que eu ouvira o outro presidiário dizer mais de uma vez que ele tentara matá-lo; que eu o vira dentro da vala brigando e debatendo-se como uma fera selvagem. De lembranças tais eu trouxe à luz da lareira o medo semiconsciente de que talvez fosse perigoso estar fechado junto com ele, sozinho, naquela madrugada tempestuosa. Esse medo foi inchando até tomar conta de toda a sala, impelindome a pegar uma vela e ir olhar para meu terrível hóspede. Ele havia enrolado um lenço em torno da cabeça, e o rosto estava fixo e tenso, imerso no sono. Mas estava mesmo dormindo, e em silêncio, embora houvesse uma pistola sobre o travesseiro. Tendo feito essa verificação, sem fazer ruído retirei a chave da porta de seu quarto e a pus do lado de fora, e tranquei-o lá dentro antes de voltar a sentar-me junto à lareira. Pouco a pouco fui escorregando da cadeira e me deitando no chão. Quando acordei, sem ter me livrado durante o sono de minha sensação de desgraça, os relógios das igrejas para o leste estavam dando as cinco horas, as velas haviam de todo se extinguido, a lareira estava apagada, e o vento e a chuva intensificavam a escuridão negra e espessa. fim da segunda parte das grandes esperanças de pip volume iii 1 Foi sorte minha eu ter de tomar precauções para garantir (até onde isso me era possível) a segurança daquele terrível visitante, pois essa ideia, dominando minha consciência a partir do momento em que despertei, fazia os outros pensamentos permanecerem numa multidão confusa, à distância. A impossibilidade de mantê-lo oculto em meus aposentos era evidente. Não havia como conseguir tal coisa, e qualquer tentativa nesse sentido inevitavelmente geraria suspeitas. Era bem verdade que eu não tinha mais o vingador a meu serviço, porém dependia dos serviços de uma velha mexeriqueira, auxiliada por uma mulher desmazelada que ela chamava de sobrinha, e manter um quarto escondido das duas seria um convite à curiosidade e mexericos. Ambas tinham a vista fraca, fato que eu atribuía a seu hábito crônico de ficar espiando pelo buraco da fechadura, e estavam sempre por perto quando sua presença não era desejada; aliás, era essa a sua única qualidade infalível, além do hábito de furtar. A fim de não criar um mistério para essas pessoas, decidi dizer-lhes naquela manhã que meu tio havia inesperadamente chegado do interior. Tomei essa decisão tateando no escuro, tentando encontrar algo que me permitisse acender uma luz. Não encontrando nada, julguei melhor ir ao prédio adjacente e pedir ao vigia de lá que viesse com sua lanterna. Ao descer a escada no escuro, caí por cima de alguma coisa, e essa alguma coisa era um homem acocorado num canto. Como ele não respondesse quando lhe perguntei o que estava fazendo ali, porém se esquivasse de meu contato em silêncio, fui correndo até a guarita e pedi ao vigia que viesse depressa, relatando-lhe o incidente no caminho. O vento continuava tão feroz como antes, e não arriscamos ameaçar a chama da lanterna reacendendo os lampiões apagados da escada, porém olhamos para os degraus de baixo para cima, e não vimos ninguém ali. Ocorreu-me a possibilidade de que o homem tivesse entrado em meus aposentos; assim, acendendo minha vela na do vigia e deixando-o parado à porta, examinei-os com cuidado, inclusive o quarto em que meu temível hóspede dormia. Tudo estava tranquilo, e certamente não havia ninguém naqueles cômodos. Preocupava-me que tivesse havido alguém na escada, precisamente naquela noite, e perguntei ao vigia, na esperança de obter alguma explicação útil, enquanto eu lhe servia um trago à porta, se ele havia deixado entrar pelo portão algum cavalheiro que parecia ter jantado fora. Sim, ele respondeu; em diferentes momentos da noite, três cavalheiros. Um morava em Fountain Court e os outros dois na Lane, e ele vira todos três irem para casa. O único outro homem que morava na casa onde ficavam meus aposentos estava no interior havia algumas semanas; e ele sem dúvida não voltara durante aquela noite, pois víramos a sua porta fechada com sua tranca ao subirmos a escada. “O tempo estava tão ruim”, disse o vigia, devolvendo o copo, “que quase ninguém apareceu no portão. Fora os três que eu falei, só me lembro de outro que veio depois das onze horas, um desconhecido perguntando pelo senhor.” “Meu tio”, murmurei. “Sim.” “O senhor viu esse?” “Sim. Claro.” “E também a pessoa que veio com ele?” “Pessoa que veio com ele!”, repeti. “Imaginei que estava com ele”, explicou o vigia. “A pessoa parou, quando ele parou para me perguntar, e a pessoa veio pra cá quando ele veio pra cá.” “Que espécie de pessoa?” O vigia não havia prestado atenção; diria que era um trabalhador; ao que lhe parecia, usava roupas empoeiradas, com um casaco escuro por cima. O vigia não dava tanta importância à coisa quanto eu, naturalmente, pois não tinha os meus motivos para se preocupar. Depois que me livrei dele, o que achei melhor fazer sem prolongar as explicações, minha mente ficou profundamente perturbada por essas duas circunstâncias tomadas juntas. Se era fácil dar uma explicação inocente às duas em separado — por exemplo, alguém que fora jantar fora, ou mesmo que jantara em casa, e que não passara por perto do portão daquele vigia, talvez tivesse adormecido na minha escada — e meu visitante sem nome talvez tivesse trazido uma pessoa consigo para que ela lhe indicasse o caminho — consideradas conjuntamente elas eram preocupantes, para alguém que, por efeito de mudanças ocorridas em poucas horas, se tornara desconfiado e temeroso como eu. Acendi a lareira, que ardia fracamente naquela hora da madrugada, e cochilei diante dela. Tive a impressão de ter dormido por toda uma noite quando os relógios deram seis horas. Como ainda faltava uma hora e meia para que o dia clareasse, voltei a cochilar; ora despertando inquieto, com conversas prolixas sobre coisa alguma em meus ouvidos; ora transformando em trovão o vento na chaminé; e por fim mergulhando num sono profundo do qual a luz do dia me arrancou sobressaltado. Durante todo esse tempo eu não conseguira pensar na minha própria situação, e mesmo agora não era capaz de fazê-lo. Ainda não tinha forças para tal. Sentia-me profundamente desalentado e angustiado, porém de um modo incoerente e geral. Quanto a elaborar um plano para o futuro, isso era para mim tão difícil quanto seria fabricar um elefante. Abrindo os estores e contemplando a manhã úmida e tempestuosa, cor de chumbo; andando de um cômodo para o outro; voltando a sentar-me, tiritando, diante da lareira, aguardando a chegada da lavadeira; eu pensava na minha infelicidade, mas dificilmente saberia dizer por quê, ou há quanto tempo, eu era tão infeliz, ou em que dia da semana estava fazendo tal reflexão, ou sequer quem era eu, que a fazia. Por fim, chegaram a velha e a sobrinha — esta com uma cabeça que não era fácil de distinguir de sua vassoura poeirenta — manifestando surpresa ao ver a mim e o fogo aceso. Expliquei-lhes que meu tio chegara durante a noite e estava dormindo, e que portanto os preparativos para o desjejum teriam de ser modificados. Em seguida, lavei-me e vesti-me enquanto elas esbarravam nos móveis e levantavam poeira; e assim, numa espécie de sonho ou sonambulismo, dei por mim mais uma vez sentado diante da lareira, esperando que — ele — viesse fazer o desjejum. Por fim, a porta do quarto abriu-se e ele saiu. Para mim era insuportável olhar para ele, e tive a impressão de que seu aspecto era ainda pior à luz do dia. “Eu nem sei”, disse eu, em voz baixa, quando ele se sentou à mesa, “que nome lhe dar. Eu disse que o senhor é meu tio.” “Isso mesmo, meu menino querido! Me chama de tio.” “O senhor adotou um nome, imagino, no navio?” “Adotei, sim, meu menino querido. O nome de Provis.” “E pretende conservá-lo?” “Sim, claro, meu menino querido, é um nome tão bom quanto outro qualquer — a menos que prefiras outro.” “Qual o seu nome verdadeiro?”, perguntei, num cochicho. “Magwitch”, ele respondeu, no mesmo tom; “o nome de batismo é Abel.” “O senhor foi criado para ser o quê?” “Um bandido, meu menino querido.” Falava sério, usando a palavra como se ela denotasse alguma profissão. “Quando o senhor chegou ao Temple ontem à noite…”, disse eu, fazendo uma pausa para perguntar a mim mesmo se fora de fato na véspera, pois me parecia fazer muito tempo. “Sim, meu menino querido?” “Quando o senhor chegou ao portão e perguntou ao vigia onde eu morava, havia alguém com o senhor?” “Comigo? Não, meu menino querido.” “Mas havia uma outra pessoa?” “Não prestei muita atenção”, disse ele, hesitante, “por não conhecer o lugar. Mas acho que tinha uma pessoa, sim, que chegou junto comigo.” “O senhor é conhecido em Londres?” “Espero que não!”, ele respondeu, passando um dedo indicador no pescoço com um gesto súbito que me afogueou o rosto e nauseou-me. “Já foi conhecido em Londres, outrora?” “Não muito, meu menino querido. Eu passava mais tempo no interior.” “O senhor foi… julgado… em Londres?” “Qual das vez?”, ele perguntou, com um olhar penetrante. “A última.” Ele fez que sim com a cabeça. “Foi assim que eu conheci o senhor Jaggers. Foi ele que me defendeu.” Eu estava prestes a lhe perguntar por que motivo fora a julgamento, porém ele pegou uma faca, brandiu-a, exclamou: “E pelo que eu fiz, já paguei!”, e atacou seu desjejum. Comia com uma avidez muito desagradável, e todos os seus gestos eram grosseiros, ruidosos e sôfregos. Alguns de seus dentes se haviam perdido depois do dia em que eu o vira comendo no charco, e enquanto ele revirava a comida na boca e inclinava a cabeça para que seus dentes mais poderosos entrassem em ação, ele lembrava terrivelmente um cachorro velho e faminto. Se eu estivesse com apetite, ele me teria feito perdê-lo, e teria ficado tal como de fato fiquei — tomado por uma aversão impossível de conter, olhando melancólico para a toalha da mesa. “Eu como muito, mesmo, meu menino querido”, disse ele, como que pedindo desculpas, ao terminar a refeição, “mas sempre fui assim. Se eu fosse de comer menos, quem sabe eu entrava em menos encrenca. Também fumo muito. A primeira vez que me deram trabalho de pastor de ovelha, lá do outro lado do mundo, acho que só num virei carneiro também, um carneiro maluco de tanta tristeza, graças ao meu cachimbo.” Enquanto falava, levantou-se da mesa e, pondo a mão no bolso interno do jaquetão de lã, pegou um punhado de fumo solto do tipo denominado “cabeçade- negro”.1 Tendo enchido o cachimbo, pôs de volta no bolso o resto do fumo, como se o bolso fosse uma gaveta. Depois pegou uma brasa na lareira, usando as tenazes, e com ela acendeu o cachimbo, e depois se virou, dando as costas para o fogo, e repetiu seu gesto predileto, o de estender as duas mãos para mim. “E este aqui”, disse ele, acariciando minhas mãos enquanto tirava uma baforada do cachimbo, “e este aqui é o cavalheiro que eu fiz! Um cavalheiro de verdade! Me faz muito bem olhar pra ti, Pip. Tudo o que eu quero é ficar parado olhando pra ti, meu menino querido!” Soltei minhas mãos assim que pude, e me dei conta de que eu estava começando a compreender, pouco a pouco, minha situação. Compreendi a que eu estava acorrentado, com correntes muito fortes, enquanto ouvia aquela voz áspera e contemplava aquela calva cheia de sulcos, circundada por cabelos grisalhos cor de ferro. “Não quero ver o meu cavalheiro andando na lama da rua; não quero ver lama na bota dele. Meu cavalheiro precisa de cavalo, Pip! Cavalo pra montar, cavalo pra puxar carruagem, pro criado dele também. Então um colono qualquer pode ter um cavalo (e puro-sangue ainda por cima, meu Deus!) e o meu cavalheiro de Londres não pode? De jeito nenhum. A gente quer te ver com um sapato melhor do que esse, não é, Pip?” Ele tirou do bolso uma carteira grande e grossa, cheia a ponto de estourar, e jogou-a sobre a mesa. “Nessa carteira aí tem bastante pra gastar, meu menino querido. Ela é tua. Tudo que eu tenho não é meu não; é teu. Pode pegar sem medo. Não preocupa que tem mais. Eu voltei aqui pra terrinha pra ver o meu cavalheiro gastando dinheiro que nem um cavalheiro. O prazer é meu. O meu prazer é ver ele gastando. E vocês todos que se danem!”, ele resumiu, olhando à sua volta e estalando os dedos ruidosamente, “que se danem todos vocês, desde o juiz com a peruca dele até o colono cavucando a terra, que eu vou mostrar pra vocês um cavalheiro que vale mais que vocês todos juntos!” “Um momento!”, exclamei, quase num paroxismo de medo e repulsa, “quero falar com o senhor. Quero saber o que fazer. Quero saber como protegêlo, quanto tempo vai ficar aqui, quais são os seus planos.” “Olha, Pip”, disse ele, pondo a mão no meu braço de uma maneira subitamente alterada, contida; “antes de mais nada, olha aqui. Eu perdi a cabeça inda há pouco. O que eu falei foi muito vulgar; isso mesmo, vulgar. Olha, Pip. Esquece o que eu disse. Eu não vou mais ser vulgar.” “Antes de mais nada”, insisti, quase gemendo, “quais as precauções a tomar para que o senhor não seja reconhecido e preso?” “Não, meu menino querido”, disse ele, no tom de antes, “antes que isso tem outra coisa. Tem a mesquinhez. Eu não passei esses anos todo fazendo um cavalheiro sem saber o respeito que ele merece. Olha, Pip. Eu fui vulgar; fui sim, vulgar. Esquece o que eu disse, meu menino querido.” A consciência do que havia de grotesco e terrível naquilo me fez rir nervosamente, enquanto eu respondia: “Eu já esqueci. Pelo amor de Deus, não se fala mais nisso!”. “É, mas olha só”, ele insistiu. “Meu menino querido, eu não vim de tão longe pra ser vulgar. Mas podes continuar, meu menino querido. Estavas dizendo…” “Como protegê-lo do perigo que o ameaça?” “Ora, meu menino querido, o perigo não é tão grande assim. Pelo que dizem, até que não é muito perigo não. Fora o Jaggers, o Wemmick e tu, quem mais que está sabendo?” “Não há nenhuma pessoa que possa identificá-lo na rua?”, indaguei. “Bom”, ele respondeu, “não tem muita gente não. Não vou sair por aí anunciando no jornal que o A. M. voltou de Botany Bay ;2 e tanto tempo passou, quem é que vai ganhar alguma coisa com isso? Mas enfim, olha aqui, Pip. Mesmo que o perigo fosse cinquenta vez maior, eu vinha te ver, ouviu?” “E quanto tempo vai ficar?” “Quanto tempo?”, disse ele, tirando da boca o cachimbo preto e baixando o queixo, enquanto me olhava fixamente. “Eu não volto mais, não. Vim pra ficar.” “Onde o senhor vai morar?”, perguntei. “O que há de se fazer com o senhor? Onde vai estar em segurança?” “Meu menino querido”, ele respondeu, “o dinheiro compra peruca pra disfarçar, e polvilho pra pôr no cabelo, e óculos, e roupa preta — culote, essas coisa. Tem gente que já fez isso antes de mim, e se com eles deu certo, comigo também há de dar. E quanto ao lugar que eu vou ficar, e do que eu vou viver, meu menino querido, me diz o que tu achas.” “Agora o senhor diz que não há perigo”, argumentei, “mas ontem à noite a coisa era muito séria, e o senhor jurou que podia morrer.” “E morro mesmo”, disse ele, recolocando o cachimbo na boca, “morro enforcado, no meio da rua, pertinho daqui, e é bom que tu leves isso a sério. Mas o que está feito, feito está. Estou aqui. Voltar agora seria tão perigoso quanto ficar — seria mais perigoso ainda. Além disso, Pip, estou aqui porque fiz o que fiz por ti, esses anos todos. E se estou correndo perigo, sou um pássaro velho que já caiu em muita arapuca na vida, e não vai ser um espantalho qualquer que há de me dar medo. Se a morte está escondida dentro dele, então ela que venha pra fora, que eu olho ela no olho e vou acreditar nela, mas só nessa hora. E agora me deixa olhar pro meu cavalheiro de novo.” Mais uma vez, ele tomou-me pelas duas mãos e encarou-me com um ar de quem admira sua propriedade: fumando com muita complacência o tempo todo. Pareceu-me que o melhor que eu podia fazer seria arranjar-lhe um lugar discreto para ficar bem perto dali, para onde ele haveria de se mudar quando Herbert voltasse, o que eu imaginava que aconteceria dentro de dois ou três dias. Que o segredo teria de ser confidenciado a Herbert por uma questão de necessidade inevitável, mesmo se eu não levasse em conta o alívio imenso que seria para mim abrir-me com ele, era algo que a mim me parecia claro. Entretanto, não estava de modo algum muito claro para o sr. Provis (decidi chamá-lo assim), o qual afirmou que só concordaria com a participação de Herbert depois que o visse e fizesse um juízo favorável de sua fisionomia. “E mesmo assim, meu querido menino”, disse ele tirando do bolso uma pequena bíblia ensebada, de capa preta, com fecho de metal, “vamos fazer ele jurar.” Afirmar que meu terrível protetor levava aquele livrinho preto consigo com o único objetivo de fazer as pessoas jurarem em caso de emergência seria afirmar algo que nunca pude determinar — isto, porém, posso afirmar: jamais o vi usá-lo para qualquer outro fim. O livro em si parecia ter sido roubado de algum tribunal, e talvez por conhecer seus antecedentes, e também por ter tido alguma experiência própria nesse sentido, ele confiava em seus poderes como uma espécie de encantamento ou talismã legal. Nessa primeira ocasião em que sacou um livro, lembrei-me de que ele me fizera jurar fidelidade no camposanto, tantos anos antes, e que na noite anterior dissera que fazia um juramento quando tomava suas decisões na solidão do degredo. Como no momento estava usando traje de marinheiro, dando a impressão de que estaria vendendo papagaios e charutos, resolvi conversar com ele sobre as roupas que deveria usar. Ele tinha uma crença extraordinária nas virtudes dos culotes como disfarce, e já havia mentalmente esboçado um vestuário que lhe daria uma aparência intermediária entre um deão e um dentista. Foi só com muita dificuldade que o convenci a utilizar um traje mais semelhante ao de um fazendeiro próspero, e combinamos que ele cortaria o cabelo bem curto e o empoaria.3 Por fim, como ele ainda não fora visto pela lavadeira nem pela sobrinha, decidimos que ele não se apresentaria a elas enquanto não mudasse de traje. Tomar decisões a respeito de tais precauções pode parecer uma coisa simples, porém eu estava de tal modo aturdido, para não dizer transtornado, que o processo se arrastou tanto que só saí de casa para começar a pôr em prática o plano às duas ou três da tarde. O sr. Provis ficaria fechado nos meus aposentos enquanto eu estivesse na rua, e não abriria a porta em hipótese alguma. Sabendo que havia uma pensão respeitável na Essex-street, os fundos da qual davam para o Temple, tanto assim que eu quase podia vê-la das minhas janelas, antes de mais nada fui lá e tive a sorte de poder alugar o segundo andar para meu tio, o sr. Provis. Em seguida, fui de loja em loja, comprando os apetrechos que eram necessários para mudar a aparência dele. Feito isso, dirigi-me, por conta própria, a Little Britain. O sr. Jaggers estava sentado à sua mesa, mas ao me ver entrar levantou-se imediatamente e postou-se diante da lareira. “Bem, Pip”, disse ele, “tenha cuidado.” “Certamente”, respondi. Pois eu havia pensado no que lhe dizer ao ir para lá. “Não se comprometa”, disse ele, “e não comprometa ninguém. Entendeu? Ninguém. Não me diga nada: não quero saber de nada; não sou curioso.” Estava claro que ele sabia que o homem havia chegado. “Eu só queria, senhor Jaggers”, disse eu, “certificar-me de que é verdade o que me foi dito. Não tenho esperança de que seja mentira, mas posso pelo menos me certificar.” O sr. Jaggers assentiu com a cabeça. “Mas você disse ‘o que me foi dito’ ou ‘o que me foi informado’?”, ele me perguntou, inclinando a cabeça para o lado e sem olhar para mim, e sim, com ar de quem estava escutando, para o chão. “‘O que me foi dito’ parece implicar comunicação oral. É impossível comunicar-se oralmente com um homem que está em Nova Gales do Sul, você sabe.” “Direi então ‘informado’, senhor Jaggers.” “Bom.” “Fui informado, por um homem chamado Abel Magwitch, que ele é o benfeitor cuja identidade desconheço há tanto tempo.” “O homem é esse mesmo”, disse o sr. Jaggers, “lá de Nova Gales do Sul.” “Somente ele?”, perguntei. “Somente ele”, respondeu o sr. Jaggers. “Não sou insensato a ponto de julgar que o senhor é de algum modo responsável pelos meus equívocos e pelas conclusões erradas que tirei, mas sempre imaginei que fosse a senhora Havisham.” “Como você mesmo disse, Pip”, respondeu o sr. Jaggers, encarando-me com frieza, e mordendo o indicador, “não sou de modo algum responsável por isso.”“ E, no entanto, parecia muito que fosse”, implorei, com o coração nas mãos. “Não havia nenhum indício concreto, Pip”, disse o sr. Jaggers, sacudindo a cabeça e juntando as abas da casaca. “Jamais se guie pelas aparências; sempre se funde em dados concretos. Não há regra melhor do que essa.” “Não tenho mais nada a dizer”, prossegui, com um suspiro, depois de permanecer em silêncio por algum tempo. “Certifiquei-me do que me foi informado, e ponto final.” “E agora que Magwitch — em Nova Gales do Sul — por fim se revelou”, disse o sr. Jaggers, “você compreenderá, Pip, que durante todo esse tempo, em minhas comunicações com você, sempre me ative estritamente aos fatos. Jamais me afastei, por um milímetro que fosse, dos fatos. Você tem consciência disso?” “Tenho, sim, senhor.” “Comuniquei a Magwitch — em Nova Gales do Sul — quando ele me escreveu pela primeira vez — de Nova Gales do Sul — a ressalva de que ele não deveria esperar de mim que eu jamais me afastasse dos fatos. Também fiz outra ressalva. Ele pareceu dar a entender vagamente sua intenção de algum dia vir visitá-lo aqui na Inglaterra. Deixei claro que não queria mais ouvir falar de tal coisa; que não era nem um pouco provável que ele conseguisse obter um perdão; que ele haveria de ficar no degredo todo o resto de sua vida; e que se ele voltasse a este país, estaria cometendo um crime, o que o deixaria exposto à pena mais extrema. Fiz esse alerta a Magwitch”, disse o sr. Jaggers olhando para mim fixamente; “escrevi para Nova Gales do Sul. Ele certamente terá seguido minha orientação.” “Certamente”, concordei. “Fui informado por Wemmick”, prosseguiu o sr. Jaggers, ainda olhando fixamente para mim, “de que ele recebeu uma carta, enviada de Portsmouth, por um colono chamado Purvis, ou…” “Ou Provis”, sugeri. “Ou Provis — obrigado, Pip. Talvez seja mesmo Provis? Talvez você saiba que é Provis?” “Isso mesmo”, respondi. “Você sabe que é Provis. Uma carta, enviada de Portsmouth, por um colono chamado Provis, pedindo o seu endereço, a mando de Magwitch. Wemmick mandou-lhe a informação pedida, pelo que sei, via correio. Provavelmente foi através do Provis que você recebeu a explicação de Magwitch — de Nova Gales do Sul?” “Foi através do Provis, sim”, respondi. “Até logo, Pip”, disse o sr. Jaggers, estendendo a mão; “foi um prazer vê-lo. Quando escrever para o Magwitch — em Nova Gales do Sul — ou o Provis, tenha a bondade de lhe dizer que os detalhes e os documentos serão enviados, juntamente com o saldo, pois ainda resta um saldo. Até logo, Pip!” Trocamos um aperto de mãos, e ele ficou a olhar-me fixamente até me perder de vista. Virei-me para trás ao chegar à porta, e ele continuava me olhando fixamente, enquanto as duas máscaras horrendas na prateleira pareciam estar tentando levantar as pálpebras e arrancar de suas gargantas inchadas: “Ah, mas que homem, esse!”. Wemmick havia saído, e mesmo que estivesse sentado a sua mesa não poderia ter feito nada por mim. Voltei direto para o Temple, onde encontrei o terrível Provis bebendo grogue e fumando cabeça de negro, tranquilo. No dia seguinte, todas as roupas que eu mandara fazer foram entregues, e ele experimentou-as. Cada peça que vestia (era essa a minha impressão desanimadora) assentava-lhe menos do que a anterior. Tinha eu a impressão de que alguma coisa nele frustrava qualquer tentativa de disfarçá-lo. Quanto mais e melhor eu o vestia, mais ele parecia aquele fugitivo trôpego no charco. Esse efeito sobre minha mente fantasiosa e ansiosa era em parte causado, sem dúvida, pelo fato de que seu rosto e seu jeito estavam se tornando mais familiares para mim; creio, porém, que além disso ele arrastava uma das pernas como se ainda tivesse um grilhão preso a ela, e dos pés à cabeça ele era essencialmente um forçado. Ademais, ele ainda conservava sinais da vida solitária que levara naquela cabana, e isso lhe emprestava um ar selvagem que roupa alguma seria capaz de domesticar; ostentava também os sinais de homem marcado, egresso da vida que levara posteriormente; e coroando tudo isso, havia sua consciência de que estava fugindo e se escondendo ainda agora. Em todas as suas posturas, sentado e em pé, comendo e bebendo — andando de um lado para outro a cismar, de um jeito relutante, com os ombros empertigados — tirando do bolso seu enorme canivete de cabo de chifre, limpando a lâmina na perna e cortando a carne — levando aos lábios copos e xícaras leves como se fossem canecos grosseiros — cortando uma fatia de pão e pegando com ela os últimos restos do molho, dando voltas e mais voltas no prato, como se para aproveitar ao máximo sua ração, e depois limpando nela as pontas dos dedos e por fim comendo-a — nesses gestos, e numa infinidade de outros exemplos sem nome a cada minuto do dia, lá estava o prisioneiro, o criminoso, o forçado, plenamente visível para qualquer um. Fora sua a ideia de empoar o cabelo, e eu aceitei-a depois de dissuadi-lo de usar culotes. Porém o efeito do polvilho nele só pode ser comparado, a meu ver, ao efeito provável do ruge no rosto de um defunto; era terrível como tudo aquilo que nele se queria ocultar irrompia através daquela fina camada de fingimento, e parecia explodir no seu cocuruto. Abandonamos o polvilho após a primeira tentativa, e ele passou a usar o cabelo grisalho cortado curto. Não há palavras que possam exprimir a consciência que eu tinha, na época, do terrível mistério que ele representava para mim. Quando adormecia à noite, as mãos nodosas agarradas aos braços da espreguiçadeira, a cabeça calva tatuada com sulcos profundos caída sobre o peito, eu ficava a olhar para ele, perguntando a mim mesmo o que ele teria efeito, e atribuindo-lhe todos os crimes do Calendar,4 até ser dominado por um poderoso impulso que me fazia levantar de repente e fugir dele. A cada hora aumentava o horror que ele me inspirava, tal modo que eu teria cedido a esse impulso assim que ele se manifestou, apesar de tudo que aquele homem fizera por mim, e dos riscos que correra, não fosse a consciência de que Herbert em breve estaria de volta. De certa feita cheguei mesmo a levantar-me no meio da noite e começar a vestir as piores roupas que tinha, com a intenção de fugir às pressas, deixando para ele todas as minhas outras posses, e alistar-me como soldado raso para ir servir na Índia. Creio que nem mesmo um fantasma me teria apavorado mais, sozinho naqueles aposentos, durante as noites intermináveis, com a chuva e o vento incessantes. Um fantasma não poderia ser preso e enforcado por minha culpa, e a consciência de que isso poderia acontecer com ele, e o pavor de que tal acontecesse aumentavam ainda mais o horror que eu sentia. Quando ele não estava dormindo, nem jogando uma forma complicada de paciência com seu baralho de cartas gastas — um jogo que nunca vi antes nem depois, e no qual ele registrava os pontos que acumulava cravando o canivete na mesa — quando não estava fazendo nem uma coisa nem outra, pedia-me que lesse para ele: “Em língua de estranja, meu menino querido!”. Eu obedecia, e ele, sem entender palavra da minha leitura, ficava parado diante da lareira contemplando-me com ares de exibidor, e eu o via, por entre os dedos da mão com a qual eu cobria meu rosto, gesticulando para a mobília, e pedindo-lhe que atentasse para minha proficiência. O estudante imaginário perseguido pela criatura disforme5 por ele criada, do modo mais ímpio, não poderia ser mais desgraçado do que eu, perseguido pela criatura que me criara, e dela fugindo com uma repulsa que se tornava cada vez mais forte quanto mais ele me admirava e afeiçoava-se a mim. Ao relatar esses fatos, percebo que dou a impressão de que tudo durou um ano. Durou cerca de cinco dias. Sempre na expectativa da chegada de Herbert, eu não ousava sair de casa, senão após o pôr do sol, quando levava Provis para tomar um pouco de ar. Até que uma noite, finalmente, depois do jantar, quando eu havia começado a cochilar, exausto — pois minhas noites eram agitadas, e meu descanso era interrompido por sonhos terríveis — fui despertado pelo som alvissareiro de passos na escada. Provis, que também estava dormindo, levantouse trôpego de sono com o barulho que eu fizera, e no instante seguinte vi seu canivete brilhando em sua mão. “Silêncio! É o Herbert!”, disse eu; e Herbert entrou efusivamente, o frescor de mil quilômetros de França no rosto. “Handel, meu caro, como vais, e como vais, e como vais? Parece que estive fora por um ano! E deve ter sido isso mesmo, pois estás tão magro e pálido! Handel, meu… Eh! Perdão.” Interrompeu sua fala e o gesto de apertar minha mão quando viu Provis. Este, encarando-o com atenção, estava guardando lentamente o canivete, enquanto procurava em outro bolso alguma outra coisa. “Herbert, meu amigo”, disse eu, fechando as portas duplas, enquanto Herbert me olhava sem entender, “uma coisa muito estranha aconteceu. Este aqui um é… uma visita minha.” “Tudo bem, meu querido menino!”, disse Provis, aproximando-se com seu livrinho de capa preta e dirigindo-se a Herbert: “Segure na sua mão direita. Que Deus o mate na mesma hora se você fizer alguma traição! Beije!”. “Faze o que ele pede”, disse eu a Herbert. E assim, Herbert, voltando para mim um olhar amistoso cheio de preocupação e espanto, obedeceu, e Provis, imediatamente apertando sua mão, disse: “Agora você jurou. E não acredite no meu juramento se Pip não fizer d’ocê um cavalheiro de verdade!”. 2 Seria inútil tentar descrever o espanto e a inquietude de Herbert, quando eu, ele e Provis nos sentamos diante da lareira e revelei-lhe todo o segredo. Basta dizer que vi meus próprios sentimentos refletidos no rosto de Herbert, e dentre eles, em particular, a repugnância que me inspirava o homem que tanto fizera por mim. O que por si só teria estabelecido uma divisão entre aquele homem e nós, se não houvesse nenhuma outra circunstância a nos separar, era a sensação de triunfo que lhe inspirava meu relato. Fora o desconforto que manifestou por ter sido “vulgar” numa ocasião após sua volta — o qual passou a comunicar a Herbert tão logo concluí minha revelação — ele não via nenhum motivo para que eu me queixasse de minha boa sorte. Quando se vangloriava de ter feito um cavalheiro de mim, e de ter vindo para me ver representar esse papel graças a sua prosperidade, vangloriava-se por mim tanto quanto por si próprio; e que tal circunstância era muito agradável para nós dois, e motivo de grande orgulho para ambos, era uma conclusão firmemente estabelecida em sua mente. “Se bem que, olhe aqui, camarada do Pip”, disse ele a Herbert, depois de ter discorrido por algum tempo, “sei muito bem que uma vez, depois que eu voltei — por meio minuto — eu fui vulgar. Eu falei pro Pip: eu sei que fui vulgar. Mas não preocupa com isso, não. Se eu fiz do Pip um cavalheiro, e se ele vai fazer um cavalheiro d’ocê, eu sei muito bem que ’ocês dois merece respeito. Meu querido menino, e camarada de Pip, ’ocês dois pode contar comigo, que eu vou sempre usar uma mordaça de educação. Pus a mordaça desde aquele meio minuto em que recaí na mesquinhez, e estou com ela agora, e assim hei de ficar daqui pra frente.” Disse Herbert: “Certamente”, mas a expressão em seu rosto dava a entender que para ele aquilo não representava nenhum consolo, e ele permaneceu perplexo e desanimado. Estávamos ansiosos para que aquele homem fosse logo para seus aposentos e nos deixasse juntos, mas ele, sem dúvida por estar enciumado, não queria nos deixar a sós, e ficou conosco até tarde. Já era meianoite quando fui levá-lo até a Essex-street e o deixei em segurança diante de sua porta às escuras. Quando a porta se fechou, vivi meu primeiro momento de alívio desde a noite em que ele chegara. Nunca inteiramente livre da lembrança inquietante do homem na escada, eu sempre olhava a minha volta quando levava meu hóspede para passear após o pôr do sol, e quando o trazia de volta; e foi o que fiz agora. Por mais difícil que seja evitar, numa cidade grande, a suspeita de que se está sendo observado quando a mente tem consciência de tal perigo, eu não conseguia convencer a mim mesmo que houvesse alguém entre as pessoas a minha volta interessado em meus movimentos. As poucas pessoas que passavam seguiam cada uma seu próprio caminho, e a rua estava vazia quando cheguei de volta ao Temple. Ninguém saíra pelo portão conosco, ninguém entrou pelo portão comigo. Quando passei pela fonte, vi as janelas dos fundos dos aposentos dele, iluminadas e silenciosas, e quando parei por alguns instantes à porta do prédio onde eu morava, antes de subir a escada, o Garden-court continuava tão silencioso e vazio quanto a escada, quando comecei a subi-la. Herbert recebeu-me de braços abertos, e eu jamais sentira antes, com tanta força, a felicidade que é ter um amigo. Depois que ele me dirigiu algumas palavras sensatas de solidariedade e estímulo, sentamo-nos para examinar a questão: o que fazer? Como a cadeira que fora ocupada por Provis ainda permanecia no mesmo lugar de antes — pois ele tinha o hábito, característico de quem já viveu em uma cabana, de se estabelecer num lugar e lá permanecer inquieto, às voltas com seu cachimbo, seu fumo, seu canivete, seu baralho e não sei o que mais, como se todas essas atividades lhe estivessem prescritas numa lousa — como sua cadeira, dizia eu, permanecia no lugar de antes, Herbert sentou-se nela sem se dar conta do que fazia, mas logo em seguida levantou-se de súbito, empurrou-a para o lado e instalou-se noutra. Depois disso, não teve oportunidade de dizer que sentia uma aversão por meu protetor, nem eu tive ocasião de confessar idêntico sentimento. Trocamos essa confidência sem pronunciar uma única sílaba. “Mas”, disse eu a Herbert, depois que ele se sentou em outra cadeira, “o que se há de fazer?” “Meu pobre e caro Handel”, respondeu ele, segurando a cabeça, “estou aturdido demais para pensar.” “Era assim que eu estava, Herbert, ao primeiro impacto do golpe. Mesmo assim, alguma coisa tem de ser feita. Ele está decidido a fazer mais despesas — cavalos, carruagens, luxos de toda espécie. É preciso impedi-lo de algum modo.” “Queres dizer que não podes aceitar…?” “E como eu poderia fazê-lo?”, interpus, quando Herbert fez uma pausa. “Pensa só nele! Olha só para ele!” Um arrepio involuntário se apossou de nós dois. “No entanto, infelizmente, creio que a terrível verdade, Herbert, é que ele é apegado a mim, fortemente apegado a mim. Onde já se viu destino semelhante!” “Meu pobre e caro Handel”, repetiu Herbert. “Além disso”, prossegui, “pensando bem, mesmo se eu parasse por aqui, e nunca mais aceitasse um tostão dele, pense só no quanto já lhe devo! E mais: estou muito endividado — muitíssimo para uma pessoa como eu, que agora não tem mais esperanças — e que não aprendeu nenhum ofício, e não presta para coisa alguma.” “Ora, ora, ora!”, ralhou Herbert. “Não me digas que não prestas para coisa alguma!” “Então para que é que eu presto? Só sei de uma coisa que posso fazer: sentar praça. E se ainda não fiz isso, meu caro Herbert, é só porque ainda me restava a possibilidade de recorrer a teus conselhos, tua amizade e teu afeto.” É claro que, neste momento, meus olhos encheram-se de lágrimas; e é claro que Herbert, a não ser por apertar minha mão calorosamente, fez de conta que não o percebeu. “Seja como for, meu caro Handel”, disse ele, após uma pausa, “virar soldado não resolve nada. Se renunciasses à proteção e aos favores dele, creio que o farias na vaga esperança de um dia poderes pagar o que já deves. Tal esperança seria mesmo muito vaga se virasses soldado! Além disso, é absurdo. Ficarias bem melhor na firma de Clarriker, ainda que ela seja pequena. Estou trabalhando para me tornar sócio, bem o sabes.” Pobre rapaz! Mal sabia ele com que dinheiro o fazia. “Mas há outra questão”, disse Herbert. “Esse homem é um ignorante determinado, que há muito tempo tem uma ideia fixa. Mais do que isso, ele me parece (mas posso estar julgando-o mal) um homem de temperamento desesperado e feroz.” “É mesmo, disso eu não tenho dúvida”, concordei. “Vou te dizer as provas que tenho.” E relatei-lhe o que não havia mencionado na minha narrativa: aquele encontro com o outro forçado. “Vê, então”, disse Herbert; “pensa só! Ele vem aqui correndo risco de vida, para realizar sua ideia fixa. No momento em que a realiza, depois de tanto esforço e tanta espera, tu puxas o tapete debaixo dos pés dele, destróis sua ideia e fazes com que suas realizações não tenham nenhum valor para ele. Não imaginas o que ele pode fazer, sob o impacto dessa decepção?” “Imagino, sim, Herbert, e desde a noite fatal em que ele chegou tenho sonhado com isso. Não há nada que tenha ocupado meus pensamentos tanto quanto a ideia de ele se deixar prender.” “Então podes ter certeza”, disse Herbert, “que o risco de que ele faça isso é muito grande. Esse é o poder que ele tem sobre ti enquanto permanecer na Inglaterra, e seria essa a imprudência que ele cometeria se tu o desiludisses.” Tamanho foi o horror que me causou essa possibilidade, a qual me onerava desde o início, e que me faria ver a mim mesmo, de algum modo, como culpado de sua morte, que não consegui ficar sentado na minha cadeira, porém pus-me a andar de um lado para o outro. Nesse ínterim, disse a Herbert que, mesmo se Provis fosse reconhecido e preso involuntariamente, eu me sentiria muito infeliz por ter sido a causa de seu infortúnio, por mais inocente que fosse. Sim; muito embora eu me sentisse tão infeliz por estar ele à solta e perto de mim, e muito embora eu preferisse mil vezes passar o resto de meus dias trabalhando na ferraria a viver tal situação! Mas não havia como escapar da pergunta: o que fazer? “A primeira coisa a fazer, e a mais importante”, disse Herbert, “é tirá-lo da Inglaterra. Terás que ir com ele, e assim será possível fazê-lo ir.” “Mas ainda que eu consiga fazê-lo ir, eu poderia impedi-lo de voltar?” “Meu bom Handel, então não está claro que, com Newgate logo ali na esquina, é muito mais perigoso abrir-se com ele, e desse modo fazê-lo agir de modo estouvado, aqui do que em qualquer outro lugar? Se fosse possível utilizar como pretexto para tirá-lo da Inglaterra o outro forçado, ou outra coisa qualquer de sua vida…” “Aí está!”, exclamei eu, detendo-me diante de Herbert com as mãos espalmadas, como se elas contivessem todo o desespero da situação. “Não sei nada sobre a vida dele. Quase enlouqueci ao passar a noite aqui vendo-o à minha frente, tão envolvido com a minha sorte e a minha desgraça, e ao mesmo tempo nada saber sobre ele, a não ser que foi ele o miserável que me apavorou durante dois dias de minha infância!” Herbert levantou-se, tomou-me o braço, e lentamente ficamos a andar juntos de um lado para o outro, contemplando o tapete. “Handel”, disse Herbert, parando, “tens certeza de que não podes mais aceitar nada das mãos dele, não tens?” “Absoluta. Certamente tu também terias, se estivesses em meu lugar.” “E tens certeza de que precisas romper com ele?” “Herbert, como podes perguntar uma coisa dessas?” “E tu tens, e tens de ter, a consideração pela vida que ele arriscou por ti, e sentes que tens de impedi-lo, se possível, de jogar fora essa vida. Nesse caso, é preciso tirá-lo da Inglaterra antes de tomar qualquer iniciativa no sentido de desligar-te dele. Feito isso, desliga-te dele, pelo amor de Deus, que depois nós damos um jeito juntos, meu querido amigo.” Foi um conforto para mim trocar um aperto de mãos com ele depois disso, e voltar a andar de um lado para o outro, tendo feito apenas isso. “Bem, Herbert”, disse eu, “quanto a obter alguma informação sobre a vida dele, só sei de uma maneira de fazê-lo. O jeito é lhe perguntar, à queima-roupa.” “Isso mesmo. Pergunta a ele”, disse Herbert, “no desjejum, amanhã de manhã.” Pois ele dissera, ao despedir-se de Herbert, que viria fazer o desjejum conosco. Tendo tomado essa decisão, fomos nos deitar. Tive os sonhos mais delirantes a respeito do homem, e despertei nem um pouco descansado; além disso, quando acordei voltou a apossar-se de mim o medo que eu havia perdido durante a noite, de que viesse à tona que ele era um degredado que voltara ilegalmente à Inglaterra. Uma vez desperto, esse medo não me dava trégua. Ele chegou na hora combinada, tirou do bolso o canivete e sentou-se para comer. Estava cheio de planos para que seu cavalheiro se mostrasse a todos como o cavalheiro que era, e insistiu para que eu começasse logo a gastar o dinheiro contido na carteira que ele deixara comigo. Considerava meus aposentos e os dele como residências temporárias, e aconselhou-me a procurar imediatamente “uma maloca elegante” perto do Hy de Park, onde houvesse um lugar em ele pudesse “tirar uma pestana”. Quando terminou seu desjejum e se pôs a limpar a lâmina do canivete na calça, eu lhe disse, sem rodeios: “Depois que o senhor foi embora ontem à noite, contei a meu amigo que os soldados o encontraram brigando no charco, quando chegamos. O senhor se lembra?” “Se me lembro?”, ele retrucou. “E como!” “Queremos saber alguma coisa sobre aquele homem — e sobre o senhor. É estranho não saber nada sobre ele e sobre o senhor, particularmente sobre o senhor, senão o que fui capaz de contar a meu amigo ontem. Esta não seria uma boa ocasião para saber mais?” “Bem!”, ele exclamou, depois de pensar um pouco. “’Ocê está jurado, não é, camarada do Pip?” “Certamente”, respondeu Herbert. “Quanto a tudo que eu disser, ’ocê sabe”, ele insistiu. “O juramento se aplica a tudo.” “Estou ciente disso.” “E veja bem! Tudo que eu fiz, eu já paguei por isso, com meu trabalho”, ele voltou a insistir. “Assim seja.” Ele pegou o cachimbo preto e ia enchê-lo de fumo cabeça-de-negro quando, contemplando o punhado de fumo que tinha na mão, pareceu concluir que aquilo talvez o fizesse perder o fio da meada. Guardou-o no bolso outra vez, enfiou o cachimbo na casa de um botão do casaco, apoiou uma mão espalmada em cada joelho e, depois de voltar um olhar feroz para o fogo por alguns momentos de silêncio, olhou para nós e relatou o que se segue. 3 “Meu querido menino e camarada do Pip. Não vou contar minha história como se fosse uma canção ou um conto de fadas. Mas pra não perder tempo vou dizer tudo de uma vez só: entrei na prisão e saí da prisão, entrei na prisão e saí da prisão, entrei na prisão e saí da prisão. Pronto, é só isso. A minha vida é quase que só isso, até a hora que me levaram embora, despois que o Pip se mostrou meu amigo. “Já fizeram comigo quase tudo nesse mundo — menos me enforcar. Já fui trancado tantas vez quanto um bule de chá de prata. Já fui levado de carroça de um lado pro outro, expulso de tudo quanto é cidade, posto no pelourinho, chicoteado, torturado e arrastado. Quanto ao lugar em que eu nasci, sei tanto quanto ’ocês — ou menos ainda. A lembrança mais antiga que eu tenho é eu, em Essex, ganhando a vida roubando nabo. Alguém tinha me abandonado — um homem — um latoeiro — levando o fogo consigo, e me deixando com muito frio. “Eu sabia que meu nome era Magwitch, e que me batizaram Abel. Como que eu sabia isso? Mais ou menos como eu sabia os nome dos passarinho que eu via nas sebe, tentilhão, tordo, pardal. Eu podia muito bem achar que tudo era mentira, mas aí vi que os nome dos passarinho eram mesmo aqueles, e daí pensei que o meu também devia ser esse. “Desde que me tenho por gente, todo mundo que viu o pequeno Abel Magwitch, mesmo quando era bem pequeno, ou morria de medo dele, ou enxotava ele, ou prendia ele. Me prenderam uma vez, duas vez, três vez, e assim foi que mais ou menos cresci preso. “Foi assim que, quando eu era uma criaturinha esfarrapada de dar dó (não que eu me visse no espelho, porque quase nunca que eu entrava em casa que tivesse mobília), começaram a dizer que eu era incorregível. ‘Esse aí é totalmente incorregível’, diziam a quem vinha visitar a prisão, apontando pra mim. ‘Esse aí praticamente mora na prisão, esse menino.’ Então olhavam pra mim, e eu olhava pra eles, e eles media minha cabeça,1 às vezes — eles devia mas era medir meu estômago — e tinha uns outro que me dava uns folheto que eu não sabia ler, e me fazia discurso que eu não conseguia entender. Eles sempre falavam no diabo. Mas que diabo eu podia fazer? Eu tinha que pôr alguma coisa no estômago, é ou não é? — Mas estou sendo vulgar, e sei que devo respeito a ’ocês. Meu querido menino e camarada do Pip, não preocupa, não, que não vou ser vulgar. “Vagabundeando, mendigando, roubando, trabalhando às vezes quando conseguia — mas isso era raro, o que ’ocês vai entender se parar para pensar se ’ocês ia querer me empregar se me visse — fazendo de tudo um pouco, de caçador, operário, carroceiro, ceifeiro, mascate, quase tudo que paga pouco e termina em confusão, me fiz homem. Um soldado desertor num abrigo pra vagabundo, tatuado até o queixo, me ensinou a ler; e um gigante de feira, que ganhava um pêni cada vez que assinava o nome, me ensinou a escrever. Nessa época eu não era preso tantas vez quanto antes, mas mesmo assim gastei muito latão de chave de cadeia. “Nas corrida de Epson, coisa de mais de vinte anos atrás, conheci um homem que eu rachava a cabeça dele com esse atiçador, como se fosse uma pata de lagosta, se ela estivesse aqui nessa lareira. O nome de verdade dele era Compey son; e foi com esse homem, meu querido menino, que tu me viste brigando naquela vala, tal qual tu contaste a teu camarada depois que me despedi ontem à noite. “Ele se fazia passar por cavalheiro, o tal do Compey son, e tinha estudado numa escola de gente rica, ele tinha estudo. Sabia falar bem e conhecia as maneira da gente rica. Era bonitão também. Foi na véspera do grande páreo, quando eu encontrei o tipo na charneca, numa taberna que eu conhecia. Ele e mais uns estava sentado numa mesa quando eu entrei, e o taberneiro (que me conhecia, e que era do meu ramo) chamou ele e falou assim: ‘Acho que este homem é o que ’ocê quer’ — apontando pra mim. “O Compey son olha pra mim com muita atenção, e eu pra ele. Ele tem relógio com corrente, anel, alfinete de gravata e roupa bonita. “‘A julgar pelas aparência, ’ocê não tem tido sorte’, diz ele a mim. “‘Sim, senhor, sorte é coisa que nunca tive.” (Eu estava saindo da cadeia de Kingston por vagabundagem. Podia até ter sido por outra coisa, mas não foi.) “‘A sorte muda’, diz o Compey son; ‘talvez a sua esteja prestes a mudar.’ “Aí eu digo: ‘Espero que mude mesmo. Está precisando’. “‘O que é que ’ocê sabe fazer?’ pergunta o Compey son. “‘Comer e beber’, eu respondo, ‘se o senhor providenciar os materiais.’ “O Compey son riu, olhou pra mim outra vez com muita atenção, me deu cinco xelim e combinou de encontrar comigo na noite seguinte. No mesmo lugar. “Fui encontrar com o Compey son na noite seguinte, no mesmo lugar, e ele me tomou como parceiro. E qual era o negócio dele, que eu seria parceiro? O negócio do Compey son era fraude, falsificar assinatura, passar nota roubada, e por aí vai. Todo tipo de falcatrua que ele inventava na cabeça dele, só que não sujava as mão, os lucro ia pro bolso dele e outra pessoa ia pra cadeia — era esse o negócio do Compey son. O coração dele era mais duro que uma lima de ferro, ele era frio que nem a morte, e a cabeça dele era como a do tal diabo de quem falei ainda há pouco. “Tinha um outro que trabalhava com o Compey son, que ele chamava de Arthur — não como se fosse nome de batismo, e sim sobrenome. Estava mal de saúde, e parecia um fiapo de gente. Ele mais o Compey son tinha passado a perna numa mulher rica uns anos antes, e ganharam um bom dinheiro; mas o Compey son apostava e jogava; ele era capaz de perder todo o tesouro da Coroa na mesa verde. Então o tal do Arthur estava morrendo, e morrendo pobre, com tremedeira de bebida ainda por cima, e a mulher do Compey son (que vivia apanhando do Compey son) ajudava o Arthur quando podia, e o Compey son não tinha pena de ninguém e de nada. “Só de olhar pro Arthur, eu devia de tomar tenência, mas não; e a verdade é que nessa época eu topava qualquer coisa — e como é que eu podia ficar escolhendo, meu querido menino e camarada do Pip? E assim comecei a trabalhar com o Compey son, e virei um joguete na mão dele. O Arthur morava no sótão da casa do Compey son (que ficava perto de Brentford), e o Compey son anotava tudo que gastava com ele de casa e comida, porque se um dia ele ficasse bom, ele havia de pagar tudo com trabalho. Mas o Arthur em pouco tempo liquidou a conta dele. A segunda ou terceira vez que eu vi o sujeito, ele entrou correndo na sala do Compey son tarde da noite, só com uma camisola de flanela, o cabelo encharcado de suor, dizendo pra mulher do Compey son: ‘Sally, ela está mesmo lá em cima junto comigo, agora, e eu não consigo mandá-la embora. Ela está toda de branco’, diz ele, ‘com umas frô branca no cabelo, e está uma fera, leva uma mortalha no braço, e diz que vai me enrolar nela às cinco da manhã.’ “Diz o Compey son: ‘Seu idiota, não sabe que ela tem corpo? Como é que ela podia estar lá em cima sem ter passado pela porta, ou pela janela, ou pela escada?’. “‘Não sei como ela chegou lá’, diz o Arthur, estremecendo de delírio, ‘mas o fato é que ela está lá, ao pé da cama, e está uma fera. E ali, onde o coração dela partiu — e foi você que partiu! — tem gotas de sangue.’ “O Compey son falava duro, mas sempre foi um covarde. ‘Vai lá em cima com esse doente’, diz ele à mulher, ‘e você, Magwitch, vá ajudar também, por favor.’ Mas ele mesmo é que nunca ia lá. “Eu e a mulher do Compey son fomos levar o Arthur pra cama, e ele delirava o tempo todo. ‘Olhem só para ela!’, ele gritava. ‘Ela está sacudindo a mortalha pra mim! Vocês não estão vendo? Vejam só os olhos dela! Não é horrível, essa raiva toda?’ Depois ele gritou: ‘Ela vai pôr a mortalha em mim, e aí eu vou morrer! Tira a mortalha dela, tira a mortalha dela!’. E ele se agarrou a nós, falando com ela o tempo todo, respondendo a ela, até que no fim eu já quase achava que estava vendo a tal mulher também. “A mulher do Compey son, que já estava acostumada com ele, deu-lhe um trago pra passar o delírio, e aos poucos ele foi se acalmando. ‘Ah, ela foi embora! Será que o guarda veio buscar?’, ele perguntou. ‘Isso mesmo’, respondeu a mulher do Compey son. ‘Você disse a ele que a trancasse?’ ‘Disse, sim’, ela respondeu. ‘E que tirasse aquela coisa horrível dela?’ ‘Disse, sim,’ ela respondeu. ‘Você é uma pessoa boa’, ele disse, ‘por favor não me abandone, aconteça o que acontecer, e muito obrigado!’ “Ele descansou até quase as cinco da manhã, e então acordou de repente gritando, gritando: ‘Ela está aí! Ela voltou com a mortalha. Está desdobrando a mortalha. Está vindo do canto do quarto. Está chegando perto da cama. Me segurem, ’ocês dois — um de cada lado — não deixem ela encostar essa coisa em mim. Ah! ela não conseguiu dessa vez. Não deixem ela jogar a coisa em cima de mim. Ela está me levantando. Me segurem!’. Então ele se levantou de repente, e morreu. “O Compey son achou melhor assim, pra ele e pro próprio Arthur. Logo adespois nós começamo a trabalhar, e antes ele me fez jurar (ele não era bobo) em cima do meu livrinho — este livrinho preto aqui, meu querido menino, que eu fiz o seu camarada jurar nele. “Pra não entrar nas coisa que o Compey son planejou e eu fiz — era assunto pra uma semana — só vou te dizer aqui, meu querido menino, e a ’ocê, camarada do Pip, que o homem me endividou tanto que eu acabei virando o preto escravo dele. Eu sempre lhe devia dinheiro, estava sempre nas mão dele, sempre trabalhando, sempre correndo perigo. Ele era mais moço que eu, mas sabia das coisa, tinha estudo, e me punha no bolso com a maior facilidade, e não tinha piedade. Eu e a minha mulher, nós passava… Cala-te, boca! Eu não falei nela…” Olhou à sua volta, confuso, como se tivesse perdido o lugar em que estava no livro de suas lembranças; e virou o rosto para o fogo, e espalmou as mãos sobre os joelhos, e levantou-as e pousou-as de novo. “Não carece de falar nisso”, disse ele, olhando a seu redor mais uma vez. “O tempo que eu passei com o Compey son foi quase que o pior de todos; dito isso, não carece de dizer mais nada. Eu contei que fui julgado, sozinho, por contravenção, no tempo em que eu estava com o Compey son?” Respondi que não. “Pois bem!”, exclamou ele, “fui a julgamento, e fui julgado culpado. Agora, isso de ser preso por suspeita, foi duas ou três vez nos quatro ou cinco ano que a coisa durou; mas não tinha prova, não. Por fim, prenderam eu e o Compey son, pelo crime de pôr em circulação nota roubada — e teve outras acusação também. Aí o Compey son disse pra mim: ‘Defesas separadas, sem comunicação’ — e foi só. E eu estava tão na miséria que vendi todas as roupa que eu tinha, menos a que eu estava vestindo, antes de procurar o Jaggers. “Quando me puseram no banco dos réu, a primeira coisa que eu reparei era como que o Compey son parecia um cavalheiro, com aquele cabelo cacheado, aquela roupa preta, e aquele lenço branco no bolso, e como eu parecia um vagabundo miserável. Quando a acusação começou a mostrar as prova, reparei que tudo apontava pra mim, e quase nada pra ele. Quando começaram os depoimento, reparei que era sempre eu que me apresentava à vítima, sempre eu que fechava o negócio, sempre eu que recebia o pagamento, sempre eu que parecia fazer tudo e ficar com o lucro. Mas aí, quando entrou o adevogado de defesa, aí eu entendi bem a trapaça; porque então o defensor do Compey son disse: ‘Meritíssimo e cavalheiros, aqui tens a vossa frente dois homem que podes ver bem separados; um deles, o mais jovem, que teve boa criação e que assim será referido; o outro, o mais velho, que teve má criação e que assim será referido; um, o mais jovem, raramente visto aqui nestas transação, e apenas como suspeito; o outro, o mais velho, sempre visto nelas e sempre julgado culpado. Pode haver dúvida que, se só um deles está envolvido, só pode ser um, e que se estão os dois envolvido, só um pode ser de longe o pior?’. E por aí afora. E quanto ao caráter, não era o Compey son que tinha estudado em escola, e que tinha colega ocupando cargo aqui e ali, e não era ele que tinha sido visto pelas testemunha nesse clube e naquela sociedade, e nunca fazendo nada de errado? E não era eu que já tinha sido julgado, e era muito bem conhecido em tudo que era prisão e xilindró? E em matéria de fazer discurso, não era o Compey son que sabia falar com eles, escondendo o rosto naquele lenço branco de vez em quando — ah! e recitando verso também no meio da fala dele — e não era eu que só sabia dizer: ‘Senhores, este homem ao meu lado é um pulha descarado’? E quando saiu o veredicto, não é que o Compey son pegou uma recomendação de piedade por ter bom caráter e más companhias, desde que ele desse tudo que era informação contra mim, enquanto que eu só ganhei uma palavra — ‘culpado’? E quando eu falei pro Compey son: ‘Quando sair deste tribunal, hei de te quebrar a cara’, não é que o Compey son pede ao juiz pra ser protegido, e aí dois carcereiro fica entre eu e ele? E quando sai a sentença, não é que ele pega sete ano e eu catorze, e o juiz fica com pena dele, porque ele tinha tudo pra se dar bem, e diz que eu sou um criminoso inverterado, dominado por paixãos violentas, que ainda vai acabar fazendo coisas mais piores?” Ele estava agora muito excitado, porém se conteve, respirou fundo duas ou três vezes, engoliu duas ou três vezes, e estendendo a mão em minha direção disse, como se para me tranquilizar: “Não vou ser vulgar, não, meu querido menino!”. Ele estava de tal modo acalorado que tirou o lenço e enxugou o rosto, a cabeça, o pescoço e as mãos, antes de poder continuar. “Eu tinha dito pro Compey son que ia quebrar a cara dele, e jurei que faria isso, senão que o Senhor quebrasse a minha! Nós fomos no mesmo navio-prisão, mas eu nunca que conseguia ficar perto dele muito tempo, se bem que eu tentei. Por fim cheguei por trás e bati no rosto dele pra ele virar e eu poder acertar a cara dele em cheio, mas aí me viram e me pegaram. O calabouço daquele navio não era dos mais fortes, pra alguém que entendia de calabouço e sabia nadar e mergulhar. Fugi pra praia, e estava escondido no meio das sepultura, invejando os que estavam enterrado dentro delas, já com tudo terminado, quando eu vi o meu menino!” Olhou-me com um olhar afetuoso que quase voltou a fazer-me sentir aversão por ele, embora ele tivesse me inspirado muita piedade. “Através do meu menino, fiquei sabendo que o Compey son também estava no charco. Juro que sou capaz de acreditar que ele fugiu de medo, pra escapar de mim, sem saber que era eu que tinha fugido do navio. Eu fui atrás dele, e quebrei a cara dele. ‘E agora’, disse eu, ‘como a pior coisa que eu posso fazer, e pouco se me dando o que acontecer comigo, vou te levar de volta pra lá.’ E era o que eu ia fazer mesmo, nadar até o navio puxando ele pelos cabelo, se os sordado não me pega. “É claro que ele levou a melhor até o fim — porque o caráter dele era tão bom. Ele tinha fugido quando estava quase maluco de tanto medo que tinha de mim e da minha tenção de matar ele; e pegou um castigo leve. Eu fui posto a ferros, levado a julgamento outra vez, e peguei a pena de degredo perpeto. Só que não esperei até o fim, meu querido menino e camarada de Pip, e vim pra cá.” Ele enxugou-se outra vez, tal como antes, e em seguida lentamente tirou um punhado de fumo do bolso, e pegou o cachimbo que estava preso na casa do botão, lentamente encheu-o e começou a fumar. “Ele morreu?”, perguntei, após uma pausa. “Ele quem, meu menino querido?” “O Compey son.” “Se estiver vivo, aposto que está rezando pra que eu não esteje”, com um olhar feroz. “Nunca mais ouvi falar dele.” Herbert estava escrevendo com o lápis na capa de um livro. Discretamente, empurrou o livro em minha direção, enquanto Provis, em pé, fumava olhando para o fogo, e eu li estas palavras: O nome do jovem Havisham era Arthur. Compey son é o homem que se fez de apaixonado pela sra. Havisham. Fechei o livro, fiz um discreto sinal de cabeça para Herbert, e pus o livro sobre a mesa; mas nem eu nem ele dissemos palavra, e ficamos a olhar para Provis, que fumava junto à lareira. 4 Que adiantaria fazer uma pausa para me perguntar até que ponto a repulsa que me inspirava Provis teria origem em Estella? Que adiantaria retardar minha caminhada, a fim de comparar o estado mental em que eu tentara me livrar do estigma da prisão, antes de me encontrar com ela no escritório da diligência, com o estado mental em que, agora, eu refletia sobre o abismo que havia entre a bela e orgulhosa Estella e o forçado repatriado que eu abrigava? Minha caminhada não seria facilitada por isso, o fim da caminhada não melhoraria em nada, Provis não ganharia nada, nem seria eu escusado. Um novo medo se formara em meu espírito por efeito da narrativa de Provis; melhor dizendo, sua narrativa dera uma forma e um sentido ao medo que já estava lá. Se Compey son estivesse vivo e descobrisse que Provis voltara, não havia dúvida sobre quais seriam as consequências. Que Compey son morria de medo dele, nenhum dos dois sabia melhor do que eu; e que um homem como Compey son, tal como ele me fora descrito, hesitaria em livrar-se de uma vez por todas de um inimigo temível pelo simples recurso de se tornar um delator, seria simplesmente impensável. Eu jamais dissera nada, e jamais viria a dizer nada — foi essa a decisão que tomei — a respeito de Estella a Provis. Porém, observei a Herbert que só poderia ir para o estrangeiro depois de ir ter com Estella e a sra. Havisham. Tivemos essa conversa quando ficamos a sós na noite do dia em que Provis nos contou sua história. Resolvi ir a Richmond no dia seguinte, e fui. Quando me apresentei na casa da sra. Brandley, a empregada de Estella foi chamada e me disse que Estella tinha ido para o interior. Para onde? Para a Casa Satis, como sempre. Não como sempre, respondi, pois ela jamais tinha ido lá antes sem mim; quando ficara de voltar? A empregada assumiu um ar de reserva ao responder, o que aumentou minha perplexidade; e a resposta que me deu foi que achava que Estella só voltaria por pouco tempo. Essa resposta me deixou no escuro; a única coisa que entendi era que o objetivo era mesmo deixar-me no escuro, e assim voltei para casa de todo desconcertado. Outra conversa noturna com Herbert depois que Provis foi para sua casa (eu sempre o levava lá, e sempre ficava a olhar com cuidado à minha volta) nos levou à conclusão de que eu não devia dizer nada a respeito da viagem ao estrangeiro enquanto não voltasse da casa da sra. Havisham. Nesse ínterim, Herbert e eu iríamos pensar cada um por sua conta o que seria a melhor coisa a dizer; se seria melhor fingirmos que estávamos com medo de que ele estivesse sendo observado por alguma pessoa suspeita, ou se eu, que nunca tinha saído do país, deveria propor uma viagem. Nós dois sabíamos que ele aceitaria qualquer coisa que eu propusesse. Concordamos que seria impensável ele permanecer por muito tempo na situação perigosa em que se encontrava. No dia seguinte, cometi a baixeza de dizer que havia prometido visitar Joe; em relação a Joe e a seu nome, porém, eu era capaz de quase qualquer baixeza. Provis teria de ser muito cuidadoso durante minha ausência, e Herbert ficaria encarregado de cuidar dele tal como eu estava cuidando. Minha ausência seria por uma noite apenas, e ao voltar começaria a satisfazer seu desejo ansioso de que eu começasse a levar uma vida de cavalheiro em escala mais grandiosa. Ocorreu-me então — e, como fiquei sabendo depois, ocorreu também a Herbert — que este seria o melhor pretexto para fazê-lo atravessar o canal da Mancha: uma viagem para fazer compras, ou coisa parecida. Tendo desse modo preparado o caminho para a minha ida à casa da sra. Havisham, parti na primeira diligência da manhã, quando ainda estava escuro, e eu já me encontrava em campo aberto quando o dia foi nascendo aos poucos, hesitante, gemendo e estremecendo, envolto em retalhos de nuvem e farrapos de névoa, como um mendigo. Quando chegamos ao Javali Azul, depois de viajar algum tempo debaixo de garoa, quem eu vejo saindo pelo portão, com um palito na mão, e olhando para a diligência, senão Bentley Drummle! Como ele fingiu não me ver, também fingi que não o via. O fingimento era muito pouco convincente das duas partes; menos ainda porque nós dois entramos no salão de chá, onde ele havia acabado de fazer seu desjejum e eu pedi que trouxessem o meu. Para mim, sua presença na aldeia era venenosa, porque eu sabia muito bem o que o levara lá. Fingindo que lia um jornal sujo de muitos dias atrás, que em matéria de notícias locais não tinha nada que fosse mais legível que as manchas de café, picles, molho de peixe e de carne, manteiga derretida e vinho, manchas que salpicavam toda a superfície do papel, como se o jornal tivesse contraído uma variedade altamente irregular de sarampo, instalei-me numa mesa enquanto ele permanecia de pé junto à lareira. Pouco a pouco foi se tornando insuportável para mim vê-lo diante da lareira, e levantei-me, decidido a aproveitar o fogo também. Fui obrigado a pôr a mão atrás de suas pernas para pegar o atiçador quando me aproximei da lareira para avivar o fogo, mas continuei fingindo que não o reconhecia. “Está me ignorando?”, disse o sr. Drummle. “Ah!”, exclamei, com o atiçador na mão; “é o senhor? Como tem passado? Eu estava me perguntando quem estaria bloqueando a lareira.” Tendo dito isso, pus-me a atiçar o fogo com muita energia, e depois me plantei ao lado do sr. Drummle, com os ombros eretos e de costas para o fogo. “O senhor acaba de chegar?”, perguntou o sr. Drummle, empurrando-me um pouco com o ombro. “Sim”, respondi, empurrando-o um pouco com o ombro. “Lugar horrível”, comentou Drummle. “O senhor é desta região, não é?” “Sou”, respondi. “Segundo me dizem, é muito parecida com a sua terra, Shropshire.”1 “Nem um pouco parecida”, retrucou Drummle. Nesse ponto o sr. Drummle olhou para suas botas, e eu olhei para as minhas, e então o sr. Drummle olhou para as minhas botas, e eu olhei para as dele. “Está aqui há muito tempo?”, perguntei, decidido a não lhe ceder um centímetro do fogo. “Tempo suficiente para já estar cansado do lugar”, respondeu Drummle, fingindo bocejar, porém igualmente decidido. “Vai ficar aqui muito tempo?” “Não sei”, respondeu Drummle. “E o senhor?” “Não sei”, respondi. Senti nesse momento, por um frêmito no sangue, que, se o ombro do sr. Drummle tivesse ocupado mais um milímetro de espaço, eu o teria jogado pela janela afora; senti também que, se o meu ombro tivesse esboçado semelhante gesto, o sr. Drummle me teria empurrado para dentro do reservado mais próximo. Ele assobiou um pouco. Fiz o mesmo. “Muitos charcos na região, não é?”, comentou Drummle. “É, sim. E daí?”, devolvi. O sr. Drummle olhou para mim, olhou para minhas botas e depois exclamou: “Ah!”, e riu-se. “Está se divertindo, senhor Drummle?” “Não muito”, respondeu. “Hoje vou sair a cavalo. Quero explorar esses charcos para me distrair. Há umas aldeias perdidas por aí, segundo me dizem. Umas tabernas curiosas — e ferrarias — coisas assim. Garçom!” “Sim, senhor.” “Meu cavalo está pronto?” “Já está à sua espera à porta.” “Sei. Escute. A moça não vai sair a cavalo hoje; o tempo não está bom.” “Sim, senhor.” “E não venho almoçar, porque vou almoçar na casa da moça.” “Sim, senhor.” Então Drummle olhou para mim de relance, com um ar de triunfo insolente naquele rosto de bochechas caídas que me atingiu no fundo do coração, por mais insosso que ele fosse, e de tal modo me irritou que me senti inclinado a agarrá-lo e (como fez o ladrão com a velha, segundo o livro)2 fazê-lo sentar-se no fogo. Uma coisa estava clara para nós dois: enquanto não viesse alguém quebrar aquele impasse, nem eu nem ele abriríamos mão do fogo. E assim ficamos os dois em pé, um junto ao outro, ombro a ombro, pé diante de pé, as mãos para trás, sem ceder um centímetro. Via-se o cavalo à porta, na garoa; meu desjejum foi posto sobre a mesa; os restos do desjejum de Drummle foram levados para a cozinha, o garçom me convidou a comer, fiz que sim com a cabeça, e nós dois mantivemos nossas posições. “O senhor voltou ao Arvoredo depois daquela reunião?”, indagou Drummle. “Não”, respondi; “a última vez que estive lá me cansei dos Tentilhões.” “Foi quando tivemos uma diferença de opiniões?” “Foi”, respondi, muito secamente. “Ora, ora! Até que não foram muito duros com o senhor”, zombou Drummle. “Não devia ter perdido a cabeça.” “Senhor Drummle”, retruquei, “não lhe reconheço competência para dar conselhos sobre esse assunto. Quando perco a cabeça (não que eu admito ter pedido a cabeça naquela ocasião), eu não jogo copos em ninguém.” “Eu jogo”, disse Drummle. Depois de olhar de relance para ele uma ou duas vezes, num estado de ferocidade crescente, eu disse: “Senhor Drummle, não procurei esta conversa, e não a julgo agradável.” “De fato, não é, com certeza”, ele replicou, com arrogância, olhando para mim por cima do ombro; “eu nem penso nela.” “Assim sendo”, prossegui, “com sua permissão, vou sugerir que doravante nos abstenhamos de manter qualquer espécie de comunicação.” “É também a minha opinião”, disse Drummle, “e é o que eu teria sugerido — ou, o que é mais provável, teria feito sem nem mesmo sugeri-lo. Mas não perca a cabeça. O senhor já não perdeu o bastante?” “O que o senhor quer dizer?” “Gar-çom!”, disse Drummle, à guisa de resposta. O garçom apareceu. “Escute aqui. Você entendeu que a moça não vai andar a cavalo hoje, e que eu vou almoçar na casa da moça?” “Perfeitamente, sim, senhor.” Depois que o garçom verificou, com a palma da mão, que meu chá estava rapidamente esfriando, e me dirigiu um olhar de súplica, e saiu em seguida, Drummle, tomando cuidado para não mover o ombro a meu lado, pegou um charuto no bolso e arrancou-lhe a ponta com os dentes, mas não deu nenhum sinal de sair do lugar. Embora fervendo de raiva, eu sentia que não poderíamos trocar mais nem uma palavra sem que o nome de Estella fosse mencionado, e eu não suportaria ouvi-lo pronunciar esse nome; assim sendo, olhando fixamente para a parede à minha frente, como se não houvesse ninguém a meu lado, obriguei-me a ficar calado. Não sei dizer quanto tempo poderíamos ter ficado nessa situação ridícula, se não tivessem entrado na sala de chá três prósperos fazendeiros — trazidos pelo garçom, imagino — os quais chegaram desabotoando seus sobretudos e esfregando as mãos, e assim, quando eles se aproximaram da lareira, fomos obrigados a lhes ceder o lugar. Vi Drummle pela janela, agarrando a crina do cavalo e montando nele com seu modo bruto e desajeitado, e se afastando com um movimento para o lado e para trás. Achei que tinha ido embora, quando então ele voltou, pedindo para que acendessem o charuto que tinha na boca, coisa que ele se esquecera de fazer. Um homem com uma roupa coberta de pó apareceu trazendo o que ele queria — eu não sabia dizer de onde o homem surgira, se do pátio da taverna, da rua ou de outro lugar qualquer — e quando Drummle se abaixou da sela e acendeu o charuto, rindo, com um movimento de cabeça em direção à janela da sala de chá, os ombros caídos e os cabelos em desalinho desse homem, que estava de costas para mim, me fizeram pensar em Orlick. Indignado demais para verificar no momento se era mesmo ele, e para tomar meu desjejum, lavei a poeira da viagem do rosto e das mãos e saí em direção à velha casa memorável, na qual teria sido muito melhor para mim se eu jamais tivesse posto o pé, muito melhor se eu jamais a tivesse visto. 5 No quarto da penteadeira, onde havia velas de cera ardendo em candelabros nas paredes, encontrei a sra. Havisham e Estella; a sra. Havisham estava sentada num sofá perto da lareira, e Estella numa almofada a seus pés. Estella fazia tricô, enquanto a outra assistia. As duas levantaram a vista quando entrei, e ambas perceberam que eu estava diferente. Foi o que concluí com base no olhar que elas trocaram. “E que ventos”, disse a sra. Havisham, “te trazem aqui, Pip?” Embora ela olhasse fixamente para mim, percebi que estava um tanto constrangida. Estella, parando de tricotar por um instante e olhando para mim, e em seguida retomando o trabalho, deu-me a impressão, com base no movimento de seus dedos, uma impressão tão nítida como se ela estivesse usando o alfabeto dos surdos-mudos, de que percebera que eu havia descoberto a identidade real de meu benfeitor. “Senhora Havisham”, comecei, “fui ontem a Richmond para falar com Estella, e ao saber que algum vento a trouxera aqui, vim para cá.” Como a sra. Havisham fizesse sinal pela terceira ou quarta vez para que eu me sentasse, escolhi a cadeira da penteadeira, que eu vira ocupada por ela tantas vezes. Com tantas ruínas a meus pés e a meu redor, naquele dia o lugar me parecia bem adequado a mim. “O que eu tinha a dizer a Estella, senhora Havisham, vou dizer à senhora e a ela, daqui a pouco. Não vai surpreendê-las, nem desagradá-las. Sou tão infeliz quanto vocês duas sempre quiseram que eu fosse.” A sra. Havisham continuava a olhar fixamente para mim. Eu percebia, pelo movimento de seus dedos enquanto trabalhava, que Estella prestava atenção em minhas palavras, porém ela não levantou a vista. “Descobri quem é meu protetor. Não foi uma descoberta feliz, e não deve aumentar minha reputação, condição social, fortuna, nada. Tenho motivos para não dizer mais nada a esse respeito. Não se trata de um segredo meu, e sim de outra pessoa.” Como permaneci calado por algum tempo, olhando para Estella e pensando em como prosseguir, a sra. Havisham repetiu: “Não se trata de um segredo seu, e sim de outra pessoa. Sim?”. “Quando a senhora me chamou aqui pela primeira vez, no tempo em que eu morava lá na aldeia — aldeia essa da qual eu jamais devia ter saído — imagino que vim aqui tal como poderia ter sido qualquer outro menino, como uma espécie de criado, para atender a uma veleidade ou um capricho, e ser pago por isso, não foi?” “Sim, Pip”, respondeu a sra. Havisham, balançando a cabeça; “foi isso mesmo.” “E o senhor Jaggers…” “O senhor Jaggers”, disse a sra. Havisham, completando minha frase num tom de firmeza, “não teve nada a ver com isso, e não sabia de nada. O fato de que ele é meu advogado, e também é do teu protetor, é uma coincidência. Ele oferece seus serviços profissionais a muitas outras pessoas, de modo que se trata de uma coincidência perfeitamente razoável. Seja como for, ela aconteceu, e não foi obra de ninguém.” Qualquer um poderia ver naquele rosto envelhecido que nada estava sendo ocultado nem disfarçado, até aquele momento. “Mas quando cheguei à conclusão errada, na qual persisti por tanto tempo, a senhora deixou que eu persistisse no erro?”, perguntei. “Sim”, ela respondeu, mais uma vez balançando a cabeça, “deixei.” “Isso foi um ato de bondade?” “Quem sou eu”, exclamou a sra. Havisham, batendo com a bengala no chão e explodindo de raiva de modo tão súbito que Estella olhou para ela atônita, “quem sou eu, pelo amor de Deus, para cometer atos de bondade?” Essa queixa era uma confissão de fraqueza, e não fora a minha intenção obrigá-la a fazê-la. Foi o que eu disse, quando ela mergulhou no mutismo depois dessa explosão. “Ora, ora!”, disse ela. “O que mais?” “Fui muito bem pago pelo trabalho que fiz aqui”, prossegui, para apaziguá-la, “pagando o meu aprendizado, e só fiz essas perguntas para meu próprio esclarecimento. O que vou perguntar agora tem outro objetivo (mais desinteressado, espero). Ao deixar que eu persistisse no erro, senhora Havisham, a senhora queria punir — intrigar — talvez a senhora queira escolher a palavra que melhor exprima a sua intenção, sem ofensa — seus parentes interesseiros?” “Sim. Mas era o que eles mesmos queriam! E tu também. Com a vida que tive, porque haveria eu de pedir a eles, ou a ti, que não vissem a situação dessa maneira? Vocês prepararam suas próprias armadilhas. Não eu.” Esperei que ela se aquietasse — pois também essa fala foi dita numa explosão súbita de raiva — e prossegui. “Tenho convivido muito com uma família aparentada com a senhora, desde que fui para Londres. Sei que estavam sinceramente iludidos, tanto quanto eu. E seria falsidade e baixeza da minha parte se eu não lhe dissesse, seja isso aceitável ou não para a senhora, e quer a senhora acredite em mim, quer não, que a senhora está sendo profundamente injusta com o senhor Matthew Pocket e com o filho dele, Herbert, se imagina que eles não são pessoas generosas, honestas, francas e incapazes de qualquer ato interesseiro ou mesquinho.” “Eles são teus amigos”, retrucou a sra. Havisham. “Eles se tornaram meus amigos”, respondi, “embora acreditassem que eu havia caído nas suas boas graças no lugar deles, enquanto Sarah Pocket, a senhora Georgina e a senhora Camilla não eram minhas amigas, creio eu.” Esse contraste entre os dois grupos, tive o prazer de observar, pareceu favorecer meus amigos junto à sra. Havisham. Ela me dirigiu um olhar penetrante por algum tempo, e depois disse, em voz mais baixa: “O que queres para eles?” “Apenas”, respondi, “que a senhora não os confunda com os outros. Eles podem ter o mesmo sangue, mas — creia-me — não têm a mesma natureza.” Ainda me olhando de modo penetrante, a sra. Havisham repetiu: “O que queres para eles?” “Não sou tão astuto, como a senhora pode ver”, respondi, percebendo que corava um pouco, “a ponto de conseguir esconder, mesmo que fosse essa minha intenção, que quero alguma coisa para eles, sim. Se a senhora pudesse dispor de uma certa quantia para dar a meu amigo Herbert um auxílio que lhe valerá pelo resto da vida, mas que, dadas as circunstâncias, terá de ser entregue a ele sem seu conhecimento, posso lhe mostrar como fazer isso.” “Por que sem seu conhecimento?”, ela indagou, apoiando as mãos na bengala para poder me olhar de modo ainda mais atento. “Porque fui eu”, respondi, “que comecei a ajudá-lo há mais de dois anos, sem que ele soubesse, e não quero que ele descubra esse fato. Por que motivo não posso continuar a ajudá-lo, isso não posso dizer. Faz parte do segredo que é de outra pessoa e não meu.” Pouco a pouco ela desviou o olhar de mim e fixou-o no fogo. Depois de contemplá-lo por um tempo que, naquele silêncio e à luz das velas que se consumiam gradualmente, pareceu ser muito longo, ela voltou a si quando algumas brasas desabaram na lareira, e voltou a olhar para mim — de início, com um olhar vago — e depois com uma atenção cada vez mais concentrada. Nesse ínterim, Estella continuava a tricotar. Tendo fixado a atenção em mim, a sra. Havisham disse, falando como se nossa conversa não tivesse sido interrompida: “O que mais?” “Estella”, disse eu, voltando-me para ela agora, e tentando conter o tremor da voz, “sabes que te amo. Sabes que te amo muito, há muito tempo.” Ela levantou os olhos para meu rosto, quando me ouviu dirigir-me a ela, e seus dedos continuaram a trabalhar, enquanto ela me contemplava com uma expressão inalterada. Vi que o olhar da sra. Havisham se desviou de mim para ela, e dela para mim. “Eu já devia ter-te dito isso antes, mas não o fiz por estar equivocado. Meu erro levou-me a nutrir esperanças de que a senhora Havisham quisesse nos destinar um ao outro. Por achar que não tinhas escolha quanto a isso, por assim dizer, evitei confessar meu amor. Mas agora tenho que fazê-lo.” Mantendo a fisionomia inalterada, e com os dedos ainda trabalhando, Estella fez que não com a cabeça. “Eu sei”, respondi a seu gesto; “eu sei. Não tenho esperança de que algum dia possa chamar-te minha, Estella. Não sei o que vai acontecer comigo no futuro próximo, se vou ficar muito pobre, para onde vou. Mas o fato é que eu te amo. Amo-te desde que te vi pela primeira vez nesta casa.” Olhando para mim com perfeita indiferença e com os dedos ocupados, ela voltou a sacudir a cabeça. “Teria sido crueldade da parte da senhora Havisham, uma crueldade horrível, aproveitar-se da suscetibilidade de um menino pobre, e torturar-me todos esses anos com uma esperança vã e uma causa perdida, se ela tivesse refletido sobre a gravidade do que estava fazendo. Mas creio que ela não o fez. Creio que, tendo de suportar seu próprio sofrimento, ela esqueceu-se do meu, Estella.” Vi que a sra. Havisham levou a mão ao coração e a manteve ali, e que continuava olhando ora para Estella, ora para mim. “Creio”, disse Estella, muito plácida, “que há sentimentos, fantasias — não sei que nome lhes dar — que não consigo compreender. Quando dizes que me amas, entendo o significado de tuas palavras enquanto tais, mas só isso. Não dizes nada a meu coração, não tocas nada ali. O que dizes não me importa nem um pouco. Tentei alertar-te quanto a isso; não é verdade?” Respondi, profundamente contrito: “É”. “Pois é. Mas tu não ouviste meus alertas, pois pensavas que eu não falava a sério. Não é verdade?” “Eu pensava, e esperava, que não estivesses falando a sério. Uma moça tão jovem, inexperiente, e bela, Estella! Sem dúvida, isso não é algo natural.” “É natural para mim”, ela retrucou. E em seguida acrescentou, enfatizando suas palavras: “É natural para a pessoa que me tornei. Ao te dizer essas coisas que te digo, traço uma diferença profunda entre ti e todas as outras pessoas. Mais do que isso não posso fazer”. “Não é verdade”, argumentei, “que Bentley Drummle está aqui, à tua procura?” “É a pura verdade”, respondeu ela, referindo-se a Drummle com a indiferença nascida do total desprezo. “Não é verdade que tu lhe alimentas as esperanças, passeias a cavalo com ele, e que ele vem almoçar contigo hoje mesmo?” Ela apareceu um pouco surpresa ao ver que eu sabia essas coisas, porém mais uma vez respondeu: “É a pura verdade”. “Não é possível que o ames, Estella!” Seus dedos se imobilizaram pela primeira vez, e ela disse, num tom de irritação: “Mas o que foi que acabei de te dizer? Continuas a pensar, apesar do que eu disse, que não estou falando a sério?”. “Não é possível que vás casar-te com ele, Estella?” Estella olhou para a sra. Havisham, e por um momento ficou a pensar, com a costura nas mãos. Então respondeu: “Por que não te dizer logo a verdade? Vou casar-me com ele, sim”. Abaixei o rosto e cobri-o com as mãos, mas consegui controlar-me melhor do que eu poderia imaginar, levando-se em conta a agonia que suas palavras me causaram. Quando voltei a levantar o rosto, a expressão da sra. Havisham era tão terrível que me causou forte impressão, embora eu estivesse tão perturbado e afobado. “Estella, minha querida, minha querida Estella, não deixes que a senhora Havisham a leve a dar esse passo fatal. Recusa-me em caráter definitivo — é isso que fizeste, sei muito bem disso — mas guarda-te para um homem mais merecedor de ti que Drummle. A senhora Havisham entrega-te a ele como a maior punição e ofensa que pode ser imposta aos muitos homens melhores que ele que te admiram, e aos poucos que te amam de verdade. Entre esses poucos, pode haver um que te ame tanto, ainda que não há tanto tempo, quanto eu. Escolhe esse homem, que vou poder suportá-lo melhor, para teu próprio bem!” Meu tom grave despertou nela uma sensação de espanto que talvez a fizesse sentir compaixão, se lhe fosse possível apreender o sentido do que eu lhe dizia. “Vou casar-me com ele”, ela repetiu, com uma voz mais suave. “Os preparativos para o casamento estão em andamento, e a cerimônia será realizada em breve. Por que mencionas minha mãe adotiva de forma tão injuriosa? A decisão é minha.” “A decisão é tua, Estella? A decisão de se jogar nos braços de um brutamontes?” “Em que braços devo então me jogar?”, ela retorquiu, com um sorriso. “Nos de um homem que em pouco tempo perceberia (se é que as pessoas sentem mesmo tais coisas) que eu não sentia nada por ele? Ora! A coisa está decidida. Vai ser bastante bom para mim, e também para ele. Quanto ao que dizes sobre a senhora Havisham ter me levado a dar isso que chamas de passo fatal, por ela eu haveria de esperar mais, e não me casar agora; mas estou cansada da vida que tenho levado, que para mim tem muito poucos atrativos, e estou disposta a mudar de vida. Não digas mais nada. Jamais haveremos de nos entender.” “Um brutamontes mesquinho, e ainda por cima um boçal!”, insisti, em desespero. “Não se preocupe: não vou fazê-lo feliz”, disse Estella; “esse perigo não existe. Ora! Dá-me tua mão, e vamos nos despedir, menino — ou homem — sonhador.” “Ah, Estella!”, repliquei, enquanto minhas lágrimas amargas jorravam em sua mão, por mais que eu as tentasse refrear, “mesmo se eu permanecesse na Inglaterra e pudesse manter a cabeça erguida, como poderia eu ver-te casada com Drummle?” “Bobagem”, ela respondeu, “Bobagem. Isso há de passar logo.” “Nunca, Estella!” “Hás de te esquecer de mim em uma semana.” “Esquecer-me de ti! Tu és parte da minha existência, parte de mim mesmo. Estás presente em cada linha que li, desde que cheguei aqui pela primeira vez, um menino grosseiro cujo pobre coração tu machucaste já naquele dia. Estás presente em toda paisagem que vi desde então — no rio, nas velas dos navios, nos charcos, nas nuvens, na luz, na escuridão, no vento, no bosque, no mar, nas ruas. És a concretização de todas as fantasias belas que minha mente já conheceu. As pedras de que são feitos os mais sólidos prédios de Londres não são mais reais, nem mais impossíveis de ser deslocadas por tuas mãos, do que tua presença e tua influência sobre mim, lá e em toda parte, no passado e no futuro. Estella, até a última hora de minha vida, tu hás de ser uma parte de meu caráter, do pouco que há de bom em mim, e do que há de mau. Mas neste momento de separação só te associo ao que há de bom, e sempre hei de me apegar a isso com fidelidade, pois certamente tu me fizeste muito mais bem do que mal, por mais intensa que seja a minha dor agora. Que Deus te abençoe, que Deus te perdoe!” Em que êxtase de dor consegui arrancar de mim essas palavras descosidas, não sei. Esse galimatias brotou no meu íntimo, como sangue de uma ferida interna, e saiu num jorro. Beijei a mão de Estella por alguns instantes, e assim me separei dela. Mas depois lembrei-me — e pouco depois a lembrança me veio com mais razão ainda — que enquanto Estella me olhava apenas com espanto e incredulidade, a figura espectral da sra. Havisham, a mão ainda posta no peito, parecia transfigurada, num esgar terrível de piedade e remorso. Tudo feito, tudo findo! Tantas coisas estavam feitas e findas que quando saí pelo portão à luz do dia me pareceu ter um matiz mais escuro do que tivera no momento em que eu entrara. Por algum tempo, escondi-me em becos e travessas remotas, e depois resolvi seguir a pé até Londres.1 Pois àquela altura eu havia me convencido de que não conseguiria voltar à estalagem e encontrar Drummle lá; que não suportaria ter de falar com alguém na diligência; que a melhor coisa que eu podia fazer era extenuar-me ao máximo. Já passava de meia-noite quando atravessei a ponte London. Seguindo a rede estreita e intrincada das ruas que, naquele tempo, seguiam para o oeste perto da margem de Middlesex do Tâmisa, meu acesso mais próximo ao Temple ficava bem perto do rio, passando por Whitefriars. Não me esperavam senão para o dia seguinte, mas eu levava minhas chaves, e se Herbert já estivesse recolhido eu poderia deitar-me sem incomodá-lo. Como era raro eu entrar pelo portão de Whitefriars depois da hora em que fechavam o Temple, e como eu estava muito enlameado e cansado, não me importei de constatar que o porteiro noturno me examinou com muita atenção ao abrir uma nesga de portão para que eu entrasse. Para lhe refrescar a memória, identifiquei-me. “Eu não estava bem certo, senhor, mas era quem eu pensava ser. Tenho um bilhete para o senhor. O mensageiro que o trouxe pediu-lhe que fizesse o obséquio de lê-lo à luz de minha lanterna.” Muito espantado com esse pedido, peguei o bilhete. Era dirigido ao sr. Philip Pip, e acima do cabeçalho liam-se as palavras: “por favor leia isto aqui”. Abri-o, enquanto o porteiro levantava a lanterna, e li, na letra de Wemmick: “não vá para casa.” 6 Afastando-me do portão do Temple tão logo li a mensagem, fui nem sei como até Fleet-street, lá aluguei um fiacre retardatário e tomei a direção do Hummuns1 em Covent Garden. Naquela época, podia-se arranjar uma cama lá a qualquer hora da noite; o porteiro, abrindo para mim o portão, acendeu a vela que era a próxima da fila em sua prateleira e levou-me diretamente até o quarto que era o próximo da lista. Era uma espécie de socavão nos fundos do térreo, onde uma monstruosa e despótica cama de quatro colunas ocupava todo o espaço, com um de seus pés arbitrários na lareira e outro na porta, relegando o miserável lavabo a um canto apertado, como se exercendo o direito divino dos reis. Eu pedira uma lamparina, e o porteiro me trouxe, antes de recolher-se, uma tradicional vela de junco daqueles tempos virtuosos — um objeto que era como o fantasma de uma bengala, capaz de partir-se imediatamente se fosse tocado, no qual não se podia acender coisa alguma, e que era colocado numa espécie de solitária no fundo de uma torre de lata alta, cheia de furos redondos que projetavam nas paredes um padrão luminoso capaz de manter qualquer um acordado. Quando me deitei, com os pés doídos, exausto e infeliz, constatei que era tão impossível fechar meus olhos quanto seria fechar os olhos daquele Argos insensato.2 E assim, na escuridão e no silêncio da noite, ficamos um a olhar para o outro. Que noite terrível! Noite de angústia e sofrimento, interminável! Havia no quarto um cheiro nada hospitaleiro de fuligem fria e poeira quente; e, quando eu olhava para os cantos do dossel da cama, ficava a imaginar quantas moscasvarejeiras do açougue, e lacraias dos mercados, e larvas do campo deveriam estar repousando ali, à espera do próximo verão. Isso me fez pensar se às vezes elas não cairiam lá do alto, e então comecei a imaginar que sentia uns toques leves no rosto — uma ideia desagradável, que me fez imaginar outras presenças ainda mais asquerosas, atrás de mim. Depois de permanecer algum tempo deitado em vigília, aquelas vozes extraordinárias que abundam no silêncio começaram a se fazer ouvir. O armário cochichava, a lareira suspirava, o pequeno lavabo estalava, e uma corda de violão de vez em quando soava dentro da cômoda. Mais ou menos ao mesmo tempo, os olhos projetados na parede assumiram uma nova expressão, e em cada um daqueles círculos luminosos eu via escritas estas palavras: “não vá para casa”. Quaisquer que fossem as outras fantasias noturnas e os outros ruídos noturnos que me assaltavam, nada atenuava aquele não vá para casa. As palavras se insinuavam em todos os meus pensamentos, tal como faria uma dor física. Não muito tempo antes, eu lera nos jornais que um cavalheiro desconhecido chegara à noite ao Hummuns, deitara-se e dera fim à própria vida, sendo encontrado na manhã seguinte imerso em sangue. Ocorreu-me a ideia de que ele teria ocupado aquele mesmo socavão em que eu estava, e levantei-me da cama para verificar se não havia manchas de sangue a meu redor; então abri a porta e olhei para o corredor, animando-me com a companhia de uma luz longínqua, perto da qual, eu sabia, o porteiro estava cochilando. O tempo todo, porém, perguntas como: Por que não podia eu ir para casa? O que teria acontecido lá em casa? Quando eu poderia voltar para lá? E Provis estaria em segurança? me ocupavam a mente de tal modo que era de se esperar que não coubesse mais nenhum pensamento dentro dela. Mesmo quando eu pensava em Estella e lembrava que nos havíamos despedido pela última vez naquele dia, rememorando todas as circunstâncias de nossa despedida, e a aparência dela, e seu tom de voz, e os movimentos de seus dedos enquanto ela tricotava — mesmo nesses momentos eu continuava a repetir incessantemente: não vá para casa. Quando por fim adormeci, de pura exaustão mental e física, a frase transformou-se num verbo imenso e sombrio que eu era forçado a conjugar. Modo imperativo, tempo presente: não vás para casa, que ele não vá para casa, que nós não vamos para casa, que vós não vades para casa, que eles não vão para casa. Então, potencialmente: não posso ir para casa; não devo ir para casa; não quero ir para casa; até sentir que estava enlouquecendo, e, a cabeça girando sobre o travesseiro, eu abria os olhos e voltava a ver aqueles círculos de luz a me olharem nas paredes. Eu pedira que me despertassem às sete horas, pois estava claro para mim que eu devia falar com Wemmick antes de procurar qualquer outra pessoa, e estava igualmente claro que apenas os seus sentimentos de Walworth deveriam ser consultados. Foi um alívio sair daquele quarto onde eu passara uma noite tão terrível, e não foi necessário que batessem à minha porta mais de uma vez para que eu me levantasse daquela cama intranquila. As ameias do castelo surgiram diante de meus olhos às oito horas. Como por acaso a criadinha estava entrando na fortaleza naquele momento com dois pãezinhos quentes, passei pelo portão e pela ponte levadiça acompanhado por ela, e assim cheguei sem ser anunciado à presença de Wemmick, no momento em que ele preparava chá para si próprio e para o idoso. Uma porta aberta me concedeu uma visão do idoso em sua cama. “Olá, senhor Pip!”, saudou-me Wemmick. “Então o senhor voltou para casa, não?” “Voltei, sim”, respondi, “mas não entrei nela.” “Muito bem”, disse ele, esfregando as mãos. “Deixei um recado para o senhor em cada um dos portões do Temple, para não haver erro. Em qual portão o senhor chegou?” Respondi-lhe a pergunta. “Vou passar nos outros hoje e destruir os bilhetes”, disse Wemmick; “é uma boa regra nunca deixar provas documentais, se possível, porque nunca se sabe quando alguém vai usá-las. Vou tomar uma liberdade. O senhor se incomodaria de assar esta linguiça para o idoso?” Respondi que seria um prazer. “Então podes cuidar dos teus afazeres, Mary Anne”, disse ele à criadinha; “e com isso ficamos aqui só nós, não é, senhor Pip?”, acrescentou, com uma piscadela, enquanto ela se afastava. Agradeci-lhe a amizade e a cautela, e nossa conversa prosseguiu em voz baixa, enquanto eu assava a linguiça do idoso e ele passava manteiga no pão do idoso. “Mas sim, senhor Pip”, disse Wemmick, “nós dois nos entendemos. Estamos falando em caráter privado e pessoal, e estivemos envolvidos numa transação confidencial ontem. Os sentimentos oficiais são uma coisa. Nós somos extraoficiais.” Assenti cordialmente. Estava tão nervoso que cheguei a acender a linguiça do idoso como se fosse um archote, e fui obrigado a soprá-la. “Ouvi dizer por acaso, ontem de manhã”, disse Wemmick, “estando eu num certo lugar onde uma vez o levei — mesmo estando aqui só nós dois, não vale a pena mencionar nomes quando não é estritamente necessário…” “Não vale a pena, não”, concordei. “Compreendo.” “Pois lá ouvi dizer, por acaso, ontem de manhã”, disse Wemmick, “que uma certa pessoa não desprovida de vínculos com as colônias, e não de todo desprovida de valores portáteis… não sei exatamente de quem se trata de fato… não vamos dar nome a esta pessoa…” “Não é preciso”, concordei. “… causou certo rebuliço em certa parte do mundo aonde muita gente vai, nem sempre por vontade própria, e não sem levar o governo a incorrer em certas despesas…” Observando o rosto de Wemmick, fiz da linguiça do idoso um verdadeiro fogo de artifício, o que teve o efeito de desconcentrar em muito tanto a minha atenção quanto a dele, pelo qual pedi desculpas. “… ao desaparecer do tal lugar, e nunca mais dar notícias a ninguém. A partir do quê”, prosseguiu Wemmick, “fizeram-se conjeturas e elaboraram-se teorias. Soube também que seus aposentos em Garden-court, no Temple, haviam estado sob vigia, e talvez voltassem a ser vigiados.” “Por quem?”, perguntei. “Melhor não entrar nisso”, disse Wemmick, esquivo, “pois pode entrar em choque com minhas responsabilidades oficiais. Foi o que ouvi dizer, como já ouvi dizer outras coisas curiosas no mesmo lugar em outros momentos. Não estou me fundando em informações que tenha recebido. Ouvi dizer.” Enquanto falava, tomou-me das mãos o garfo em que estava espetada a linguiça e dispôs o desjejum do idoso numa pequena bandeja. Antes de colocá-la diante dele, foi até seu quarto com um guardanapo branco limpo e amarrou-o sob o queixo do ancião, sentou-o na cama e pôs a touca que ele usava de um lado da cabeça, dando-lhe uma aparência bem jovial. Em seguida, pôs a bandeja à sua frente com muito cuidado, dizendo: “O senhor está bem, não está, pai idoso?”. E o alegre ancião respondeu: “Muito bem, John, meu rapaz, muito bem!”. Como parecia haver um acordo tácito no sentido de que o idoso não estava apresentável, e, portanto, devia ser considerado invisível, fingi não ter nenhum conhecimento dessas atividades. “Isso de vigiarem meus aposentos (coisa que já tive motivo para suspeitar)”, disse eu a Wemmick quando ele voltou, “está ligado à pessoa a quem o senhor aludiu, não está?” Wemmick fez uma cara muito séria. “Eu não poderia dizer tal coisa, com base no que sei. Isto é, eu não poderia dizer que sim de saída. Mas ou há uma ligação, ou haverá, ou há um grande perigo de que possa vir a haver.” Percebendo que sua lealdade para com Little Britain impedia-o de dizer tudo que sabia, e cônscio, com muita gratidão, do quanto ele se expunha para dizer o que dizia, eu não podia pressioná-lo. Porém, após meditar um pouco olhando para o fogo, disse-lhe que gostaria de lhe fazer uma pergunta, a qual ele poderia responder ou não, conforme julgasse melhor, e que estava certo de que sua decisão seria acertada. Ele parou de comer e, cruzando os braços, beliscando as mangas da camisa (para ele, o máximo do conforto que se permitia em casa era despir o paletó), fez que sim com a cabeça, para que eu lhe dirigisse minha pergunta. “O senhor ouviu falar de um homem de má índole, cujo nome verdadeiro é Compey son?” Ele respondeu com outro aceno de cabeça. “Ele está vivo?” Outro aceno. “Está em Londres?” Ele fez que sim mais uma vez, apertando bem sua caixa de correio, acenou pela última vez e voltou a comer. “Bem”, disse Wemmick, “terminada a seção de perguntas”, enfatizando e repetindo esse ponto para minha orientação, “fiz o que fiz depois de ouvir o que ouvi. Fui até Garden-court para conversar com o senhor; não o encontrando lá, fui à firma de Clarriker para falar com o senhor Herbert.” “E o senhor o encontrou?”, perguntei, com muita ansiedade. “Encontrei-o, e sem mencionar nenhum nome nem entrar em nenhum detalhe, dei-lhe a entender que se ele soubesse de alguém — fulano, beltrano ou sicrano — que estivesse nos seus aposentos, ou na vizinhança, era bom ele tirar fulano, beltrano ou sicrano de lá enquanto o senhor estivesse fora.” “Ele ficou muito perplexo a respeito do que fazer?” “Ficou muito perplexo a respeito do que fazer; mais ainda quando eu lhe disse que, na minha opinião, não era seguro tentar levar fulano, beltrano ou sicrano para muito longe no momento. Senhor Pip, vou lhe dizer uma coisa. Nas atuais circunstâncias, o melhor lugar para se estar é uma grande cidade, quando já se está nela. Não saia da toca tão cedo. Fique onde está. Espere até as coisas ficarem mais tranquilas, antes de partir para outros ares, até mesmo ares estrangeiros.” Agradeci o conselho valioso e perguntei-lhe o que Herbert fizera. “O senhor Herbert”, disse Wemmick, “depois de ficar estupefato por meia hora, elaborou um plano. Contou-me um segredo — que está cortejando uma moça cujo papai, como o senhor certamente há de saber, é inválido. Este papai, que já foi tesoureiro de navios, vive deitado numa cama diante de uma janela arredondada pela qual ele pode ver os navios subindo e descendo o rio. O senhor conhece a moça, decerto?” “Não pessoalmente”, respondi. A verdade é que ela me via como uma má companhia para Herbert, pois eu o levava a gastar muito dinheiro, e que, na primeira vez em que Herbert se propôs a apresentar-me a ela, a moça recebeu a proposta com tão pouco entusiasmo que Herbert se viu obrigado a me confidenciar a situação, para que eu esperasse um pouco até vir a conhecê-la. Quando comecei a ajudar Herbert sem seu conhecimento, consegui suportar essa situação com bom humor; ele e sua prometida, por sua vez, naturalmente não estavam muito sequiosos de introduzir a presença de uma terceira pessoa em seus encontros; e assim, embora ele me garantisse que eu subira no conceito de Clara, e embora eu e ela há muito tempo trocássemos saudações em caráter regular através de Herbert, ainda não a vira nenhuma vez. Porém, não importunei Wemmick com tais detalhes. “Como a casa da janela arredondada”, disse Wemmick, “fica à beira-rio, perto do Pool, entre Limehouse e Greenwich, e está aos cuidados, pelo que sei, de uma viúva muito respeitável, a qual tem um andar superior que pretende alugar, o senhor Herbert me perguntou se eu achava que seria boa ideia instalar lá por uns tempos fulano, beltrano ou sicrano. Pois respondi que me parecia uma ótima ideia, por três motivos, que vou lhe expor. Em primeiro lugar: fica bem longe dos lugares frequentados pelo senhor, e também das ruas mais movimentadas, grandes e pequenas. Em segundo lugar: sem ter de ir lá pessoalmente, o senhor poderia ficar sabendo se fulano, beltrano ou sicrano estava em segurança, através do senhor Herbert. Em terceiro lugar: depois de algum tempo, quando tal fosse oportuno, caso o senhor quisesse pôr fulano, beltrano ou sicrano a bordo de um navio estrangeiro, ele já estaria bem localizado para tal.” Muito confortado por essas considerações, agradeci Wemmick vez após vez, e pedi-lhe encarecidamente que prosseguisse. “Pois bem! O senhor Herbert entregou-se à tarefa com vontade, e às nove da noite de ontem abrigou fulano, beltrano ou sicrano — seja lá quem for — eu e o senhor não queremos saber — com muito êxito. Na sua antiga moradia, foi-lhe dito que sua presença era requerida em Dover, e de fato ele foi levado pela estrada de Dover, e de lá foi encaminhado à nova morada. Ora, eis mais uma vantagem de tudo isso: as coisas foram feitas sem a sua presença, e se alguém vier a se interessar pelas suas atividades, virá à tona que o senhor estava longe daqui, ocupado com outros assuntos. Isso afasta as suspeitas e as confunde; pelo mesmo motivo, recomendei-lhe que, mesmo se voltasse para casa ontem à noite, não deveria entrar nela. A coisa fica ainda mais confusa, se o que se quer é confundir.” Wemmick, tendo terminado seu desjejum, neste momento consultou o relógio e começou a vestir o casaco. “E agora, senhor Pip”, disse ele, ainda com as mãos dentro das mangas, “creio que fiz o máximo que posso fazer; mas, se por acaso puder fazer mais — de um ponto de vista de Walworth, e em caráter estritamente privado e pessoal —, eu o farei com prazer. Eis o endereço. Não há problema algum se o senhor quiser ir lá hoje à noite para ver com seus próprios olhos se fulano, beltrano ou sicrano está bem, antes de voltar para casa — o que é mais um motivo para o senhor não ter voltado ontem. Mas depois de ir para casa, não volte aqui. O senhor é muito bem-vindo, é claro, senhor Pip”; suas mãos agora já estavam fora das mangas, e eu estava a apertá-las; “e deixe-me lhe dizer mais uma coisa importante.” Pôs as mãos nos meus ombros e acrescentou, num cochicho sério: “Aproveite esta noite para apossar-se dos valores portáteis dele. O senhor não sabe o que vai acontecer com ele. Não deixe que nada aconteça com os valores portáteis dele”. Não tendo qualquer esperança de fazer com que Wemmick compreendesse de que modo eu encarava essa questão, abstive-me de tentar fazê-lo. “Está na minha hora”, disse Wemmick, “e tenho de sair. Se o senhor não tiver nada de mais urgente a fazer do que ficar aqui até anoitecer, é o que o aconselho que faça. O senhor parece muito preocupado, e lhe faria bem passar um dia absolutamente tranquilo com o idoso — ele deve se levantar em breve — e provar um pouco do… o senhor se lembra do porco?” “Claro”, respondi. “Pois bem, provar um pouco dele. Aquela linguiça que o senhor assou era dele, e ele era sob todos os aspectos um porco de primeira. Prove um pouco, mesmo que seja apenas por se tratar de um velho conhecido seu. Até logo, pai idoso!”, gritou, alegre. “Muito bem, John; muito bem, meu rapaz!”, veio a vozinha do velho do quarto. Logo em seguida adormeci diante da lareira de Wemmick, e eu e o idoso aproveitamos um a companhia do outro cochilando diante do fogo mais ou menos o dia todo. Comemos lombo de porco no almoço, e verduras da horta da propriedade, e eu acenava com a cabeça para o idoso com boa intenção sempre que não conseguia fazê-lo com sono. Quando já estava bem escuro, deixei o idoso preparando o fogo para fazer torradas; e com base no número de xícaras, bem como nos olhares que ele dirigia às duas pequenas portas na parede, inferi que a sra. Skiffins estava sendo esperada. 7 Já tinham dado as oito quando adentrei o ambiente impregnado do cheiro, não desagradável, de maravalhas e serragem dos estaleiros e fabricantes de mastros, remos e picadeiros. Toda aquela região beira-rio em torno do Pool,* a jusante da ponte London, era um território desconhecido para mim, e quando cheguei à margem do Tâmisa constatei que o lugar que procurava não ficava onde eu o supunha, e não era de modo algum fácil de achar. Chamava-se Mill Pond Bank, Chinks’s Basin; e a única orientação de que eu dispunha para chegar a Chinks’s Basin era a informação de que ficava perto da Old Green Copper Rope-Walk.1 Pouco importa saber os nomes dos navios que estavam em reparo no dique seco entre os quais me perdi, os navios velhos cujos cascos estavam sendo despedaçados, o lodo e limo e demais detritos trazidos pela maré, os estaleiros e demolidores de navios, as âncoras enferrujadas a afundar às cegas no chão após anos de abandono, as pilhas de barris e tábuas amontoados, as cordoarias que não eram a Old Green Copper. Depois de recuar algumas vezes antes de chegar a meu destino, e de ultrapassá-lo outras tantas vezes, inesperadamente, ao virar uma esquina, deparei com Mill Pond Bank. Era um lugar arejado, dadas as circunstâncias, onde o vento que vinha do rio tinha espaço para fazer a curva; havia duas ou três árvores, e também o toco de um moinho de vento, e a Old Green Copper Rope-Walk, cuja forma comprida e estreita pude divisar à luz da lua, uma série de estacas de madeira fincadas no chão que lembravam ancinhos gastos, que de tão velhos tivessem perdido a maior parte dos dentes. Escolhendo, dentre as poucas casas estranhas que havia em Mill Pond Bank, uma com fachada de madeira e três andares de janelas arredondadas, olhei para a placa na porta e li: senhora Whimple. Como era esse o nome que eu procurava, bati, e uma senhora idosa, de aparência agradável e próspera, veio atender. Foi, porém, imediatamente substituída por Herbert, que em silêncio me levou até a sala e fechou a porta. Era uma sensação curiosa ver esse rosto bem conhecido tão à vontade naquele cômodo e naquele bairro nada conhecidos; e dei por mim olhando para ele tal como olhava para a cristaleira no canto, as conchas sobre o console da lareira e as gravuras coloridas na parede, representando a morte do capitão Cook,2 o lançamento de um navio e sua majestade, o rei Jorge iii, vestido com trajes do cocheiro real — peruca, calções de couro e botas de cano comprido, no terraço do castelo de Windsor. “Está tudo bem, Handel”, disse Herbert, “e ele está plenamente satisfeito, ainda que ansioso para falar contigo. Minha querida Clara está com o pai; e se esperares que ela desça, vou apresentar-te a ela, e depois vamos lá em cima. — Isso é o pai dela.” Eu estava atentando para uns grunhidos assustadores que vinham do andar de cima, e provavelmente dera sinais disso com a expressão de meu rosto. “Lamento dizer que ele é um velho sem-vergonha”, disse Herbert, sorrindo, “mas nunca o vi. Não sentes o cheiro de rum? Ele não larga o copo.” “Rum?”, perguntei. “Isso mesmo”, respondeu Herbert, “e bem podes imaginar o efeito que tem sobre a gota dele. Além disso, ele insiste em guardar todas as provisões em seu quarto, e distribuí-las pessoalmente. Guarda-as em prateleiras em cima da cama, e faz questão de pesar tudo. Imagino que o quarto deve parecer um verdadeiro armazém.” Enquanto Herbert falava, os grunhidos foram crescendo até se transformarem num urro prolongado, que em seguida foi morrendo aos poucos. “Isso é o que dá”, explicou Herbert, “de ele insistir em cortar o queijo. Um homem com gota na mão direita — e no resto do corpo — tentando cortar um queijo Gloucester duplo só pode acabar se machucando.” Ao que parecia, ele se machucara bastante, pois soltou outro urro furioso. “Para a senhora Wimple, conseguir alugar o andar de cima para o Provis foi um golpe de sorte”, disse Herbert, “pois é claro que as pessoas, em geral, não suportam esse barulho. Lugar curioso, Handel, não é?” Era mesmo um lugar muito curioso, porém muito limpo e arrumado. “A senhora Wimple”, disse Herbert, quando fiz essa observação, “é uma excelente dona de casa, e realmente não sei o que faria a minha Clara sem a ajuda maternal dela. Pois a Clara não tem mãe, Handel, nem nenhum outro parente no mundo além do velho Gruffandgrim.”** “Esse não é o nome dele, não é, Herbert?” “Não, não”, ele respondeu; “é o apelido que lhe pus. Ele se chama senhor Barley. Mas que felicidade para o filho de meu pai e minha mãe amar uma moça que não tem parentes, e que jamais poderá se aborrecer, nem aborrecer os outros, por conta da família!” Herbert me contara em ocasiões anteriores, e agora me fez lembrar, que conheceu Clara Barley quando ela estava concluindo sua educação numa escola em Hammersmith, e que, ao ser chamada de volta para casa a fim de cuidar do pai, ela e ele haviam revelado o afeto que os unia à maternal sra. Whimple, a qual desde então o estimulava e regulava com bondade e discrição em quantidades iguais. Decidiu-se que nenhuma informação referente a assuntos amorosos poderia ser confidenciada ao velho Barley, por não ser ele capaz de compreender quaisquer assuntos de natureza mais psicológica que a gota, o rum e o fornecimento de víveres. Enquanto conversávamos em voz baixa, ao mesmo tempo que os grunhidos do velho Barley faziam vibrar a viga que cruzava o teto, abriu-se a porta da sala e entrou uma moça muito bonita, pequenina, de olhos negros, com cerca de vinte anos de idade, trazendo na mão uma cesta; carinhoso, Herbert logo encarregouse da cesta e apresentou-me a moça, ruborizada, dizendo: “Clara”. Era sem dúvida uma jovem encantadora, a qual bem podia ser uma fada cativa, que aquele ogro truculento, o velho Barley , obrigava a servi-lo. “Veja”, disse Herbert, mostrando-me a cesta, com um sorriso compassivo e terno depois que conversamos um pouco, “eis o jantar da pobre Clara, que lhe é entregue todas as noites. Eis a porção dela de pão, de queijo, e de rum — o qual sou eu que bebo. Eis o desjejum do senhor Barley de amanhã, a ser preparado. Duas costeletas de carneiro, três batatas, ervilha, um pouco de farinha, cinquenta gramas de manteiga, uma pitada de sal e toda esta quantidade de pimenta do reino. Tudo a ser cozinhado junto, e ingerido quente; imagino que deve fazer muito bem para a gota!” Havia algo de tão natural e cativante no olhar resignado que Clara dirigia a cada um desses ingredientes, à medida que Herbert os mencionava — e algo de tão confiante, amoroso e inocente, no modo recatado como ela aceitava o braço de Herbert que a estreitava — e algo de tão doce nela, algo que pedia proteção em Mill Pond Bank, perto de Chinks’s Basin e da Old Green Copper Rope-Walk, com os grunhidos do velho Barley fazendo a viga tremer — que eu não teria desfeito o noivado entre ela e Herbert nem por todo o dinheiro contido naquela carteira que eu jamais abrira. Eu estava a olhar para ela com prazer e admiração quando de repente os grunhidos se transformaram num urro outra vez, e ouviu-se um baque assustador, como se um gigante com perna de pau estivesse tentando furar o teto com a perna para chegar a nós. Ao ouvir isso, Clara disse a Herbert: “O papai está me chamando, querido!”, e saiu correndo. “Um velho rabugento e muito exigente!”, disse Herbert. “O que será que ele quer agora, Handel?” “Sei lá”, respondi. “Algo para beber?” “Isso mesmo!”, exclamou Herbert, como se eu tivesse feito uma adivinhação extraordinariamente arguta. “Ele guarda o grogue já preparado num barrilzinho sobre a mesa. Espera um pouco, que logo vais ouvir Clara levantandoo para que ele vá beber um pouco. — Lá vai ele!” Mais um urro, culminando com uma sacudidela prolongada. “Agora”, disse Herbert, quando se fez silêncio, “ele está bebendo. Agora”, quando os grunhidos recomeçaram a fazer a viga tremer, “ele deitou-se de novo!” Pouco depois, Clara voltou, e Herbert acompanhou-me até o andar de cima para vermos Provis. Quando passamos pela porta do quarto do sr. Barley, ouvimo-lo a murmurar com voz rouquenha, numa melodia que subia e descia como o vento, o refrão que se segue, no qual as bênçãos substituem palavras com sentido contrário.*** “Ó de bordo! Benditos os seus olhos, cá está o velho Bill Barley. Cá está o velho Bill Barley, benditos os seus olhos. Cá está o velho Bill Barley, deitado numa cama, por Deus. Deitado numa cama, feito um linguado morto à deriva, cá está o velho Bill Barley , benditos os seus olhos. Ó de bordo! Benditos sejam.” Com essa melodia consoladora, Herbert informou-me, o invisível Barley conversava com seus botões dia e noite sem parar; muitas vezes enquanto ainda era dia claro, estando, ao mesmo tempo, um de seus olhos colado a um telescópio que era levado a sua cama, para que ele pudesse vasculhar o rio. Em seus dois cômodos no andar superior do prédio, frescos e arejados, e onde o barulho do sr. Barley era menos intenso do que no térreo, encontrei Provis muito bem instalado. Ele não expressava nenhuma preocupação, e parecia não ser atormentado por nenhuma que valesse a pena mencionar, porém observei que algo nele havia amolecido — algo de indefinível, pois eu não seria capaz de dizer o quê, e posteriormente não consegui relembrar a sensação, quanto tentei fazê-lo; mas alguma coisa nele sem dúvida mudara. A oportunidade de reflexão que me dera aquele dia de descanso levara-me a tomar a firme decisão de não contar a Provis nada a respeito de Compey son. Pelo que eu sabia, o ódio que o outro lhe inspirava poderia levá-lo a ir a seu encalço e desse modo provocar sua própria destruição. Assim, quando Herbert e eu nos sentamos a seu lado diante da lareira, perguntei-lhe antes de mais nada se ele confiava no discernimento e nas fontes de informação de Wemmick. “Claro, claro, meu menino querido!”, ele respondeu, com um aceno circunspecto. “A gente do Jaggers sabe o que faz.” “Pois então, estive com o Wemmick”, disse eu, “e vim lhe transmitir as medidas de cautela que ele recomenda, e os conselhos que nos dá.” Foi o que fiz, de modo preciso, com a ressalva que mencionei ainda há pouco; e disse-lhe que Wemmick ouvira dizer, na prisão de Newgate (eu não sabia se o ouvira de policiais ou de prisioneiros), que alguma suspeita recaía sobre ele, e que meus aposentos estavam sendo vigiados; Wemmick recomendara que ele se mantivesse recluso por algum tempo, e eu me afastasse dele; relatei-lhe também o que Wemmick dissera a respeito de sua ida ao exterior. Acrescentei que, naturalmente, quando chegasse a hora, eu viajaria com ele, ou o seguiria logo depois, dependendo do que Wemmick julgasse mais seguro. Quanto ao que sucederia em seguida, não fiz nenhum comentário; na verdade, eu próprio não sabia o que haveria de acontecer, nem gostava de pensar no assunto, agora que via Provis em seu novo estado suavizado, correndo perigo por minha causa. Quanto a alterar meu modo de vida, de modo a aumentar minhas despesas, perguntei-lhe se não lhe parecia que, nas nossas atuais circunstâncias instáveis e difíceis, isso não seria ridículo, ou coisa pior ainda? Ele não tinha como discordar dessa avaliação; de fato, o tempo todo mostrou-se muito razoável. Sua volta à Inglaterra era uma aventura, observou, e sempre soubera que seria uma aventura. Não faria nada que tivesse o efeito de transformá-la numa aventura desesperada, e preocupava-se muito pouco com sua segurança quando estava tendo uma ajuda tão preciosa. Herbert, que até então estava a olhar para o fogo e a meditar, neste ponto observou que a sugestão de Wemmick lhe inspirara uma ideia a qual talvez valesse a pena considerar. “Nós dois somos bons remadores, Handel, e podemos levá-lo de barco quando chegar a hora. Não seria necessário alugar um barco nem contratar barqueiros; isso já removeria uma fonte de suspeitas, e sempre é bom diminuir suspeitas. Embora a estação do ano não seja a mais propícia, não achas que seria uma boa ideia se passasses agora mesmo a manter um barco no embarcadouro do Temple, e adquirisses o hábito de remar no rio? Uma vez que passas a fazê-lo habitualmente, ninguém repara mais. Vais remar vinte vezes ou cinquenta vezes, e aí não há nada de especial quando o fazes pela vigésima primeira, ou quinquagésima primeira.” Gostei da ideia, e Provis ficou entusiasmado com ela. Concordamos que deveria ser posta em prática, e que Provis não deveria reconhecer-nos se viéssemos a jusante da ponte London e passássemos por Mill Pond Bank. Combinamos também que ele deveria sempre baixar a corrediça do lado da sua janela que dava para o leste sempre que nos visse e tudo estivesse bem. Finda aquela reunião, e tudo tendo sido acordado, levantei-me para ir embora, dizendo a Herbert que era melhor eu e ele não irmos juntos para casa, e que eu sairia meia hora à frente dele. “Não me agrada deixá-lo aqui”, disse eu a Provis, “embora esteja certo de que aqui o senhor está mais protegido do que perto de mim. Adeus!” “Meu menino querido”, ele respondeu, apertando-me as mãos, “não sei quando voltaremos a nos ver, e não me agrada esse ‘adeus’. Diga ‘boa noite’!” “Boa noite! Herbert será nosso intermediário sempre, e quando chegar a hora pode estar certo de que eu estarei preparado. Boa noite, boa noite!” Julgamos melhor que ele ficasse em seus aposentos, e o deixamos no parapeito da escada junto à porta, segurando um lampião acima da grade da escada de modo a iluminá-la para nós. Olhando para trás e vendo Provis, lembrei-me da noite em que ele chegou, em que ocupávamos posições opostas às atuais, e pensei que naquela noite eu mal imaginava que meu coração estaria tenso e ansioso ao despedir-me dele como estava agora. O velho Barley estava a grunhir e praguejar quando voltamos a passar por sua porta, aparentemente sem ter feito nenhuma pausa e sem manifestar intenção de fazê-la. Chegando ao pé da escada, perguntei a Herbert se ele havia divulgado o nome Provis. Ele respondeu que não, absolutamente; o nome do inquilino era Campbell. Disse-me que tudo que se sabia na casa a respeito do sr. Campbell era que ele, Herbert, fora encarregado de cuidar do sr. Campbell, e tinha muito interesse em que ele fosse bem cuidado, e vivesse em recolhimento. Assim, quando entramos na sala onde a sra. Whimple e Clara estavam trabalhando, não fiz nenhum comentário sobre minhas próprias relações com o sr. Campbell. Depois que me despedi da mocinha bonita e delicada de olhos negros, e da mulher maternal que não deixara que um amor sincero diminuísse seu apoio honesto e solidário, tive a impressão de que Old Green Copper Rope-Walk se havia transformado num lugar bem diferente. O velho Barley era tão velho quanto o tempo, e praguejava como um batalhão inteiro, mas havia juventude, confiança e esperança suficientes em Chinks’s Basin para encher o lugar até transbordar. Em seguida, pensei em Estella, e na nossa despedida, e fui para casa numa tristeza profunda. Tudo no Temple estava tão tranquilo quanto sempre estivera. As janelas dos cômodos antes ocupados por Provis estavam escuras e silenciosas, e não havia nenhuma presença esquiva no Garden-court. Passei pela fonte duas ou três vezes antes de descer a escada que me levava a meus aposentos, e me vi completamente a sós. Herbert, que veio até minha cama quando chegou — pois me deitei logo que pus os pés em casa, desanimado e exausto —, me fez idêntico relato. Abrindo uma das janelas depois disso, olhou para a calçada enluarada e disse que estava tão vazia quanto uma catedral qualquer àquela hora. No dia seguinte fui arranjar um barco. Logo o fiz, e o barco foi levado até o embarcadouro do Temple, ficando num lugar aonde eu poderia chegar em um ou dois minutos. Então comecei a remar, como se para praticar o esporte: por vezes sozinho, por vezes com Herbert. Muitas vezes eu remava no frio, com chuva ou granizo, mas ninguém me dava muita atenção desde que essas minhas saídas se tornaram habituais. De início, eu não chegava nem mesmo à ponte Blackfriars; mas, à medida que a maré foi mudando, comecei a ir até a ponte London. Naquele tempo, ainda era a ponte velha,3 e quando a maré estava em determinadas condições formava-se uma correnteza turbulenta que dava má fama ao lugar. Mas eu sabia muito bem passar por baixo da ponte, depois que vira tal coisa ser feita, e assim comecei a remar por entre os navios do Pool, indo até Erith. A primeira vez que passei por Mill Pond Bank, eu e Herbert estávamos remando juntos; e tanto na ida quanto na volta vimos a corrediça voltada para o leste ser baixada. Herbert quase sempre ia lá no mínimo três vezes por semana, e nunca me trouxe notícias preocupantes. Mesmo assim, eu sabia que havia motivo para preocupação, e não conseguia me livrar da cisma de que estava sendo vigiado. Uma vez que se forme tal ideia, ela se torna uma obsessão; eu não saberia dizer quantas pessoas inocentes suspeitei que estavam a observar-me. Em suma, eu vivia temendo pelo homem imprudente que vivia escondido. Herbert por vezes me dissera que lhe era agradável pensar, quando se punha junto a uma de nossas janelas à noite, numa hora em que a maré estava baixando, que aquela água estava fluindo, com tudo que nela havia, em direção a Clara. Eu, porém, pensava com horror que o rio fluía em direção a Magwitch, e que todo e qualquer ponto negro em sua superfície poderia bem ser aqueles que o perseguiam, seguindo céleres, silenciosos, implacáveis, para capturá-lo. * Pool: trecho do rio Tâmisa compreendido entre a ponte London e o Cherry Garden Pier, onde há um grande número de embarcadouros. (n. t.) ** Gruffandgrim: gruff quer dizer “áspero, rude”; grim, “cruel, soturno”. (n. t.) *** uma palavra com sentido contrário: nos países de língua inglesa, no século xix, o verbo damn (amaldiçoar, maldizer) e seus derivados eram considerados termos indelicados demais para serem utilizados num romance. (n. t.) 8 Passaram-se algumas semanas sem que nada acontecesse. Esperávamos por Wemmick, e ele não dava nenhum sinal. Se eu jamais o tivesse visto fora de Little Britain, e jamais tivesse desfrutado o privilégio de ter uma relação pessoal com ele no castelo, talvez desconfiasse dele; porém, conhecendo-o como o conhecia, minha confiança era completa. Minha situação financeira começou a ficar preocupante, e mais de um credor veio fazer-me cobrança. Até eu comecei a sentir falta de dinheiro (isto é, dinheiro vivo no bolso), e por isso comecei a converter em dinheiro algumas joias de que abria mão com facilidade. Entretanto, estava decidido que seria uma desonestidade cruel aceitar mais dinheiro de meu protetor, dado o atual estado de incerteza de meus pensamentos e meus planos. Assim, eu lhe devolvera a carteira através de Herbert sem jamais tê-la aberto, para que ele próprio a guardasse, e sentia certa satisfação — se falsa ou verdadeira, eu próprio não sei dizer — ao pensar que não havia tirado proveito de sua generosidade desde que ele se revelara a mim. Com o passar do tempo, fui me convencendo cada vez mais de que Estella havia casado. Temendo uma confirmação, embora fosse apenas uma convicção minha, eu evitava os jornais, e implorava a Herbert (a quem eu confidenciara as circunstâncias de nosso último encontro) que jamais mencionasse o nome dela em minha presença. Por que motivo guardei este último farrapo miserável do manto de esperança que já se rasgara e fora entregue aos ventos, jamais saberei. Por que motivo o leitor cometeu uma incoerência semelhante no ano passado, no mês passado, na semana passada? Minha vida se tornara infeliz, e a ansiedade que me dominava acima de todas as outras, como uma montanha que se destaca da cordilheira, jamais sumia de vista. Não obstante, não surgiu nenhum motivo adicional para temores. Por mais que me levantasse de repente da cama assustado com a ideia de que ele poderia ter sido descoberto; por mais que ficasse escutando com ouvidos temerosos o passo de Herbert voltando à noite, temendo que estivesse mais apressado que de costume por trazer más notícias — o fato é que, apesar de tudo isso, e de tantas outras circunstâncias semelhantes, a vida seguia normal. Condenado à inação e a um estado constante de inquietude e suspense, eu saía para remar em meu barco e esperava, esperava, esperava, da melhor maneira de que era capaz. Por vezes a maré era tal que, quando eu já estava no meio do passeio, não me era mais possível voltar pelos arcos e por entre os esporões da velha ponte London; então deixava meu bote no embarcadouro perto da alfândega, para que depois ele fosse trazido até o Temple. Isso não era para mim um inconveniente, pois servia para fazer com que eu e meu barco nos tornássemos conhecidos entre os barqueiros da região. A partir de um desses incidentes surgiram dois encontros que agora me compete relatar. Uma tarde, já no final de fevereiro, cheguei ao embarcadouro à hora do pôr do sol. Eu havia ido até Greenwich na baixa da maré, e voltara com ela. O dia tinha sido de sol, porém se tornara nevoento à medida que escurecia, e na volta eu fora obrigado a movimentar-me com muita cautela em meio às embarcações. Tanto na ida quanto na volta eu vira o sinal na janela de Provis, indicando que tudo estava bem. O tempo agora não estava bom e eu sentia frio, e por isso resolvi jantar de imediato; como em seguida teria horas de depressão e solidão se voltasse para casa, resolvi ir ao teatro depois do jantar. O teatro em que o sr. Wopsle gozara seu triunfo questionável ficava naquela região ribeirinha (ele não existe mais), e foi para lá que me encaminhei. Eu tinha consciência de que o sr. Wopsle não havia conseguido renovar a arte dramática; pelo contrário, participara de seu declínio. Ele aparecera nos programas, de modo não muito alvissareiro, no papel de um negro fiel, associado a uma menina de sangue nobre e um macaco. Além disso, Herbert o vira como um tártaro predador, uma figura cômica com um rosto que parecia um tijolo vermelho e um chapéu ridículo cheio de guizos. Jantei num lugar que eu e Herbert chamávamos de restaurante geográfico — pois havia mapas-múndi traçados por marcas de copos de cerveja em todas as toalhas, e mapas de molho de carne em cada uma das facas — até hoje, não há praticamente nenhum restaurante nos domínios do lorde prefeito que não seja geográfico — e fiz hora cochilando sobre os restos de pão, olhando para o lampião de gás e sendo cozido pelo bafo quente que vinha da cozinha. Depois de algum tempo, despertei e fui ao teatro. Lá, vi um virtuoso contramestre a serviço de sua majestade — um homem excelente, ainda que eu preferisse que suas calças não fossem tão apertadas em certos lugares nem tão largas em outros — o qual enterrava os chapéus dos homenzinhos até os olhos, embora fosse muito generoso e bravo, e não suportava a ideia de que alguém pagasse impostos, embora fosse muito patriótico. Tinha no bolso um saco cheio de dinheiro, como um pudim envolto em pano, e graças a essa fortuna desposou uma jovem fantasiada de cama,1 para júbilo geral; toda a população de Portsmouth (nove habitantes ao todo, segundo o último recenseamento) veio à praia para esfregar as mãos e apertar as mãos dos outros, cantando “Vira, vira!”. Um certo grumete de tez escura, porém, que não queria virar, nem fazer mais nada que lhe fosse proposto, e cujo coração (segundo o contramestre) era tão negro quanto seu rosto, propôs a dois outros grumetes que criassem problemas para toda a humanidade; o que foi feito com tanta eficiência (pois a classe dos grumetes tinha grande influência política) que as coisas levaram metade da noite para serem resolvidas, e mesmo assim apenas graças à intervenção de um merceeiro honesto de chapéu branco, perneiras pretas e nariz vermelho, o qual entrou num relógio, com uma grelha na mão, e ficou a escutar, e depois saiu de lá e derrubou pelas costas com a grelha todos aqueles que ele não conseguiu convencer com base no que havia escutado em seu esconderijo. Por esse motivo, o sr. Wopsle (que até então não fora mencionado) entrou, ostentando uma estrela e a insígnia da Ordem da Jarreteira, como agente plenipotenciário enviado diretamente do almirantado, dizendo que todos os grumetes seriam presos imediatamente, e que ele trazia uma bandeira britânica para o contramestre, em reconhecimento aos seus serviços prestados ao público. O contramestre, pela primeira vez comovido, respeitosamente enxugou as lágrimas no lábaro e depois, animando-se, dirigiu-se ao sr. Wopsle e, tratando-o de vossa excelência, pediu-lhe permissão para segurar-lhe a mão. O sr. Wopsle lhe estendeu a mão com dignidade, sendo imediatamente levado para um canto cheio de poeira enquanto todo mundo dançava uma dança de marinheiros; e daquele canto, contemplando o público com um olhar descontente, ele me viu. A segunda peça era a mais recente pantomima cômica de Natal, em cuja cena de abertura julguei perceber, constrangido, a figura do sr. Wopsle, com as pernas cobertas de lã vermelha e um pedaço de franja de cortina vermelha na cabeça, fabricando relâmpagos numa mina, e comportando-se com muita covardia quando seu amo gigantesco surgiu (muito rouquenho) para almoçar. Mas logo depois ele se mostrou em circunstâncias mais dignas, pois o gênio do amor juvenil, precisando de ajuda — por causa da brutalidade paterna de um fazendeiro ignorante que se opunha à escolha feita pelo coração da filha, jogando o escolhido, dentro de um saco de farinha, pela janela —, convocou um mago sentencioso; este, vindo do outro lado do mundo com pernas um tanto inseguras, após uma viagem aparentemente violenta, revelou-se ninguém menos que o sr. Wopsle com um chapéu pontudo, com um tratado de necromancia em um único volume debaixo do braço. Como a ocupação desse mago no mundo consistia principalmente em deixar que falassem com ele, cantassem para ele, esbarrassem nele, dançassem para ele e acendessem diante de seu rosto fogos de cores variadas, ele tinha muito tempo livre. E observei, com grande surpresa, que ele dedicava boa parte desse tempo à atividade de olhar na minha direção, como se estivesse atônito. Havia algo de tão notável no olhar cada vez mais penetrante do sr. Wopsle, e ele parecia estar pensando sobre tantas coisas e confundindo-se tanto, que eu não conseguia entender o que estava acontecendo. Eu ainda estava pensando nisso muito tempo depois de ele subir às nuvens dentro de um grande estojo de relógio, e continuava sem entender. Ainda pensava no assunto quando saí do teatro uma hora depois e encontrei-o à minha espera junto à porta. “Como vai?”, disse eu, trocando um aperto de mãos com ele enquanto virávamos a rua. “Vi que o senhor me tinha visto.” “Se o vi, senhor Pip!”, exclamou ele. “Claro que o vi. Mas quem mais estava lá?” “Quem mais?” “É muito estranho”, disse o sr. Wopsle, voltando a assumir seu olhar perdido; “e no entanto eu seria capaz de jurar que o vi.” Preocupado, insisti para que o sr. Wopsle explicasse o que queria dizer. “Se eu o teria percebido caso o senhor não estivesse lá”, disse o sr. Wopsle ainda com o olhar perdido, “isso não posso garantir; mas acho que teria, sim.” Num gesto involuntário, olhei à minha volta, como estava acostumado a fazer quando voltava para casa; pois aquelas palavras misteriosas me provocaram um arrepio. “Ah! Ele não pode estar por perto”, disse o sr. Wopsle. “Ele saiu antes de mim, eu o vi sair.” Tendo os motivos que tinha para estar desconfiado, cheguei mesmo a suspeitar daquele pobre ator. Imaginei que aquilo fosse um estratagema para me levar a abrir-me com ele. Assim, fiquei a olhá-lo enquanto caminhávamos lado a lado, porém permaneci em silêncio. “Formei a ideia ridícula de que ele estaria em sua companhia, até que percebi que o senhor não tinha consciência da presença dele, sentado atrás do senhor, como um fantasma.” Voltei a ter um arrepio, mas estava decidido a não falar ainda, pois era perfeitamente possível, a julgar por suas palavras, que ele estivesse tentando me levar a associar aquelas referências a Provis. Naturalmente, eu tinha certeza absoluta de que Provis não estivera presente. “Entendo por que o senhor está espantado comigo, senhor Pip; dá para perceber. Mas é tão estranho! O senhor talvez nem acredite no que vou lhe dizer. Eu próprio dificilmente acreditaria, se o senhor me dissesse.” “É mesmo?”, exclamei. “Sem dúvida. O senhor se lembra quando, muitos anos atrás, no Natal, quando ainda era bem pequeno, fui jantar na casa do Gargery, e alguns soldados vieram querendo consertar um par de algemas?” “Lembro-me muito bem.” “E o senhor lembra que deram uma busca por dois forçados, e nós fomos juntos, e que o Gargery o carregou nas costas, e que eu saí disparado na frente, e vocês mal conseguiram me acompanhar?” “Lembro-me de tudo muito bem.” Melhor do que ele imaginava — menos o último detalhe mencionado. “E o senhor lembra que encontramos os dois numa vala, e que estavam lutando, e um deles havia machucado muito o outro, no rosto?” “É como se visse a cena à minha frente.” “E que os soldados acenderam archotes, e puseram os dois no meio, e que os acompanhamos até o fim, caminhando pelo charco escuro, o fogo iluminando os rostos deles — lembro-me bem disso; o fogo iluminando os rostos deles, e a noite escura a nosso redor?” “Lembro, sim”, respondi. “Lembro-me de tudo isso.” “Pois bem, senhor Pip, um daqueles dois forçados estava sentado atrás do senhor hoje. Eu o vi atrás do seu ombro.” “Calma lá!”, pensei. Em seguida, perguntei-lhe: “Qual dos dois o senhor julga ter visto?”. “O que estava machucado”, ele respondeu sem hesitar, “juro que o vi! Quanto mais penso nele, mais certeza tenho de que era ele.” “Isto é muito curioso!”, exclamei, tentando o melhor que podia dar a entender que aquilo não significava nada para mim. “É mesmo muito curioso.” Impossível exprimir a angústia acentuada que essa conversa me proporcionou, e o terror específico que me causava a ideia de que Compey son estivera sentado atrás de mim “como um fantasma”. Pois se eu havia ficado alguns momentos sem pensar nele desde que começara toda aquela história de esconder meu protetor, fora justamente naqueles momentos em que ele estivera mais próximo a mim; e ao pensar que eu estava de todo inconsciente de sua presença e despreocupado após tantos cuidados, era como se eu tivesse fechado toda uma avenida de cem portas para impedi-lo de entrar e depois descobrisse que ele estava a meu lado. Era impossível duvidar que ele de fato estava lá, porque eu também estava, e por menor que fosse a aparência de perigo à nossa volta, o perigo estava sempre próximo e ativo. Dirigi ao sr. Wopsle perguntas como: quando o homem havia entrado? Ele não soube me responder; vira-me na plateia e, atrás de mim, percebera o homem. Foi só algum tempo depois de vê-lo pela primeira vez que começou a identificá-lo; mas desde o início de algum modo associou sua figura a minha pessoa, e também a alguma coisa ocorrida nos velhos tempos, na aldeia. Como estava ele vestido? Como uma pessoa próspera, mas nada que chamasse a atenção; todo de preto, ele julgava. Seu rosto estava de algum modo desfigurado? Não, ele achava que não. E quanto a isso eu estava de acordo, pois, embora absorto como estava eu não houvesse reparado nas pessoas a meu redor, parecia-me que um rosto desfigurado haveria de ter me chamado a atenção. Depois que o sr. Wopsle me transmitiu tudo aquilo de que se lembrava ou tudo que pude arrancar dele, e depois que o regalei com uma colação que compensasse o cansaço da noite, despedimo-nos. Era entre meia-noite e meia e uma da manhã quando cheguei ao Temple, e os portões estavam fechados. Não havia ninguém perto de mim quando entrei e fui para casa. Herbert já havia chegado, e tivemos uma conversa muito séria junto à lareira. Mas não havia nada a fazer, senão contar a Wemmick o que eu descobrira, e lembrá-lo de que estávamos aguardando suas instruções. Como eu achava que poderia comprometê-lo se fosse com muita frequência ao castelo, comuniquei-me com ele através de uma carta. Escrevi-a antes de me deitar, e saí para colocá-la na caixa de correio; e, mais uma vez, não havia ninguém por perto. Eu e Herbert concordamos que a única coisa que podíamos fazer era ter muita cautela. De fato, ficamos muito cuidadosos — mais ainda do que já estávamos antes, se tal coisa era possível —, e eu, de minha parte, jamais me aproximava de Chinks’s Basin, senão quando passava por lá de barco, e nessas circunstâncias olhava para Mill Pond Bank tal como olhava para qualquer outra coisa. 9 O segundo dos dois encontros mencionados no último capítulo ocorreu cerca de uma semana depois do primeiro. Como antes, eu havia deixado meu barco no ancoradouro a jusante da ponte London; e, sem conseguir me decidir onde jantar, fui caminhando pela Cheapside, e lá fiquei a vagar, certamente a pessoa mais intranquila em toda aquela movimentada avenida, quando uma manzorra pousou em meu ombro, a mão de alguém que vinha atrás de mim e me alcançou. Era o sr. Jaggers, e ele tomou-me o braço. “Como vamos na mesma direção, Pip, podemos caminhar juntos. Para onde você está indo?” “Para o Temple, eu acho”, respondi. “Você não sabe?”, indagou o sr. Jaggers. “Não sei, não”, retruquei, satisfeito por poder ao menos uma vez sair-me bem em seu interrogatório, “pois ainda não me decidi.” “Você vai jantar?”, perguntou o sr. Jaggers. “Imagino que isso, ao menos, você não se incomoda de reconhecer, não é?” “Não”, respondi, “Não me incomodo.” “E está sozinho?” “Também não me incomodo de reconhecer que estou sozinho.” “Nesse caso”, disse o sr. Jaggers, “venha jantar comigo.” Eu ia rejeitar o convite com um pedido de desculpas quando ele acrescentou: “O Wemmick também vai.” Assim, transformei minha rejeição numa aceitação — as poucas palavras que eu já havia pronunciado serviriam tanto para uma resposta quanto para a outra — e assim seguimos por Cheapside e depois para Little Britain, enquanto luzes fortes se acendiam nas vitrines das lojas, e os acendedores de lampiões, encontrando com dificuldade um lugar para colocar suas escadas no meio da multidão vespertina, subiam e desciam, e iam e vinham correndo, abrindo na neblina cada vez mais espessa mais olhos vermelhos do que minha torre de luzes do Hummuns abrira olhos brancos na parede espectral. No escritório em Little Britain, repetiu-se a rotina de sempre de escrever cartas, lavar as mãos, apagar as velas e trancar o cofre, a rotina que assinalava o fim de mais um dia de trabalho. Enquanto eu aguardava junto à lareira do sr. Jaggers, vi que a chama, ao subir e descer, dava a impressão de que as duas máscaras na prateleira estavam fazendo um diabólico jogo de esconde-esconde comigo; as duas velas grossas que iluminavam a mesa do sr. Jaggers, enquanto ele escrevia num canto, estavam enfeitadas com mortalhas sujas, como se em memória de tantos clientes enforcados. Fomos à Gerrard-street, os três juntos, num fiacre de aluguel, e tão logo chegamos o jantar foi servido. Embora nem me ocorresse a possibilidade de fazer, em tal lugar, a referência mais indireta, através de uma expressão dirigida a Wemmick, aos seus sentimentos de Walworth, eu teria gostado de receber da parte dele um ou outro olhar simpático. Mas tal não ocorreu. Sempre que levantava a vista da mesa, ele olhava para o sr. Jaggers, e em relação a mim se comportava de uma maneira seca e distante, como se houvesse dois Wemmicks gêmeos, e aquele fosse o irmão errado. “Você enviou aquele bilhete da senhora Havisham ao senhor Pip, Wemmick?”, perguntou o sr. Jaggers, assim que começamos a comer. “Não, senhor”, respondeu Wemmick; “eu ia despachá-lo quando o senhor entrou no escritório com o senhor Pip. Está aqui.” Entregou a missiva a seu superior, e não a mim. “É um bilhete de duas linhas, Pip”, disse o sr. Jaggers, repassando-o a mim, “que a senhora Havisham me enviou por não saber direito qual o seu endereço. Ela diz que gostaria de lhe falar a respeito do assunto que você mencionou a ela. Você vai lá?” “Vou”, respondi, olhando de relance o bilhete, cujo teor era exatamente aquele. “Quando pretende ir?” “Tenho um compromisso urgente”, disse eu, olhando para Wemmick, que estava despachando peixe em sua caixa de correio, “e por isso não sei direito quando vou. Acho que vou imediatamente.” “Se o senhor Pip tem intenção de ir imediatamente”, disse Wemmick ao sr. Jaggers, “ele não precisa responder o bilhete.” Entendendo que esse comentário queria dizer que era melhor agir depressa, resolvi ir no dia seguinte e disse isso a eles. Wemmick bebeu uma taça de vinho e olhou com um ar de satisfação irônica para o sr. Jaggers, mas não olhou para mim. “Pois é, Pip! Nosso amigo, o Aranha”, observou o sr. Jaggers, “fez sua jogada. Ele ganhou a partida.” Não pude fazer outra coisa senão concordar. “Ah! Ele é um sujeito promissor — lá a sua maneira — mas pode não conseguir tudo que quer. O mais forte vai vencer no final, mas primeiro é preciso saber quem é o mais forte. Se ele resolver bater nela…” “Não é possível”, interrompi, com um ardor no rosto e no coração, “que o senhor realmente acredite que ele é canalha o bastante para fazer uma coisa dessas, senhor Jaggers?” “Não foi isso que eu disse, Pip. Estou só imaginando uma hipótese. Se ele resolver bater nela, talvez se torne o mais forte; se for por uma questão de intelecto, certamente que não. Não há como prever como um sujeito desse tipo vai agir em tais circunstâncias, pois os dois resultados são igualmente prováveis.” “Posso lhe perguntar quais são eles?” “Um sujeito como o nosso amigo, o Aranha”, respondeu o sr. Jaggers, “ou bate ou rasteja. Ele pode rastejar e resmungar, ou rastejar sem resmungar; mas as opções são bater ou rastejar. Pergunte a Wemmick qual a opinião dele.” “Ou bate ou rasteja”, respondeu Wemmick, não se dirigindo a mim de modo algum. “Então, à saúde da senhora Bentley Drummle”, disse o sr. Jaggers, pegando no aparador uma garrafa de vinho da melhor qualidade, e enchendo nossas taças e a sua, “e que a questão de quem é o mais forte seja resolvida em favor da mulher! Pois em favor da mulher e do marido é que não vai ser. Mas Molly, Molly , Molly , Molly , como você está lerda hoje!” Ela estava ao lado dele nesse momento, pondo uma travessa na mesa. Quando recolheu as mãos, deu um ou dois passos para trás, murmurando uma desculpa nervosa. E certo movimento de seus dedos, enquanto ela falava, chamou minha atenção. “O que foi?”, perguntou o sr. Jaggers. “Nada. É que o assunto do qual falávamos”, expliquei, “era um tanto doloroso para mim.” O movimento dos dedos de Molly parecia o de alguém que tricotasse. Ela olhava para o patrão, sem saber se estava livre para recolher-se ou se ele teria mais alguma coisa para lhe dizer, e a chamaria se ela se afastasse. Tinha uma expressão muito atenta no rosto. Sem dúvida, eu vira exatamente aqueles olhos e aquelas mãos, numa ocasião memorável muito recente! O sr. Jaggers despachou-a, e ela saiu da sala. Porém continuei a vê-la à minha frente, tal como se não tivesse saído. Olhei para aquelas mãos, olhei para aqueles olhos, olhei para aqueles cabelos soltos; e comparei-os com outras mãos, outros olhos, outros cabelos, os quais eu conhecia, e com o que eles talvez viessem a se tornar depois de vinte anos de uma vida tempestuosa junto a um marido bruto. Olhei de novo para aquelas mãos e aqueles olhos da governanta, e pensei no sentimento inexplicável que me dominara na última vez em que eu caminhara — e não a sós — no jardim abandonado, e na cervejaria deserta. Pensei que o mesmo sentimento voltara quando vi um rosto olhando para mim, e uma mão acenando para mim, da janela de uma diligência; o sentimento voltara como um relâmpago quando passei, numa carruagem — e não a sós — por algum brilho súbito numa rua escura. Pensei que um elo nessa cadeia de associações me ajudara a fazer essa identificação no teatro, e que esse elo, que antes faltava, encaixara-se com precisão na corrente, quando por um acaso passei da menção do nome de Estella àqueles dedos que pareciam tricotar e àqueles olhos atentos. E tive certeza absoluta de que aquela mulher era a mãe de Estella. O sr. Jaggers já me vira com Estella, e provavelmente teria percebido os sentimentos que eu sequer tentara ocultar. Ele acenou com a cabeça quando observei que o assunto era doloroso para mim, deu-me um tapinha nas costas, serviu mais uma rodada de vinho e continuou a comer. Apenas mais duas vezes a governanta voltou a aparecer, ficou muito pouco tempo na sala, e o sr. Jaggers foi ríspido com ela. Mas as mãos eram as mãos de Estella, e os olhos eram os olhos de Estella, e se ela tivesse reaparecido cem vezes eu não teria nem mais nem menos certeza de que minha convicção era acertada. O jantar foi um tanto monótono, pois Wemmick recebia o vinho que lhe era oferecido de modo mecânico — tal como receberia o salário ao ser pago — e, com os olhos em seu patrão, permanecia num estado de prontidão perpétua, aguardando o interrogatório. Quanto à quantidade de vinho, sua caixa de correio era tão indiferente quanto qualquer outra caixa de correio em relação à quantidade de cartas nela colocada. Do meu ponto de vista, ele era o irmão gêmeo errado, e apenas exteriormente se assemelhava ao Wemmick de Walworth. Despedimo-nos cedo e saímos juntos. Já enquanto procurávamos nossos chapéus em meio ao depósito de botas do sr. Jaggers percebi que o irmão certo estava voltando; e quando não havíamos ainda caminhado dez metros pela Gerrard-street, no sentido de Walworth, dei-me conta de que estava caminhando de braço dado com o outro irmão, o certo, e que o errado se havia desvanecido na noite. “Bem”, disse Wemmick, “acabou! Ele é um homem maravilhoso, que não tem igual no mundo; mas sinto que tenho de ficar todo amarrado quando janto com ele — e é mais confortável jantar desamarrado.” Achei que aquela definição era correta e transmiti-lhe esse pensamento. “Eu não diria isso a ninguém que não fosse o senhor”, comentou ele. “Sei que o que dizemos um ao outro fica entre nós.” Perguntei-lhe se já vira alguma vez a filha adotiva da sra. Havisham, a esposa de Bentley Drummle. Ele disse que não. Para não ser abrupto demais, falei então sobre o idoso, e sobre a sra. Skiffins. Ele adquiriu um ar maroto quando mencionei esta senhora, e parou de repente para assoar o nariz, com um movimento de cabeça e um floreio que não eram totalmente isentos de bazófia. “Wemmick”, disse eu, “você lembra que me disse, antes de eu ir pela primeira vez à casa do senhor Jaggers, que prestasse atenção na governanta?” “Eu disse isso?”, ele retrucou. “É verdade”, disse, “sim. Mas que diabo”, ele acrescentou de repente, “eu sei que disse isso. Pelo visto, ainda não estou inteiramente desamarrado.” “Você disse que ela era uma fera selvagem domada.” “E o senhor, como a descreveria?” “Tal como você. Como foi que o senhor Jaggers a domou, Wemmick?” “Isso é segredo dele. Ela trabalha para ele há muitos anos.” “Eu queria que você me contasse a história dela. Tenho muito interesse. Você sabe que o que dizemos um ao outro fica entre nós.” “Bem”, respondeu Wemmick, “não sei a história dela — quer dizer, não sei a história toda. Mas o que sei, vou lhe contar. Afinal, estamos falando em caráter privado e pessoal, é claro.” “É claro.” “Há cerca de vinte anos, essa mulher foi julgada em Old Bailey por assassinato, e foi absolvida. Era uma moça muito bonita, e creio que tem um pouco de sangue cigano. Seja como for, o sangue dela ficava bastante quente quando ela se exaltava, como o senhor pode imaginar.” “Mas ela foi absolvida.” “O senhor Jaggers foi quem a defendeu”, prosseguiu Wemmick, com um olhar carregado de significados, “e ele trabalhou no caso de uma maneira espantosa. Era um caso considerado perdido, e ele ainda estava no começo da carreira, e a defesa que realizou foi admirada por todos; aliás, quase se pode dizer que foi assim que ele conquistou sua reputação. Ele mesmo ia à delegacia, todos os dias, por um bom tempo, tentando evitar até mesmo que ela fosse detida; e no julgamento, não podendo atuar em sua defesa pessoalmente, auxiliou o advogado de defesa, e — como todos sabiam — foi ele que lhe ‘soprou’ tudo. A vítima era uma mulher; uma mulher uns bons dez anos mais velha, muito maior, e muito, muito mais forte. Era um caso de ciúmes. As duas viviam na vagabundagem, e a nossa conhecida de Gerrard-street havia se casado muito moça, casado na igreja verde1 (como se diz), com um vagabundo, e estava furiosa de ciúmes. A mulher assassinada — bem mais velha que o homem, aliás — foi encontrada morta num celeiro perto de Hounslow Heath. Tinha havido um conflito violento, talvez uma luta. Ela estava cheia de contusões, arranhões e cortes, e fora agarrada pelo pescoço e estrangulada. Ora, não havia indícios razoáveis que apontassem para nenhuma outra pessoa que não essa mulher, e foi com base no argumento de que para ela teria sido impossível cometer o crime que o senhor Jaggers fundou sua defesa. O senhor pode ter certeza”, disse Wemmick, tocando-me na manga, “que naquela ocasião ele não pôs tanta ênfase na força das mãos dela, embora faça isso às vezes agora.” Contei a Wemmick que ele fizera questão de exibir a nós os punhos de Molly naquele jantar. “Pois bem!”, prosseguiu Wemmick. “Aconteceu — o senhor entende? — aconteceu que essa mulher foi vestida com muito cuidado desde o momento em que foi presa, de modo que parecesse bem mais fraca do que era na verdade; em particular, as mangas de seu vestido eram sempre feitas de tal modo que os braços parecessem bem delicados. Em seu corpo havia apenas umas poucas contusões — como é de se esperar numa mulher sem eira nem beira — mas as costas de suas mãos estavam arranhadas, e a pergunta era esta: seriam marcas de unhas? Pois bem, o senhor Jaggers mostrou que ela havia atravessado uma quantidade de sarças que não chegavam até a altura de seu rosto, mas que ela não poderia ter atravessado sem usar as mãos; de fato, as sarças em questão foram examinadas e verificou-se que alguém havia passado por elas, e foram encontrados pedacinhos de seu vestido e pequenas marcas de sangue aqui e ali. Mas o lance mais ousado dele foi este: para provar que ela estava com ciúmes, alegou-se que ela, mais ou menos na época do assassinato, havia num momento de loucura matado sua própria filha, cujo pai era o tal homem — uma criança de três anos de idade — para vingar-se dele. O raciocínio do senhor Jaggers foi este: ‘Afirmamos que essas marcas não foram feitas por unhas, e sim por espinhos de sarças, e mostramos as sarças. Os senhores afirmam que são marcas de unhas, e lançam a hipótese de que ela matou a criança. É preciso aceitar todas as consequências dessa hipótese. Pelo que sabemos, é possível que ela tenha matado a criança, e que a criança, agarrando-se a ela, tenha arranhado suas mãos. E então? Os senhores não estão acusando-a de ter matado a criança. Por que não o fazem? Quanto a este caso, se de fato há arranhões, afirmamos que, pelo que sabemos, talvez os senhores tenham uma explicação para eles, pressupondo-se, para fins de argumentação, que não foram os senhores que os inventaram?’. Em resumo”, disse Wemmick, “o senhor Jaggers foi demais para os jurados, e eles entregaram os pontos.” “Ela trabalha para ele desde então?” “Trabalha; mas não é só isso”, disse Wemmick. “Ela começou a trabalhar para ele assim que foi absolvida, domada tal como está agora. De lá para cá ela foi aprendendo a fazer uma coisa e outra em seu ofício de governanta, mas ficou domesticada desde o começo.” “Então a criança era uma menina?” “Dizem que era.” “Você não tem mais nada a me dizer por hoje?” “Nada. Recebi sua carta e já a destruí. Nada.” Despedimo-nos cordialmente e fui para casa, com questões novas a pensar, embora os pensamentos antigos não me dessem trégua. 10 Pondo no bolso o bilhete da sra. Havisham, para que me servisse de credencial que justificasse minha volta à Casa Satis tão cedo, pois por um capricho ela bem poderia manifestar surpresa ao me ver, voltei lá de carruagem no dia seguinte. Porém, saltei numa estalagem no meio do caminho, onde fiz o desjejum, e segui a pé, porque meu objetivo era chegar à aldeia de modo discreto e pela via menos esperada, e partir de lá da mesma maneira. A luz do dia já começava a diminuir quando passei pelos pátios vazios, onde meus passos ecoavam, atrás da High-street. Os recantos nas ruínas onde outrora os monges tinham seus refeitórios e jardins, e onde as paredes fortes agora serviam a humildes galpões e estrebarias, estavam quase tão silenciosos quanto os velhos monges em suas sepulturas. Os sinos da catedral agora tinham um som ao mesmo tempo mais triste e mais remoto para mim, enquanto eu apressava o passo, evitando ser observado, do que jamais tiveram antes; assim também os acordes do velho órgão soavam em meus ouvidos como música fúnebre; e as gralhas, que revoavam em torno da torre cinzenta e pousavam nas árvores altas, despidas de folhas, do jardim do priorado, pareciam me dizer que o lugar estava mudado, e que Estella partira de lá para sempre. Uma mulher idosa, que eu já vira antes e sabia ser uma das criadas que moravam no prédio anexo atrás do pátio dos fundos, veio abrir o portão. A vela acesa estava no corredor escuro, tal como antigamente, e eu peguei-a para subir a escada sozinho. A sra. Havisham não estava em seu quarto, porém na sala maior do outro lado do patamar da escada. Depois de bater à porta em vão, abria e olhei para dentro, e vi a anciã sentada numa cadeira rota, bem perto da lareira cheia de cinzas, imersa na contemplação do fogo. Como fizera tantas vezes antes, entrei e parei com a mão no velho console, onde ela pudesse me ver quando levantasse a vista. Havia nela um ar de solidão absoluta que me inspiraria piedade, mesmo se ela houvesse voluntariamente me causado um sofrimento mais profundo do que qualquer mal de que eu pudesse acusá-la. Enquanto eu a olhava cheio de compaixão, pensando que, com o passar do tempo, também eu viera a me tornar parte das esperanças destruídas daquela casa, seu olhar pousou em mim. Ela olhou-me fixamente e disse, em voz baixa: “É ele, mesmo!”. “Sou eu, o Pip. O senhor Jaggers me deu o seu bilhete ontem, e vim na mesma hora.” “Obrigada. Obrigada.” Peguei outra cadeira rota, coloquei-a perto do fogo e sentei-me, percebendo uma expressão nova no rosto da sra. Havisham, como se ela estivesse com medo de mim. “Quero retomar”, disse ela, “aquele assunto que levantaste da última vez que vieste aqui, e mostrar-te que não sou totalmente insensível. Mas talvez não possas mais acreditar, agora, que há alguma coisa de humano no meu coração?” Quando respondi com algumas palavras tranquilizadoras, ela estendeu a mão direita trêmula, como se fosse me tocar; porém recolheu-a antes que eu compreendesse o sentido do gesto, ou decidisse como reagir a ele. “Tu me disseste, falando por teu amigo, que podias me mostrar como fazer algo de bom e útil. Algo que gostarias que fosse feito, não é?” “Algo que eu gostaria muito que fosse feito.” “O que é?” Comecei a contar-lhe a história secreta da sociedade de Herbert. Não havia avançado muito na narrativa quando julguei perceber, com base no olhar de minha interlocutora, que ela estava pensando mais em mim do que no que eu estava dizendo. Meu juízo pareceu estar correto, pois quando parei de falar foi só depois de um longo intervalo que ela demonstrou ter consciência da interrupção. “Tu te calaste”, perguntou-me então, de novo parecendo ter medo de mim, “porque me odeias tanto que nem consegues falar comigo?” “Não, não”, respondi; “mas como a senhora pode pensar uma coisa dessas! Calei-me porque achei que a senhora não estava prestando atenção nas minhas palavras.” “Talvez eu não estivesse, mesmo”, disse ela, levando a mão à cabeça. “Começa de novo, e deixa-me olhar para outra coisa. Espera! Agora podes falar.” Pôs a mão na bengala, com o jeito decidido que às vezes assumia por força do hábito, e ficou a olhar para o fogo com uma expressão enfática, de quem se obriga a prestar atenção. Dei prosseguimento a minha explanação, e disse-lhe de que modo eu tivera esperanças de completar a transação com base em meus próprios recursos, quanto a isso, porém, me frustrara. Essa parte da história (lembrei-lhe) envolvia questões sobre as quais eu nada podia dizer, pois faziam parte de segredos importantes de outra pessoa. “Pois bem!”, exclamou ela, acenando com a cabeça, mas sem olhar para mim. “E quanto falta para completar a quantia?” Eu temia responder a essa pergunta, pois a quantia me parecia vultosa. “Novecentas libras.” “Se eu te der o dinheiro necessário para esse fim, tu guardarás meu segredo tal como guardas o teu?” “Com a mesma fidelidade.” “E ficarás mais tranquilo?” “Muito mais.” “Estás muito infeliz agora?” Fez a pergunta ainda sem olhar para mim, mas com um tom involuntário de comiseração. Não pude responder de imediato, porque minha voz falhou. Ela pousou o braço esquerdo no castão da bengala e lentamente encostou a testa nele. “Não estou de modo algum feliz, senhora Havisham, mas tenho outros motivos para sofrer além dos que a senhora conhece. São os tais segredos a que me referi.” Depois de algum tempo, ela levantou a cabeça e voltou a olhar para o fogo. “É generoso da tua parte me dizer que tens outros motivos de infelicidade. É mesmo verdade?” “A pura verdade.” “Então só posso ajudar-te, Pip, ajudando teu amigo? Uma vez feito isso, não há nada que eu possa fazer por ti?” “Nada. Agradeço-lhe a pergunta. Agradeço-lhe ainda mais o tom em que foi feita a pergunta. Mas não há nada, não.” Após um instante, ela levantou-se e correu os olhos pela sala devastada, procurando algo com que escrever. Nada encontrou, tirou do bolso um conjunto de pequenas lousas de marfim,1 encadernadas em ouro embaçado, e nelas escreveu com um lápis guardado num estojo de ouro embaçado que ela usava pendurado ao pescoço. “Ainda tens relações de amizade com o senhor Jaggers?” “Tenho, sim. Ontem mesmo jantei com ele.” “Isto é uma autorização para que ele te dê o dinheiro que tu cederás, irresponsavelmente, a teu amigo. Não guardo dinheiro aqui, mas se preferes que o senhor Jaggers não fique sabendo de nada, posso enviá-lo a ti.” “Obrigado, senhora Havisham, não faço nenhuma objeção a receber o dinheiro através dele.” Ela leu para mim o que havia escrito: o texto era direto e claro, fora escrito com a intenção evidente de me isentar de qualquer suspeita de que o dinheiro viesse a ser utilizado em meu proveito. Ela entregou-me as lousas, e sua mão tremeu de novo, e tremeu ainda mais quando tirou do pescoço o cordão a que estava preso o lápis e o pôs na minha mão. Fez tudo isso sem olhar para mim. “Meu nome está na primeira folha. Se puderes escrever embaixo do meu nome ‘Eu a perdoo’, ainda que muito depois de meu coração partido virar pó — eu te peço que o faça.” “Ah, senhora Havisham”, disse eu, “posso fazê-lo agora mesmo. Erros sérios foram cometidos; vivi às cegas e sem rumo, e eu próprio preciso de perdão e orientação, tanto que não posso guardar rancor da senhora.” Ela voltou o rosto para mim pela primeira vez desde que o desviara, quando então, para meu espanto — e, devo acrescentar, para meu pavor — caiu de joelhos a meus pés; com as mãos unidas levantadas para mim tal como, quando seu pobre coração era jovem, fresco e intacto, certamente tantas vezes levantouas para o céu, ajoelhada junto à mãe. Vê-la, com os cabelos encanecidos e o rosto engelhado, ajoelhada a meus pés fez com que um tremor me percorresse todo o corpo. Implorei-lhe que se levantasse, e abracei-a para ajudá-la; porém ela limitou-se a apertar a minha mão que estava mais a seu alcance e, baixando a cabeça, pôs-se a chorar. Eu jamais a vira verter uma única lágrima que fosse, e, na esperança de que o alívio lhe fizesse bem, curvei-me sobre ela sem nada dizer. Ela não estava mais ajoelhada, porém continuava no chão. “Ah!”, exclamava, em desespero. “O que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz?” “Se a senhora quer saber o que fez de mau para mim, posso lhe responder: muito pouco. Eu teria amado a Estella em quaisquer circunstâncias. Ela casouse?” “Casou-se.” A pergunta era desnecessária, pois havia naquela casa desolada um toque novo de desolação que já a respondia. “O que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz?” Ela retorcia as mãos e amassava os cabelos brancos, e repetia a frase sem parar. “O que foi que eu fiz?” Eu não sabia como responder, nem como consolá-la. Que ela fizera uma coisa terrível ao tomar uma criança impressionável e moldá-la, de modo a vingar seu ressentimento feroz, seu afeto rejeitado e seu orgulho ferido, disso eu sabia muito bem. Mas que, ao expulsar da casa a luz do dia, ela expulsara uma infinidade de coisas adicionais; que, na sua reclusão, ela se afastara de mil influências naturais que poderiam tê-la ajudado a se recuperar; que seu espírito, ao remoer suas mágoas na solidão, se tornara doentio, como acontece com todo e qualquer espírito que faça o contrário do que ordena seu Criador — disso eu também sabia. E como seria possível a mim contemplá-la sem compaixão, vendo-a punida na ruína em que se encontrava, profundamente inadaptada àquele mundo em que fora colocada, na vaidade do sofrimento que se tornara uma mania dominante, como a vaidade da penitência, a vaidade do remorso, a vaidade da humildade, e as outras vaidades monstruosas que vêm assolando este mundo? “Até o momento em que tu falaste com ela, e até o momento em que me vi num espelho que me mostrava o que eu própria sentira uma vez, eu não sabia o que havia feito. O que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz?” E assim por diante, vinte, cinquenta vezes mais: o que fizera ela? “Senhora Havisham”, disse eu, quando ela se aquietou, “quanto a mim, sua consciência pode ficar em paz. Mas Estella é um caso diferente, e se a senhora puder desfazer o mínimo que seja do mal que fez ao afastá-la de uma parte de sua própria natureza, isso será melhor do que passar cem anos lamentando o passado.” “Eu sei, eu sei. Mas, Pip — meu querido Pip!” Havia uma nota de compaixão feminina verdadeira naquele novo afeto. “Meu querido Pip! Acredita-me: quando ela veio a mim, de início eu queria salvá-la de um sofrimento igual ao meu. De início, era só isso que eu queria.” “Bem!”, exclamei. “Espero que sim.” “Mas à medida que ela foi crescendo, e que percebi que haveria de ficar muito bonita, pouco a pouco comecei a fazer coisa pior, e com meus elogios, com minhas joias, com meus ensinamentos, e com minha imagem diante dela para servir de alerta e fortalecer minhas lições, roubei-lhe o coração e pus em lugar dele uma pedra de gelo.” “Seria melhor”, não pude evitar o comentário, “deixá-la com um coração natural, mesmo que viesse a ser ferido ou partido.” Ao ouvir isso, a sra. Havisham dirigiu-me um olhar transtornado por alguns instantes, e logo voltou a exclamar: “O que foi que eu fiz?”. E insistiu: “Se soubesses toda a minha história, terias alguma compaixão por mim e me entenderias melhor”. “Senhora Havisham”, respondi, do modo mais delicado de que era capaz, “creio poder afirmar que já conheço a sua história, desde a primeira vez que vim aqui. Ela me inspirou muita comiseração, e creio que a compreendo, e compreendo as influências que exerceu. O que se passou entre nós me dá alguma desculpa para lhe fazer uma pergunta sobre a Estella? Não tal como ela é hoje, mas tal como era quando chegou aqui.” A anciã estava sentada no chão, com os braços sobre a cadeira rota, e a cabeça apoiada neles. Ela olhava-me nos olhos quando eu disse isso, e respondeu: “Faz tua pergunta”. “Quem é a mãe da Estella?” Ela fez que não com a cabeça. “A senhora não sabe?” Ela repetiu o gesto. “Mas foi o senhor Jaggers que a trouxe aqui, ou apenas a mandou para cá?” “Ele a trouxe.” “A senhora poderia me dizer como foi que a coisa aconteceu?” Ela respondeu num sussurro cauteloso: “Eu já estava encerrada nesses cômodos há muito tempo (não sei quanto tempo; bem sabes quais são as horas que os relógios daqui marcam), quando eu lhe disse que queria uma menininha para criar e amar, e salvar-me de meu destino. Eu o vira pela primeira vez quando o chamei para transformar esta casa numa desolação; eu vira seu nome nos jornais, antes de me afastar do mundo. Ele disse-me que procuraria uma órfã para mim. Uma noite ele a trouxe adormecida, e dei a ela o nome de Estella”. “Posso lhe perguntar que idade ela teria?” “Dois ou três anos. Ela própria nada sabe, apenas que se tornou órfã e que eu a adotei.” Tamanha era a minha convicção de que Molly era a mãe de Estella que eu próprio não precisava de provas que me persuadissem. Mas para qualquer um, pensei então, a ligação agora estava clara e direta. De que adiantaria prolongar aquela entrevista? Eu havia obtido a ajuda para Herbert, a sra. Havisham me dissera tudo que sabia a respeito de Estella, e eu dissera e fizera o possível para apaziguar sua consciência. Não é preciso relatar as palavras adicionais com que nos despedimos, o fato é que nos despedimos. Já anoitecia quando desci a escada e saí para o ar natural. Disse à mulher que abrira o portão para mim que não precisaria dela por enquanto, pois pretendia caminhar pela propriedade antes de ir embora. Pois tinha eu o pressentimento de que nunca mais haveria de voltar lá, e senti que a luz do crepúsculo era a mais adequada para minha última visão do lugar. Atravessando a selva de barris pela qual eu caminhara anos atrás, e na qual anos de chuva haviam caído, fazendo a madeira apodrecer em muitos lugares, e deixando pequeninos pântanos e poças d’água nos que ainda estavam em pé, fui caminhando rumo ao jardim em ruínas. Percorri-o todo, passando pelo recanto onde eu e Herbert havíamos lutado, passando pelos caminhos que eu e Estella havíamos trilhado. Tudo tão frio, tão deserto, tão melancólico! Voltando pela cervejaria, levantei o trinco enferrujado de uma portinha que a ligava ao jardim, e entrei. Ia eu sair pela outra porta — agora difícil de abrir, pois a madeira úmida estava inchada, as dobradiças estavam cedendo e a soleira estava coberta de cogumelos — quando me virei e olhei para trás. Uma associação infantil voltou-me com uma força extraordinária no momento em que esbocei o gesto, e imaginei por um momento que via a sra. Havisham dependurada na trave. Tão forte foi a impressão que fiquei parado debaixo da trave, com um tremor a percorrer-me o corpo dos pés à cabeça, até me convencer de que era apenas uma fantasia — mesmo assim, fui até lá de um salto.O que havia de lúgubre no lugar e na hora, e o terror enorme proporcionado por essa ilusão, ainda que momentânea, me proporcionaram um medo indescritível quando saí pelo portão de madeira onde uma vez eu ficara a puxar os cabelos depois que Estella feriu meu coração. Chegando ao pátio da frente, fiquei sem saber se chamava a mulher para que ela abrisse o portão da frente, cuja chave estava em sua posse, ou se primeiro voltava à sala para ver se a sra. Havisham continuava tal como estava quando eu dela me despedira. Escolhi a segunda alternativa e subi a escada. Pus a cabeça dentro da sala onde eu a deixara, e vi-a sentada na cadeira rota junto à lareira, de costas para mim. No momento em que eu recolhia minha cabeça para ir-me embora em silêncio, vi um clarão súbito. No mesmo momento, vi-a correndo em minha direção, aos gritos, com um torvelinho de fogo à sua volta, as chamas elevando-se acima dela a uma altura equivalente a sua estatura. Eu estava usando um casaco espesso, e levava no braço outro sobretudo pesado. Sei que me livrei deles, fui até ela, deitei-a no chão e cobria-a com os casacos; que com o mesmo objetivo arranquei da mesa a grande toalha, arrastando para o chão o monte de podridão que havia no meio dela, e todas as criaturas horrendas que ali se abrigavam; que ficamos a lutar no chão como se fôssemos inimigos mortais, e quanto mais eu a cobria, com mais ferocidade ela gritava e tentava livrar-se de mim; sei que tudo isso ocorreu com base no resultado de meus atos, mas não a partir de nada que eu sentisse, nem pensasse, nem soubesse que fiz. Quando dei por mim, estava deitado com ela no chão junto da mesa enorme, com fagulhas ainda flutuando no ar enfumaçado, restos do que fora seu desbotado vestido de noiva. Então olhei à minha volta e vi as baratas e aranhas assustadas fugindo pelo chão, e as criadas entrando na sala aos gritos. Eu continuava a segurá-la com força como se ela fosse uma prisioneira que quisesse fugir; e creio que eu próprio não sabia quem ela era, nem o motivo pelo qual havíamos lutado, nem que ela havia pegado fogo, nem que as chamas estavam extintas, até o momento em que vi os farrapos que haviam sido as roupas dela, não mais ardendo, porém caindo, numa chuva negra, a nosso redor. A anciã estava desacordada; achei melhor não removê-la, nem sequer tocar nela. Pedimos ajuda, e segurei-a até que nosso pedido fosse atendido, como se acreditasse insensatamente (e acho que eu de fato acreditava) que se a soltasse o fogo recomeçaria e a consumiria. Quando me levantei, com a chegada do médico e outras pessoas, verifiquei atônito que minhas duas mãos estavam queimadas, pois até então eu não sentira nada. O médico examinou-a e afirmou que ela sofrera queimaduras sérias, mas que seu estado não era de modo algum desesperador; o principal perigo era o choque nervoso. Por ordem do médico, sua cama foi levada para a sala e colocada sobre a mesa, a qual era bem adequada para nela cuidarem de suas feridas. Quando voltei a vê-la, uma hora depois, ela estava no exato lugar onde eu a vira bater sua bengala, dizendo que era ali que seu corpo seria estendido. Embora de seu vestido não sobrasse nenhum vestígio, segundo me disseram, ela ainda guardava algo de sua aparência de noiva espectral; pois haviam-na recoberto de algodão até o pescoço; assim, deitada sob um lençol branco de algodão, ela ainda preservava o ar fantasmagórico de algo que existira, mas sofrera uma mudança. Fiquei sabendo, através da criadagem, que Estella estava em Paris, e o médico prometeu-me que mandaria uma carta para ela pelo próximo correio. Eu próprio encarreguei-me de notificar os parentes da sra. Havisham; decidi que avisaria apenas o sr. Matthew Pocket, e deixaria que ele resolvesse quem mais receberia a notícia. Foi o que fiz no dia seguinte, através de Herbert, tão logo voltei para a aldeia. Naquela noite, houve um momento em que ela falou de modo equilibrado sobre o que havia acontecido, ainda que com uma vivacidade terrível. Por volta de meia-noite começou a variar, e a partir daí passou a repetir incessantemente, num tom grave e em voz baixa: “O que foi que eu fiz?”. E depois: “De início eu queria salvá-la de um sofrimento igual ao meu”. E depois: “Toma o lápis e escreve embaixo do meu nome: ‘Eu a perdoo!’”. Nunca mudava a ordem dessas três frases, mas por vezes omitia uma palavra numa delas; jamais acrescentava nenhuma palavra, porém deixava um espaço em branco e passava para a palavra seguinte. Como eu nada mais poderia fazer ali, e como tinha, mais perto de minha casa, outro motivo sério para preocupações e temores que nem mesmo o desvario da sra. Havisham conseguia me fazer esquecer, resolvi no meio da noite que voltaria na manhã seguinte pela primeira diligência: caminharia mais de um quilômetro e tomaria a carruagem já longe da aldeia. Por volta das seis da manhã, pois, debrucei-me sobre ela e encostei meus lábios nos seus, no momento exato em que eles diziam, sem se deterem ao serem tocados: “Toma o lápis e escreve embaixo do meu nome: ‘Eu a perdoo!’”. 11 Minhas mãos tinham sido pensadas duas ou três vezes durante a noite, e mais uma vez pela manhã. Meu braço esquerdo estava bem queimado até a altura do cotovelo, e com menos gravidade até o ombro; doía muito, porém as chamas se haviam fixado naquela direção, de modo que poderia ter sido pior. Minha mão direita não estava tão queimada a ponto de eu não poder mexer os dedos. Também estava com curativos, é claro, mas as bandagens incomodavam menos do que as da mão e do braço esquerdo, que eu precisava apoiar numa tipoia; fui obrigado a usar o casaco jogado sobre os ombros como um manto, solto nos ombros e preso ao pescoço. Meu cabelo fora atingido pelo fogo, mas não minha cabeça nem meu rosto. Quando Herbert voltou de Hammersmith, onde foi falar com o pai, voltou para nossos aposentos e passou o dia cuidando de mim. Revelou-se o mais dedicado dos enfermeiros: nas horas certas trocava os curativos, mergulhava-os no líquido refrigerante que era mantido à mão e recolocava-os, com uma ternura e uma paciência que me tornaram muito grato. De início, enquanto eu jazia inerte no sofá, era para mim dolorosamente difícil, até impossível, livrar-me da impressão do brilho das chamas, sua avidez e seu rugido, e o terrível cheiro de queimado. Quando eu cochilava por um minuto, logo era despertado pelos gritos da sra. Havisham, vendo-a a correr em minha direção ardendo em chamas. Esse sofrimento mental era muito mais difícil de combater do que qualquer dor física que eu sentisse; e Herbert, percebendo esse fato, fazia o possível para me distrair. Nem eu nem ele falávamos a respeito do barco, porém ambos pensávamos no assunto. Isso ficou claro porque evitávamos o tema, e pelo nosso acordo — tácito — no sentido de fazer com que eu pudesse voltar a usar as mãos em horas, e não em semanas. A primeira pergunta que fiz a Herbert tão logo o vi foi, é claro, se tudo estava bem em Mill Pond Bank. Como respondeu na afirmativa, com total confiança e bom humor, só retomamos a questão ao final do dia. Porém nessa ocasião, ao trocar os curativos, valendo-se mais da luz do fogo do que da luz do dia, ele próprio puxou o assunto. “Conversei com o Provis ontem à noite, Handel, por umas boas duas horas.” “Onde estava a Clara?” “A minha querida Clara!”, disse Herbert. “Ela passou a noite toda subindo e descendo, cuidando do Gruffandgrim. O velho começava a bater no chão assim que ela saía de perto dele. Mas acho que ele já está perto do fim. Com todo aquele rum e aquela pimenta — e a pimenta e o rum — ele não vai ficar batendo no chão por muito mais tempo.” “E então te casarás com ela, Herbert?” “De que outra maneira eu posso cuidar dessa menina querida? — Estende o braço no encosto do sofá, meu caro, que eu me sento aqui e tiro o curativo tão devagar que nem hás de sentir quando ele sair. Eu estava falando do Provis. Sabes, Handel, que ele está cada vez melhor?” “Eu te disse que achei que algo nele havia amolecido na última vez que o vi.” “É verdade. E tinhas razão. Ontem ele estava muito comunicativo e contoume mais sobre sua vida. Lembras que ele havia começado a falar, aqui em casa, sobre uma mulher que lhe dera muito trabalho. — Machuquei-te?” Eu fizera um movimento súbito, mas não por causa do curativo, e sim por efeito das palavras de Herbert. “Eu havia me esquecido disso, Herbert, mas agora que o mencionas, lembro-me, sim.” “Pois bem, ele me contou esse trecho de sua vida, e a história é negra e assustadora. Quer que te conte? Ou isso seria mais uma preocupação para ti agora?” “Conta-me, por favor. Conta-me tudo.” Herbert inclinou-se para a frente a fim de olhar-me mais de perto, como se minha resposta tivesse sido mais apressada ou mais ansiosa do que ele antecipava. “Tua cabeça não está quente?”, perguntou, tocando-a. “Não”, respondia. “Conta-me o que Provis te disse, meu caro Herbert.” “Ao que parece”, começou Herbert, “— este curativo saiu muito bem, e agora vou pôr o refrescado — de início dói, não é, meu caro? Mas logo fica agradável — ao que parece, a mulher era jovem, e ciumenta, e vingativa; vingativa, Handel, ao grau máximo.” “Ao grau máximo? Como assim?” “A ponto de cometer assassinato. — Está frio demais?” “Não estou sentindo. Assassinato? Como foi? Quem ela assassinou?” “Bem, o que ela fez talvez não mereça um nome tão terrível”, disse Herbert, “mas ela foi a julgamento, e o sr. Jaggers a defendeu, e a reputação dessa defesa foi o que fez seu nome chegar até o Provis. A vítima foi outra mulher, mais forte que ela, e houve uma luta — num celeiro. Quem provocou a luta, e quem tinha razão, ou não tinha, não está claro; mas quanto ao resultado da luta não há dúvida, pois a vítima foi encontrada estrangulada.” “A mulher foi condenada?” “Não; foi absolvida. — Meu pobre Handel, eu te machuquei!” “Pelo contrário, és muito cuidadoso, Herbert. Mas sim! O que mais?” “A mulher que foi absolvida e o Provis”, disse Herbert, “tinham uma filha: uma criancinha a quem o Provis era muitíssimo apegado. Na noite em que apareceu estrangulada a vítima do ciúme dela, como te disse, a jovem esteve antes com o Provis rapidamente e jurou-lhe que mataria a criança (a qual estava com ela) e que ele nunca mais a veria; em seguida, desapareceu. — Agora o braço mais queimado está de novo bem acomodado na tipoia, e só falta a mão direita, que é bem mais fácil. Para mim, é melhor trabalhar a essa luz do que a uma luz mais forte, porque minha mão fica mais firme quando não vejo com muita clareza essas queimaduras. — Não achas que tua respiração está afetada, meu caro? Pareces estar respirando rápido demais.” “Pode ser, Herbert. A mulher cumpriu o juramento?” “Agora vem o pior da história da vida do Provis. Ela cumpriu, sim.” “Quer dizer, ele diz que ela cumpriu.” “Mas é claro, meu caro”, respondeu Herbert, num tom de surpresa, mais uma vez se inclinando para me ver mais de perto. “É ele que diz tudo. Não tenho outras fontes.” “Claro, claro.” “Agora”, prosseguiu Herbert, “se ele havia maltratado a mãe da criança ou não, isso o Provis não diz; mas ela passou quatro ou cinco anos da vida miserável, que ele me relatou, ao seu lado, e ele parece ter sentido compaixão por ela, e ter sido paciente com ela. Assim, temendo que fosse chamado a depor a respeito da morte da criança, e portanto ser visto como o motivador do crime, ele escondeuse (por mais sofresse com a morte da criança), ficou na sombra, como ele diz, fora do alcance da justiça, e seu nome só veio à tona de modo muito vago, como um certo Abel que teria sido a causa dos ciúmes. Depois de ser absolvida, a mulher desapareceu, e assim Provis perdeu a criança e a mãe da criança.” “Eu queria te perguntar…” “Só um momento, meu caro”, insistiu Herbert, “que já estou terminando. Aquele gênio do mal, o Compey son, o pior dos canalhas entre tantos canalhas, sabendo que ele estava escondendo-se nessa época, e sabendo o que o levava a esconder-se, é claro que a partir daí passou a utilizar o conhecimento desse fato como uma maneira de mantê-lo na pobreza, e de explorá-lo ao máximo. Ficou claro ontem à noite que foi isso que aumentou o ódio do Provis.” “Eu queria saber”, disse eu, “exatamente, Herbert, se ele te disse, quando foi que isso aconteceu?” “Exatamente? Deixa-me pensar o que ele disse. As palavras que usou foram: ‘Bem uns vinte anos atrás, quase logo depois que eu comecei a trabalhar pro Compey son’. Que idade tinhas quando o encontraste no cemitério?” “Creio que tinha sete anos.” “Certo. A coisa havia acontecido três ou quatro anos antes, segundo ele, e ao te ver ele pensou na menininha que perdera em circunstâncias tão trágicas, a qual estaria mais ou menos com a tua idade.” “Herbert”, disse eu, após uma pausa breve, num tom ansioso, “podes me ver melhor à luz da janela ou à luz do fogo?” “À luz do fogo”, respondeu Herbert, aproximando-se de mim outra vez. “Olha para mim.” “Estou olhando, meu caro.” “Põe a mão em mim.” “Pronto.” “Não te pareço estar com febre? Minha cabeça parece estar perturbada pelo acidente de ontem?” “N-não, meu caro”, disse Herbert, após me examinar por alguns instantes. “Estás um tanto nervoso, mas não fora de ti.” “Sim, estou perfeitamente lúcido. E o homem que estamos escondendo é o pai de Estella.” 12 Que objetivo eu tinha em vista quando me empenhava para descobrir quem eram os pais de Estella, eu não saberia dizer. Em breve ficará claro que a pergunta só se colocou com clareza a mim quando ela me foi formulada por alguém mais sábio do que eu. Porém, quando eu e Herbert tivemos essa conversa importante, fui dominado pela convicção febril de que era importante investigar a questão a fundo — de que eu não deveria deixá-la de lado, e sim procurar o sr. Jaggers e chegar à verdade nua e crua. Na verdade, não sei se sentia que fazia isso por amor a Estella ou se meu objetivo era transferir para o homem cuja preservação tanto me preocupava alguns vestígios do interesse romântico que há tanto tempo eu nutria por ela. Talvez essa segunda possibilidade seja a que está mais próxima à verdade. Seja como for, sentia-me compelido a ir à Gerrard-street naquela noite. Apenas o argumento de Herbert segundo o qual, se eu fosse, provavelmente teria de ficar de cama depois, quando a segurança do nosso fugitivo dependia de mim, teve o efeito de conter minha impaciência. Foi preciso deixar mais do que claro, e repetir muitas vezes, que acontecesse o que acontecesse eu iria visitar o sr. Jaggers no dia seguinte, para que eu por fim concordasse em permanecer em repouso, a fim de que ele cuidasse de minhas feridas. Na manhã seguinte, bem cedo, saímos juntos, e na esquina de Giltspur-street com Smithfield deixei que Herbert fosse a seu escritório na City enquanto eu seguia para Little Britain. Periodicamente, o sr. Jaggers e Wemmick examinavam as contas da firma, verificavam os recibos e organizavam tudo. Nessas ocasiões, Wemmick levava seus livros e papéis para a sala do sr. Jaggers, e um dos escreventes do segundo andar ia para a antessala. Ao deparar com um desses funcionários ocupando o posto de Wemmick, compreendi o que estava acontecendo; porém não lamentei que o sr. Jaggers e Wemmick estivessem juntos, pois nessa oportunidade Wemmick ficaria sabendo que eu não dissera nada que o comprometesse. Fui favorecido pela minha aparência, o braço na tipoia e o casaco solto sobre os ombros. Embora eu tivesse enviado ao sr. Jaggers um relato sucinto do acidente tão logo cheguei a Londres, fui obrigado a lhe dar todos os detalhes; por esse motivo nossa conversa foi menos seca e dura, e menos regulada pelas convenções jurídicas, do que costumava ocorrer. Enquanto eu fazia meu relato, o sr. Jaggers permaneceu em pé junto à lareira, como de hábito. Wemmick, em sua cadeira, olhava para mim fixamente, as mãos enfiadas nos bolsos da calça, a caneta presa na horizontal em sua caixa de correio. As duas máscaras brutais, que na minha mente estavam sempre associadas às nossas conversas oficiais, pareciam estar perguntando a si próprias se não estariam sentindo cheiro de queimado. Finda a minha narrativa, e respondidas todas as perguntas que me foram feitas, apresentei o documento da sra. Havisham que me autorizava a receber as novecentas libras para Herbert. Os olhos do sr. Jaggers afundaram-se um pouco mais em suas órbitas quando lhe entreguei as lousas, mas logo ele as passou a Wemmick, dizendo-lhe que preparasse o cheque para que ele o assinasse. Fiquei olhando para Wemmick enquanto ele obedecia, e o sr. Jaggers, equilibrando-se e balançando-se sobre suas botas bem engraxadas, ficou a olhar para mim. “Lamento, Pip”, disse ele, quando pus o cheque no bolso, depois que ele o assinou, “não fazermos nada por você.” “A senhora Havisham teve a bondade de me perguntar”, retruquei, “se ela não podia fazer algo por mim, e respondi-lhe que não.” “Cada um cuida de seus interesses”, disse o sr. Jaggers. E percebi que os lábios de Wemmick formavam a expressão “valores portáteis”. “Eu não teria dito ‘não’ a ela se fosse você”, insistiu o sr. Jaggers; “mas cada um é que sabe quais são seus interesses.” “Os interesses de cada um”, disse Wemmick, em tom de reprovação, “são os valores portáteis.” Pensando que chegara o momento de levantar a questão que me interessava, virei-me para o sr. Jaggers: “Mas fiz um pedido à senhora Havisham, sim. Pedi-lhe que me desse algumas informações a respeito de sua filha adotiva, e ela me disse tudo que sabia.” “É mesmo?”, perguntou o sr. Jaggers, inclinando-se para a frente, olhando para as botas e em seguida empertigando-se. “Ah! Creio que eu não teria feito isso, se eu fosse a senhora Havisham. Mas ela deve saber melhor do que ninguém quais são os interesses dela.” “Sei mais sobre a história da filha adotiva da senhora Havisham do que a própria senhora Havisham sabe. Sei quem é a mãe dela.” O sr. Jaggers dirigiu-me um olhar inquisidor e repetiu: “A mãe dela?”. “Vi a mãe dela nos últimos três dias.” “Sim?”, exclamou o sr. Jaggers. “E o senhor também a viu. E a viu ainda mais recentemente.” “Sim?”, exclamou o sr. Jaggers. “Talvez eu saiba mais sobre a história de Estella até mesmo do que o senhor sabe”, prossegui. “Sei também quem é o pai dela.” Uma imobilidade dominou o sr. Jaggers — ele era controlado demais para mudar de expressão, mas não conseguiu evitar que seu estado de atenção o imobilizasse — o que para mim deixou claro que ele não sabia quem era o pai de Estella. Isso eu já desconfiava, porque Provis dissera (segundo me contara Herbert) que havia ficado na sombra; liguei essa informação ao fato de que ele próprio só se tornara cliente do sr. Jaggers cerca de quatro anos depois, quando não teria mais motivo de revelar sua identidade. Porém antes eu não tinha certeza de que o sr. Jaggers não sabia disso; agora não havia mais dúvida. “Então você sabe quem é o pai da moça, Pip?”, perguntou o sr. Jaggers. “Sei, sim”, respondi. “O nome dele é Provis — ele é de Nova Gales do Sul.” O sr. Jaggers não pôde conter um movimento súbito de espanto ao ouvir essas palavras. O movimento foi o menor, o mais cuidadosamente reprimido e mais rapidamente contido que se pode imaginar, porém eu o percebi, embora o sr. Jaggers o disfarçasse tirando do bolso o lenço. Como Wemmick recebeu essa informação, não sei dizer, pois eu temia olhar para ele naquele momento, para que o perceptivo sr. Jaggers não detectasse que houvera alguma comunicação entre nós da qual ele não tivesse conhecimento. “E quais as provas, Pip?”, perguntou o sr. Jaggers, com perfeita tranquilidade, fazendo uma pausa antes de levar o lenço ao nariz. “É o próprio Provis que o diz?” “Ele não diz nada”, respondi, “nem nunca disse, nem sequer sabe ou imagina que sua filha esteja viva.” Pela primeira vez, o poderoso efeito do lenço não funcionou. Minha resposta foi de tal modo inesperada que o sr. Jaggers colocou-o no bolso sem completar o gesto habitual que começara a esboçar, cruzou os braços e olhou para mim com uma atenção severa, embora o rosto permanecesse impassível. Então lhe relatei tudo que sabia, e expliquei como obtivera essas informações; apenas deixei que ele inferisse que fora através da sra. Havisham que eu ficara sabendo o que na verdade me fora dito por Wemmick. Quanto a esse detalhe, fui muito cuidadoso. Além disso, só olhei para Wemmick quando terminei meu relato, e depois de permanecer por algum tempo encarando o sr. Jaggers em silêncio. Quando por fim voltei o olhar para Wemmick, vi que ele havia retirado a caneta de sua caixa de correio e estava concentrado em seu trabalho. “Ah!”, exclamou sr. Jaggers por fim, aproximando-se dos papéis da mesa. “Onde estávamos mesmo, Wemmick, quando o Pip entrou?” Mas recusei-me a ser despachado daquela maneira e dirigi a ele um apelo passional, quase indignado, no sentido de que ele fosse mais franco e destemido comigo. Lembrei-o das falsas esperanças de que eu fora vítima, o longo tempo em que elas haviam perdurado, a descoberta que eu fizera; e aludi ao perigo que me pesava na alma. Afirmei que eu certamente era uma pessoa que merecia um pouco de confiança de sua parte, em troca da confiança nele que eu acabava de manifestar. Afirmei que eu não o acusava de nada, nem nutria qualquer sentimento de desconfiança em relação a ele, porém esperava dele alguma confirmação. E se me perguntasse por que motivo eu queria tal confirmação, e por que eu imaginava ter direito a ela, minha resposta era que, por menos importância que ele desse a esses sonhos vãos, eu amara Estella profundamente e por muito tempo, e que, embora a tivesse perdido e fosse obrigado a viver em sofrimento, tudo que dizia respeito a ela ainda me importava mais do que qualquer outra coisa no mundo. E vendo que o sr. Jaggers permanecia imóvel e silencioso, aparentemente indiferente a meu apelo, voltei-me para Wemmick: “Wemmick, sei que você é um homem de bom coração. Estive na sua casa agradável, conheci o seu velho pai e sei com que diversões inocentes e alegres você descansa de sua vida profissional. Peço-lhe encarecidamente que diga uma palavra em meu favor junto ao senhor Jaggers, e lhe mostre que, dadas todas as circunstâncias, ele devia ser menos reservado comigo!”. Nunca vi dois homens se entreolharem com tamanho espanto quanto o fizeram o sr. Jaggers e Wemmick depois dessa minha apóstrofe. De início, cheguei a temer que Wemmick fosse imediatamente demitido; porém essa preocupação se dissipou quando vi que o sr. Jaggers relaxava a ponto de quase sorrir, e que Wemmick tornara-se mais ousado. “Que história é essa?”, exclamou o sr. Jaggers. “Você e o seu velho pai, e as suas diversões inocentes?” “Ora!”, respondeu Wemmick. “Se não trago essas coisas pra cá, qual o problema?” “Pip”, disse o sr. Jaggers, pousando a mão no meu braço e sorrindo abertamente, “este homem deve ser o impostor mais ladino de toda a Londres.” “Absolutamente”, retrucou Wemmick, cada vez mais ousado. “Creio que o senhor é que é.” Mais uma vez, eles trocaram um olhar de espanto; ao que parecia, um continuava temendo estar sendo passado para trás pelo outro. “Você tem uma casa agradável?”, exclamou o sr. Jaggers. “Como ela não interfere no trabalho”, respondeu Wemmick, “não vejo problema. Agora, eu olho para o senhor, e não me surpreenderia nem um pouco se descobrisse que o senhor tem planos de ter também uma casa agradável, um dia desses, quando se cansar de todo este trabalho.” O sr. Jaggers concordou com a cabeça, retrospectivamente, duas ou três vezes, e chegou mesmo a suspirar. “Pip”, disse ele, “não vamos falar sobre ‘sonhos vãos’; você entende mais dessas coisas do que eu, tendo vivências bem mais recentes dessa espécie. Mas quanto a essa outra questão, vou lhe apresentar uma hipótese. Veja bem, não estou admitindo nada.” Ele esperou que eu declarasse estar ciente de ter ele afirmado expressamente que não estava admitindo nada. “Pois então, Pip”, prosseguiu o sr. Jaggers, “imagine a seguinte hipótese. Imagine que uma mulher, nas circunstâncias mencionadas por você, mantinha a filha escondida e foi obrigada a comunicar o fato a seu advogado, quando ele insistiu que era importante ele saber, até para atuar em sua defesa, qual a real situação da criança. Imagine que ao mesmo tempo ele foi encarregado de procurar uma criança para ser adotada por uma mulher rica e excêntrica.” “Entendo, senhor.” “Imagine que esse advogado vivia num ambiente marcado pelo mal, onde ele via crianças serem geradas em grande número, fadadas à morte certa. Imagine que ele com frequência via crianças sendo solenemente julgadas por crimes em tribunais, sendo expostas ao público; imagine que ele sabia que era comum elas serem presas, açoitadas, degredadas, abandonadas, expulsas, sob todos os aspectos preparadas para a forca, crescendo para serem enforcadas. Imagine que praticamente todas as crianças que ele via no seu cotidiano profissional podiam ser encaradas como filhotes de peixes que mais cedo ou mais tarde haveriam de cair em sua rede — para serem processadas, defendidas, renegadas, transformadas em órfãs, infernizadas de uma maneira ou outra.” “Entendo, senhor.” “Imagine, Pip, que no meio de todas essas crianças havia uma menininha bonita que era possível salvar; uma criança cujo pai a dava por morta e tinha medo de informar-se a respeito dela; e a cuja mãe o advogado podia afirmar o que se segue: ‘Eu sei o que você fez, e como você o fez. Você chegou assim, atacou a vítima assim, ela se defendeu assim, você fez isso e mais isso, e agiu assim para evitar suspeitas. Eu levantei todos esses fatos, que agora relato a você. Abra mão da criança, a menos que seja necessário apresentá-la para provar sua inocência, caso em que ela será apresentada. Entregue a criança a mim, e eu farei o possível para que você seja absolvida. Se eu conseguir, a criança também será salva; se não conseguir, ainda assim sua filha estará a salvo’. Imagine que isso foi feito, e que a mulher foi absolvida.” “Entendo o senhor perfeitamente.” “Mas entende que não estou admitindo nada?” “O senhor não está admitindo nada.” E Wemmick repetiu: “Não está admitindo nada”. “Imagine, Pip, que a paixão e o pavor de morrer tiveram o efeito de abalar bastante a mente dessa mulher, e que, quando ela foi posta em liberdade, o medo levou-a a afastar-se do mundo e recorrer ao advogado em busca de abrigo. Imagine que ele lhe deu abrigo, e que reprimia sua natureza violenta e selvagem toda vez que ela dava sinais de irromper, afirmando seu poder sobre ela repetindo tudo o que sabia a seu respeito. Você entende esse caso hipotético?” “Perfeitamente.” “Imagine que a menina cresceu e casou-se por interesse. Que a mãe ainda estava viva. Que o pai ainda estava vivo. Que a mãe e o pai, um sem saber do outro, estavam vivendo a poucos quilômetros, ou até metros, de distância um do outro. Que o segredo continuava a ser um segredo, só que você o descobrira. Essa última hipótese, peço que a examine com muito cuidado.” “É o que estou fazendo.” “Peço a Wemmick que a examine também com muito cuidado.” E Wemmick respondeu: “Eu também”. “Em prol de quem você revelaria o segredo? Do pai? Creio que ele não ganharia nada sabendo da mãe. Da mãe? Creio que, se ela tivesse cometido tal ato, seria melhor ficar onde está. Da filha? Creio que não seria bom para ela que o marido ficasse conhecendo a identidade de seus pais, pois ela seria arrastada para a ignomínia, depois de vinte anos de liberdade, com uma boa probabilidade de assim permanecer o resto da vida. Mas, se você imaginar também que amou essa moça, Pip, e em torno dela teceu aqueles ‘sonhos vãos’ que, em uma ou outra ocasião, já brotaram nas cabeças de tantos homens, bem mais do que você imagina, então eu lhe digo que seria melhor — e você há de concordar comigo quando pensar mais sobre o assunto — cortar fora a sua mão esquerda envolta em ataduras com a mão direita, também envolta em ataduras, e depois passar a faca para o Wemmick, para que ele corte fora também a direita.” Olhei para Wemmick, que tinha o semblante muito sério. Ele levou o indicador aos lábios num gesto grave. Eu fiz o mesmo. O sr. Jaggers fez o mesmo. “Mas sim, Wemmick”, disse o sr. Jaggers então, no seu tom normal, “onde mesmo nós estávamos quando o senhor Pip entrou?” Permaneci por algum tempo vendo os dois a trabalhar, e observei que os olhares estranhos que eles antes trocavam de quando em quando se repetiram várias vezes, só que agora cada um deles parecia desconfiado, ou mesmo certo, de que se havia exposto ao outro num momento de fraqueza nada profissional. Por esse motivo, imagino, agora estavam inflexíveis um com o outro: o sr. Jaggers agia como um ditador, e Wemmick se justificava do modo mais obstinado sempre que surgia o menor problema. Eu nunca os vira em tamanho desacordo; pois de modo geral eles se davam muito bem. Porém, por sorte, surgiu oportunamente Mike, o cliente do boné de pele que costumava enxugar o nariz na manga, o qual eu vira na primeira vez em que viera ao escritório. Esse indivíduo, que pelo visto estava sempre em apuros (ou seja, em Newgate), ou ele ou algum membro da sua família, entrou dizendo que sua filha mais velha havia sido detida sob a acusação de ter cometido um furto numa loja. Enquanto ele relatava essa melancólica circunstância a Wemmick, e o sr. Jaggers, olímpico, postava-se junto à lareira sem tomar conhecimento do que acontecia, o brilho de uma lágrima surgiu no olho de Mike. “Mas o que é isso?”, exclamou Wemmick, indignadíssimo. “Como você me vem aqui choramingando?” “Não foi por querer, senhor.” “Mas é o que você fez”, retrucou Wemmick. “Como você ousa? Você não está em condições de vir aqui, se não consegue entrar aqui vazando feito uma pena defeituosa. Que história é essa?” “A gente não consegue conter os sentimentos, senhor Wemmick”, implorou Mike. “Conter o quê?”, perguntou Wemmick, com ferocidade. “Diga isso de novo!” “Escute uma coisa, meu caro”, disse o sr. Jaggers, aproximando-se e apontando para a porta. “Saia desse escritório. Nada de sentimentos aqui. Rua.” “Bem feito”, disse Wemmick. “Rua.” E assim, o infeliz Mike retirou-se com muita humildade, e o sr. Jaggers e Wemmick pareceram voltar às boas, retomando o trabalho com ânimo renovado, como se tivessem acabado de almoçar. 13 De Little Britain fui, com meu cheque no bolso, falar com o irmão da sra. Skiffins, o contador; e depois que o irmão da sra. Skiffins, o contador, foi direto à firma de Clarriker e trouxe Clarriker até mim, tive o grande prazer de concluir essa transação. Foi a única coisa boa que fiz, e a única coisa que levei a cabo, desde que tivera ciência das minhas grandes esperanças. Como Clarriker me informasse nessa ocasião que a firma estava progredindo, que ele agora poderia abrir uma pequena filial no Oriente a qual era muito necessária para que ele expandisse seus negócios, e que Herbert, agora na condição de sócio, iria encarregar-se dela, dei-me conta de que já devia estar preparado para separar-me de meu amigo, mesmo não estando minha própria situação mais estabelecida. E agora tive a impressão de que minha última âncora estava sendo levantada, e que em pouco tempo eu estaria sendo levado pelos ventos e correntezas. Porém eu seria recompensado ao ver a felicidade com que Herbert chegaria em casa em breve falando-me dessas mudanças, sem imaginar que não estaria me contando novidade nenhuma, e tecendo fantasias em que ele levaria Clara Barley à terra das Mil e uma noites,1 eu iria juntar-me a eles (numa caravana de camelos, imagino) e todos nós subiríamos o Nilo, onde veríamos maravilhas. Sem muito otimismo quanto à minha participação nesses planos mirabolantes, eu sentia que o caminho de Herbert estava cada vez mais desimpedido, e que bastava que o velho Bill Barley não economizasse rum e pimenta para que sua filha em pouco tempo se visse muito bem instalada. Já estávamos em março. Meu braço esquerdo, embora não houvesse nenhum sintoma mais sério, levou tanto tempo para sarar da maneira natural que eu ainda não podia vestir o casaco. Meu braço direito estava mais ou menos bom: desfigurado, porém razoavelmente funcional. Numa manhã de segunda-feira, quando eu e Herbert fazíamos o desjejum, recebi a seguinte carta de Wemmick, entregue pelo correio. Walworth. Queime este bilhete imediatamente após a leitura. No início da semana, no máximo na quarta-feira, faça o que o senhor deve fazer, se se sentir disposto a tentar. Queime agora. Depois que mostrei a carta a Herbert e a pus no fogo — mas não sem antes que nós dois decorássemos seu conteúdo — ficamos pensando no que fazer. Pois era preciso levar em conta o fato de que eu ainda estava incapacitado. “Pensei e repensei no assunto, vez após vez”, disse Herbert, “e acho que agora tive uma ideia melhor do que contratar um barqueiro do Tâmisa. Leva o Startop contigo. Um bom sujeito, bom remador, gosta de nós, entusiasmado e honrado.” Eu havia pensado nele, mais de uma vez. “Mas o que lhe dirias, Herbert?” “Só é preciso lhe dizer muito pouco. Podemos dizer que é apenas um capricho, porém que é preciso manter segredo, até que chegue o dia; então diremos a ele que há um motivo urgente para levar o Provis para o estrangeiro. Vais com ele?” “Sem dúvida.” “Para onde?” Para mim, em meio às muitas reflexões angustiadas que eu fizera em torno do problema, nosso porto de destino era quase indiferente — Hamburgo, Roterdã, Antuérpia — o lugar pouco importava, desde que Provis fosse tirado da Inglaterra. Qualquer vapor estrangeiro que encontrássemos e nos aceitasse haveria de servir. Eu sempre havia pensado em descer com ele um bom trecho do rio no barco: sem dúvida, ir bem além de Gravesend, um lugar crítico para uma investigação ou um inquérito se houvesse suspeitas. Como os vapores estrangeiros partiriam de Londres mais ou menos na hora da maré alta, nosso plano seria descer o rio na maré baixa anterior, e ficar à espera em algum lugar discreto até podermos abordar um navio. Não seria difícil calcular com bastante precisão a hora em que passaria um vapor por perto do lugar onde estaríamos, fosse esse lugar onde fosse, se antes nos informássemos de modo adequado. Herbert concordou com todos esses pontos, e imediatamente após o desjejum fomos fazer nossas investigações. Verificamos que um vapor com destino a Hamburgo era o que melhor nos serviria, e optamos por ele. Porém anotamos também os outros navios estrangeiros que partiriam na mesma maré, e fizemos questão de nos familiarizar com a forma e a cor de cada um. Em seguida, separamo-nos por algumas horas; fui tirar os passaportes, enquanto Herbert foi ter com Startop em sua residência. Fizemos tudo que era necessário fazer sem maiores problemas, e voltamos a nos encontrar à uma da tarde para trocar relatos. Eu, de minha parte, já trazia os passaportes; Herbert havia falado com Startop, o qual estava mais do que pronto para nos ajudar. Eles dois cuidariam dos remos, resolvemos, enquanto que eu me encarregaria do leme. Nosso fugitivo seria apenas passageiro, e ficaria quieto em seu canto; como velocidade não era importante, haveríamos de chegar a nosso destino em tempo hábil. Combinamos que Herbert não voltaria em casa para jantar antes de passar em Mill Pond Bank; que ele não iria lá na noite do dia seguinte, terça-feira; que ele prepararia Provis para descer até o rio num trecho bem perto da casa na quarta-feira, quando visse que estávamos chegando, não antes disso; que tudo seria combinado com ele naquela noite de segunda-feira; e que nada mais lhe seria dito enquanto ele não estivesse no barco. Tendo tomado todas essas precauções com Herbert, fui para casa. Ao abrir a porta de nossos aposentos com minha chave, encontrei uma carta dirigida a mim na caixa de correspondência; uma carta muito suja, embora não mal escrita. Fora entregue em mãos (certamente depois que eu saíra de casa), e seu teor era o seguinte: Se você não tem medo de ir ao charco hoje à noite, ou amanhã, às nove horas, à casa do guarda da eclusa junto ao forno de cal, então é bom que venha. Se quer informações a respeito do seu tio Provis, é importante que venha sem dizer nada a ninguém e sem perder tempo. É preciso vir sozinho. Leve esta carta consigo. Eu já tinha preocupações suficientes antes de receber essa estranha carta. Era difícil decidir o que fazer agora. E o pior era que a decisão teria de ser tomada rapidamente, senão eu perderia a diligência vespertina, que me permitiria chegar lá a tempo. No dia seguinte seria impossível ir, pois já estaria quase na hora da partida. E havia uma possibilidade de que as tais informações tivessem implicações para minha fuga. Mesmo que eu tivesse bastante tempo para decidir, creio que teria ido assim mesmo. Não dispondo de tempo — o relógio indicava que a diligência partiria em meia hora — resolvi ir. Certamente não o teria feito se não fosse a referência a meu tio Provis; esse fato, juntamente com a carta de Wemmick, e as preparações frenéticas daquela manhã levaram-me a tomar a decisão. É tão difícil compreender com clareza o sentido de quase qualquer carta quando se está muito apressado que tive de ler aquela missiva misteriosa outra vez, e mais outra, até me dar conta, de modo mecânico, de que ela me impunha segredo. E foi de modo igualmente mecânico que reagi a essa imposição, deixando um bilhete a lápis para Herbert, dizendo que estava de partida, não sabia por quanto tempo, para ver como estava a sra. Havisham, mas que tentaria voltar logo. Mal tive tempo de vestir o sobretudo, trancar as portas e sair em direção ao escritório das diligências pelo caminho mais curto. Se tivesse tomado um fiacre e seguido pelas vias principais, não teria chegado a tempo; pelo caminho que escolhi, lá cheguei no momento exato em que a carruagem estava saindo. Quando me dei conta, vi que era o único passageiro dentro dela, a sacolejar-me, com as pernas afundadas na palha até a altura dos joelhos. Na verdade, desde o momento em que recebera aquela carta eu não tinha pleno controle de meus atos; após a azáfama daquela manhã, sua leitura me deixara perplexo. A agitação matinal fora grande, pois, embora estivesse aguardando há muito tempo e com muita ansiedade o aviso de Wemmick, quando o aviso finalmente veio fui tomado de surpresa. E agora comecei a perguntar a mim mesmo por que motivo estava naquela carruagem, se havia de fato razão suficiente para estar ali, se não seria melhor saltar e voltar, se não era má ideia atender ao chamado de uma carta anônima; em suma, passei por todas aquelas fases de contradição e indecisão que, imagino, todo aquele que já se viu agindo com muita pressa conhece muito bem. Mas a referência nominal a Provis fora o fator predominante. Raciocinei, tal como já fizera antes sem me dar conta de que o fizera — se é possível chamar aquilo de raciocínio — que se algum mal vitimasse Provis por não ter atendido àquele chamado, como poderia eu me perdoar depois? Já estava escuro quando chegamos, e a viagem pareceu longa e monótona para mim, que pouco podia ver de dentro da carruagem, e que não podia viajar do lado de fora por estar com o braço machucado. Evitando o Javali Azul, fui a uma estalagem menos recomendada do outro lado da cidade, e pedi que me preparassem o jantar. Nesse ínterim, fui até a Casa Satis informar-me a respeito da sra. Havisham; ela ainda estava muito mal, embora um pouco melhor. A estalagem em que eu estava fora outrora parte de um convento, e fui jantar num pequeno refeitório octogonal, como uma pia batismal. Vendo que eu não conseguia cortar a carne, o estalajadeiro, um velho com uma calva luzidia, veio ajudar-me. Começamos a conversar, e ele teve a bondade de brindar-me com minha própria história — naturalmente, contendo o detalhe conhecido segundo o qual Pumblechook fora meu primeiro benfeitor e o responsável por minha fortuna. “O senhor conhece o rapaz?”, indaguei. “Se o conheço?”, exclamou o velho. “Desde que era deste tamaninho.” “Ele costuma vir aqui?” “Vem, sim”, disse o velho, “pra falar com os amigos, de vez em quando, e dar as costas pro homem que mais ajudou ele.” “Que homem?” “Aquele de quem falei”, ele respondeu. “O senhor Pumblechook.” “É só com ele que o rapaz é ingrato?” “É, porque não tem mais ninguém”, retrucou o homem. “E sabe por quê? Porque o Pumblechook é que fez tudo por ele.” “É isso que o Pumblechook diz?” “Que ele diz? Nem precisa dizer.” “Mas ele diz isso?” “Só de ouvir ele falar, o sangue da gente vira vinagre branco, meu senhor”, disse o estalajadeiro. Pensei: “No entanto, tu, Joe, tu jamais falas nisso. Joe, tão injustiçado e amoroso, tu jamais te queixas. Nem tu, Biddy , tão bondosa!”. “Pelo visto, o acidente tirou sua fome”, disse o homem, indicando com o olhar meu braço envolto em ataduras sob o casaco. “Prove um pedaço bem macio.” “Não, obrigado”, respondi, afastando-me da mesa para ir matutar junto ao fogo. “Não consigo comer mais. Por favor, pode levar.” Eu nunca sentira com tanta intensidade minha ingratidão para com Joe como agora, em contraste com a impostura descarada de Pumblechook. Quanto mais falso ele era, mais fiel era Joe; quanto mais vil ele era, mais nobre era Joe. Com o coração profunda e merecidamente humilhado, fiquei mais de uma hora a meditar junto ao fogo. Quando o relógio deu a hora, voltei a mim, porém não haviam diminuído minha depressão e meu remorso; levantei-me, pedi que prendessem meu casaco em torno do pescoço, e saí. Antes eu havia procurado a carta nos meus bolsos, para consultá-la novamente, porém não conseguira encontrá-la; preocupava-me a possibilidade de que ela tivesse caído na palha do chão da carruagem. Eu sabia muito bem, porém, que o lugar combinado era a casa do guarda da eclusa perto do forno de cal no charco, e que o encontro estava marcado para as nove horas. Segui então diretamente para o charco, não tendo tempo a perder. 14 Era uma noite escura, embora a lua cheia se elevasse no momento em que me afastei das terras cultivadas e adentrei o charco. Além da linha escura do alagado havia uma faixa de céu límpido, tão estreita que nela mal cabia o grande disco vermelho da lua. Em poucos minutos ela ascendeu, saindo daquele trecho límpido de céu e perdendo-se em meio às montanhas de nuvens. Havia um vento melancólico, e o charco estava muito desolador. Para um forasteiro, seria insuportável, e mesmo para mim o cenário era tão opressor que hesitei, meio inclinado a voltar atrás. Mas eu conhecia bem aquela região, e teria encontrado o caminho de volta numa noite bem mais escura, e não tinha desculpa para voltar, já estando lá. Assim, tendo vindo contra minha própria inclinação, contra ela insisti e segui adiante. A direção que tomei não era a do meu antigo lar, nem aquela que seguíramos em busca dos foragidos. Eu caminhava dando as costas para as presigangas distantes; embora eu ainda pudesse ver os velhos faróis ao longe nas pontas de areia, para isso era preciso olhar por cima do ombro. Eu conhecia o forno de cal tão bem quanto conhecia a velha bateria, porém um ficava separado do outro por quilômetros de distância; assim, se uma luz estivesse acesa em cada um desses dois lugares à noite, haveria uma longa faixa de horizonte vazio entre os dois pontos luminosos. De início, tive que fechar algumas porteiras depois de passar por elas, e de vez em quando era obrigado a deter-me enquanto os bois que se escarrapachavam no caminho levantavam-se e arrastavam-se por entre o capim e os juncos. Mas depois de algum tempo toda a baixada parecia pertencer apenas a mim. Levei mais meia hora para chegar aos arredores do forno. A cal ardia com um cheiro lerdo e sufocante, porém quem acendera o fogo fora embora, porque não havia nenhum trabalhador à vista. Bem perto do forno havia uma pequena pedreira. Ela ficava exatamente no meu caminho, e haviam trabalhado nela naquele dia, pois vi ferramentas e carrinhos de mão largados por lá. Voltando ao nível do charco ao sair dessa escavação — pois a pista passava por dentro dela — vi uma luz acesa na casa do guarda da eclusa. Apressei o passo e bati à porta com a mão. Aguardando uma resposta, olhei à minha volta, e percebi que a eclusa estava abandonada e quebrada, e que o casebre de madeira, com telhado de telhas, não proporcionaria proteção das intempéries por muito mais tempo, se é que ainda o fazia agora, e que a lama estava coberta de cal, e que o vapor sufocante que saía do forno aproximava-se de mim como um fantasma. Não tendo resposta, voltei a bater à porta. Também não houve resposta, e pus a mão no trinco. O trinco levantou-se, e a porta abriu-se. Olhando dentro da casa, vi uma vela acesa sobre uma mesa, um banco e um colchão num estrado baixo. Vendo que havia um sótão, gritei: “Há alguém em casa?”, mas não tive resposta. Então olhei para o relógio e, percebendo que já passava das nove horas, voltei a perguntar: “Há alguém em casa?”. Não havendo resposta mais uma vez, saí da casa, sem saber o que fazer. Começava a chover forte. Não tendo mais nada a ver além do que já fora visto, voltei para dentro da casa e fiquei à porta, olhando para a noite lá fora. Ocorreu-me então que alguém estivera ali recentemente e deveria voltar em breve, senão a vela não estaria acesa, e resolvi verificar se o pavio era longo. Virei-me para fazê-lo, e já havia segurado a vela quando ela foi apagada por um choque violento, e quando dei conta de mim um laço forte fora jogado sobre minha cabeça por detrás. “Agora”, disse uma voz contida, praguejando, “te peguei!” “O que é isso?”, gritei, debatendo-me. “Quem é? Socorro! Socorro!” Não apenas meus braços foram apertados contra meu corpo como também a pressão sobre o braço ferido causou-me uma dor intensa. Ora a mão de um homem forte, ora o peito de um homem forte eram apertados contra minha boca para amortecer meus gritos, e sentindo um hálito quente sempre junto a mim, debati-me em vão no escuro, enquanto era amarrado com força à parede. “E agora”, disse a voz contida com mais uma imprecação, “grita de novo e dou cabo de ti!” Sentindo-me fraco e indisposto com a dor no braço, confuso por ter sido apanhado de surpresa, e no entanto percebendo que aquela ameaça poderia ser posta em prática com facilidade, parei de resistir e tentei liberar meu braço um pouco que fosse. Porém ele estava amarrado com muita força. Era como se, tendo sido queimado antes, agora estivesse sendo fervido. Quando a noite foi subitamente substituída por uma escuridão negra, dei-me conta de que o homem havia fechado a janela. Depois de tatear um pouco, ele encontrou a pederneira e o pedaço de aço que procurava e pôs-se a tentar acender a vela. Forcei a vista olhando para as faíscas que caíam sobre a mecha, enquanto o homem soprava e soprava, com um pavio na mão, porém eu só podia ver os lábios dele, e o azul da ponta do pavio; e mesmo assim, apenas de relance. A mecha estava úmida — como era de se esperar, naquele lugar — e uma por uma as fagulhas morriam. O homem não tinha pressa, e mais uma vez tomou a pederneira e o aço. À medida que as fagulhas abundantes brotavam a seu redor, pude ver suas mãos e algo do rosto, e percebi que ele estava sentado e debruçado sobre a mesa, mas só isso. Depois de algum tempo vi seus lábios azulados outra vez, soprando a mecha, e então uma chama súbita acendeu-se, revelando-me o rosto de Orlick. Quem eu esperava ver, não sei. Certamente não Orlick. Ao vê-lo, compreendi que eu estava correndo perigo de fato, e fixei a vista nele. Orlick acendeu a vela com muito cuidado e deixou o pavio cair no chão, pisando nele para apagá-lo. Então pôs a vela sobre a mesa para que pudesse me ver, sentou-se com os braços cruzados sobre a mesa e ficou a olhar-me. Concluí que eu fora amarrado a uma escada forte, perpendicular, afastada alguns centímetros da parede — uma escada que ficava fixa ali, dando acesso ao sótão. “Agora”, disse ele, depois de nos entreolharmos por algum tempo, “eu te peguei.” “Desamarra-me. Solta-me!” “Ah!”, ele respondeu. “Vou te soltar. Vou te deixar ir pra lua, pras estrelas. Quando chegar a hora certa.” “Por que me fizeste vir até aqui?” “Não sabes?”, disse ele, com um olhar feroz. “Por que me atacaste no escuro?” “Porque pretendo fazer tudo sozinho. Pra guardar um segredo, melhor um só do que dois. Ah, meu inimigo, meu inimigo!” No modo como ele apreciava o espetáculo que eu lhe proporcionava, estando ele sentado com os braços cruzados sobre a mesa, sacudindo a cabeça para mim e abraçando o próprio corpo, havia uma malignidade que me fez tremer. Enquanto eu o olhava em silêncio, ele estendeu a mão para um canto e de lá tirou uma arma com coronha de latão. “Conheces isto?”, perguntou, fazendo menção de apontar a arma para mim. “Sabes onde a viste antes? Fala, lobo!” “Sei”, respondi. “Foi por culpa tua que perdi aquele emprego. Foi, sim. Fala!” “O que mais eu podia fazer?” “Fizeste isso, o que já seria bastante. Como ousaste me separar da moça que eu gostava?” “Quando foi que fiz isso?” “E quando não o fizeste? Foste tu, como sempre, quem fez o velho Orlick ficar com má fama junto a ela.” “Fizeste por merecer a tua má fama. Eu não poderia prejudicar-te se tu não prejudicasses a ti mesmo.” “Mentira. E és capaz de fazer qualquer coisa, gastar o que tiveres de gastar, para me expulsar daqui, não é?”, disse ele, repetindo as palavras que eu dissera a Biddy na última vez em que estivera com ela. “Pois vou te dizer uma coisa. Hoje é que seria a melhor ocasião para me expulsares daqui. Ah! Valeria a pena mesmo que tivesses que gastar vinte vezes todo o dinheiro que tens, até o último tostão!” Ele sacudiu a mão pesada em minha direção, rosnando como um tigre, e senti que aquilo era verdade. “O que vais fazer comigo?” “Eu vou”, disse ele, batendo o punho cerrado na mesa com energia e levantando-se ao fazê-lo, para que o golpe tivesse ainda mais força, “eu vou te matar!” Inclinou-se para a frente, encarando-me, e lentamente foi abrindo a mão, passando-a na boca depois, como se estivesse salivando de antegozo, e voltou a sentar-se. “Sempre atrapalhaste o velho Orlick, desde que eras pequeno. Hoje isso vai acabar. Ele nunca mais vai te ver. Estás morto.” Tive a impressão de estar à beira da minha própria sepultura. Por um momento olhei à minha volta, em pânico, tentando encontrar uma possibilidade de fugir; mas não havia nenhuma. “Mais que isso”, disse ele, cruzando os braços outra vez, “de ti não há de sobrar nem um farrapo, nem um osso, neste mundo. Vou jogar teu corpo dentro do forno — eu era capaz de carregar dois de ti — e as pessoas que fiquem a imaginar o que quiserem, pois nunca hão de saber o que aconteceu.” Minha mente, com uma rapidez inconcebível, elaborou todas as consequências de uma tal morte. O pai de Estela acreditaria que eu o havia abandonado, seria preso e morreria me acusando; até mesmo Herbert teria dúvidas a meu respeito, quando comparasse a carta que eu deixara para ele com o fato de que eu só estivera por um instante junto ao portão da casa da sra. Havisham; Joe e Biddy jamais saberiam o quanto eu me arrependera naquela noite; ninguém jamais saberia o que eu sofrera, como eu pretendera ser fiel, a que agonia eu fora submetido. A morte que me aguardava era terrível, porém muito mais terrível do que a morte era o terror de deixar uma lembrança má após a morte. E eram tão rápidos os meus pensamentos que me imaginei desprezado pelas gerações futuras — os filhos de Estella, e os filhos deles — enquanto as palavras daquele facínora ainda estavam em seus lábios. “Agora, lobo”, disse ele, “antes de eu te matar como quem mata um bicho — e é isso que vou fazer, e foi por isso que te amarrei assim — vou olhar bem para ti e saborear o momento. Ah, meu inimigo!” Passara por minha cabeça a ideia de gritar por socorro outra vez, ainda que poucos soubessem, como sabia eu, o quanto era isolado aquele lugar, e como era inútil pedir ajuda. Mas ao vê-lo regozijar-se por me ver preso, deram-me forças o ódio e o desprezo que ele me inspirava, e isso me fez calar. Acima de tudo, decidi que não imploraria, e que morreria resistindo de algum modo a ele, ainda que sem esperanças. Embora meus pensamentos em relação a todas as outras pessoas fossem elevados naquele momento extremo, em que eu pedia humildemente perdão aos céus, e me doía o coração ao pensar que eu não me despedira, e nunca, nunca mais teria oportunidade de me despedir, daqueles que me eram caros, como também não poderia me explicar a eles, nem lhes pedir compaixão por meus erros miseráveis, ainda assim, se eu pudesse matá-lo, mesmo no instante da morte, eu o teria feito. Orlick havia bebido, e seus olhos estavam vermelhos. De seu pescoço pendia um frasco de metal, tal como eu o vira tantas vezes fazer com sua comida e bebida. Ele levou o frasco aos lábios e bebeu um gole ardente; senti o cheiro da bebida forte que lhe fez o rosto corar. “Lobo!”, disse ele, voltando a cruzar os braços. “O velho Orlick vai te contar uma coisa. Foste tu quem matou a megera da tua irmã.” Mais uma vez minha mente, com a mesma rapidez inconcebível de antes, esgotou todo o assunto da agressão sofrida por minha irmã, seu estado de invalidez, sua morte, antes mesmo que sua fala lerda e hesitante terminasse de articular aquelas palavras. “Foste tu, canalha”, retruquei. “Eu te digo que foste tu — a coisa foi feita através de ti”, ele insistiu, pegando a arma e dando uma coronhada no ar vazio que nos separava. “Eu vim por detrás, que nem fiz ainda há pouco contigo. E acertei nela! Deixei ela morrendo, e se tivesse um forno de cal pertinho como tem hoje, ela não ia sobreviver, não. Mas não foi o velho Orlick que fez a coisa, foste tu. Tu eras favorecido, e ele vivia levando descompostura e apanhando. O velho Orlick levava descompostura e apanhava, não é? Agora vais pagar por isso. Tu o fizeste, e agora vais pagar.” Ele bebeu mais, e sua ferocidade aumentou. Vi, pelo ângulo em que o frasco era inclinado, que não restava muito dentro dele. Compreendi com clareza que Orlick estava se embriagando para criar coragem de me matar. Eu sabia que cada gota ali contida era uma gota de minha vida. Sabia que, quando eu fosse transformado em parte do vapor que se havia aproximado de mim pouco antes, como se fosse meu próprio fantasma a me alertar, Orlick faria tal como fizera na noite do ataque à minha irm㠗 iria correndo para a aldeia, para ser visto a arrastar-se de uma taverna a outra, bebendo. Em minha mente, acompanhei-o num átimo até a aldeia, vi a imagem de Orlick andando pelas ruas, e contrastei as luzes e a vida da aldeia com o charco isolado e o vapor branco que vagava no ar, no qual eu estaria dissolvido. Não era apenas que eu evocasse anos e anos enquanto ele pronunciava uma dezena de palavras: o que ele dizia criava imagens em minha mente, e não só palavras. No estado de excitação nervosa de meu cérebro, eu não conseguia pensar num lugar sem que o visse, nem em pessoas sem que as visse. Impossível exprimir o quanto eram vívidas essas imagens, e, no entanto, eu estava o tempo todo observando Orlick atentamente — e quem deixaria de observar atentamente o tigre prestes a dar o bote? — de tal modo que percebia o menor movimento de seus dedos. Depois de beber pela segunda vez, ele levantou-se do banco em que se sentara e empurrou a mesa para o lado. Então pegou a vela, cobrindo-a com a mão de modo a concentrar toda a luz sobre mim, e ficou em pé a me contemplar, regozijando-se com o que via. “Lobo, vou te contar outra coisa. Foi no velho Orlick que tropeçaste na escada da tua casa aquela noite.” Vi a escada com os lampiões apagados. Vi as sombras dos pesados corrimãos, lançadas pela lanterna do vigia sobre a parede. Vi os aposentos que jamais voltaria a ver; aqui, uma porta entreaberta; ali, uma porta fechada; e todas as peças de mobília em seus lugares. “E por que o velho Orlick estava lá? Vou te contar mais uma coisa, lobo. Tu e ela conseguiste mesmo me expulsar daqui, tanto que eu não consegui mais arranjar trabalho fácil, e assim achei novos companheiros e novos patrões. São eles que escreve as minhas carta quando eu quero escrever — gostaste? — eles que escreve as minhas carta, lobo! Eles escreve com cinquenta letras diferentes, e não sempre a mesma, como tu fazes, impostor que és. Eu resolvi que ia te matar desde a vez que vieste aqui pro enterro da tua irmã. Ainda não tinha descoberto um jeito de trazer-te aqui, e fiquei te vigiando pra conhecer teus hábitos. Mas o velho Orlick dizia sempre com seus botões: ‘Eu hei de dar um jeito de pegar ele!’. E não é que de tanto te procurar eu acabo encontrando o teu tio Provis?” Mill Pond Bank, e Chink’s Basin, e Old Green Copper Rope-Walk, tudo tão vívido! Provis em seus aposentos, o sinal que agora nada mais significaria, a bela Clara, a boa matrona maternal, o velho Bill Barley deitado na cama, tudo aquilo passou por mim, como se estivesse na correnteza rápida de minha vida, correndo célere rumo ao mar! “Então tinhas um tio! Ora, eu te conhecia lá do Gargery desde que eras um lobinho tão pequeno que eu podia te estrangular com o polegar e este dedo (pensei em fazer isso mais de uma vez, ao ver-te andando em meio aos bois nos domingos), e naquele tempo não tinhas tio nenhum. Não tinha, não! Mas quando o velho Orlick ficou sabendo que era quase certo que o teu tio Provis era o homem que levava nas perna os ferro que o velho Orlick limou aqui nesse charco tantos anos atrás, e que ele guardou até que acertou tua irmã com eles, como se fosse um boi no matadouro, que nem ele vai te acertar — hein? — assim que ele — hein?” No meio daquela provocação feroz, ele aproximou-me do rosto a vela de tal modo que me virei para o lado, para não me queimar. “Ah”!, exclamou ele, rindo, depois de repetir o gesto, “gato escaldado tem medo de água fria! O velho Orlick sabia que tu te queimaste, o velho Orlick sabia que estavas a esconder o teu tio Provis, o velho Orlick é muito mais esperto que tu e sabia que tu virias cá hoje! Agora vou te contar mais uma coisa, lobo, e depois terminou. Tem uns aí que é mais esperto que o teu tio Provis, que nem eu sou mais esperto que tu. Ele que se cuide, despois que o sobrinho dele morrer! Ele que se cuide quando ninguém encontrar nem um fiapo da roupa do sobrinho queridinho dele, nem mesmo um osso! Tem uns aí que não suporta ver o Magwitch — isso mesmo, eu sei o nome dele! — vivinho e na mesma terra que eles, e que sabia muito bem do paradeiro dele quando ele estava nas estranja, tanto assim que ele não tinha nada que voltar pra cá e ameaçar eles. Vai ver que é o mesmo que escreve com cinquenta letras diferentes, e que não é que nem um impostor como tu, que só escreve com uma. Cuidado com o Compey son, Magwitch, cuidado com a forca!” Ele aproximou a vela de mim outra vez, chamuscando-me o rosto e o cabelo, e cegando-me por um instante; depois virou para mim as costas fortes e recolocou a vela sobre a mesa. Em minha mente, rezei uma prece e vi-me com Joe, Biddy e Herbert, antes que ele voltasse a virar-se para mim. Havia um espaço vazio de alguns metros entre a mesa e a parede. Nesse espaço, ele ficou a andar de um lado para o outro. Sua enorme força parecia estar mais concentrada do que nunca, e ele caminhava com os braços pesados soltos, olhando-me com ferocidade. Não me restava mais nenhum vestígio de esperança. Por maior que fosse minha agitação interior, e por mais extraordinária a força das imagens que jorravam em minha mente em vez de pensamentos, ainda assim eu compreendia muito bem que, se Orlick não estivesse decidido a matar-me nos próximos instantes e fazer com que ninguém jamais soubesse o que acontecera, ele não teria de modo algum me dito o que me dissera. De repente Orlick parou, tirou do frasco a rolha e jogou-a fora. Embora a rolha fosse leve, ouvi-a cair como se fosse um peso de chumbo. Ele engoliu a bebida devagar, inclinando a garrafa pouco a pouco, e não voltou a olhar para mim. Verteu as últimas gotas na palma da mão e lambeu-a. Então, num súbito frenesi de violência, e com as mais horrendas imprecações, jogou fora a garrafa e abaixou-se; e vi em sua mão um malho pesado, de cabo comprido. Permaneci fiel a minha decisão, pois sem articular uma única palavra vã de apelo a ele dirigida, gritei a plenos pulmões e debati-me com toda minha força. Só me era possível mover a cabeça e as pernas, e o fiz valendo-me de um vigor que até então não sabia existir em mim. No mesmo instante ouvi vozes em resposta, vi vultos e um feixe de luz entrarem de repente pela porta, ouvi vozes e um tumulto, e vi Orlick emergir do meio de um conflito, como de um torvelinho de água, saltar por cima da mesa e fugir na noite. Depois de um intervalo em branco, dei por mim desamarrado, deitado no chão, no mesmo lugar, com a cabeça no joelho de alguém. Meus olhos estavam fixos na escada encostada na parede, quando recuperei os sentidos — os olhos se abriram antes que a mente enxergasse — e assim, à medida que fui recobrando a consciência, compreendi que estava no mesmo lugar onde a havia perdido. Indiferente demais, de início, para sequer olhar à minha volta e ver quem apoiava minha cabeça, fiquei olhando para a escada, quando surgiu entre meus olhos e ela um rosto. O rosto do empregado de Trabb! “Acho que ele está bem”, disse o empregado de Trabb, com uma voz séria; “mas ó como ele está branco!” Ao ouvir essas palavras, o rosto da pessoa que me apoiava a cabeça olhou para meu rosto, e vi que era… “Herbert! Meu Deus!” “Calma”, disse Herbert. “Devagar, Handel. Não te precipites.” “E o nosso velho colega, Startop!”, exclamei, quando também ele se debruçou sobre mim. “Lembra-te da ajuda que ele nos vai dar”, disse Herbert, “e fica calmo.” Ao ouvir essa alusão, levantei-me de um salto; logo, porém, voltei a deitarme, por efeito da dor no braço. “Não perdemos a oportunidade, não, Herbert? Que dia é hoje? Há quanto tempo estou aqui?” Pois eu tinha a estranha e forte impressão de que estava deitado ali há muito tempo — um dia e uma noite — dois dias e duas noites — se não mais. “Não perdemos a oportunidade, não. Hoje ainda é segunda-feira.” “Graças a Deus!” “E tens todo o dia de amanhã, terça-feira, para descansar”, disse Herbert. “Mas entendo que não consigas deixar de gemer, meu caro Handel. Estás muito ferido? Consegues ficar de pé?” “Claro, claro”, respondi. “E também andar. A única dor que sinto é neste braço, que lateja.” Desnudaram meu braço e fizeram o que foi possível. Estava muitíssimo inchado e inflamado, e eu mal suportava que o tocassem. Porém rasgaram seus lenços para fazer novas bandagens, e cuidadosamente o recolaram na tipoia, enquanto não chegássemos à aldeia, onde haveria uma loção refrescante para nele passar. Em pouco tempo saímos e fechamos a porta da casinha escura e vazia, e já passávamos pela pedreira, no caminho de volta. O menino que trabalhava para Trabb — que agora já era um rapazola crescido — ia à nossa frente com uma lanterna; fora ela a luz que eu vira entrando pela porta. Mas a lua estava mais alta, uma diferença de umas boas duas horas desde a última vez em que eu vira o céu, e a noite, embora chuvosa, estava bem mais límpida. O vapor branco do forno passou por nós enquanto caminhávamos, e tal como antes eu rezara em pensamento, agora eu dava graças a Deus mentalmente. Insisti para que Herbert me contasse como viera me salvar, o que de início ele se recusara terminantemente a fazer, repetindo que eu me acalmasse; agora, porém, fiquei sabendo que com a pressa de partir eu deixara cair a carta, aberta, em nossos aposentos, e Herbert, ao entrar, trazendo Startop, com quem se encontrara na rua a caminho de casa, encontrou-a, pouco depois de eu ter saído. O tom da carta deixou-o preocupado, ainda mais por efeito da incoerência entre o teor dela e o da carta apressada que eu deixara para ele. Como sua preocupação só fez aumentar, em vez de diminuir, após quinze minutos de deliberação, ele partiu em direção ao escritório das diligências, acompanhado de Startop, que se ofereceu para ir também, e lá perguntou a que horas partiria a próxima carruagem. Ao saber que a diligência vespertina já havia partido, e percebendo que, mais do que preocupado, estava agora alarmado, à medida que iam surgindo obstáculos, Herbert decidiu tomar um carro da posta. Assim, ele e Startop chegaram ao Javali Azul, julgando que lá iam encontrar a mim ou notícias minhas; nada achando, foram à casa da sra. Havisham, onde perderam meu rastro. Então voltaram ao hotel (sem dúvida, por volta da hora em que eu estava ouvindo a popular versão local de minha própria história), para jantar e encontrar um guia que os conduzisse pelo charco. Um dos homens que vadiavam sob o arco do Javali era o empregado de Trabb — fiel a seu velho hábito de estar em todos os lugares onde nada tinha a fazer — o qual me vira saindo da casa da sra. Havisham e indo ao lugar onde jantei. Assim, o empregado de Trabb atuou como guia, e com ele foram até a casa do guarda da eclusa, porém pelo caminho da aldeia, que eu evitara. Enquanto seguiam, Herbert refletiu que era mesmo possível que eu tivesse vindo numa missão genuína que visasse à segurança de Provis, e raciocinando que nesse caso uma interrupção seria prejudicial, deixou que o guia e Startop ficassem à entrada da pedreira e seguiu caminho a sós, contornando a casa duas ou três vezes, tentando descobrir se dentro dela tudo estava bem. Como só ouvisse os sons indistintos de uma única voz grave e áspera (foi o período em que minha mente estava muito ocupada), começou a duvidar que eu estivesse lá, quando de repente gritei bem alto, e ele respondeu aos gritos, e entrou de súbito, seguido logo depois pelos outros dois. Quando contei a Herbert o que havia ocorrido dentro da casa, ele opinou que fôssemos imediatamente procurar um magistrado na aldeia, apesar do avançado na hora, a fim de obter um mandado. Eu, entretanto, já concluíra que tal decisão, mantendo-nos ali, ou obrigando-nos a voltar, talvez viesse a ter consequências fatais para Provis. Não havia como refutar esse argumento, e assim desistimos de perseguir Orlick por ora. Dadas as circunstâncias, julgamos prudente apresentar ao empregado de Trabb uma versão atenuada da situação, pois estou certo de que ele ficaria muito decepcionado se soubesse que sua intervenção me salvara do forno de cal. Não que o empregado de Trabb fosse maligno por natureza, porém tinha um excesso de vivacidade ociosa, e era dado a querer variedade e agitação às custas de quem quer que fosse. Quando nos despedimos, dei-lhe dois guinéus (o que ele aprovou) e disse-lhe que lamentava ter feito mau juízo dele outrora (o que não lhe causou qualquer impressão). Como quarta-feira estava tão próxima, resolvemos voltar a Londres naquela noite, nós três no carro da posta; mais ainda porque desse modo estaríamos longe da aldeia antes que a aventura daquela noite começasse a ser comentada. Herbert comprou um frasco grande de sedativo para meu braço, e as aplicações constantes desse medicamento me permitiram suportar a dor durante toda a viagem. Já era dia claro quando chegamos ao Temple; deitei-me de imediato e passei todo o dia acamado. Na cama, meu terror de adoecer e não poder viajar no dia seguinte era tamanho que não sei como ele não me fez adoecer. Isso certamente teria acontecido, em conjunção com o sofrimento mental por que eu passara, não fosse a tensão que me proporcionava a ideia do amanhã. Um dia antecipado com tanta ansiedade, pleno de consequências tais, com resultados impossíveis de prever, embora tão próximos. Claramente, por motivo de precaução não podíamos nos comunicar com Provis naquele dia, porém esse fato teve o efeito de aumentar ainda mais minha inquietação. Qualquer passo, qualquer som provocava em mim um sobressalto, fazendo-me pensar que ele fora descoberto e preso, e que o ruído que eu ouvia era a aproximação do mensageiro que vinha trazer tal notícia. Convenci-me de que sabia que ele já fora preso; que o que me atormentava era mais do que um temor ou um pressentimento; que a coisa já acontecera, e eu misteriosamente tinha conhecimento do fato. À medida que o dia transcorria e não vinha nenhuma notícia má, que escurecia e a noite se instalava, meu terror de não poder partir no dia seguinte por motivo de saúde dominou-me por completo. Meu braço queimado latejava, minha cabeça febril pulsava, e eu temia que estivesse começando a delirar. Contei até um número elevado, para me tranquilizar, e fiquei a repetir trechos que conhecia de cor, em prosa e verso. Por vezes ocorria que, apenas por estar exausto, eu cochilava por alguns momentos, ou sucumbia ao esquecimento; então exclamava a mim mesmo, assustado: “Pronto, começou o delírio!”. Meus amigos me obrigaram a descansar o dia todo, mantendo meu braço em bandagens, servindo-me bebidas frescas. Sempre que adormecia, eu acordava com a mesma impressão que tivera na casa do guarda da eclusa: um longo tempo se passara e a oportunidade de salvar Provis fora perdida. Por volta de meia-noite, levantei-me e fui ter com Herbert, convicto de que eu dormira por vinte e quatro horas e que a quarta-feira já ficara para trás. Foi meu último ato de esgotamento nervoso, pois depois disso mergulhei num sono profundo. A madrugada de quarta-feira estava raiando quando olhei pela janela. As luzes das pontes, a piscar, já estavam desmaiando, e o sol ainda por vir era como um charco de fogo no horizonte. O rio, escuro e misterioso, era cruzado por pontes que assumiam um tom frio de cinzento, recebendo aqui e ali, nas partes mais altas, um toque cálido do céu em fogo. Enquanto eu contemplava os telhados amontoados, os campanários e pináculos de igrejas elevando-se num céu excepcionalmente límpido, o sol nasceu, e um véu pareceu ser levantado do rio, e milhões de faíscas explodiram nas suas águas. Também para mim foi como se um véu se levantasse, e senti-me forte e revigorado. Herbert dormia em sua cama, e nosso antigo colega estava adormecido no sofá. Eu não podia vestir-me sem ajuda, porém aticei o fogo, que ainda ardia, e preparei café para eles. Pouco depois os dois também despertaram, fortes e revigorados como eu, e abrimos as janelas para que entrasse o ar fresco da manhã, e olhamos para a maré, que ainda fluía em direção a nós. “Quando derem as nove horas”, disse Herbert, alegre, “esteja pronto e à nossa espera, você que está aí em Mill Pond Bank!” 15 Era um desses dias de março em que o sol é quente e o vento é frio, quando é verão ao sol e inverno na sombra. Levávamos nossos capotes, e eu também tinha uma valise. De todas as minhas posses deste mundo, levei apenas os poucos objetos necessários que cabiam nela. Aonde eu iria, o que faria e quando voltaria, eram perguntas cuja resposta eu desconhecia por completo; nem sequer me importunava com elas, pois a única coisa importante era a segurança de Provis. Foi apenas por um instante, quando me detive à porta e olhei para trás, que perguntei a mim mesmo em que circunstâncias eu voltaria a ver aqueles cômodos, se é que tal viria mesmo a acontecer. Descemos sem pressa o ancoradouro do Temple, e lá ficamos parados, como se não tivéssemos ainda nos decidido a efetuar o nosso plano. Naturalmente, eu havia providenciado para que o barco estivesse pronto e tudo estivesse em ordem. Após um curto hiato de indecisão, que foi testemunhado apenas por duas ou três criaturas anfíbias que frequentavam o lugar, embarcamos e partimos; Herbert ia à proa e eu comandava o leme. A maré estava alta — eram oito e meia. Nosso plano era o que se segue. Como a maré começaria a baixar às nove e nos favoreceria até as três, pretendíamos continuar seguindo mesmo depois que ela virasse, e remar contra a correnteza até o anoitecer. A essa altura, já estaríamos naquele trecho extenso abaixo de Gravesend, entre Kent e Essex, onde o rio é largo e deserto, onde há muito poucos habitantes ribeirinhos, e onde encontraríamos um ou outro albergue esparso, num dos quais nos recolheríamos. Ali ficaríamos a noite toda. O vapor de Hamburgo e o de Roterdã partiriam de Londres por volta das nove da manhã de quinta-feira. Saberíamos a que hora cada um deles passaria, dependendo de onde estivéssemos, e faríamos sinal para o primeiro; se por algum acaso não nos aceitassem, teríamos outra oportunidade. Conhecíamos bem as características distintivas de cada navio. Para mim, era tão grande a sensação de alívio por estar finalmente pondo em prática meu plano que me parecia difícil imaginar a situação em que eu vivera apenas poucas horas antes. O ar fresco, o sol, o movimento do barco, o próprio rio em movimento — aquela estrada que corria conosco, parecendo estar no nosso lado, a nos animar e estimular — tudo isso fez renascer minhas esperanças. Mortificava-me poder fazer tão pouca coisa no bote, mas seria difícil achar remadores melhores que meus dois amigos, e eles remavam num ritmo uniforme que se manteve durante todo o dia. Naquele tempo, o tráfego de vapores no Tâmisa era muito menos intenso do que hoje em dia, e eram muito mais numerosos os barcos a remo. Em matéria de chatas, carvoeiros e navios de cabotagem, havia talvez tantos quanto agora, porém o número de navios a vapor, grandes e pequenos, era menos de um décimo, de um vigésimo, do atual. Embora ainda fosse cedo, havia um grande número de botes com dois remadores indo de um lado para o outro naquela manhã, e também chatas sendo levadas pela maré; navegar pelo rio entre as pontes, num barco descoberto, era naquele tempo coisa bem mais fácil e comum do que agora; e assim fomos tocando em frente, em meio a esquifes e barcas, rapidamente. A velha ponte London em pouco tempo ficou para trás, e também o velho mercado de Billingsgate, com seus barcos para pesca de ostras e seus holandeses, e a Torre Branca, e o Portão dos Traidores, e logo nos vimos entre as fileiras de navios. Lá estavam os vapores de Leith, Aberdeen e Glasgow, carregando e descarregando mercadorias, parecendo elevar-se da superfície da água a uma altura imensa quando passávamos por eles; dezenas e mais dezenas de carvoeiros, onde os homens desciam o carvão em molinetes enquanto os contrapesos subiam, sendo depois trazidos para dentro do barco; lá estava, atracado, o vapor de Roterdã que partiria no dia seguinte, o qual observamos com atenção; e lá estava o vapor de Hamburgo que partiria no dia seguinte; passamos por baixo de seu gurupés. Então eu, instalado na popa, vi, com o coração batendo mais forte, Mill Pond Bank e seu ancoradouro. “Ele está lá?”, perguntou Herbert. “Ainda não.” “Certo! Ele só devia descer quando nos visse. Vês se ele está dando o sinal?” “Daqui não enxergo bem, mas acho que sim. — É ele, sim! Parem de remar. Devagar, Herbert. Levantar remos!” Mal tocamos no ancoradouro por um rápido momento, ele subiu a bordo, e partimos outra vez. Ele levava consigo um capote de marinheiro e uma mala de lona preta; parecia um piloto de rio, tal como eu desejava. “Meu menino querido!”, disse ele, pondo o braço no meu ombro ao sentarse. “Meu amigo fiel, tudo perfeito. Obrigado, obrigado!” Mais uma vez, vimo-nos em meio a fileiras de navios, entrando e saindo, esquivando-nos de correntes enferrujadas, amarras esfiapadas e boias flutuantes, afundando momentaneamente cestas quebradas, dispersando maravalhas e cavacos, rasgando a camada de carvão que cobria a água, passando sob as figuras de proa de John de Sunderland, a fazer um discurso para os ventos (como fazem tantos Johns), e de Betsy de Yarmouth, com uma formalidade rígida nos seios e olhos redondos que se destacavam cinco centímetros da cabeça; seguíamos, ao som de martinetes nos estaleiros, serrotes serrando madeira, máquinas ruidosas chocando-se contra coisas desconhecidas, bombas a esvaziar navios que faziam água, cabrestantes a girar, navios a fazer-se ao largo, criaturas do mar a bradar imprecações ininteligíveis por cima das amuradas, sendo respondidos por barqueiros, seguíamos — até por fim chegar lá onde o rio estava mais desimpedido, onde os grumetes podiam recolher as defensas, não estando mais pescando em águas turbulentas, onde as velas se enfunavam ao vento. No ancoradouro onde nosso fugitivo subira a bordo, e desde então, eu estava atento para qualquer sinal de que estivéssemos sendo vigiados. Não vi nada. Certamente não havíamos sido acompanhados nem seguidos por nenhum barco, tal como não estávamos sendo seguidos agora. Se houvesse alguma embarcação em nosso encalço, teríamos detido nosso curso, obrigando-a a seguir viagem ou então a tornar óbvias suas intenções. Porém seguíamos a sós, aparentemente sem sermos molestados. Ele vestira seu capote de marinheiro, e parecia, tal como já observei, fazer parte do cenário. Era curioso observar (mas talvez isto se explicasse pela vida miserável que levara) que ele era o menos preocupado entre nós. Não que fosse indiferente, pois havia comentado comigo que esperava viver para ver o seu cavalheiro tornar-se um dos melhores cavalheiros num país estrangeiro; não me parecia ser uma pessoa passiva ou resignada; porém não era homem de antecipar medidas de cautela. Quando ocorria uma situação de perigo, enfrentava-a, mas era preciso que o perigo se manifestasse para que ele fizesse alguma coisa. “Se soubesses, meu menino querido”, disse-me ele, “o que é poder estar sentado ao lado do meu menino querido, pitando meu cachimbo, adespois de passar tanto tempo fechado entre quatro parede, tu havias de ter inveja de mim. Mas não sabes o que é isso.” “Creio que conheço as delícias da liberdade”, respondi. “Ah”, ele exclamou, sacudindo a cabeça, sério. “Mas não sabes que nem eu sei. Só quem já esteve trancafiado, meu menino querido, é que sabe que nem eu — mas não vou ficar triste, não.” Ocorreu-me que era uma incoerência de sua parte deixar-se levar por uma ideia fixa a ponto de arriscar sua liberdade e até mesmo a própria vida. Refleti, porém, que talvez a liberdade isenta de qualquer perigo fosse algo tão inusitado para sua experiência de vida que não representasse para ele o que era para as outras pessoas. Essas reflexões foram de certo modo confirmadas pelo que ele disse, após fumar um pouco: “Sabes, meu menino querido, quando eu estava lá pras outras banda do mundo, eu vivia pensando na banda de cá; e a vida por lá ficou sem graça, apesar que eu estava enricando. Todo mundo conhecia o Magwitch, e o Magwitch podia ir ou ficar que ninguém nem pensava nele. Aqui eles não ia ser tão indiferente, meu menino querido — quer dizer, se eles soubesse onde eu estou.” “Se tudo correr bem”, repliquei, “o senhor vai estar perfeitamente livre e protegido outra vez, dentro de umas poucas horas.” “Bem”, disse ele, respirando fundo, “é o que eu espero.” “E é o que o senhor pensa?” Ele mergulhou a mão na água e disse, sorrindo, com aquele aparência mais suave que eu já vira nele antes: “Acho que sim, meu menino querido. Seria difícil estar mais tranquilo do que estou agora. Mas — é tão agradável a gente deslizar rio abaixo que acho que é por isso que eu tive uma ideia — eu estava pensando, enquanto fumava inda há pouco, que é tão difícil enxergar o que vai acontecer daqui a umas horas quanto é enxergar o fundo desse rio. E também é tão impossível segurar a maré dos acontecimento quanto deter a correnteza do rio. A água passou pelos meus dedo e sumiu, está vendo?”, disse ele, exibindo a mão que pingava. “Se não fosse pela expressão em seu rosto, eu diria que o senhor está um pouco desanimado.” “Nada disso, meu querido menino! É só porque estou deslizando nesse rio tão tranquilo, e aquele marulho na proa do bote até parece música. Vai ver que é também porque estou ficando velho.” Recolocou o cachimbo na boca com uma expressão serena, parecendo tão calmo e contente como se já tivesse saído da Inglaterra. No entanto, permanecia tão receptivo a conselhos quanto se estivesse sob terror constante, pois quando saltamos do barco por um minuto para comprar umas garrafas de cerveja e ele fez menção de acompanhar-nos, comentei que a meu ver seria mais seguro ele ficar onde estava. Disse ele: “É mesmo, meu menino querido?”. E voltou a sentar-se. Estava frio no barco, porém o tempo estava bom, e o sol muito nos alegrava. A correnteza era forte, eu a aproveitava ao máximo, e com o ritmo constante dos remadores seguíamos sem problemas. Pouco a pouco, à medida que a maré enfraquecia, deixávamos para trás os bosques e morros e nos aproximávamos dos baixios de lama, mas a vazante ainda nos impelia quando chegamos à altura de Gravesend. Como nosso fugitivo estava envolto em seu capote, fiz questão de passar bem perto da alfândega flutuante, e em seguida voltei à correnteza, passando ao lado de dois navios de emigrantes e à frente de um transporte grande, com soldados na proa olhando do alto para nós. Pouco depois a correnteza foi perdendo força, as naus que estavam ancoradas começaram a manobrar, e logo estavam todas viradas no sentido contrário; assim, as embarcações que pretendiam aproveitar a enchente da maré para seguir rumo ao Pool amontoaram-se a nosso redor, enquanto mantínhamos nosso bote o mais próximo da margem que podíamos, para nos afastar da correnteza, evitando com cuidado os baixios e os bancos de lama. Os remadores estavam bem descansados, pois de vez em quando haviam deixado que a correnteza levasse o barco por um minuto ou dois, de modo que lhes bastou um quarto de hora de repouso. Saltamos para a margem, em meio a algumas pedras escorregadias, comemos e bebemos o que havíamos trazido conosco, e olhamos à nossa volta. Ali era semelhante ao charco onde eu fora criado, uma terra plana e monótona, com um horizonte indistinto, enquanto o rio dava voltas e voltas, e as grandes boias giravam e giravam, e tudo mais quedava imóvel. Por ora, o último dos navios já contornara a última ponta de areia que havíamos contornado; e a última chata verde, com seu carregamento de palha e sua vela parda, seguira viagem; e algumas dragas, que pareciam rabiscos toscos traçados por uma criança que tentasse desenhar um barco pela primeira vez, jaziam afundadas no lodo; um pequeno farol, construído sobre estacas, destacava-se da lama como um aleijado que se apoiasse em muletas; outras estacas destacavam-se da lama, e pedras escorregadias destacavam-se da lama, e balizas e marcos vermelhos destacavam-se da lama, e um embarcadouro velho e uma construção velha, sem telhado, afundavam na lama, e tudo à nossa volta era estagnação e lama. Partimos outra vez, e avançamos o quanto pudemos. Agora era muito mais difícil navegar, porém Herbert e Startop perseveravam, remando, remando, remando, até que o sol se pôs. Nesse ínterim, o rio havia subido um pouco, de modo que podíamos ver acima da margem. Lá estava o sol vermelho, rente ao plano da margem, numa névoa arroxeada que rapidamente enegrecia; o charco deserto nos cercava; e ao longe víamos o terreno mais elevado, entre o qual e nós não parecia haver nenhum ser vivo, salvo aqui e ali, no primeiro plano, uma gaivota melancólica. Como a noite descia depressa, e a lua, já tendo começado a minguar, não haveria de nascer tão cedo, fizemos uma rápida reunião: rápida, pois claramente o que tínhamos a fazer era aguardar no primeiro albergue isolado que encontrássemos. Assim, os remadores retomaram seu trabalho, e eu fiquei atento para o primeiro vulto que parecesse ser uma casa. Prosseguimos por algum tempo, falando pouco, avançando sete ou oito quilômetros tediosos. O frio era intenso, e um barco carvoeiro que passou por nós, com a fornalha acesa e fumegante, pareceu-nos um lar aconchegante. A essa altura, a noite estava tão escura quanto haveria de ficar até o amanhecer; e a pouca luz que havia parecia vir mais do rio do que do céu, quando os remos, ao mergulharem na água, atingiam os reflexos de algumas estrelas. Nessa hora lúgubre, evidenciou-se que todos nós estávamos possuídos pela ideia de que alguém nos seguia. A maré crescente batia pesada, em intervalos irregulares, contra a margem; e cada vez que ouvíamos esse som, um de nós invariavelmente olhava assustado naquela direção. Aqui e ali, o impacto da correnteza havia formado pequenas enseadas na margem, e todos nós encarávamos esses lugares com desconfiança e nervosismo. Vez por outra, um de nós sussurrava: “O que foi isso?”. Ou então: “Aquilo ali é um barco?”. Em seguida, mergulhávamos num silêncio sepulcral, e eu ficava a pensar, com impaciência, como eram barulhentos os remos em suas toleteiras. Por fim divisamos uma luz e um telhado, e pouco depois paramos junto a um pequeno molhe feito com pedras recolhidas nas redondezas. Deixando os outros no bote, desembarquei e constatei que a luz vinha da janela de uma taberna. Era um lugar bem sujo, provavelmente conhecido por aventureiros e contrabandistas, mas havia um bom fogo ardendo na cozinha, ovos e toucinho para comer, e diversas bebidas alcoólicas. Havia também dois quartos, cada um com duas camas — “É pegar ou largar”, disse o taberneiro. Lá não estava mais ninguém além do taberneiro, a mulher dele e uma criatura grisalha do sexo masculino, Jack, o “pau para toda a obra” do pequeno molhe, tão escorregadio e enlameado como o próprio molhe. Acompanhado por esse assistente, voltei ao barco, e todos nós desembarcamos, trazendo conosco os remos, o leme, o croque e tudo o mais, e puxamos o bote para a terra. Fizemos uma ótima refeição junto à lareira da cozinha e depois nos dispusemos nos quartos: Herbert e Startop ocuparam um deles, eu e nosso fugitivo o outro. Constatamos que em ambos os aposentos o ar era cuidadosamente excluído, como se fosse um elemento fatal à vida; e debaixo das camas havia uma quantidade de roupas sujas e chapeleiras que me pareceu excessiva para aquela família. Não obstante, julgávamos que tínhamos tido sorte, pois teria sido difícil encontrar um lugar mais isolado do que aquele. Enquanto relaxávamos junto à lareira após a refeição, Jack — que estava sentado num canto, e que calçava um par de sapatos inchados, o qual ele exibira para nós enquanto comíamos ovos com toucinho, como relíquias interessantes que retirara, alguns dias antes, dos pés de um marinheiro morto trazido pela maré — perguntou-me se tínhamos visto uma galeota de quatro remos subindo com a correnteza. Quando respondi que não, ele disse que nesse caso o barco provavelmente teria descido o rio; no entanto, ao sair dali, ele estava subindo. “Eles deve ter mudado de ideia por algum motivo”, disse Jack, “e resolveu descer.” “Uma galeota de quatro remos, foi o que você disse?”, perguntei. “Quatro remando”, respondeu o homem, “e dois passageiro.” “Eles desembarcaram aqui?” “Eles vieram com uma jarra de dez litro, pegar cerveja. Se eu pudesse, eu bem que punha veneno dentro da cerveja”, disse o homem, “ou então alguma outra coisa assim.” “Por quê?” “Eu que sei por quê”, respondeu o homem. Falava com uma voz úmida, como se tivesse muita lama na garganta. “Ele acha”, disse o taberneiro, um homem vagamente pensativo com olhos claros, que parecia confiar muito no seu Jack, “ele acha que eles era o que não era.” “Eu sei o que eu acho”, comentou Jack. “Achas que eles era da alfândega, Jack?”, indagou o taberneiro. “Acho, sim”, respondeu ele. “Então estás enganado, Jack.” “Estou nada!” Dada essa resposta com uma infinidade de significados, com sua desmedida confiança nas próprias opiniões, Jack descalçou um dos sapatos inchados, olhou dentro dele, jogou no chão da cozinha algumas pedras que lá encontrou e voltou a calçar-se. Fez isso com o ar de quem tem tanta certeza do que diz que pode fazer o que bem entender. “Ora, então o que foi que eles fez com os botão deles, Jack?”, perguntou o taberneiro, hesitando vagamente. “O que eles fez com os botão?”, devolveu o homem. “Jogou n’água. Engoliu. Plantou na horta. Ora, o que eles fez com os botão!” “Olha o respeito, Jack”, repreendeu-o o taberneiro, num tom melancólico e patético. “Funcionário da arfândega sabe o que fazer com os botão”,1 repetindo a palavra detestável com o maior desprezo, “quando atrapalha eles. Um barco de quatro remador e mais dois passageiro não fica subindo e descendo por aí, com a maré ou contra ela, se a arfândega não estiver metida na história.” Tendo dito isso, saiu do recinto, desdenhoso; e o taberneiro, não tendo mais ninguém em quem confiar, julgou impraticável continuar a discutir o assunto. O diálogo deixou-nos todos nervosos, a mim em particular. O vento soturno murmurava em torno da casa, a maré açoitava a margem do rio, e eu tinha a sensação de que estávamos enjaulados e ameaçados. Uma galeota de quatro remos rondando o lugar de modo tão pouco costumeiro que chegava a atrair as atenções era uma circunstância incômoda que eu não conseguia deixar de lado. Depois que consegui convencer Provis a deitar-se, saí com meus dois companheiros (a essa altura, Startop já estava inteirado da situação) e realizamos outra reunião. A questão discutida era se deveríamos ficar na estalagem até a hora em que chegasse o vapor, por volta de uma da tarde, ou se seria melhor partir de manhã cedo. Concluímos que era melhor ficarmos onde estávamos até que faltasse cerca de uma hora para a chegada do vapor, quando então sairíamos em sua direção, seguindo com facilidade no sentido da correnteza. Tendo tomado essa decisão, entramos e fomos nos deitar. Fui para a cama quase inteiramente vestido e dormi bem por algumas horas. Quando despertei, estava ventando ainda mais, e a placa da estalagem (chamada A Nau) estava rangendo e debatendo-se, provocando sons que me assustaram. Levantei-me em silêncio, pois nosso fugitivo estava ferrado no sono, e fui espiar pela janela. Dela via-se o molhe onde havíamos deixado o bote, e à medida que minha visão foi se adaptando à luz da lua por trás das nuvens, vi dois homens olhando para dentro dele. Eles passaram pela janela, sem olhar para o outro lado, e não foram até o desembarcadouro, o qual, percebi, estava vazio, porém seguiram pelo charco em direção do Nore.2 Meu primeiro impulso foi despertar Herbert e mostrar-lhe os dois homens se afastando. Entretanto, antes de entrar no quarto dele, que ficava nos fundos da casa, ao lado do meu, refleti que ele e Startop tiveram um dia mais trabalhoso que o meu e estavam exaustos; assim, mudei de ideia. Voltando à minha janela, vi os dois homens atravessando o charco. Naquela penumbra, porém, em pouco tempo perdi-os de vista, e sentindo muito frio voltei para a cama, a pensar sobre o ocorrido, e adormeci outra vez. Levantamo-nos cedo. Enquanto andávamos de um lado para outro, os quatro, antes do desjejum, julguei que seria bom contar a meus companheiros o que eu vira. Mais uma vez, nosso fugitivo foi quem ficou menos preocupado. Era bem provável que os homens fossem funcionários da alfândega, disse ele em voz baixa, e que não estivessem procurando por nós. Tentei convencer-me de que era isso mesmo — o que, aliás, poderia muito bem ser verdade. Propus, no entanto, que eu e ele caminhássemos juntos até um ponto distante que podíamos ver dali, e que o barco fosse nos pegar lá, ou o mais perto possível de lá, por volta do meio-dia. Todos acharam que era uma precaução razoável, e assim, pouco após o desjejum, nós dois saímos, sem dizer nada na estalagem. Ele fumava seu cachimbo enquanto caminhávamos, parando de vez em quando para me dar um tapa de leve no ombro. Quem nos visse poderia pensar que era eu que estava ameaçado, não ele, e que ele me tranquilizava. Falávamos muito pouco. Quando nos aproximamos do local escolhido, pedi-lhe que ficasse num local protegido enquanto eu fazia o reconhecimento do lugar, pois fora naquela direção que os homens haviam seguido naquela noite. Ele concordou, e segui em frente sozinho. Não havia nenhum barco ali, nem por perto, nem sinais de que os homens tivessem embarcado nas redondezas. Por outro lado, a maré estava alta, e era possível que tivessem ficado pegadas debaixo d’água. Quando olhou de seu esconderijo ao longe e viu que eu lhe acenava com o chapéu para que ele se aproximasse, Provis veio juntar-se a mim, e assim ficamos os dois à espera: ora deitados na margem, envoltos em nossos agasalhos, ora andando de um lado para outro para nos aquecer, até que vimos nosso barco chegar. Entramos no bote sem problemas e saímos ao encalço do vapor. Faltavam apenas dez minutos para a uma da tarde, e começamos a ficar atentos para a fumaça do navio. Porém só a divisamos à uma e meia, e pouco depois vimos a fumaça de outro vapor vindo atrás do primeiro. Como ambos vinham a toda velocidade, pegamos nossas bagagens e nos despedimos de Herbert e Startop. Trocamos apertos de mãos cordiais, e nem bem meus olhos e os de Herbert haviam secado quando vi uma galeota de quatro remos surgir de repente da margem, de um ponto um pouco à frente de nós, vindo na mesma direção. Ainda havia um trecho de margem entre nós e a fumaça do vapor, por efeito da curva do rio; agora, porém, o navio estava visível, vindo diretamente para onde estávamos. Gritei a Herbert e Startop que permanecessem à frente do vapor, para que ele nos visse ali, e disse a Provis que permanecesse imóvel, envolto em seu capote. Ele respondeu, alegre: “Confia em mim, meu menino querido”, e ficou imóvel como uma estátua. Nesse ínterim, a galeota, manejada com muita habilidade, cruzou nosso caminho, permitiu que a alcançássemos e permaneceu a nosso lado. Deixando apenas espaço suficiente para os remos, continuou junto de nosso bote, seguindo com a correnteza quando parávamos de remar, e dando uma ou duas remadas quando o fazíamos. Dos dois passageiros, um comandava o leme e olhava para nós atentamente — como faziam todos os remadores; o outro passageiro estava envolto em seus agasalhos tal como Provis, e parecia encolher-se, e cochichar instruções ao homem do leme enquanto ele olhava para nós. Ninguém dizia palavra nos dois botes. Startop conseguiu, depois de alguns minutos, descobrir qual dos dois vapores vinha à frente, e disse-me “Hamburgo” em voz baixa, sentados que estávamos um de frente para o outro. O navio se aproximava muito depressa, e o ruído de suas rodas era cada vez mais alto. Sua sombra já se projetava sobre nós quando a galeota nos abordou. Respondi. “Vocês têm aí um degredado que voltou ao país”, disse o homem do leme. “É aquele ali, embrulhado no capote. Ele se chama Abel Magwitch, também conhecido como Provis. Dou voz de prisão a esse homem, e vocês têm que entregá-lo a mim.” Ao mesmo tempo, sem dar nenhuma instrução a seus remadores, a galeota encostou em nosso bote. Eles haviam avançado um pouco, recolhido os remos e encostado, e agarrado nossa amurada, antes que nos déssemos conta do que estavam fazendo. Isso causou muita confusão no vapor, e ouvi os que estavam a bordo dele gritando para nós, e ouvi a ordem de parar as máquinas; ouvi o navio parar, mas senti que ele se aproximava de nós com ímpeto irresistível. No mesmo instante, vi o homem do leme da galeota pôr as mãos nos ombros do prisioneiro, e vi que os dois botes estavam rodopiando ao sabor da correnteza, e que toda a tripulação do vapor corria para a proa num frenesi. Ainda no mesmo instante, vi o prisioneiro levantar-se, inclinar-se em direção a seu captor e arrancar o capote do pescoço do passageiro que estava encolhido na galeota. Ainda no mesmo instante, vi que o rosto revelado era o rosto do outro forçado, de tantos anos antes. Ainda no mesmo instante, vi o rosto inclinar-se para trás com um terror lívido nele estampado, o qual jamais esquecerei, ouvi uma gritaria vinda do vapor e o barulho de alguma coisa caindo na água, e senti que o bote afundava sob meus pés. Durante um instante apenas, julguei estar a debater-me com mil represas e mil explosões de luz; no instante seguinte fui recolhido pela galeota. Lá estava Herbert, lá estava Startop; mas nosso bote havia desaparecido, e os dois prisioneiros haviam desaparecido. Com a gritaria que vinha do vapor, e o ruído furioso de seus apitos, e o movimento contínuo do vapor e da galeota, de início eu não conseguia distinguir o que era céu do que era água e do que era margem; mas os tripulantes da galeota mais que depressa corrigiram sua rota e, dando algumas remadas rápidas para a frente, em seguida largaram os remos e ficaram todos olhando, silenciosa e atentamente, para a água atrás do barco. Pouco depois surgiu um objeto escuro, vindo em direção a nós no sentido da correnteza. Ninguém disse nada, mas o homem do leme levantou a mão, e todos os remadores remaram para trás lentamente, mantendo a galeota imóvel. À medida que o vulto se aproximava, vi que era Magwitch, nadando, porém com dificuldade. Ele foi recolhido a bordo do barco, e imediatamente lhe algemaram os punhos e os tornozelos. A galeota permanecia no mesmo lugar, e todos voltaram a olhar atentamente para a água. Porém o vapor de Roterdã aproximava-se, e sem entender o que estava acontecendo, vinha com velocidade. Depois que se fez sinal para ele, os dois vapores se afastaram, e ficamos a nos balançar na esteira do navio. Continuamos a vigiar a água, ainda por um bom tempo depois que a agitação cessou e os dois vapores foram-se embora; mas àquela altura todos já haviam percebido que não havia esperanças. Por fim desistimos e desembarcamos perto da taberna onde havíamos passado a noite, onde fomos recebidos com muito espanto. Ali, consegui que cuidassem de Magwitch — não mais Provis — que recebera um ferimento grave no peito e um corte profundo na cabeça. Ele me disse que julgava ter passado por baixo da quilha do vapor, e ter batido com a cabeça nela ao subir à tona. O ferimento no peito (que doía muito quando ele respirava) ele pensava ter ocorrido quando se chocou contra a amurada da galeota. Acrescentou que não saberia dizer o que fizera ou não fizera com Compey son, mas que no momento em que puxou seu capote para identificá-lo, o canalha levantara-se e recuara, e os dois caíram n’água juntos; o ato de arrancar Magwitch de nosso bote e os esforços de seu captor no sentido de segurá-lo tiveram o efeito de fazer com que nosso barco virasse. Num sussurro, Magwitch contou-me que eles dois haviam afundado cingidos num abraço feroz e lutado debaixo d’água, ele conseguira desvencilhar-se, golpeara o outro e subira à tona. Nunca tive motivo de questionar a veracidade de suas palavras. O homem do leme da galeota fez idêntico relato do momento em que os dois caíram n’água. Quando pedi a esse policial permissão para mudar o traje molhado do prisioneiro, adquirindo algumas roupas na estalagem, o homem me autorizou de imediato, observando apenas que ele teria de se responsabilizar por todos os objetos que estivessem em posse do prisioneiro. Assim, a carteira de dinheiro que outrora estivera em minhas mãos foi entregue ao policial. Ele permitiu-me também que eu acompanhasse o prisioneiro até Londres, mas não estendeu a autorização a meus dois amigos. Jack, o homem d’A Nau, foi levado ao lugar onde o afogado havia desaparecido, e pôs-se a procurar o corpo nos lugares onde era mais provável que ele fosse encontrado. Seu interesse pareceu acentuar-se bastante quando lhe foi dito que o afogado estava usando meias. Pelo visto, seriam necessários mais de dez afogados para lhe proporcionar um guarda-roupa completo; talvez fosse por isso que as diferentes peças de seu vestuário estavam em diferentes graus de putrefação. Ficamos na estalagem até a virada da maré, quando então Magwitch foi levado à galeota. Herbert e Startop decidiram voltar a Londres por terra assim que pudessem. Nossa despedida foi melancólica, e quando me sentei ao lado de Magwitch senti que doravante meu lugar seria sempre aquele, enquanto ele estivesse vivo. Pois agora a repugnância que ele me inspirava havia desaparecido por completo, e naquela criatura perseguida, ferida e acorrentada que tomava minha mão na sua eu via apenas um homem que pretendera ser meu benfeitor, e que fora afetuoso, grato e generoso para comigo com muita constância durante anos. Eu via nele apenas um homem que fora muito melhor do que eu fora para com Joe. Sua respiração se tornou cada vez mais difícil e dolorosa ao cair da tarde, e muitas vezes ele não conseguia conter um gemido. Tentei apoiá-lo no meu braço são, em alguma posição confortável; mas era terrível pensar que, no fundo, eu não podia lamentar que ele estivesse muito ferido, pois sem dúvida seria melhor se ele morresse. Eu não duvidava que ainda vivessem pessoas que eram capazes de identificá-lo, e estavam dispostas a fazê-lo, e não tinha esperanças de que ele viesse a ser tratado com leniência. Fora pintado com as piores cores no tribunal; escapara da prisão e fora preso novamente; voltara do degredo apesar de ter recebido pena de exílio perpétuo; e causara a morte do homem que levara a sua apreensão. Enquanto voltávamos em direção ao sol poente que havíamos deixado para trás na véspera, e a correnteza de nossas esperanças parecia estar refluindo por completo, eu lhe disse o quanto lamentava ter ele voltado à Inglaterra por minha causa. “Meu menino querido”, respondeu-me, “estou satisfeito de ter corrido esse risco. Eu pude ver meu menino, e ele há de conseguir se tornar um cavalheiro sem mim.” Não. Eu pensara nisso, enquanto estávamos os dois sentados lado a lado. Não. Independentemente de minhas próprias inclinações, eu compreendia agora o que Wemmick dera a entender. Parecia-me claro que, quando Magwitch fosse condenado, todos seus bens seriam confiscados pela Coroa. “Olha só, meu menino”, disse ele. “Como cavalheiro, é melhor que tu não me conheças mais de agora em diante. Só venhas me visitar se por acaso estiveres com o Wemmick. Fica onde eu possa te ver, quando eu for a julgamento pela última vez, depois de tantas vezes, e eu não peço mais nada.” “Jamais vou deixá-lo”, respondi, “desde que me permitam que fique perto do senhor. Se Deus quiser, hei de lhe ser tão fiel quanto o senhor tem sido fiel a mim!” Senti que sua mão tremia, ao apertar a minha, e ele virou-se para o lado, ao deitar-se no fundo do barco, e ouvi aquele velho som em sua garganta — suavizado agora, como tudo o mais. Foi bom que ele tocasse nesse assunto, pois me fez pensar em algo que talvez só viesse a me ocorrer tarde demais: Magwitch não deveria jamais saber que suas esperanças de me tornar rico haviam fracassado. 16 Ele foi conduzido ao tribunal no dia seguinte, e só não foi levado a julgamento de imediato porque era necessário mandar vir um oficial que tivesse trabalhado na presiganga da qual ele fugira, para confirmar sua identidade. Ninguém tinha dúvida quanto a ela; porém, Compey son, que pretendia dar seu depoimento, estava ao sabor das marés, morto, e por acaso não havia lá no momento nenhum funcionário da prisão que pudesse dar o testemunho necessário. Eu recorrera diretamente ao sr. Jaggers, indo à sua casa na noite mesmo em que cheguei a Londres, para pedir sua ajuda, e ele se recusara a admitir o que quer que fosse em benefício do prisioneiro. Nada havia a fazer, pois, segundo ele, o caso seria encerrado dentro de cinco minutos depois que chegasse a testemunha, e não havia no mundo alguém que tivesse o poder de impedir que o depoimento fosse contrário a nós. Expliquei ao sr. Jaggers que tencionava ocultar do prisioneiro o destino que teria sua fortuna. O advogado ficou indignado comigo por ter eu deixado que o dinheiro “escapulisse por entre meus dedos”, e disse-me que mais tarde haveríamos de fazer um requerimento, e ao menos tentar de algum modo conseguir uma parte dele. Não me ocultou, porém, que, embora houvesse muitos casos em que o confisco não era feito, no caso em questão não havia circunstâncias que favorecessem tal desfecho. Isso eu entendia muito bem. Não tinha eu nenhum grau de parentesco com o criminoso, nem qualquer vínculo reconhecido com ele; o homem não deixara nenhuma declaração por escrito em meu favor antes de ser preso, e fazê-lo agora seria inútil. Eu não tinha nenhum direito àquela fortuna, e por fim decidi, uma decisão à qual desde então me mantive fiel, que jamais me imporia a tarefa vã de tentar provar que tinha tal direito. Não havia motivo para supor que o delator afogado esperasse receber como recompensa uma parte do dinheiro confiscado, nem que ele soubesse detalhes precisos sobre a situação financeira de Magwitch. Quando encontraram seu corpo, muito longe do lugar onde ele morrera, e tão horrivelmente desfigurado que só puderam reconhecê-lo com base no que havia em seus bolsos, ainda havia anotações legíveis dentro de uma pasta que ele levava. Entre elas estava o nome de um estabelecimento bancário em Nova Gales do Sul onde fora depositada uma quantia, e uma relação de terras de valor considerável. Ambas essas informações estavam numa lista que Magwitch, no tempo em que estivera preso, dera ao sr. Jaggers, contendo os bens que ele imaginava que eu herdaria. Sua ignorância terminou sendo boa para ele; o pobre-diabo jamais desconfiou de que minha herança estivesse bem protegida, com a ajuda do sr. Jaggers. Após três dias, durante os quais a promotoria aguardou a chegada da testemunha da presiganga, o caso foi facilmente resolvido com o depoimento esperado. O julgamento foi programado para a próxima sessão do tribunal, que ocorreria em um mês. Foi nessa triste época de minha vida que Herbert chegou do trabalho uma noite um tanto desanimado, e me disse: “Meu caro Handel, infelizmente creio que terei de deixar-te em breve.” Como seu sócio já me havia preparado para essa notícia, fiquei menos surpreso do que ele esperava. “Perderemos uma ótima oportunidade se eu adiar minha ida ao Cairo, e temo ter que ir embora, Handel, quando tu mais precisas de mim.” “Herbert, sempre precisarei de ti, porque sempre serás meu amigo querido; mas minha necessidade não é maior agora do que em qualquer outra ocasião.” “Ficarás muito sozinho.” “Não tenho tempo para me preocupar com isso”, repliquei. “Sabes que estarei com ele todo o tempo que me permitirem, e que ficaria com ele o dia inteiro, se pudesse. E quando eu não estiver com ele, sabes que estarei pensando nele sempre.” A situação terrível em que Magwitch se encontrava de tal modo nos horrorizava que preferíamos não mencioná-la de modo mais direto. “Meu caro”, disse Herbert, “dada a proximidade de nossa separação — pois ela está mesmo muito próxima — peço-te que me deixes perguntar-te uma coisa: tens pensado no teu futuro?” “Não, pois tenho medo de pensar no futuro, no meu ou em qualquer outro.” “Mas não há como não pensar no teu; não, meu queridíssimo Handel, impossível não pensar nisso. Gostaria que o fizesses agora, a ponto de trocar umas poucas palavras comigo.” “Certo”, concordei. “Nesta nossa filial, Handel, vamos precisar de um…” Vi que, por delicadeza, ele evitava usar a palavra correta, e assim completei: “Um caixeiro”. “Um caixeiro. E espero não ser de todo improvável que ele venha um dia (tal como aconteceu com um caixeiro teu conhecido) a se tornar também sócio da firma. Portanto, Handel — em suma, meu querido amigo, vens trabalhar conosco?” Havia algo de encantador na cordialidade, de cativante na maneira como, após dizer “Portanto, Handel”, como se, em meio a um sério preâmbulo de um pronunciamento profissional, ele de repente abandonasse aquele tom, estendesse sua mão honesta e falasse como um colegial. “Eu e a Clara temos conversado muito sobre isso”, insistiu Herbert, “e aquela criaturinha querida implorou hoje mesmo, com lágrimas nos olhos, que eu te dissesse que, se vieres morar conosco quando estivermos juntos, ela fará o possível para te fazer feliz, e para convencer o amigo de seu marido que ele é amigo dela também. Nós nos daríamos tão bem, Handel!” Agradeci efusivamente, a ele e a ela também, mas respondi que ainda não lhe podia dizer com certeza se aceitava sua generosa oferta. Primeiro, porque minha cabeça estava tão cheia de preocupações que eu ainda não podia pensar no assunto com clareza. Segundo… sim! Segundo, porque eu tinha alguma coisa vaga permeando meus pensamentos, a qual virá à tona quase no final desta minha despretensiosa narrativa. “Mas se pensas, Herbert, que poderias, sem prejudicar tua firma, deixar a questão em aberto por um tempo…” “Pelo tempo que quiseres”, exclamou ele. “Seis meses, um ano!” “Nem tanto assim”, respondi. “Dois ou três meses, no máximo.” Herbert ficou satisfeitíssimo quando trocamos um aperto de mãos para selar o acordo, e disse que agora tinha coragem de me dizer que partiria no final da semana. “E a Clara?”, indaguei. “A criaturinha querida”, respondeu-me, “fica ao lado do pai enquanto ele durar; mas não há de durar muito tempo. A senhora Whimple me confidenciou que ele já está por um fio.” “Sem querer ser insensível”, comentei, “é o que ele tem de melhor a fazer.” “Infelizmente, tenho que concordar contigo”, disse Herbert. “Quando isso acontecer, venho buscar a minha criaturinha querida, e eu e ela vamos discretamente à igreja mais próxima. Não esqueças! A minha abençoada criaturinha não tem família, meu caro Handel, e nunca abriu o livro vermelho,1 e não faz ideia de quem terá sido o avô dela. Que belo destino para o filho de minha mãe!” No sábado dessa mesma semana, despedi-me de Herbert — cheio de esperanças alegres, porém triste por ter de me deixar — quando ele já estava dentro de uma das carruagens que levam ao cais do porto. Entrei num café e escrevi um bilhete para Clara, dizendo-lhe que ele partira com mil juras de amor para ela, e então voltei para minha casa vazia — se é que merecia tal nome, pois não era mais um lar para mim, e eu não tinha mais lar em parte alguma. Na escada encontrei Wemmick, que estava descendo, tendo tentado sem sucesso aplicar os nós dos dedos à minha porta. Eu não o via sozinho desde aquela desastrada tentativa de fuga, e ele viera, em caráter particular e pessoal, para me dar uma breve explicação a respeito daquele fracasso. “O falecido Compey son”, disse Wemmick, “havia aos poucos levantado metade dos fatos a respeito do assunto em questão, e a partir do que disseram alguns dos homens dele que estavam em apuros (pois há sempre alguns homens dele em apuros) fiquei sabendo do que soube. Mantive os ouvidos bem abertos, dando a impressão de que estavam fechados, até ouvir dizer que ele estava fora, e julguei então que seria a melhor hora de fazer a tentativa. Só posso concluir, agora, que ele tinha o hábito, homem muito inteligente que era, de enganar seus próprios asseclas. Espero que não ache que a culpa foi minha, não, senhor Pip? Garanto que tentei ajudá-lo, com todo o meu empenho.” “Disso tenho tanta certeza, Wemmick, quanto você mesmo tem, e agradeço muito seu interesse e sua amizade.” “Obrigado, muito obrigado. Foi um serviço malfeito”, disse Wemmick, coçando a cabeça, “e lhe garanto que há muito tempo não me sinto tão apoquentado. O que me quizila é perder tantos valores portáteis. Que coisa!” “O que incomoda a mim, Wemmick, é pensar no proprietário desses valores.” “Claro, claro”, disse Wemmick. “Compreende-se que o senhor tenha pena dele, e eu seria capaz de gastar cinco libras do meu próprio bolso para tirá-lo de lá. Mas olhe só como eu vejo a situação. Tendo o falecido Compey son tido ciência de que ele havia voltado para a Inglaterra, e estando decidido a fazer com que ele fosse preso, a meu ver não havia jeito de salvá-lo. Por outro lado, os valores portáteis podiam muito bem ter sido salvos. Essa é a diferença entre os valores e o proprietário, o senhor entende?” Convidei Wemmick a subir e tomar um copo de grogue antes de voltar a pé para Walworth. Ele aceitou. Enquanto tomava uma dose moderada, após dar mostras de certa inquietação, sem mais nem menosq saiu-se com esta: “O que o senhor acha de minha ideia de tirar uma folga na segunda-feira, senhor Pip?” “Ora, imagino que você não faça isso há doze meses.” “Doze anos, na verdade”, disse Wemmick. “Pois é. Vou tirar uma folga. Mais ainda: vou dar uma caminhada. Mais ainda: vou convidá-lo a dar uma caminhada comigo.” Estava eu prestes a esquivar-me daquele convite, alegando que no momento eu não faria boa companhia, quando ele se antecipou a mim: “Sei dos seus compromissos, e sei o quanto o senhor está abalado. Mas se pudesse me fazer esse obséquio, eu lhe ficaria grato. Não é uma caminhada muito longa, e seria de manhã cedo. Digamos que iria ocupá-lo (com o desjejum incluído na caminhada) das oito ao meio-dia. O senhor não poderia fazer um esforço, senhor Pip?” Wemmick fizera tanto por mim, em diversas ocasiões, que o que ele me pedia para fazer por ele era muito pouco. Respondi que poderia, sim, que o acompanharia, e ele ficou tão alegre com minha aceitação que também me alegrei. Atendendo a seu pedido, combinei de encontrar-me com ele no castelo às oito e meia da manhã de segunda-feira, e em seguida nos despedimos. Pontualmente, bati ao portão do castelo na manhã de segunda, e fui recebido pelo próprio Wemmick, que me pareceu mais bem vestido do que de hábito, usando um chapéu mais elegante. Na sala havia dois copos de leite com rum e dois biscoitos. O idoso, ao que parecia, levantara-se cedo, pois ao olhar de relance para seu quarto observei que a cama estava vazia. Havendo nos fortificado após beber o rum com leite e comer os biscoitos, estando assim preparados para a caminhada, qual não foi meu espanto ao ver Wemmick pegar um caniço de pesca e levá-lo ao ombro. “Então vamos pescar?”, perguntei. “Não”, respondeu-me Wemmick, “mas gosto de caminhar com um caniço.” Achei isso estranho, mas nada disse, e partimos. Seguimos em direção a Camberwell Green, e quando já nos aproximávamos do parque Wemmick exclamou de repente: “Ora! Uma igreja!” Não havia nada de espantoso no fato; mais uma vez, entretanto, fiquei um tanto surpreso quando ele disse, como animado por uma ideia brilhante: “Que tal entrar?” Entramos, depois que Wemmick largou seu caniço no átrio, e ficamos olhando à nossa volta. Nesse ínterim, Wemmick estava procurando alguma coisa nos bolsos do paletó e terminou pegando um embrulho. “Ora!”, exclamou. “Dois pares de luvas! Que tal calçá-las?” Como eram luvas de pelicas brancas, e como a caixa de correio de Wemmick estava agora escancarada ao máximo, comecei a ficar muito desconfiado. Minhas suspeitas foram confirmadas quando vi o idoso entrar por uma porta lateral, acompanhando uma senhora. “Ora!”, exclamou Wemmick. “É a senhora Skiffins! Que tal um casamento?” A discreta donzela usava seus trajes habituais, com a única diferença de que estava no momento ocupada em substituir suas luvas de pelica verdes por luvas brancas. Também o idoso estava no momento preparando um sacrifício semelhante para o altar de Himeneu.2 Para o ancião, porém, era tão difícil calçar as luvas que Wemmick foi obrigado a encostá-lo num pilar e puxá-las, enquanto eu o segurava em torno da cintura para que ele resistisse a esses esforços. Graças a esse engenhoso recurso, suas luvas foram por fim calçadas à perfeição. O acólito e o pároco então chegaram, e fomos dispostos ao longo daquela balaustrada fatal. Levando às últimas consequências a pretensão de estar agindo o tempo todo de improviso, Wemmick disse a si próprio, tirando algo do bolso do colete antes do início da cerimônia: “Ora! Uma aliança!”. Atuei como padrinho do noivo, enquanto uma empregadinha da igreja, uma moça flácida com uma touca como as que usam os bebês, fez de conta que era amiga do peito da sra. Skiffins. A responsabilidade de levar a noiva ao altar coube ao idoso, o que teve o efeito não intencional de escandalizar o clérigo, e a coisa se deu assim: Quando ele perguntou — “Quem dá esta mulher como esposa a este homem?” —, o ancião, não fazendo a menor ideia do momento da cerimônia a que havíamos chegado, permaneceu mudo, contemplando sorridente os dez mandamentos. O pároco insistiu: “quem dá esta mulher como esposa a este homem?”. Como o ancião permanecesse em seu estado de tranquila inconsciência, o noivo exclamou, com sua voz costumeira: “Caro idoso, o senhor sabe muito bem; quem é que dá?”. Respondeu o idoso, com muita presteza, antes de dizer que era ele quem dava: “Está bem, John, está bem, meu rapaz!”. E o pároco fez uma pausa tão funesta que por um momento cheguei a pensar que dificilmente conseguiríamos realizar o casamento naquele dia. Porém, a coisa foi levada a cabo, e quando saíamos da igreja Wemmick destampou a pia batismal, pôs as luvas brancas dentro dela e fechou-a de novo. A sra. Wemmick, pensando no futuro, guardou no bolso as suas luvas brancas e voltou a calçar as verdes. “Diga-me lá, senhor Pip”, disse Wemmick, recolocando no ombro o caniço, com um gesto triunfal, ao sairmos da igreja, “se alguém seria capaz de imaginar que estamos comemorando um casamento!” Ele já havia encomendado um desjejum numa taverna pequena e agradável, a menos de dois quilômetros dali, numa colina do outro lado do parque; e nessa taverna havia uma mesa de bagatelle,* para se por acaso quiséssemos nos descontrair depois da solenidade. Percebi, com prazer, que a sra. Wemmick agora não desenroscava mais o braço de Wemmick quando ele se adaptava às curvas de seu corpo, porém, sentada numa cadeira de encosto alto junto à parede, como um violoncelo em seu estojo, submetia-se àquele abraço, tal como o melodioso instrumento o faria. Fizemos uma excelente refeição, e sempre que alguém recusava algo Wemmick dizia: “Foi incluído na encomenda; pode comer sem medo!”. Brindei o novo casal, o idoso, o castelo, saudei a noiva na hora das despedidas, e fui tão simpático quanto consegui ser. Wemmick veio até a porta comigo, e mais uma vez troquei com ele um aperto de mãos, e desejei-lhe felicidades. “Brigado!”, exclamou Wemmick, esfregando as mãos. “Ela é uma excelente administradora de aves, o senhor não imagina. Vou lhe dar uns ovos, e o senhor vai poder julgar. Veja lá, senhor Pip!”, ele chamou-me de volta e disse, em voz baixa: “Este sentimento é inteiramente de Walworth, por favor”. “Compreendo. Não é para ser mencionado em Little Britain”, retruquei. Wemmick concordou com a cabeça. “Depois do que o senhor revelou naquele dia, melhor o senhor Jaggers não ficar sabendo de nada. Ele pode pensar que estou ficando com o miolo mole, ou coisa parecida.” * Bagatelle: jogo em que se utilizam um taco e nove bolas, numa mesa retangular com bolas e obstáculos. (n. t.) 17 Na prisão, ele permaneceu deitado, muito doente, durante todo o intervalo entre o momento em que foi detido e o início da sessão do júri. Havia fraturado duas costelas, as quais feriram um de seus pulmões, e respirava com muita dor e dificuldade, que aumentavam a cada dia. Em consequência do ferimento, falava tão baixo que mal se conseguia ouvi-lo; por esse motivo, falava muito pouco. Mas estava sempre disposto a me ouvir; e passou a ser meu principal dever dizer-lhe, e ler para ele, o que eu sabia que ele deveria ouvir. Por estar doente demais para permanecer numa prisão comum, depois de um ou dois dias foi transferido para a enfermaria. Isso me deu uma oportunidade de passar mais tempo fazendo-lhe companhia do que me teria sido permitido em outras circunstâncias. Ademais, não fosse sua doença, ele teria sido posto a ferros, por ser considerado um fujão pertinaz, e não sei que outras coisas. Embora eu o visse todos os dias, era por pouco tempo apenas; portanto, os intervalos regulares que separavam minhas visitas eram longos o bastante para que eu pudesse perceber em seu rosto quaisquer sinais sutis de alterações ocorridas em seu estado físico. Não me lembro de ter visto uma única vez alguma mudança para melhor; ele definhava, tornando-se mais fraco e mais doente, a cada dia, desde que foi encerrado no cárcere. A espécie de submissão ou resignação que demonstrava era a de um homem exaurido. Por vezes me parecia, com base em seu aspecto ou em uma ou duas palavras que escapavam de seus lábios, que ele estava a se perguntar se não poderia ter sido um homem melhor, dadas circunstâncias melhores. Porém, jamais se justificou com nenhum comentário indireto desse teor, nem tentou distorcer a forma que o passado assumira por toda a eternidade. Aconteceu duas ou três vezes, na minha presença, de uma ou outra pessoa que cuidava dele aludir a sua terrível reputação. Nesses momentos um sorriso brotava em seu rosto, e ele voltava os olhos para mim com uma expressão confiante, como se para afirmar que sabia que eu vira nele alguma pequena qualidade positiva, mesmo que fosse tantos anos antes, quando eu era criança. No mais, era humilde e contrito, e jamais o ouvi queixar-se. Quando foi aberta a sessão do júri, o sr. Jaggers requereu que o julgamento fosse adiado para a sessão seguinte.1 O pedido foi feito, claramente, com base na certeza de que o prisioneiro não viveria tanto tempo, e foi indeferido. O julgamento teve início de imediato, e quando ele foi levado ao banco dos réus, sentaram-no numa cadeira. Permitiram que eu me sentasse perto dele, ainda que do lado de fora da grade, e segurasse a mão que ele estendia a mim. O julgamento foi muito curto e muito direto. Tudo que podia ser dito em seu favor foi dito — que ele se tornara trabalhador, e obtivera a prosperidade graças ao trabalho legal e honesto. Mas não havia como negar o fato de que ele voltara do degredo, e estava ali, na presença do juiz e do júri. Não havia como julgá-lo pelo crime de retornar do desterro e não declará-lo culpado. Naquela época, era habitual (como fiquei sabendo a partir da terrível vivência daquelas sessões) dedicar o último dia da sessão à leitura das sentenças, e causar grande efeito terminando com a sentença de morte. Não fosse a imagem indelével que ficou gravada na minha memória, eu mal conseguiria acreditar, no momento em que escrevo estas palavras, que vi trinta e dois homens e mulheres levados diante do juiz para receber tal sentença juntos. O primeiro de todos era ele; sentado, a fim de que pudesse respirar o suficiente para não morrer. Toda a cena se desenrola outra vez diante de meus olhos, nas cores vívidas do momento, até mesmo as gotas das chuvas de abril nas janelas do tribunal, brilhando ao sol de abril. Confinados ao banco dos réus, estando eu do lado de fora, segurando a mão dele, estavam os trinta e dois homens e mulheres: uns arrogantes, uns paralisados de terror, uns soluçando e chorando, uns cobrindo os rostos, uns lançando olhares soturnos à sua volta. Algumas das prisioneiras gritaram, porém foram obrigadas a calar-se, e o silêncio se fez. Os xerifes, com suas longas correntes e flores na lapela, outros petrechos e monstros cívicos, pregoeiros, meirinhos, uma enorme galeria cheia de gente — uma numerosa plateia de teatro — assistia ao confronto solene entre os trinta e dois e o juiz. Então o juiz dirigiu-se a eles. Uma das criaturas miseráveis à sua frente a quem ele tinha de dar um destaque especial era um homem que quase desde a primeira infância vivera como fora-da-lei; que, após várias prisões e castigos, fora por fim condenado ao exílio por um determinado período; e que, em circunstâncias de extrema violência e ousadia, conseguira fugir e recebera como punição o degredo perpétuo. Este miserável parecera por algum tempo ter tomado consciência de seus erros, estando muito afastado do cenário de seus crimes de juventude, e vivendo uma vida tranquila e honesta. Porém, num momento fatal, cedendo a suas velhas inclinações e paixões, as quais o haviam por tanto tempo transformado num flagelo da sociedade, ele abandonara seu refúgio de repouso e arrependimento, voltando ao país do qual fora banido. Antes de ser denunciado, por algum tempo conseguiu escapar da Justiça, mas quando por fim foi capturado, em plena fuga, não só ofereceu resistência como também — só ele próprio sabia se propositalmente ou se na cegueira de seu atrevimento — causou a morte daquele que o denunciara, o qual era conhecedor de toda sua carreira criminosa. A punição prescrita para o crime de retornar ao país de onde ele fora banido era a pena de morte, e no seu caso, com todos os agravantes, ele teria de preparar-se para morrer. O sol entrava pelos janelões do tribunal, atravessando as gotas d’água reluzentes que escorriam pelas vidraças, lançando um feixe largo de luz entre os trinta e dois e o juiz, juntando aqueles a este, e talvez trazendo à lembrança de alguns dos espectadores que tanto aqueles quanto este um dia seriam submetidos, em termos de absoluta igualdade, ao Juízo mais elevado, que tudo sabe e jamais erra. Levantando-se por um momento, o rosto um ponto a brilhar na luz, o prisioneiro disse: “Meritíssimo, recebi minha sentença de morte do Todopoderoso, porém submeto-me à sua”, e voltou a sentar-se. Ouviram-se alguns “psius”, e o juiz continuou dizendo o que tinha a dizer aos outros condenados. Em seguida, a sorte de todos foi formalmente lançada; alguns precisaram de apoio para sair do recinto, e outros saíram com passo confiante e uma expressão feroz de coragem no rosto; uns poucos acenaram com a cabeça para a galeria, dois ou três trocaram apertos de mão, e outros saíram mascando fragmentos das plantas aromáticas que havia no recinto. Ele foi o último a sair, porque precisava de ajuda para se levantar da cadeira e porque caminhava muito devagar; e ficou segurando minha mão enquanto todos os outros eram retirados, e enquanto a plateia se levantava (ajeitando as roupas, como se estivessem na igreja ou em outro lugar qualquer) e apontava para este ou aquele criminoso, principalmente para ele e para mim. Eu desejava intensamente e pedia em minhas preces, que ele morresse antes que o juiz fizesse seu relatório;2 temendo, porém, que sobrevivesse, comecei naquele mesma noite a redigir uma petição dirigida ao Secretário para os Assuntos Internos, explicando de que modo eu o conhecera e relatando que ele voltara à Inglaterra por mim. Adotei o tom mais fervoroso e patético possível, e após concluí-la e enviá-la, escrevi outras petições dirigidas às autoridades que me pareciam ser as mais misericordiosas, até mesmo à própria Coroa. Por alguns dias e noites após a sentença de morte, eu só encontrava descanso quando adormecia sentado em minha cadeira; dedicava-me em tempo integral a esses documentos. E depois que os despachei, não conseguia afastar-me dos lugares onde haviam sido entregues, porém tinha a impressão de que eles possuíam mais chances e se tornavam menos inúteis quando eu estava perto deles. Nesse estado de inquietude irracional e sofrimento mental, eu caminhava pelas ruas à noite, na vizinhança das repartições e casas onde eu deixara as petições. Até hoje, as ruas do oeste de Londres, numa noite fria e poeirenta de primavera, com suas mansões severas fechadas e suas longas fileiras de lampiões, despertam sentimentos melancólicos em mim. As visitas diárias que me eram permitidas agora eram mais curtas, e ele era vigiado de forma mais severa. Percebendo, ou imaginando, que suspeitavam que eu planejasse levar veneno para o prisioneiro, pedi que me revistassem antes que eu me sentasse à sua cabeceira, e disse ao carcereiro cuja presença era constante que estava disposto a fazer qualquer coisa para convencê-lo de que eu não tinha segundas intenções. Ninguém era ríspido com ele, nem comigo. Havia um dever a cumprir, o qual era cumprido, mas sem rispidez. O carcereiro sempre me garantia que a saúde dele havia piorado, e alguns dos outros prisioneiros doentes que também estavam ali, bem como os prisioneiros que deles cuidavam como enfermeiros (malfeitores, sim, porém capazes de gestos de bondade, graças a deus!), sempre confirmavam essa avaliação. À medida que os dias passavam, eu percebia que ele se tornava mais e mais inerte, olhando placidamente para o teto branco, sem nada que lhe iluminasse o rosto, até que alguma palavra dita por mim acendesse uma luz por um instante, mas em seguida ela voltava a se apagar. Em certas ocasiões ele mal conseguia falar, ou de fato emudecia; então ele me respondia com pequenas pressões em minha mão, e aprendi a compreender muito bem o que ele queria dizer. Quando já se haviam passado dez dias, vi nele uma mudança maior do que as que tinham ocorrido até então. Seus olhos estavam voltados para a porta, e brilharam quando entrei. “Querido menino”, disse ele, quando me sentei ao lado da cama, “pensei que te atrasavas. Mas eu sabia que isso não podia ser.” “Cheguei à hora de sempre”, disse eu. “Esperei no portão até o momento de entrar.” “Tu sempre esperas lá no portão, não é, meu menino querido?” “Sim. Para não perder um único instante.” “Brigado, meu menino querido, brigado. Deus te abençoe. Tu nunca que me abandonaste, não.” Apertei sua mão em silêncio, pois não conseguia esquecer que outrora pretendera abandoná-lo. “E o melhor de tudo”, disse ele, “é ver que estás mais à vontade do meu lado despois que o céu escureceu pra mim do que estavas antes, quando o sol estava brilhando. Isso é que é o melhor de tudo.” Ele estava deitado de costas, respirando com muita dificuldade. Por mais que tentasse, por maior que fosse o amor que tinha por mim, a luz de seu rosto apagou-se para sempre, e um véu desceu sobre o olhar tranquilo voltado para o teto. “A dor aumentou muito hoje?” “Não me queixo de nada, não, meu menino querido.” “O senhor jamais se queixa.” Aquelas foram suas últimas palavras. Ele sorriu, e compreendi pelo seu toque que queria levantar minha mão e pô-la sobre seu peito. Foi o que fiz, e ele voltou a sorrir, e pôs as duas mãos sobre a minha. O tempo que me era permitido esgotou-se enquanto estávamos ocupados desse modo; quando, porém, olhei para trás, vi o diretor da prisão perto de mim, e ele cochichou: “Não é necessário sair agora”. Agradeci com fervor e perguntei: “Posso falar com ele, se ele ainda puder me ouvir?”. O diretor afastou-se um pouco e fez sinal para que o carcereiro fosse embora. Essa mudança, embora silenciosa, fez com que o véu descobrisse os olhos plácidos voltados para o teto, e ele dirigiu a mim um olhar afetuoso. “Meu caro Magwitch, preciso lhe dizer uma coisa, agora, finalmente. Está entendendo o que digo?” Uma pressão sutil em minha mão. “Sei que teve uma filha querida, e perdeu-a.” Uma pressão mais forte. “Ela sobreviveu e fez amigos poderosos. Está viva. Tornou-se uma dama, e é belíssima. E eu a amo!” Com um débil esforço derradeiro, que nada teria logrado se não contasse com minha aquiescência e meu auxílio, ele levantou minha mão até seus lábios. Em seguida, delicadamente recolocou-a em seu peito e pousou suas mãos sobre ela. Novamente voltou o olhar plácido para o teto e assim faleceu, e sua cabeça pendeu sobre o peito. Lembrando-me, então, do que havíamos lido juntos, pensei nos dois homens que entraram no Templo para rezar,3 e entendi que não havia palavras melhores que eu pudesse dizer junto a seu leito do que estas: “Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador!”. 18 Agora que eu estava totalmente só, avisei que tinha intenção de entregar meus aposentos no Temple tão logo expirasse o prazo do contrato de aluguel, e que nesse ínterim iria sublocá-los. De imediato pus anúncios nas janelas, pois eu estava endividado, quase não tinha dinheiro algum, e começava a ficar seriamente preocupado com o estado de minhas finanças. Melhor dizendo, eu deveria estar alarmado, se tivesse energia e concentração suficientes para perceber com clareza qualquer verdade além do fato de que eu estava ficando muito doente. A tensão recente que sofrera me permitira adiar a doença, mas não me livrar dela; eu sabia que agora ela haveria de me vitimar, e não sabia mais quase nada além disso, e não pensava a sério nem mesmo nesse pouco que sabia.Durante um ou dois dias, permaneci deitado no sofá, ou no chão — em qualquer lugar onde estivesse no momento em que fraquejava — com um peso na cabeça e dor nos membros, sem ânimo e sem forças. Então veio uma noite que me pareceu muito longa, cheia de ansiedade e horror; e quando, de manhã, tentei sentar-me na cama e pensar no ocorrido, constatei que não conseguia fazêlo. Se eu havia de fato descido até o Garden-court, altas horas da noite, tentando às apalpadelas encontrar o barco que eu imaginava que estivesse lá; se duas ou três vezes havia recuperado a consciência na escada, apavorado, sem saber como havia me levantado da cama; se dera por mim acendendo o lampião, atormentado pela ideia de que Magwitch estaria subindo a escada, e que o vento apagara as luzes; se eu fora indizivelmente perturbado pelos ruídos enlouquecidos de alguém falando, rindo e gemendo, e me perguntara se não seria eu mesmo quem produzia esses ruídos; se havia uma fornalha de ferro fechada num canto escuro do quarto, e uma voz gritara vez após vez que a sra. Havisham estava ardendo dentro dela — eram essas as questões que eu tentava determinar e pôr em ordem, deitado na cama naquela manhã. Porém, o vapor de um forno de cal interpunha-se entre mim e elas, embaralhando tudo, e foi através desse vapor, por fim, que vi dois homens olhando para mim. “O que vocês querem?”, perguntei, assustado. “Não os conheço.” “Bem”, respondeu um deles, abaixando-se e tocando-me no ombro, “tratase de uma questão que o senhor logo resolverá, parece-me; mas o senhor está preso.” “De quanto é a dívida?” “Cento e vinte e três libras, quinze xelins e seis pence. Devida a um joalheiro, creio eu.” “O que fazer?” “Melhor vir para minha casa”,1 disse o homem. “Minha casa é muito confortável.” Fiz uma tentativa de levantar-me e vestir-me. Quando me dei conta dos homens outra vez, estavam parados a uma pequena distância da cama, olhando para mim. Eu continuava deitado. “Vocês veem o estado em que estou”, disse eu. “Eu iria com vocês se pudesse, mas na verdade não tenho como fazê-lo. Se me tirarem daqui, acho que vou morrer no caminho.” Talvez eles tenham respondido, ou argumentado comigo, ou tentado me convencer de que eu estava melhor do que supunha. Mas como eles só vivem na minha lembrança por esse único fio tênue, não sei o que fizeram; sei apenas que não me removeram da cama. Que tive febre e as pessoas me evitavam, que sofri muito, que com frequência perdi o uso da razão, que o tempo parecia interminável, que eu confundia existências impossíveis com minha própria identidade; que eu era um tijolo na parede e no entanto implorava que me soltassem do lugar rodopiante em que os pedreiros me haviam instalado; que eu era uma barra de aço numa máquina enorme, a girar ruidosamente à beira de um abismo, e no entanto implorava como ser humano que parassem a máquina, e que minha peça nela fosse arrancada a marteladas; que passei por todas essas fases da doença, tudo isso sei com base na minha própria memória, e até certo ponto tive consciência disso na ocasião. Que por vezes eu me debatia com pessoas de carne e osso, julgando serem assassinos, e que de repente entendia que elas queriam meu bem, e então me entregava exausto a seus braços, e permitia que me deitassem, disso tive consciência na ocasião. Mas, acima de tudo, eu sabia que havia uma tendência constante nessas pessoas — as quais, quando eu me sentia muito mal, apresentavam extraordinárias transformações do rosto humano, e assumiam proporções inusitadas — acima de tudo, dizia eu, eu sabia que havia uma tendência extraordinária nessas pessoas a assumir, mais cedo ou mais tarde, as feições de Joe. Quando passou a pior fase de minha doença, comecei a perceber que, embora todas as suas outras características mudassem, essa persistia de modo coerente. Quem quer que se aproximasse de mim acabava se transformando em Joe. Eu abria os olhos durante a noite e via, na poltrona à cabeceira da cama, Joe. Abria os olhos de dia e, sentado à janela aberta, com a corrediça baixada, fumando seu cachimbo, via ainda Joe. Pedia uma bebida refrescante, e a mão querida que a levava aos meus lábios era a de Joe. Deixava a cabeça cair de volta no travesseiro depois de beber, e o rosto que olhava para mim, cheio de esperança e ternura, era o rosto de Joe. Por fim, um dia, criei coragem e perguntei: “É mesmo Joe?”. E aquela voz querida, dos tempos de outrora, respondeu: “O cujo, ele mesmo, meu velho”. “Ah, Joe, tu partes meu coração! Olha para mim com ar de zangado, Joe. Bate em mim, Joe. Chama-me de ingrato. Não sejas assim tão bom comigo!” Pois Joe chegara ao ponto de pousar a cabeça no travesseiro a meu lado e abraçar meu pescoço, tão feliz ficou ao ver que eu o reconhecia. “Meu Pip querido, meu velho”, disse Joe, “eu e tu sempre fumo amigo. E quando estiveres bom de novo pra dar uma volta — vai ser uma patuscada e tanto!” Dito isso, Joe voltou para junto da janela e ficou de costas para mim, enxugando os olhos. E como minha extrema fraqueza me impedia de levantarme e ir até ele, permaneci deitado, murmurando, penitente: “Que Deus o abençoe! Que Deus abençoe este homem doce e cristão!”. Os olhos de Joe estavam vermelhos quando o vi de novo junto a mim; eu, porém, estava segurando sua mão, e nós dois estávamos felizes. “Quanto tempo, meu querido Joe?” “O que queres dizer, Pip, é quanto tempo durou a tua doença, não é, meu velho?” “Isso mesmo, Joe.” “Estamos no final de maio, Pip. Amanhã é primeiro de junho.” “E estiveste aqui todo esse tempo, meu querido Joe?” “Quase todo, meu velho. Pois, como eu falei pra Biddy quando chegou a carta dizendo que estavas doente, a cuja foi trazida pelo carteiro, que antes era solteiro e agora está casado, se bem que ganha pouco, pro tanto que ele anda e mais o que ele gasta de sola de sapato, mas riqueza não era o que ele queria não, e casar era o que ele mais queria do fundo do coração…” “É tão bom te ouvir, Joe! Mas interrompi o que dizias a Biddy .” “O cujo”, ele prosseguiu, “foi que talvez tu estavas no meio de gente estranha, e que eu e tu sempre fumo amigo, uma visita agora quem sabe não seria má ideia. E a Biddy, ela virou pra mim e falou assim: ‘Vá ter com ele sem perder mais tempo’. Em suma, eu acho que não estaria te enganando”, Joe acrescentou, após um momento de reflexão séria, “se te disser que as palavras exata da moça foi isso: ‘sem perder nem mais um minuto’.” Neste ponto, Joe interrompeu-se, dizendo-me que lhe haviam recomendado falar comigo apenas com muita moderação, e alimentar-me aos poucos e em intervalos curtos, tendo eu apetite ou não, e que eu devia fazer tudo que ele mandasse. Assim, beijei-lhe a mão e calei-me, enquanto ele redigia um bilhete para Biddy , no qual eu lhe mandava minhas saudações. Pelo visto, Biddy ensinara-o a escrever. E estando eu deitado na minha cama, olhando para ele, ao pensar nisso, em meu estado de fraqueza, chorei mais uma vez, de alegria, por ver o orgulho com que ele compunha sua carta. Minha cama, sem o dossel, fora levada, estando eu deitado nela, para a sala, por ser o cômodo mais arejado e mais amplo, e o tapete fora retirado, e a sala era mantida sempre limpa e arrumada, dia e noite. Era à minha escrivaninha, empurrada para um canto e coberta de frascos de remédios, que Joe estava sentado para realizar seu grande feito, primeiro escolhendo uma pena no estojo como se fosse uma caixa de ferramentas, e arregaçando as mangas como se fosse empunhar um pé-de-cabra ou uma marreta. Joe precisou apoiar-se pesadamente na mesa com o cotovelo esquerdo, e dobrar bem a perna direta, para poder começar, e quando por fim começou, desenhava cada traço descendente com tanta lentidão que dava a impressão de estar fazendo um risco de dois metros de comprimento, e a cada traço ascendente eu ouvia sua pena arranhando bem alto. Curiosamente, ele julgava que o tinteiro estava do lado em que não estava, e a toda hora mergulhava a pena no ar, parecendo muito satisfeito com o resultado. De vez em quando esbarrava em algum obstáculo ortográfico, mas de modo geral saiu-se muito bem, e depois que assinou o nome, e transferiu um borrão final do papel para seu cocuruto com os dois indicadores, levantou-se e ficou a rodear a escrivaninha, contemplando o fruto de seu trabalho de diversos pontos de vista, com uma satisfação ilimitada. Não querendo preocupar Joe por falar demais, mesmo não podendo falar demais nem se quisesse, resolvi só pedir notícias da sra. Havisham no dia seguinte. Ele fez que não com a cabeça quando lhe perguntei se ela se recuperara. “Ela morreu, Joe?” “Ora, meu velho”, disse Joe, num tom de admoestação, como se tentando ir aos poucos, “eu não iria ao ponto de falar uma coisa dessa, porque isso é dizer muito; mas ela não estᅔ “Viva, Joe?” “É mais ou menos isso”, disse Joe; “ela não está mais viva.” “Ela levou muito tempo para morrer, Joe?” “Depois que tu adoeceste, ela levou mais ou menos, se me mandassem dizer quanto era, assim uma semana”, disse Joe, ainda decidido, para me proteger, a ir aos poucos. “Meu querido Joe, sabes o que vai ser da propriedade dela?” “Bom, meu velho”, disse Joe, “diz-que ela tinha destinado a maior parte dela à senhora Estella. Mas ela tinha escrevido um codicílio,2 de próprio punho, um ou dois dias antes do acidente, no qual ela deixava quatro mil libras limpas pro senhor Matthew Pocket. E sabe por quê, Pip, ela deixou essas quatro mil libras limpas pra ele? ‘Por causa do que o Pip falou a respeito do dito Matthew.’ Foi o que a Biddy me disse que ela escreveu”, disse Joe, repetindo aquele detalhe como se ele lhe fizesse um bem incomparável, “‘a respeito do dito Matthew.’ Quatro mil libras limpinhas, Pip!” Jamais descobri com quem Joe aprendeu a destacar a limpeza das quatro mil libras, mas o adjetivo parecia aumentar a quantia para ele, e estava claro que lhe dava prazer insistir nesse ponto. Este relato muito me alegrou, pois aumentava o valor da única coisa boa que eu fizera. Perguntei a Joe se ele ficara sabendo se algum outro parente recebera algum legado. “A senhora Sarah”, disse Joe, “ganhou vinte e cinco libras por ano pra comprar remédio, por causa que ela sofre do figo. A senhora Georgiana ganhou vinte libras, só. A senhora… como é que chama o nome daquele bicho que tem corcova, meu velho?” “Camelo?”, respondi, sem entender por que ele haveria de querer saber tal coisa. Joe fez que sim com a cabeça. “A senhora Camela”, que logo entendi ser uma referência a Camilla, “ganhou cinco libras pra comprar uma lamparina pra ela se animar quando ela acordar no meio da noite.” A precisão desses detalhes era óbvia para mim, e fez-me ter plena confiança nas informações trazidas por Joe. “E agora”, disse Joe, “ainda estás fraco, meu velho, e por isso só mais uma novidade por hoje. O velho Orlick andou arrombando uma casa de família.” “Casa de quem?”, indaguei. “É bem verdade que ele é meio chegado a se prosear”, disse Joe, como que se desculpando, “mas mesmo assim, a casa de um inglês é o castelo dele, e castelo só se arromba em caso de guerra. E por mais defeito que ele tem, no fundo do coração ele sempre foi um negociante de cereal.” “Foi a casa de Pumblechook que arrombaram, então?” “Isso mesmo, Pip”, disse Joe, “e levaram o dinheiro dele, e beberam o vinho dele, e comeram a comida dele, e deram um tapa na cara dele, e puxaram o nariz dele, e amarraram ele na cama, e deram uns sopapos nele, e encheram a boca dele de semente de frô pra ele não gritar. Mas ele reconheceu o Orlick, e o Orlick agora está na cadeia.” E foi assim que chegamos a ter uma conversa sem restrições. Demorei para recuperar minhas forças, mas pouco a pouco fui melhorando; Joe ficou comigo, e imaginei que eu voltara a ser o pequeno Pip de outrora. Pois a ternura de Joe era de tal modo adequada à minha necessidade que eu era como uma criança em suas mãos. Sentado a meu lado, ele falava-me com a confiança de outrora, e a simplicidade de outrora, com seu jeito despretensioso e protetor de outrora, e eu quase chegava a crer que toda a minha vida desde que eu saíra da nossa velha cozinha era um dos efeitos mentais da febre que havia passado. Ele fazia tudo por mim, menos os trabalhos domésticos, para os quais contratou uma mulher muito decente, depois de pagar e dispensar a lavadeira assim que chegou. “A cuja, eu te garanto, Pip”, ele dizia sempre, para justificar a liberdade que tomara, “eu peguei furando a cama de hóspede, que nem se fosse um barril de cerveja, e punhando as pena num balde pra vender. Ia acabar furando a tua cama também, pra tirar as pena contigo deitado nela, e levando o carvão na sopeira e na travessa de legume, e levando o vinho e o rum nas tuas bota de cano alto.” Aguardávamos com impaciência o dia em que eu poderia sair para dar um passeio, como outrora aguardávamos o dia em que eu me tornaria aprendiz. E quando o dia chegou, veio uma carruagem descoberta, Joe agasalhou-me, pegou-me no colo, carregou-me escada abaixo e colocou-me dentro da carruagem, como se eu ainda fosse a criaturinha indefesa à qual ele dera com tanta abundância a riqueza de sua natureza pródiga. E Joe sentou-se a meu lado, e juntos saímos em direção ao campo, onde o verão luxuriante já se manifestava nas árvores e na grama, e doces perfumes estivais estavam no ar. Por acaso, era um domingo, e ao contemplar a beleza à minha volta, e pensar que tudo aquilo crescera e mudara, e que as florezinhas silvestres se haviam formado, e as vozes dos passarinhos se haviam fortalecido, enquanto eu, pobre de mim, ardia de febre e me debatia em minha cama, a simples lembrança de ter ardido de febre e me debatido na cama perturbou minha paz de espírito. Quando, porém, ouvi os sinos dominicais, e olhei mais um pouco para a beleza que se espalhava a meu redor, senti que minha gratidão ainda era muito insuficiente — que ainda estava fraco demais para sequer ser grato — e apoiei a cabeça no ombro de Joe, tal como eu fazia tantos anos antes quando ele me levava à feira ou a qualquer outro lugar, e o cenário que me cercava era demais para meus sentidos ainda tenros. Após algum tempo, tranquilizei-me um pouco mais, e ficamos a conversar como fazíamos antigamente, deitados na grama na velha bateria. Joe não mudara nem um pouco. Exatamente o que ele fora antes nos meus olhos, ele continuava a ser agora; igualmente fiel, e igualmente bom. Quando, na volta, ele me levantou outra vez, e me carregou — com muita facilidade — cruzando o pátio e subindo a escada, pensei naquele Natal tão acidentado em que ele me carregara pelo charco afora. Até aquele momento, não havíamos tocado no assunto dos reveses por mim sofridos, e eu não sabia até que ponto ele estava informado a respeito dos últimos acontecimentos. Agora eu duvidava tanto de mim mesmo, e sentia tanta confiança em Joe, que não conseguia me decidir se deveria falar nisso, vendo que ele não o fazia. “Acaso soubeste, Joe”, perguntei-lhe naquela noite, depois de pensar mais um pouco, enquanto ele fumava seu cachimbo junto da janela, “quem era meu protetor?” “Ouvi dizer”, respondeu ele, “que não era a senhora Havisham, meu velho.” “Soubeste quem era, Joe?” “Bom, ouvi dizer que foi a pessoa que mandou aquela pessoa te entregar aquele dinheiro lá na Barqueiros, Pip.” “E foi mesmo.” “Espantoso!”, disse Joe, num tom absolutamente tranquilo. “Soubeste que ele morreu, Joe?”, perguntei depois de algum tempo, cada vez mais hesitante. “Quem? O que mandou entregar o dinheiro?” “Ele mesmo.” “Acho”, disse Joe, depois de meditar por um bom tempo, e de dirigir um olhar um tanto esquivo para a janela, “que ouvi dizer alguma coisa mais ou menos assim, que ele tinha mais ou menos morrido, sim.” “Soubeste das circunstâncias em que ele morreu, Joe?” “Soube muita coisa não, Pip.” “Se quiseres saber mais, Joe…”, comecei, quando Joe se levantou e veio até meu sofá. “Olha aqui, meu velho”, disse Joe, debruçando-se sobre mim. “A gente continua amigo, não é, Pip?” Tive vergonha de responder. “Muito bem, pois”, disse Joe, como se eu tivesse de fato respondido; “está bem, isso está acertado. Entonces pra que entrar em detalhe, meu velho, já que entre amigo não tem precisão dessas coisa? A gente tem muito assunto pra falar, não precisa falar nessas coisa que não tem precisão. Meu Deus! Quando eu penso na sua irmã, coitada, e como ela ficava espumando! E te lembras do paude- cosca?” “Se me lembro, Joe.” “Olha aqui, meu velho”, disse Joe, “eu fiz o que pude pra que tu e o pau-decosca ficasse separado um do outro, mas nem sempre eu conseguia fazer o que eu queria. Pois quando a tua irmã, coitada, resolvia partir pra cima de ti, o pobrema”, prosseguiu Joe, naquele seu tom de argumentação favorito, “não era que ela partia pra cima de mim se eu ficava contra ela, não, mas que aí mesmo é que ela caía em cima de ti com toda a vontade. Isso eu percebia. Não era por medo dela puxar minha barba, nem me dar uns dois safanão (coisa que a tua irmã tinha todo o direito de fazer) que um homem ia deixar de proteger um menininho. Mas se o menininho inda vai apanhar mais por conta daquele puxão na barba ou daquele safanão, entonces o homem pergunta pros botão dele: ‘Que é que adianta fazer isso? Sei o mal que vai causar’, diz o homem, ‘e não sei qual é o bem. Me diga lá qual é o bem, meu senhor’.” “O homem diz isso?”, perguntei, enquanto Joe fazia uma pausa para que eu dissesse algo. “O homem diz isso”, concordou ele. “E o homem tem razão?” “Querido Joe, ele tem sempre razão.” “Entonces, meu velho”, disse Joe, “fia-te no que tu mesmo dizes. Se o homem tem sempre razão (se bem que quase sempre ele se engana), entonces ele tem razão quando fala assim: — Quando eras pequeno, guardavas pra ti teus pobreminhas, porque sabias que o J. Gargery nem sempre conseguia manter-te separado do pau-de-cosca. Assim sendo, não penses mais nessas coisa entre nós, e não vamos falar sobre essas coisa que não tem precisão de falar. A Biddy teve muito trabalho, antes de eu vir pra cá (porque eu sou muito bronco), pra me convencer que eu devia de encarar as coisa desse jeito, e também pra me ensinar como que eu devia de falar, depois que eu já via as coisa como era pra ver. Agora que eu consegui as duas coisa”, disse Joe, encantado com sua própria lógica, “agora eu te digo, falando como amigo: não inzagera, não, come o teu jantar, toma o teu vinho com água e vai pra cama.” A delicadeza com que Joe pôs de lado o assunto, e o tato e a bondade com que Biddy — a qual, com sua argúcia de mulher, descobrira tudo — preparara-o para conversar comigo, muito me impressionaram. Mas se Joe sabia o quanto eu estava pobre, e que minhas grandes esperanças se haviam dissipado tal como as névoas de nosso charco quando o sol esquentava, disso eu não fazia ideia. Eis outra coisa a respeito de Joe que eu não compreendi quando começou a surgir, mas que não demorei a entender, e lamentar: à medida que eu ficava mais forte e melhor de saúde, Joe ficava menos à vontade comigo. Quando eu estava fraco e de todo dependente dele, meu querido Joe assumira o velho tom de antes, e me chamava pelos velhos nomes, “Pip, meu velho”, “meu velho”, que agora eram música nos meus ouvidos. Eu também assumira meu jeito antigo, e sentia-me feliz e grato por ele me permitir tal coisa. Imperceptivelmente, porém, embora eu me apegasse a esse meu jeito com unhas e dentes, Joe foi abrindo mão do seu; e se de início eu não compreendia o que estava acontecendo, logo ficou claro que a causa do fenômeno estava em mim, e que a culpa era toda minha. Ah! Então eu não dera a Joe motivo para duvidar de minha constância, para levá-lo a crer que, quando próspero, eu me tornaria frio com ele e o afastaria? Não dera eu a seu coração inocente nenhum motivo para sentir instintivamente que, à medida que eu ficasse mais forte, seu domínio sobre mim haveria de diminuir, e que seria melhor ele relaxá-lo e deixar que eu me afastasse, antes que eu próprio me livrasse dele? Foi na terceira ou quarta vez em que fui caminhar nos Temple Gardens, amparado pelo braço de Joe, que percebi essa mudança nele com muita clareza. Estávamos sentados ao sol quente, olhando para o rio, e quando nos levantamos comentei, por acaso: “Vê, Joe! Estou andando muito bem. Verás que agora na volta vou caminhar sem ajuda.” “É melhor não inzagerar”, disse Joe, “mas vou gostar muito de ver que o senhor consegue.” Aquele “o senhor” incomodou-me, mas como poderia eu censurá-lo! Andei até o portão do jardim, e então fingi que me sentia fraco, e pedi a Joe que me apoiasse. Ele me estendeu o braço, porém ficou pensativo. Eu, de minha parte, também fiquei pensativo; sentia-me perplexo e cheio de remorso, tentando encontrar a melhor maneira de deter essa mudança gradual em Joe. Que eu tinha vergonha de lhe dizer exatamente qual era minha situação, e a que eu fora reduzido, não vou tentar negar; espero, porém, que essa relutância não seja de todo censurável. Ele haveria de querer me ajudar, recorrendo a suas pequenas economias, eu sabia, e eu sabia também que ele não deveria me ajudar, e que eu não deveria permitir que ele o fizesse. Naquela noite ficamos pensativos os dois. Mas antes de nos deitarmos, eu havia decidido que esperaria o dia seguinte, que seria domingo, e na nova semana seguiria um novo caminho. Na manhã de segunda-feira eu falaria a Joe a respeito dessa mudança, eu poria de lado esse último vestígio de reserva, diria a ele o que eu tinha em mente (aquele “Segundo…”, a que ainda não chegara), e por que eu não resolvera ir trabalhar com Herbert; assim, a mudança seria realizada em caráter definitivo. À medida que eu me tranquilizava, Joe também parecia tranquilizar-se, e era como se ele, por uma faculdade de simpatia, tivesse também tomado uma decisão. Passamos um domingo tranquilo, tomamos um carro, saímos da cidade e ficamos a caminhar pelo campo. “Dou graças a Deus por ter adoecido, Joe”, observei. “Pip, meu velho, camarada velho, o senhor já está quase bom.” “Para mim, foram dias memoráveis, Joe.” “Também pra mim, tanto quanto pro senhor.” “Passamos juntos alguns dias, Joe, que jamais hei de esquecer. Dias houve, eu sei, que de fato esqueci, por algum tempo; mas estes, eu nunca vou esquecer.” “Pip”, disse Joe, parecendo um pouco afobado e preocupado, “foi grandes patuscadas. E, meu caro senhor, o que a gente fez… a gente fez.” À noite, depois que me deitei, Joe entrou em meu quarto, como vinha fazendo sempre durante meu período de convalescença. Perguntou-me se eu estava certo de que me sentia tão bem quanto me sentira pela manhã. “Estou bem, sim, meu querido Joe.” “E está cada vez mais forte, meu velho?” “Estou, sim, meu querido Joe, cada vez mais.” Joe deu tapinhas no meu ombro por cima da coberta, com sua manzorra honesta, e disse, com uma voz que me pareceu rouquenha: “Boa noite!”. Quando me levantei pela manhã, reanimado e ainda mais forte, só pensava na minha decisão de me abrir com Joe, sem demora. Eu conversaria com ele antes do desjejum. Haveria de vestir-me imediatamente, ir ao quarto dele e surpreendê-lo, pois era a primeira vez que eu acordava cedo. Fui até seu quarto, e ele não estava lá. Joe não estava mais lá, e seu baú também não. Corri até a mesa do desjejum, e lá encontrei uma carta. Ela dizia apenas isto: Sem querer me entrometer fui embora pois agora estás bem outra vez querido Pip e ficas melhor sem jo. P. S. Sempre grandes amigos. Junto com a carta, encontrei um recibo referente à dívida e aos gastos que haviam levado à minha ordem de prisão. Até aquele momento eu supunha, na minha ignorância, que meu credor havia retirado sua queixa, ou que a suspendera enquanto eu estivesse doente. Jamais imaginara que Joe havia saldado a dívida; porém ele o fizera, e o recibo estava em seu nome. Que mais me restava agora, senão ir atrás dele, rumo à minha querida ferraria, e lá abrir-me de todo com ele, e penitenciar-me, e aliviar minha mente e meu coração revelando aquele “Segundo…”, que começara como uma vaga ideia em minha cabeça, e que se cristalizara numa firme decisão? O que eu decidira era que voltaria a Biddy , e haveria de lhe mostrar o quanto eu estava humilde e arrependido, contar-lhe de que modo perdera todas as minhas esperanças, e lembrar-lhe as confidências que havíamos trocado nos tempos de minha primeira infelicidade. Então eu lhe diria: “Biddy, creio que gostavas muito de mim, quando meu coração inconstante, muito embora se afastasse de ti, era mais tranquilo e melhor contigo do que jamais voltou a ser. Se ainda consegues gostar de mim a metade do que gostavas antes, se consegues me aceitar com todos os meus defeitos e decepções, se podes me receber como uma criança perdoada (e, de fato, estou muito arrependido, Biddy, e preciso de uma voz que me tranquilize e uma mão que me acaricie), espero ser um pouco mais merecedor de ti do que antes — não muito, mas um pouco. E, Biddy, caberá a ti decidir se devo trabalhar na ferraria com Joe, ou se devo tentar encontrar algum outro tipo de trabalho em nossa aldeia, ou se devemos ir para algum lugar distante onde me aguarda uma oportunidade, a qual deixei de lado quando me foi oferecida, enquanto eu não soubesse qual seria a tua resposta. E agora, querida Biddy, se podes me dizer que seguirás pelo mundo comigo, certamente farás do mundo um lugar melhor para mim, e farás de mim um homem melhor, e hei de esforçar-me ao máximo para fazer do mundo um lugar melhor para ti”. Era essa a minha decisão. Após mais três dias de convalescença, voltei à minha velha aldeia para realizar meu intento; e o que se passou comigo é tudo que ainda tenho para relatar. 19 A notícia de minha derrocada espetacular havia chegado à minha aldeia natal e suas redondezas antes que eu lá chegasse. Descobri que o Javali Azul já estava em posse dessa informação, e também que ela em muito alterara a atitude do estabelecimento. Se o Javali cultivara a minha estima com cálida assiduidade quando eu estava começando a gozar a minha propriedade, ele estava excepcionalmente frio, agora que eu não tinha mais propriedade nenhuma. Era noite quando cheguei, exaurido por aquela viagem que eu fizera tantas vezes antes com facilidade. O Javali não pôde me conceder meu quarto habitual, que estava ocupado (provavelmente por alguém que tinha grandes esperanças), e coube-me apenas um quarto bem inferior, em meio aos pombos e às diligências do pátio. Entretanto, dormi tão profundamente ali quanto no melhor aposento que o Javali me pudesse ter concedido, e a qualidade de meus sonhos foi mais ou menos a mesma que teria sido no melhor dos quartos. De manhã cedo, enquanto preparavam meu desjejum, fui dar uma caminhada na vizinhança da Casa Satis. Havia cartazes impressos no portão, e em pedaços de tapete pendurados das janelas, anunciando a venda, em leilão, de móveis e outros artigos, na semana seguinte. A casa em si seria vendida como material de construção, e demolida. Lia-se 1o lote, em letras tortas escritas em cal, na parede da cervejaria, e 2o lote na parte principal do prédio, que ficara tanto tempo fechada. Outros lotes estavam assinalados em outras partes da estrutura, e a hera fora arrancada para dar lugar às inscrições; boa parte dela estava caída no chão de terra, já murcha. Entrando por um momento pelo portão aberto, com o ar pouco à vontade de um desconhecido que não tinha por que estar ali, vi o funcionário do leiloeiro andando por cima dos barris e contando-os em voz alta, enquanto um compilador fazia suas anotações à caneta, usando como escrivaninha temporária a cadeira com rodas que eu tantas vezes empurrara, ao som da canção do velho Clem. Quando voltei ao Javali para comer, encontrei o sr. Pumblechook conversando com o taverneiro. O sr. Pumblechook (cuja aparência não havia melhorado por efeito de sua recente aventura noturna) estava à minha espera e dirigiu-se a mim nos seguintes termos: “Meu jovem, lamento vê-lo arruinado. Mas o que mais se poderia esperar! Que mais se poderia esperar!” Como ele me estendeu a mão com um magnífico ar de perdão, e como eu estava enfraquecido pela doença e incapaz de brigar, aceitei-a. “William”, disse o sr. Pumblechook ao garçom, “ponha um muffin* sobre a mesa. Então a coisa acabou assim! A coisa acabou assim!” De cara amarrada, sentei-me e comecei a comer. O sr. Pumblechook, em pé, serviu-me o chá — antes que eu tivesse tempo de pegar o bule — com o ar de um benfeitor decidido a ser fiel até o fim. “William”, disse o sr. Pumblechook, com uma voz triste, “traga o sal. Em tempos mais felizes”, dirigindo-se a mim, “creio que você usava açúcar? E leite? Sim, açúcar e leite. William, traga um pouco de agrião.” “Obrigado”, disse eu, seco, “mas não como agrião.” “Não come agrião”, retrucou o sr. Pumblechook, suspirando e balançando a cabeça várias vezes, como se já esperasse aquilo, como se não comer agrião fosse coerente com minha derrocada. “É verdade. Os frutos simples da terra. Não. Não precisa trazer, não, William.” Continuei a comer, e o sr. Pumblechook permaneceu em pé a meu lado, com seu olhar fixo de peixe e respirando ruidosamente, como de hábito. “Só pele e ossos!”, ruminava ele, em voz alta. “E no entanto quando ele partiu daqui (posso acrescentar, com minha bênção), e eu abri para ele minha humilde loja, ele estava rechonchudo como um pêssego!” Isso me fez pensar na diferença incrível entre a maneira servil com que ele me oferecera a mão, quando eu acabara de me tornar próspero, indagando: “Posso?”, e a clemência ostensiva com que ainda há pouco exibira os mesmos cinco dedos. “Ah!” exclamou ele, entregando-me o pão com manteiga. “E vai agora ter com o Joseph?” “Pelo amor de Deus”, exclamei, sem conseguir mais me controlar, “o que lhe importa aonde vou? Largue esse bule.” Foi a pior coisa que eu poderia ter feito, porque deu a Pumblechook a oportunidade que ele queria. “Sim, meu jovem”, disse ele, soltando o bule e afastando-se um passo de minha mesa, e falando de modo a ser ouvido pelo taverneiro e pelo garçom à porta, “vou largar o bule, sim. Você tem razão, meu jovem. Pela primeira vez, você tem razão. Foi por distração que eu me interessei pelo seu desjejum, para que você alimentasse seu organismo, exaurido pelos efeitos debilitantes da prodigialidade, com a comida salutar dos seus antepassados. E no entanto”, disse Pumblechook, virando-se para o taverneiro e o garçom, apontando-me com o braço esticado, “era com ele que eu brincava no tempo de sua infância feliz! Me digam que não pode ser; pois eu afirmo que é ele mesmo!” Um murmúrio discreto dos outros dois lhe deu resposta. O garçom parecia particularmente afetado. “Era ele mesmo”, disse Pumblechook, “que eu levava na minha carroça. Ele, que eu criei com a mão. Ele, de cuja irmã me tornei tio por afinidade, cuja mãe dela era Georgiana M’ria, ele que o negue se for capaz!” O garçom parecia convencido de que eu não podia negá-lo, e que isso tornava a coisa ainda mais séria. “Meu jovem”, disse Pumblechook, virando a cabeça para mim à sua maneira de outrora, “você vai ter com o Joseph. O que me importa, você pergunta, aonde você vai? E eu lhe digo: meu caro, você vai ter com o Joseph.” O garçom tossiu, como se convidando, modestamente, a responder a tal desafio. “Ora”, disse Pumblechook, e tudo isso com o ar mais irritante de dizer na causa da virtude o que era perfeitamente convincente e conclusivo, “vou lhe falar o que dizer ao Joseph. Aqui está o proprietário do Javali, conhecido e respeitado nesta cidade, e aqui está o William, cujo nome do pai era Potkins, se não me engano.” “Isso mesmo, senhor”, disse William. “Na presença deles”, prosseguiu Pumblechook, “vou lhe dizer, meu jovem, o que dizer ao Joseph. Diga o seguinte: ‘Joseph, hoje estive com meu primeiro benfeitor e fundador da minha fortuna. Não vou dizer quem é, Joseph, mas é assim que o chamam na cidade, e eu estive com esse homem’.” “Juro que não o estou vendo aqui”, disse eu. “Diga isso também”, retorquiu Pumblechook. “Diga que você disse isso, e até mesmo o Joseph vai se surpreender.” “Então o senhor não o conhece”, disse eu. “Eu o conheço bem.” “Diga você”, prosseguiu Pumblechook. “‘Joseph, eu estive com esse homem, e ele não me deseja mal, nem a ti nem a mim. Ele te conhece bem, Joseph, conhece bem a tua teimosia e a tua ignorância; e ele me conhece bem, Joseph, conhece bem a minha ingratidão. Sim, Joseph’, diga você”, e nesse ponto Pumblechook sacudiu a cabeça e a mão para mim, “ele conhece bem minha total desficiência em matéria de gratidão humana. Ele a conhece, Joseph, melhor do que ninguém. Tu não a conheces, Joseph, não tendo tido oportunidade disso, mas esse homem a conhece.” Mesmo sabendo que ele era um asno falastrão, fiquei pasmo de ver que ele era capaz de dizer tal coisa na minha cara. “Diga você: ‘Joseph, ele me deu um pequeno recado, que vou te transmitir agora. É que, ao me ver humilhado, ele viu o dedo da Providência. Ele reconheceu esse dedo ao vê-lo, Joseph, e ele o viu com clareza. E o dedo apontava para a seguinte inscrição, Joseph: Castigo pela ingratidão para com seu primeiro benfeitor, e fundador de sua fortuna . Mas esse homem disse que não se arrependia do que havia feito, Joseph. Nem um pouco. Foi a coisa certa a fazer, foi a coisa boa a fazer, foi uma benevolência, e ele faria outra vez’.” “É uma pena”, disse eu, com sarcasmo, terminando meu desjejum interrompido, “que o homem não tinha dito o que foi que ele fez e faria outra vez.” “Proprietário do Javali”, Pumblechook agora se dirigia ao taverneiro, “e William! Não me oponho a que os senhores mencionem, na aldeia ou seu entorno, se assim o desejarem, que foi certo, bom e benevolente fazer a coisa que eu fiz, e que eu a faria outra vez.” Com essas palavras, o impostor apertou a mão dos dois homens, com ares de importância, e saiu, deixando-me muito mais atônito do que deliciado pelas virtudes da “coisa” indefinida. Saí da taberna não muito tempo depois que ele saiu, e quando desci a High-street vi-o discursando (sem dúvida sobre o mesmo tema) à porta de sua loja para um grupo seleto, o qual me agraciou com olhares muito desfavoráveis quando passei pela calçada oposta. Isso, porém, tornava ainda mais agradável a perspectiva do encontro com Biddy e Joe, cuja imensa generosidade brilhava ainda mais do que antes, se tal fosse possível, em contraste com aquele farsante descarado. Eu caminhava devagar, pois meus membros estavam fracos, mas com uma sensação de alívio crescente à medida que me aproximava deles, e a sensação de estar deixando para trás, cada vez mais longe, a arrogância e a falsidade. Era junho, e o tempo estava magnífico. O céu estava azul, as cotovias voavam bem alto sobre o trigal verdejante, todo o campo me parecia muito mais belo e pacífico do que eu jamais o vira. Ao longo do caminho, distraíam-me muitas imagens agradáveis da vida que eu haveria de levar ali, e da mudança para melhor que sofreria meu caráter quando eu tivesse a meu lado uma presença a me guiar, com uma fé simples e uma sabedoria natural que eu bem conhecia. Elas despertavam em mim uma emoção terna, pois meu coração estava suavizado por aquele retorno, e era tal a mudança ocorrida em mim que eu me sentia como o viandante que volta para casa descalço depois de uma longa viagem, com muitos anos de duração. Eu nunca vira a escola onde Biddy lecionava; mas o caminho indireto que eu tomara para chegar à aldeia, a fim de ter uma caminhada mais tranquila, levoume até ela. Decepcionei-me ao ver que era um feriado; não havia nenhuma criança lá, e a casa de Biddy estava fechada. Eu havia imaginado encontrá-la ocupada com seus afazeres cotidianos, e essa expectativa frustrou-se. Mas a ferraria era bem perto dali, e para lá fui à sombra das doces tílias verdejantes, tentando ouvir as marteladas de Joe. Quando eu já devia estar a ouvi-las há um bom tempo, e quando eu já imaginara tê-las ouvido há um bom tempo, tudo permanecia silencioso. Lá estavam as tílias, e os pilriteiros, e as castanheiras, e suas folhas farfalhavam em harmonia quando eu parava para escutar; porém o som das marteladas de Joe não vinha no vento estival. Quase temendo, sem saber por quê, divisar a ferraria, vi-a por fim, e estava fechada. Não havia fogo, nem fagulhas reluzentes, nem ressoava o ronco do fole; tudo fechado e silencioso. Entretanto, a casa não estava vazia, e a sala de visitas de cerimônia parecia estar sendo usada, pois havia cortinas brancas esvoaçando na janela, a qual estava aberta e enfeitada com flores. Aproximei-me em silêncio, pensando em olhar por cima das flores, quando vi Joe e Biddy à minha frente, de braços dados. De início Biddy deu um grito, como se julgasse ver uma aparição, mas no instante seguinte abraçou-me. Chorei ao vê-la, e ela chorou ao ver-me; eu, porque sua aparência era tão fresca e agradável; ela, porque eu parecia tão cansado e pálido. “Mas, querida Biddy , como estás elegante!” “É, meu querido Pip.” “E Joe, como tu estás elegante!” “É, Pip, camarada velho.” Olhei para os dois, de um para o outro, e então… “Hoje é o dia do meu casamento”, exclamou Biddy, numa explosão de felicidade, “e me casei com o Joe!” Eles me levaram à cozinha, e eu pousei a cabeça na velha mesa de pinho. Biddy levava uma de minhas mãos aos lábios, e a mão confortadora de Joe tocava-me o ombro. “É que ele ainda não está forte pra aguentar uma surpresa assim, querida”, disse Joe. E Biddy disse: “Eu devia ter pensado nisso, meu querido Joe, mas eu estava feliz demais”. Os dois estavam felicíssimos por me ver, orgulhosos por me ver, emocionados por eu ter vindo a eles, deliciados por eu ter chegado por acaso para tornar aquele dia completo! O primeiro pensamento que me ocorreu foi de grande alívio por não ter comunicado a Joe essa minha última esperança frustrada. Quantas vezes, quando ele estava comigo em minha convalescença, as palavras não haviam subido a meus lábios! Como teria sido irrevogável para ele essa revelação, se tivesse permanecido comigo mais uma hora, apenas! “Querida Biddy ”, disse eu, “tens o melhor marido do mundo, e se pudesses vê-lo à minha cabeceira tu… mas não, não poderias amá-lo mais que o amas.” “Não, não poderia, não”, disse Biddy . “E tu, meu querido Joe, tens a melhor esposa do mundo, e ela há de te fazer tão feliz quanto mereces ser, meu querido Joe, tão bom, tão nobre!” Joe olhou-me com o lábio trêmulo, e chegou a levar a manga da camisa aos olhos. “E Joe e Biddy, vocês que estiveram hoje na igreja, e sentem caridade e amor por toda a humanidade, recebam meu humilde agradecimento por tudo que fizeram por mim, e pelo qual eu lhes recompensei tão mal! E quando eu lhes disser que estou partindo dentro de uma hora, pois em breve vou para o estrangeiro, e que não descansarei enquanto não conseguir ganhar com meu trabalho o dinheiro que comprou minha liberdade, e enviá-lo a vocês, não pensem, queridos Joe e Biddy, que mesmo se eu pagasse mil vezes essa quantia seria possível para mim saldar um milésimo do tanto que lhes devo, ou que eu o faria se pudesse fazê-lo!” Os dois se emocionaram ao ouvir essas palavras, e ambos imploraram que eu não dissesse mais nada. “Mas tenho que dizer mais. Querido Joe, espero que vocês tenham filhos para amar, e que um dia um menininho se sente aqui no canto da lareira numa noite de inverno, e que ele te faça lembrar de um outro menininho que daqui partiu para sempre. Não digas a ele, Joe, que fui ingrato; não digas a ele, Biddy, que fui tão pouco generoso e tão injusto; digam-lhe apenas que eu tive muita estima por vocês dois, por serem tão bons e fiéis, e que, como filho de vocês, afirmei que era natural que ele se tornasse um homem muito melhor que eu.” “Não vou dizer a ele”, retrucou Joe, falando por detrás da manga da camisa, “nada disso, não, Pip. Nem a Biddy não vai. Ninguém vai dizer nada disso.” “E agora, embora eu saiba que vocês já fizeram isso no fundo de seus corações bondosos, por favor me digam, vocês dois, que me perdoam! Por favor, deixem-me ouvir essas palavras, para que eu possa levá-las comigo, e então possa acreditar que vocês podem confiar em mim, e ter-me em melhor conta no futuro!” “Ah, querido Pip, meu velho”, exclamou Joe. “Deus sabe que te perdoo, se tem alguma coisa pra mim perdoar!” “Amém! E Deus sabe que eu também o faço!”, ecoou Biddy . “Agora deixem-me subir e ver meu velho quartinho, e repousar lá a sós por alguns minutos, e então, depois que eu comer e beber com vocês, levem-me até o poste indicador, queridos Joe e Biddy , para lá nos despedirmos!” Vendi tudo que tinha, 1 e economizei o quanto pude para entrar num acordo com meus credores — os quais me deram bastante tempo para saldar minhas dívidas por completo — e fui trabalhar com Herbert. Em menos de um mês, parti da Inglaterra, e em menos de dois meses estava trabalhando como caixeiro da Clarriker & Cia., e em menos de quatro meses assumi toda a responsabilidade pela sucursal pela primeira vez. Pois a viga do teto em Mill Pond Bank já não tremia com os grunhidos do velho Bill Barley e estava em paz, Herbert fora à Inglaterra para desposar Clara, e fiquei sozinho responsável pela sucursal oriental da firma até ele voltar com ela. Muitos anos se passaram até que eu me tornasse sócio, mas fui feliz, morando com Herbert e sua esposa e levando uma vida frugal; liquidei minhas dívidas, e mantive uma correspondência constante com Biddy e Joe. Foi só quando me tornei o terceiro sócio da firma que Clarriker cometeu uma traição, contando tudo a Herbert; ele, porém, afirmou que o segredo do que possibilitara a ascensão de Herbert pesava-lhe há muito tempo na consciência, e que ele precisava revelá-lo. Assim, ele abriu-se: Herbert ficou tão comovido quanto atônito, e nossa amizade não se tornou menor por conta desse segredo mantido por tanto tempo. Que não se pense que nos tornamos uma grande empresa, nem que ganhamos dinheiro a rodo. Não negociávamos em escala grandiosa, mas tínhamos um bom nome na praça, trabalhávamos muito para ganhar nosso dinheiro e demo-nos muito bem. Devíamos tanto à disposição alegre de Herbert para o trabalho que muitas vezes eu me perguntava como pude jamais duvidar de sua capacidade, até que um dia a questão se esclareceu quando me ocorreu a reflexão de que a incapacidade talvez jamais tivesse sido um atributo dele, e sim meu. * Muffin: massa de pão cortada em fatias redondas cozinhada na chapa, servida com manteiga. (n. t.) 20 Fazia onze anos que eu não via Joe nem Biddy com meus olhos corpóreos — embora os dois estivessem sempre presentes na minha imaginação, no Oriente — quando, numa noite de dezembro, uma ou duas horas depois do pôr do sol, pousei a mão silenciosamente na maçaneta da velha porta da cozinha. Meu toque foi tão leve que ninguém me ouviu, e olhei dentro da casa sem que me vissem. Lá, fumando seu cachimbo no lugar de sempre junto à lareira, saudável e forte como sempre, ainda que um pouco grisalho, estava Joe; e lá, encurralado no canto da cozinha pela perna de Joe, sentado no meu banquinho, olhando para o fogo, estava… eu de novo! “A gente deu a ele o nome de Pip em tua homenagem, meu velho”, disse Joe, muito contente, quando me sentei em outro banco ao lado do menino (mas não lhe despenteei o cabelo), “e a gente espera que ele fique um pouco como ti quando crescer, e a gente acha que ele vai ficar, sim.” Eu também pensava assim, e saí para caminhar com ele na manhã seguinte, e conversamos muitíssimo, compreendendo um ao outro à perfeição. E levei-o até o campo-santo, e o pus sobre uma certa lápide de lá, e ele me mostrou do alto dela qual pedra era dedicada à memória de Philip Pirrip, paroquiano de lá, e também Georgiana, esposa do acima. “Biddy ”, disse eu quando fui conversar com ela depois do jantar, enquanto a filha pequena dormia em seu colo, “tens que me dar o Pip, um dia desses, ou pelo menos emprestá-lo.” “Não, senhor”, disse ela, carinhosa. “Tens que te casar.” “É o que dizem Herbert e Clara, mas acho que nunca vou me casar, Biddy. Já me acostumei tanto a morar com eles, que isso não é mais provável. Já me tornei um solteirão.” Biddy olhou para a criança, levou sua mãozinha aos lábios e depois pôs sua boa mão de matrona, com que ela a tocara, na minha mão. Havia algo naquele ato, e na leve pressão da aliança em seu dedo, que continha uma linda eloquência. “Querido Pip”, disse Biddy , “tens certeza de que não sofres mais por ela?” “Ah, não — creio que não, Biddy .” “Fala comigo como a uma velha amiga. Esqueceste-a por completo?” “Querida Biddy, não esqueci nada que ocupou um lugar importante na minha vida, e quase nada de qualquer coisa que me tenha ocorrido. Mas aquele sonho vão, como eu o chamava outrora, se esvaeceu completamente, Biddy, completamente!” Não obstante, eu sabia, no momento mesmo em que dizia essas palavras, que pretendia em segredo visitar o lugar onde antes ficava o casarão, naquela mesma noite, sozinho, por ela. Sim, apesar de tudo. Por Estella. Eu ficara sabendo que ela tivera uma vida muito infeliz, tendo se separado do marido, que fora muito cruel com ela, e que se tornara famoso por sua combinação de orgulho, avareza, brutalidade e mesquinhez. E soubera também da morte dele, num acidente causado pelos maus-tratos que ele infligira a um cavalo. Estella tornara-se livre cerca de dois anos antes; talvez tivesse voltado a casar-se. Como o jantar na casa de Joe era cedo, tive bastante tempo, mesmo após uma conversa demorada com Biddy, para caminhar até o lugar da casa velha antes que escurecesse. Durante a caminhada, porém, parei muitas vezes para ver coisas antigas e pensar nos tempos antigos; assim, quando cheguei a meu destino já estava escurecendo bastante. Agora não havia mais casa, nem cervejaria, nem prédio nenhum, apenas o muro do velho jardim. O terreno baldio era delimitado por uma cerca grosseira, e olhando por cima dela vi que alguns ramos da velha hera haviam criado raízes novas, e agora estavam verdejantes por cima de montes de entulho. O portão da cerca estava entreaberto, abri-o por completo e entrei. Uma névoa friorenta descera sobre a tarde, e a lua ainda não nascera para dissipá-la. Porém as estrelas brilhavam por trás da névoa, a lua já estava quase nascendo, e a noitinha não estava escura. Pude identificar o local em que ficara cada parte da velha casa, onde os portões, onde os barris. Tendo feito isso, fiquei contemplando o desolado caminho do jardim quando vi um vulto solitário dentro dele. O vulto demonstrou que percebia minha presença, à medida que me aproximava. Antes o vulto vinha em minha direção, mas agora estava parado. Chegando mais perto, vi que era uma mulher. Quando me aproximei ainda mais, ela fez menção de se afastar, mas então parou e deixou-me chegar até ela. Então hesitou, como se atônita, e pronunciou meu nome, e gritei: “Estella!” “Mudei muito. Não sei como me reconheceste.” De fato, o frescor de sua beleza se havia desvanecido, mas uma indescritível majestade e um indescritível encantamento permaneciam. Esses seus atributos eu já vira antes; o que eu jamais vira era aquela luz suavizada e melancólica nos olhos outrora orgulhosos; o que jamais sentira antes era o toque simpático da mão outrora insensível. Sentamo-nos num banco perto dali, e eu disse: “Depois de tantos anos, é estranho que voltemos a nos encontrar, Estella, aqui onde nos vimos pela primeira vez! Costumas voltar aqui sempre?”. “Nunca mais voltei.” “Nem eu.” A lua começava a subir no céu, e pensei naquele olhar plácido voltado para o teto, que já não existia. A lua começava a subir no céu, e pensei na pressão em minha mão depois que pronunciei as últimas palavras que ele ouviu neste mundo. Foi Estella quem rompeu o silêncio que se instaurara entre nós. “Muitas vezes desejei e tencionei vir aqui, mas fui impedida por uma série de circunstâncias. Pobre casa velha!” A névoa prateada agora era tocada pelos primeiros raios de luar, e os mesmos raios tocaram as lágrimas que caíram de seus olhos. Não sabendo que eu as via e tentando livrar-se delas, Estella disse em voz baixa: “Por acaso estavas pensando, ao caminhar por aqui, como foi que o lugar acabou nesse estado?” “Estava, sim, Estella.” “O terreno é meu. É a única propriedade de que não abri mão. Tudo mais que tinha perdi, pouco a pouco, mas isto permanece. Foi a única coisa que me levou a oferecer resistência em todos esses anos de desgraça.” “Vão construir no terreno?” “Finalmente. Vim aqui para me despedir dele, antes da mudança que vai ocorrer. E tu”, disse ela, com aquele tom de interesse que se sente por um viandante, “ainda vives no estrangeiro?” “Ainda.” “E vives bem, sem dúvida?” “Trabalho muito para ter o suficiente, de modo que… Sim, vivo bem.” “Tenho pensado muito em ti”, disse Estella. “É mesmo?” “Muito, ultimamente. Durante muito tempo, um tempo muito difícil, mantive afastada a lembrança do que joguei fora quando não conhecia ainda seu valor. Mas como nada havia no reconhecimento dessa lembrança que fosse incompatível com meus deveres, terminei por lhe dar um lugar no meu coração.” “Tu sempre tiveste um lugar no meu coração”, repliquei. E ficamos em silêncio de novo, até que ela voltou a falar. “Jamais imaginei”, disse ela, “que iria te dizer adeus ao dizer adeus deste lugar. É muito bom que seja assim.” “Muito bom dizer adeus outra vez, Estella? Para mim, dizer adeus é uma coisa dolorosa. Para mim, a lembrança da última vez em que nos despedimos sempre foi melancólica e dolorosa.” “Mas tu me disseste”, retorquiu Estella, muito séria, “‘Que Deus te abençoe, que Deus te perdoe!’ E se pudeste dizê-lo naquele dia, não hesitarás em dizer o mesmo a mim agora — agora, depois que o sofrimento me deu uma lição mais forte do que qualquer outra, e me ensinou a compreender como era outrora o seu coração. A vida me dobrou, me quebrou, mas espero que me tenha tornado uma pessoa melhor. Sê tão compreensivo e bom comigo quanto foste antes, e dize-me que somos amigos.” “Somos amigos”, disse eu, levantando-me e debruçando-me sobre Estella, enquanto ela se levantava também. “E continuaremos amigos à distância”, disse ela. Tomei-lhe a mão, e saímos daquelas ruínas; e tal como as névoas matinais se haviam dissipado tantos anos antes, quando parti da ferraria pela primeira vez, assim também as névoas vespertinas se dissipavam agora,1 e naquela extensão de luz tranquila que elas me revelavam, não vi nenhuma sombra de um adeus a Estella.2 Notas introdução 1 Os comentários de Shaw e Swinburne foram reeditados em Critical essays on Great expectations. cotsell, Michael. (Org.). Boston: G. K. Hall, 1990, pp. 34, 24. 2 Great expectations. In: Dickens and the twentieth century. gross, John; pearson, Gabriel (Orgs.). Londres: Routledge & Kegan Paul, 1962, pp. 199-211. 3 Ibid., p. 209. 4 The hero’s guilt: the case of Great expectations. In: Critical essays, pp. 73-87. 5 gilbert, Elliot L. ‘In primal sy mpathy ’: Great expectations and the secret life. In: Critical essays, pp. 146--67; cohen, William A. Manual conduct in Great expectations, elh 60, 1993, pp. 217-59. 6 Dickens and the uncanny : repression and displacement in Great expectations, Dickens Studies Annual 13, 1984, p. 119. 7 Appreciations and criticisms of the works of Charles Dickens (1911). In: Critical essays, p. 31. 8 The Dickens world. 2ª ed. Londres: Oxford University Press, 1942, p. 135. 9 Household Words , 05/07/1851. A partir de agora, faremos referência aos artigos de Household Words apenas por meio da data de publicação. 10 Bodies of capital: Great expectations and the climacteric economy, Victorian Studies 37, 1993, pp. 73-98. dedicatória 1 Afetuosamente dedicado a Chauncy Hare Townshend: O reverendo Chauncy Hare Townshend ( 1798-1868) era um próspero clérigo e colecionador, interessado em literatura e espiritismo. Dickens foi seu testamenteiro literário e preparou para publicação sua obra Religious opinions (1869). Além da dedicatória, Townshend ganhou de Dickens o manuscrito de Grandes esperanças. volume i capítulo 1 1 Muito antes do tempo das fotografias: os pioneiros da fotografia moderna conseguiram fixar imagens no final da década de 1830, e nos anos 1850 já havia fotógrafos profissionais na maioria das cidades britânicas. Esta é a primeira de uma série de referências às datas em que transcorreriam os eventos do romance. Para a análise mais detalhada dessas referências, ver: Jerome Meckier, “Dating the action in Great expectations”, Dickens Studies Annual 21 (1992), pp. 157-94, em que o autor conclui que a narrativa começa em dezembro de 1812; a chegada de Pip a Londres no início do segundo volume ocorre em julho de 1823; o terceiro volume começa no final de 1828; e a última página se passa e m 1840. Seja ou não apropriado esse grau de precisão, Dickens costuma enfatizar não a data exata, e sim, como aqui, no grande intervalo de tempo entre o momento em que ele escreve e as coisas tal como eram na sua infância. Ver também, no Apêndice B, as anotações de Dickens sobre datas. 2 O charco junto ao rio: o cenário do romance é a península de Hoo em Kent, limitada ao norte pelo estuário do Tâmisa e ao sul pelo rio Medway. O charco de Cooling, que inspirou o charco do romance, se estende ao norte em direção ao Tâmisa a partir da aldeia de Cooling. As patéticas lápides dos treze filhos de uma família que ficam no cemitério da igreja de são Tiago em Cooling, lugar aonde Dickens ia muitas vezes a pé de sua casa em Gad’s Hill, são há muito consideradas a inspiração dos túmulos dos irmãos de Pip. Embora ele se houvesse mudado para Gad’s Hill pouco tempo antes, em 1857, Dickens conhecia a região desde menino; sua família morara em Chatham de 1817 a 1822. A cidade de Rochester, perto dali, serviu de modelo para a cidadezinha em que fica a Casa Satis. 3 Um grande ferro na perna: um grilhão de ferro. 4 Velha bateria: forte ou obra de fortificação para artilharia. capítulo 2 1 Ter-me criado “com a mão”: ou seja, alimentando-o com uma colher ou uma mamadeira, em vez de o amamentar. A expressão (by hand) era comum na época: na primeira edição do Book of household management [Livro de administração do lar], de Isabella Beeton (1861), o capítulo sobre a alimentação artificial do bebê tem o título “Rearing by hand”. 2 Hércules: na mitologia grega, filho de Zeus e Alcmena, tremendamente forte, célebre por ter estrangulado duas serpentes ainda no berço. 3 Dúzia de frade: treze. 4 Relógio alemão: uma espécie de relógio de madeira barato, importado da Alemanha. 5 Emplastro: o boticário (farmacêutico) aplicava unguento a feridas ou contusões espalhando-o num pano que em seguida era colocado sobre o lugar afetado. 6 Água alcatroada: solução de alcatrão, usada como desinfetante ou, como é o caso aqui, um remédio de gosto horrível, que supostamente curava as doenças pulmonares. 7 Presigangas: a partir de 1776 (quando a Guerra da Independência dos Estados Unidos impediu o degredo de prisioneiros para as colônias norteamericanas), presigangas — cascos de navios desativados por não estarem mais em condições de navegar, atracados no Tâmisa perto de Woolwich e em outros portos britânicos — eram usadas como prisões. A partir de 1810, alguns desses navios foram atracados também no rio Medway, ao largo de Sheerness. Os prisioneiros que lá ficavam costumavam trabalhar nos estaleiros. Depois que começaram a ser enviados degredados à Austrália, em 1787, era comum os prisioneiros prestarem trabalhos forçados nas presigangas antes de irem para o degredo. O sistema passou por várias reformas e começou a ser desativado por volta de 1840 (em parte porque várias colônias australianas se recusavam a receber mais prisioneiros); a última das presigangas foi queimada em Woolwich em 1857. 8 Atrito suave: antes do advento dos fósforos de enxofre, que produzem fogo quando atritados numa superfície áspera, para obter-se uma chama golpeava-se uma pederneira com um pedaço de aço, gerando uma faísca que incendiava uma lasca de madeira. Os fósforos de enxofre foram inventados na década de 1820, mas seu uso só se popularizou de modo gradual. 9 Sumo de alcaçuz: bebida doce, não alcoólica, feita dissolvendo-se pó de alcaçuz em água. capítulo 3 1 Aprendiz: os aprendizes eram legalmente obrigados, por força de um contrato (indenture), a trabalhar para um artesão, o mestre, por determinado número de anos. Normalmente os pais ou amigos do aprendiz tinham de pagar um preço por esse privilégio. O mestre, por sua vez, assumia o compromisso de não maltratar o aprendiz e ensinar-lhe o ofício. Findo o período estipulado, o aprendiz podia ir embora, ou então continuar a trabalhar para o mesmo mestre ou outro por um salário diário ou semanal, como mais adiante, na narrativa, Orlick trabalha para Joe como “jornaleiro” — aquele que trabalha em troca de “jornal” (do la tim diurnãlis, “diário”), no sentido de “remuneração por dia de trabalho”. 2 Sezão: uma febre malárica intermitente. capítulo 4 1 Pernas dos cruzados nos monumentos: antigamente, acreditava-se que as estátuas de cavaleiros nos túmulos medievais nas igrejas representavam cruzados quando suas pernas estavam cruzadas. [Em inglês, a palavra cross quer dizer “cruz” como substantivo, e “zangado” como adjetivo. (n. t.)] 2 Uma espécie de reformatório: prisão para menores infratores, instituída pela Lei das Escolas Reformatórias de 1854. 3 Quando fossem lidas as proclamas […] não fosse o fato de que era Natal e não domingo: proclamas de casamento de casais de noivos costumam ser divulgadas pelos ministros anglicanos na oração matinal e na vespertina nos três últimos domingos antes da cerimônia de matrimônio. Pip imagina-se fazendo sua confissão em resposta à exortação do ministro: “Se algum dos presentes sabe de uma causa ou justo impedimento contra a união dessas duas pessoas no santo matrimônio, que fale agora”. Mas como se trata de um culto de Natal e não de um dominical, não há proclamas, e ele não tem oportunidade de se manifestar. 4 O sr. Wopsle, o sacristão […] meu amigo lá de cima: o sacristão era um funcionário leigo a quem cabia puxar os cantos e os responsos na igreja. O sr. Wopsle e o pároco usam um púlpito de três níveis, em que o sacristão ficava sentado no nível mais baixo e o pároco lia as orações no do meio, subindo para o mais alto na hora do sermão. 5 Os porcos eram os companheiros do filho pródigo: na parábola de Cristo (Lucas 15, 11-32), o filho pródigo se torna porqueiro. 6 Um médium de nossos tempos: o espiritismo tornou-se moda na década de 1850. A alusão aqui é a um charlatão que finge que um espírito do além está batendo numa mesa leve em resposta ao que lhe perguntam, quando na verdade ele próprio é quem o faz. capítulo 5 1 À sua, à minha […] melhor música não há!: o sargento recita um brinde tradicional enquanto bate o seu copo contra o do sr. Pumblechook. capítulo 7 1 Catecismo: uma série de perguntas e respostas “a serem aprendidas por toda pessoa, antes de ser ela levada ao bispo para a confirmação”. Costumava ser ensinado às crianças, para que elas aprendessem moral e a doutrina da Igreja Anglicana. A criança promete “cumprir a sagrada vontade e os sagrados mandamentos de Deus, e assim caminhar por todos os dias de minha vida”. 2 A oração de Marco Antônio sobre o cadáver de César […] “Ode sobre as paixões” de Collins: o sr. Wopsle recita a fala que começa com “Friends, Romans, countrymen, lend me your ears…” [“Amigos, romanos, compatriotas, ouvi-me”], da peça de Shakespeare Júlio César (ato 3, cena 2), e a “Ode on the passions”, de William Collins (1721-59). Pip refere-se aqui aos versos 39-44: And longer had She sung, — but with a Frown, Revenge impatient rose, He threw his blood-stain’d Sword in Thunder down, And with a with’ring Look, The War-denouncing Trumpet took, And blew a Blast [E mais teria ela cantado, mas, com um esgar,/ Vingança, impaciente, ergueu-se,/ Jogou a espada ensanguentada trovejante,/ E com olhar tremendo,/ Tomou a trombeta que anuncia a guerra,/ E forte soprou]. 3 Caí nas mãos daqueles salteadores: tal como ocorre com o viajante na parábola do bom samaritano, Lucas 10: 30-35. 4 Seje um verdadeiro grão-mogol: aja de modo despótico, como um soberano autocrático na Índia. capítulo 8 1 Satis: “bastante” em latim. capítulo 9 1 Quarenta e três pence: na época, o sistema monetário britânico compunha-se de libras, xelins e pence [plural de pêni]. Um xelim valia doze pence, e vinte xelins valiam uma libra; as crianças tinham de aprender a calcular essas unidades. A resposta à pergunta de Pumblechook é “três xelins e sete pence”. capítulo 10 1 Vela de imersão, sem espevitadeiras: a vela de imersão [produzida pela imersão de um pavio em cera derretida], ao contrário da vela feita em molde, era mais barata e queimava mais depressa, deixando um pavio queimado que fumegava a menos que fosse apagado com uma ferramenta especial (a espevitadeira). 2 Que parentas um homem não podia desposar: como sacristão, o sr. Wopsle conhece bem a “Tabela de parentes de sangue e por afinidade”, através da qual a Igreja Anglicana proíbe que um homem despose sua mãe, filha, mãe de seu pai, mãe de sua mãe, filha de seu filho, filha de sua filha, irmã, filha de seu pai, filha de sua mãe, mãe de sua esposa, filha de sua esposa, esposa de seu pai, esposa de seu filho, esposa do pai de seu pai, esposa do pai de sua mãe, mãe do pai de sua esposa, mãe da mãe de sua esposa, filha do filho de sua esposa, filha da filha de sua esposa, mulher do filho de seu filho, esposa do filho de sua filha, irmã de seu pai, irmã de sua mãe, filha de seu irmão ou filha de sua irmã. 3 Uma passagem terrivelmente violenta de Ricardo III: talvez um trecho evocado pela ideia de incesto, como este, do ato 4, cena 2: I must be married to my brother’s daughter, Or else my kingdom stands on brittle glass: — Murder her brothers, and then marry her! Uncertain way of gain! [Força é desposar a filha de meu irmão,/ Senão meu reino se sustenta em vidro frágil: —/ Matar-lhe os irmãos, e desposá-la em seguida!/ Incerto caminho para a vitória!]. 4 Notas de uma libra: este detalhe ajuda a fixar o período em que se passa o romance, pois essas notas deixaram de circular em 1821, embora tenham continuado a valer por algum tempo. Dickens certamente lembrava-se delas do seu tempo de menino. capítulo 11 1 Um bolo de casamento: o bolo de casamento moderno, em camadas, só se tornou comum no final do século xix. O bolo da sra. Havisham, embora colocado sobre um centro de mesa, provavelmente seria apenas um bolo de frutas redondo, grande, com glacê branco. 2 Gengibre e sais voláteis: o carbonato de amônio, aromatizado com gengibre seco, era vendido nas farmácias como “sal volátil” para reanimar senhoras que desmaiavam, ou para impedir que tivessem ataques histéricos. 3 Como se eu fosse um gigante: na mitologia grega, o titã Crono devorava cada um de seus filhos tão logo nascia. capítulo 12 1 Mirmídones da Justiça: os mirmídones eram seguidores de Aquiles na Ilíada de Homero; neste contexto a expressão significa “agentes da lei”, “policiais”. 2 O velho Clem: são Clemente (morto por volta de 100), um dos primeiros papas, era considerado o padroeiro dos ferreiros. Costumava-se cantar a canção do velho Clem na doca de Chatham no dia de são Clemente, 23 de novembro; Dickens talvez a tenha ouvido lá. capítulo 13 1 O Grande Selo da Inglaterra em palha trançada: o Grande Selo da Inglaterra é levado pelo chanceler do reino. A alusão provavelmente tem menos a ver com a forma da bolsa do que com o ar de importância com que a sra. Joe o leva. 2 Vinte e cinco guinéus: um guinéu era uma moeda de ouro que valia uma libra e um xelim, e que deixou de circular em 1817; assim, embora ainda tivesse validade legal, é característico do jeito antiquado da sra. Havisham que ela continue a utilizá-la. Quando mais tarde Joe se refere à quantia como “vinte e cinco libras” — quando o valor, na verdade, é de vinte e seis libras e cinco xelins —, trata-se provavelmente de um cochilo do autor. 3 Pequeno Rantipole: há dúvidas quanto ao significado da expressão. O Oxford English dictionary afirma que a palavra significa “traquinas; uma pessoa indomável, mal-educada ou imprudente”, mas alguns comentaristas observam que ela era usada como apelido de Napoleão iii (1808-73), o que é certamente irrelevante. Uma explicação mais plausível, proposta por Lois E. Chaney (Dickensian 79, verão de 1983, pp. 162-3), é que a sra. Joe se refira às duas crianças Rantipole, personagens de The history of the fairchild family (1818), pp. 132-43, livro evangélico para crianças de autoria da sra. Sherwood. Elas comportam-se bem na presença de uma senhora de idade de quem esperam ganhar presentes, porém ela as observa em segredo e vê que, quando a julgam ausente, são egoístas e mal-educadas. Além da semelhança entre a situação dessas crianças com relação à senhora rica e a de Pip em relação à sra. Havisham, há que levar em conta as muitas outras referências a livros infantis e contos de fada que há em Grandes esperanças. Em The fairchild family, porém, o uso da palavra é explicado: “os vizinhos, em função das boas qualidades de uma delas, lhes dera o nome de Simpáticos, e a outra família, por conta de seu caráter desagradável, recebeu o nome de Rantipole”. Isso confirma que o termo era comumente usado como apelido para uma pessoa de má reputação, e desse modo torna-se desnecessário supor que a sra. Joe conhecia um livro para crianças recém-publicado e caro. 4 Tofe de amêndoas e emplastros adesivos: os retratos escurecidos parecem a Pip serem feitos com tofe de cor escura, à base de melado, e pedaços de tecido que eram grudados em feridas superficiais. 5 A ode de Collins: v. capítulo 7, nota 2. 6 Os comerciantes […] o Recanto dos Acrobatas: o barulho incomoda os caixeiros-viajantes do andar de baixo, os quais observam, com sarcasmo, que o sr. Wopsle parece achar que está num bar onde se exibem acrobatas. 7 O Lady fair!: canção popular de autoria de Thomas Moore (1779-1852), apropriada para se cantar numa caminhada noturna. Eis a primeira estrofe: Oh, Lady fair! where art thou roaming? The sun has sunk, the night is coming. Stranger, I go o’er moor and mountain, To tell my beads at Agnes’ fountain. And who is the man, with his white locks flowing? O Lady Fair! where is he going? A wand’ring Pilgrim, weak, I falter, To tell my beads at Agnes’ altar. Chill falls the rain, night winds are blowing, Dreary and dark’s the way we’re going. [Ó bela dama! por onde vagas?/ O sol se pôs, a noite vem./ Eu, forasteiro, pela charneca e pela serra,/ Vou rezar meu terço na fonte de Agnes./ E quem é o homem, de cachos brancos ao vento?/ Ó bela dama! aonde vai ele?/ Eu, peregrino errante, fraco, com passo trôpego /Vou rezar meu terço no altar de Agnes./ Fria cai a chuva, sopram os ventos da noite,/ Agro e escuro é nosso caminho]. capítulo 14 1 Quadrados negros: nas ferrarias, as janelas não tinham vidraça, e eram mantidas fechadas por travas de madeira. capítulo 15 1 Eu fui a Londres […] Ta-ra-lá: claramente, uma canção sobre o tradicional tema do homem do campo que vai à cidade grande e lá é vítima de uma trapaça. 2 Caim ou o Judeu Errante: em Gênese 4, 12, Caim, tendo assassinado o irmão, Abel, torna-se um fugitivo e um vagabundo. O Judeu Errante era um personagem lendário da Idade Média, fadado a perambular pelo mundo num castigo eterno por ter sido cruel com Jesus. 3 A tocante tragédia de Goerge Barnwell: a peça The London Merchant, or, The history of George Barnwell, de George Lillo (1693-1739), encenada pela primeira vez em 1731. Trata-se de uma tragédia doméstica, em que um jovem aprendiz é convencido por Sarah Millwood, a quem ele ama, a roubar seu mestre e matar seu tio. No final, tanto Barnwell quanto Millwood são enforcados. 4 Em seu jardim em Camberwell: Wopsle está recitando um trecho de George Barnwell, ato 3, cena 7. 5 Em Bosworth Field, e em meio a agonias indizíveis em Glastonbury: Wopsle, em seguida, passa a recitar trechos de sua obra favorita, Ricardo III de Shakespeare, em que há cenas passadas em Bosworth Field (ato 5, cenas 3 a 5), e depois de uma outra peça mais difícil de identificar. O mais provável é que Dickens tenha confundido Glastonbury com a abadia de Swinstead, St. Edmundsbury, onde o rei João sofre uma morte horrenda, envenenado, no último ato do Rei João de Shakespeare. capítulo 16 1 Os homens da Bow-Street: os Bow Street Runners constituíam um corpo de detetives criado na década de 1750 pelos magistrados metropolitanos, cujo escritório central ficava na Bow Street, em Londres. Não usavam uniformes e agiam em segredo, sendo ocasionalmente designados para auxiliar na resolução de crimes graves ocorridos no interior. Os membros da Bow Street Horse Patrol, estabelecida em 1805, usavam coletes vermelhos e eram conhecidos como Robin Redbreasts [o nome popular do pisco-de-peito-ruivo]; foram absorvidos pela Polícia Metropolitana em 1839. A confusão entre as duas forças era comum. capítulo 18 1 Timão de Atenas […] Coriolano: protagonistas de duas tragédias de Shakespeare, caracterizados o primeiro por suas vituperações, o segundo por sua arrogância. 2 A Gabolice é um bom cachorro, mas a Reticência é melhor ainda: provérbio cujo sentido é que é melhor calar-se do que se gabar de algo. capítulo 19 1 Aquela passagem sobre o rico e o reino dos céus: ou Mateus 19, 24 — “é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus” — ou uma das passagens semelhantes em Marcos 10, 25 ou Lucas 18, 25. 2 O cachorro da velha Hubbard: referência a um poema infantil de Sarah Catherine Martin: She went to the tailor’s To buy him a coat, But when she came back He was riding a goat. [Ela foi ao alfaiate/ Comprar-lhe um casaco,/ Mas quando voltou/ Ele estava montado num bode]. A velha Hubbard também vai ao padeiro, ao marceneiro, ao peixeiro, à taberna, ao chapeleiro, ao barbeiro, ao fruteiro, ao sapateiro, à costureira e ao comerciante de meias, tudo por conta de seu cachorro. 3 A asa do fígado: considerava-se a melhor parte do frango assado a asa direita, servida junto com o fígado da ave. 4 Jogando um sapato velho: para dar sorte: o costume só sobrevive hoje nos casamentos. 5 O mundo se abria para mim: compare-se com o relato de Adão e Eva saindo do Éden no Paraíso perdido de Milton, parte xii, versos 646-7: “The world was all before them, where to choose/ Their place of rest…” [Todo o mundo estava diante deles, para lá escolherem/ Um lugar de repouso…]. volume ii capítulo 1 1 Cross Keys: uma estalagem que realmente existiu do século xvii à década de 1830, onde ficava a estação terminal de diligências de várias cidades do interior. Quando menino, Dickens veio a Londres na diligência de Chatham, chegando à Cross Key s no final de dezembro de 1822; ele atribui a mesma viagem a David Copperfield e a Pip. 2 Enfeitada […] seis grandes diademas: na estalagem, Pip salta da diligência, a qual percorria um trajeto entre pontos fixos, como um ônibus moderno, e pega um fiacre, o qual o leva aonde ele deseja ir, como um táxi de hoje. Por acaso, o fiacre que ele pega pertenceu anteriormente a algum nobre; embora em mau estado e antiquado, o veículo conserva relíquias de seu esplendor original, como o pano ornamental que cobre o assento do cocheiro e a decoração pintada do lado de fora, a qual identifica o antigo proprietário. 3 Smithfield: uma praça grande onde o principal mercado de gado londrino funcionou até 1852. 4 Como o Touro na história do Tordo, puxando a corda do sino : o homem está puxando o cacho como forma de saudação, um gesto respeitoso. A alusão é ao poemeto infantil “Cock Robin”: “I, said the Bull,/ Because I can pull,/ I’ll toll the bell.” [Eu, disse o Touro,/ Como sei puxar,/ Eu toco o sino.] Ao que parece, Dickens está relembrando uma ilustração específica contida em algum livro infantil; esse poema (tal como o da velha Hubbard, mencionado anteriormente) era com frequência impresso em livrinhos ilustrados. 5 Barnard’s Inn : um grupo de prédios medievais em Holborn, de longa data ocupado por advogados e estudantes de direito. No século xix, os chamados “Inns of Chancery ”, que incluíam o Barnard’s Inn e o Furnival’s Inn (onde Dickens morou de 1834 a 1836), eram associações de advogados, com poucos poderes legais. Foram oficialmente dissolvidas durante o período vitoriano. Embora muitos advogados morassem lá, outros, como Pip e Herbert, podiam alugar aposentos em qualquer lugar. capítulo 2 1 Anéis de luto: era costume legar quantias aos amigos e parentes para que eles adquirissem joias, principalmente anéis, para servirem de mementos. Esses anéis muitas vezes tinham inscrições de iniciais, datas ou lemas, e, por vezes, continham cabelo do falecido. 2 O café daqui: há registros de um café no Barnard’s Inn de 1813 a 1840. capítulo 3 1 O menino moralista da cartilha: as cartilhas do início do século xix continham frases e histórias com intenção moralizante. 2 “O ferreiro harmonioso”: a Ária com cinco variações de G. F. Handel (1685-1759) é conhecida por esse nome, e supostamente teria sido baseada na canção que Handel ouvira um ferreiro cantando. 3 Manteiga derretida: molho para frango cozido, preparado com manteiga e água espessada com farinha. 4 O pai dela casou-se de novo em segredo: a partir de 1753, a lei inglesa exigia que todos os casamentos fossem celebrados por um clérigo numa paróquia ou capela pública ou através de uma licença ou após a publicação dos proclamas. Porém, podia-se driblar a lei casando-se num lugar onde não se era conhecido, sem que o casamento perdesse a validade. Herbert dá a entender que o pai da sra. Havisham escondeu o segundo casamento da família e dos amigos até que sua segunda esposa morreu. 5 Meia-entrada no teatro: foram assistir à segunda das duas peças incluídas no programa, e por isso pagaram meia-entrada. Provavelmente seria o Theatre Roy al, Drury Lane, se bem que seu vizinho, o Theatre Roy al, Covent Garden (a partir de 1847 denominado Roy al Italian Opera House, incendiado em 1856), também fosse chamado simplesmente de “o teatro”. 6 A Bolsa: o pregão da Roy al Exchange, a Real Bolsa, na Threadneedle Street. Até o incêndio ocorrido em 1838, o Lloy d’s, o mercado de seguros marítimos, funcionava na ala leste do prédio. Muitas das alusões topográficas do romance, como esta, dizem respeito a cenas da vida londrina que mudaram depois do tempo em que ocorrem os eventos do livro, e depois do tempo em que o próprio Dickens foi a Londres pela primeira vez. capítulo 4 1 Sentar-se na almofada de lã ou de proteger a cabeça com uma mitra: o sr. Pocket estava dividido entre tornar-se advogado (e assim vir a ascender ao cargo de lorde chanceler da Inglaterra, o qual se senta na almofada de lã reservada para ele na Câmara dos Lordes) e fazer carreira de clérigo da Igreja Anglicana (e porventura chegar a bispo, o qual usa mitra). 2 Haviam agarrado o Tempo pelo topete : isto é, aproveitado a oportunidade quando ela surgiu. A expressão proverbial vem do filósofo grego Tales de Mileto (cerca de 624 — cerca de 546 a.C.). 3 Uma boneca alemã: uma boneca articulada de madeira, importada da Alemanha. 4 Na posição do Gladiador Moribundo: deitado e apoiado num dos braços, como a famosa estátua, agora conhecida como “O gaulês moribundo”, considerada cópia romana de um original grego, no Museo Capitolino de Roma. Dickens talvez esteja pensando também numa passagem do Childe Harold’s pilgrimage de By ron (iv, versos 1252-4): “I see before me the Gladiator lie:/ He leans upon his hand — his manly brow/ Consents to death…” [Vejo à minha frente o gladiador deitado:/ Apoiado na mão — a fronte máscula/ Aceita a morte…]. capítulo 5 1 O Bailey: o tribunal criminal central de Londres é há muito tempo conhecido c om o Old Bailey [o velho Bailey ] por ficar próximo ao local onde outrora havia um torreão (bailey) na muralha que cercava Londres. A construção a que Dickens se refere fica ao lado da prisão de Newgate, e enforcamentos públicos ocorriam na frente dos dois prédios. Tanto a prisão quanto o tribunal foram derrubados em 1902 para a construção do atual tribunal de Old Bailey . 2 A máscara foi feita em Newgate, logo depois que o desceram da forca: as máscaras mortuárias de criminosos executados eram muitas vezes vendidas a entusiastas; Thomas de Quincey menciona em seu ensaio “On murder considered as one of the fine arts” [Do assassinato considerado como uma das belas-artes] que conseguiu comprar uma máscara de gesso do assassino da estrada de Ratcliffe de 1811, John Williams. capítulo 6 1 Metal Britânia: liga de estanho e antimônio, com um sinete representando a figura de Britânia, usada como substituto barato da prata. 2 Relógio de repetição: um relógio que dá a última hora quando se aperta um botão, e desse modo pode ser consultado no escuro. 3 Hora de Greenwich: a determinação precisa do tempo solar baseia-se na observação do sol a partir do local onde ficava o Real Observatório de Greenwich. Wemmick está se valendo de um grau ridículo de precisão para disparar sua arma. 4 Estufa fria: uma estrutura de vidro para proteger plantas tenras da geada. 5 Calcadores de fumo: peças que se encaixavam no fornilho do cachimbo e eram usadas para calcar o fumo. 6 Espeto giratório: espeto provido de mecanismo de relógio para ficar girando com a peça de carne acima do fogo. capítulo 7 1 Caldeirão das bruxas: Macbeth, iv, i: “Uma caverna escura. No meio, um caldeirão fervente”. capítulo 8 1 Nos livros de um estofador da vizinhança […] um rapaz de botas: Pip está devendo dinheiro a um vendedor de móveis e decorador de interiores, e contratou um criado. 2 Tendo criado o monstro : como o protagonista do romance de Mary Shelley, Frankestein, ou o Prometeu moderno (1818), que também é citado mais adiante, no primeiro capítulo do volume iii. 3 Lona [no original, floorcloth]: lona resistente utilizada em vez de carpete. 4 Renome rosciano […] nosso bardo nacional: Róscio (morto em 62 a. C.) foi um conhecido ator romano. Essa alusão a ele é apenas um sinônimo elaborado para “teatral”, tal como “nosso bardo nacional” é apenas uma maneira tortuosa de dizer Shakespeare. 5 Casca de laranja: a plateia jogou cascas de laranja nos atores. 6 A Casa da Graxa: frascos de graxa de sapato com a imagem da fábrica em que ela era feita eram produzidos pela Day and Martin’s Blacking, de 97 High Holborn, e pela Warren’s Blacking, de 30 Strand. A primeira usava cartazes vermelhos. Não está claro a qual das duas Joe se refere, mas o que interessa é que para ele essa fábrica é um dos pontos a serem conhecidos em Londres. Mas aí há também uma referência autobiográfica disfarçada: aos doze anos de idade, Dickens havia trabalhado em outra fábrica de graxa, em 30 Hungerford Stairs, Strand, a qual falsificava o produto original da Warren’s; seu trabalho consistia em colar rótulos em que as palavras “Hungerford Stairs” apareciam em letras muito pequenas. Ele sentia vergonha e indignação por essa ocupação humilde (que corresponde à vergonha de Pip por ser ferreiro), e jamais divulgou esse episódio de sua vida. capítulo 9 1 Cataplasma de pão, baeta, estopa e pó de pedra: os presidiários que cumpriam pena fazendo trabalhos forçados nos estaleiros muitas vezes eram obrigados a quebrar pedras, o que explica o cheiro de pó de pedra. Estopa é o material que resulta do trabalho de desfiar cordas velhas, uma tarefa árdua que também era frequentemente imposta aos prisioneiros. Baeta era um tecido de lã barato e grosseiro, que Dickens também associa às prisões em Bleak house, no capítulo 26: “cavalheiros da estrada de baeta verde […] que sabiam discorrer sobre galés no estrangeiro e trabalhos forçados na Inglaterra”; é possível que o uniforme dos prisioneiros fosse feito desse material. Cataplasma de pão era pão embebido de água quente, utilizado em inchaços e contusões; talvez o pão servido na prisão só pudesse ser comido dessa maneira. 2 O mentor do nosso jovem Telêmaco […] Quentin Matsys […] verb. sap.: na mitologia clássica, Telêmaco, filho de Odisseu, é guiado por Atena, que assume a forma de Mentor, um dos amigos de seu pai. Quentin Massy s ou Matsy s (cerca de 1466-1530) foi um pintor flamengo que supostamente começou a carreira como ferreiro. verb. sap. é a abreviação de verbum satis sapienti, provérbio latino cujo sentido é “para bom entendedor, meia palavra basta”. Dickens está parodiando aqui o estilo ridiculamente alusivo e chistoso do jornalismo de província. capítulo 10 1 A hora do jantar: as variações na hora em que são feitas as refeições muitas vezes estão carregadas de significado. As pessoas mais ricas comiam mais tarde, de modo que Pip jantaria mais tarde na condição de cavalheiro do que no tempo em que era ferreiro (ver volume iii, capítulo 20, “o jantar era cedo na casa de Joe”). Além disso, ao que parece, em Londres as pessoas jantavam mais tarde do que na província. Porém, essa referência à hora do jantar da sra. Havisham talvez tenha a ver com a mudança de hábitos entre o momento em que ela parou os relógios e o momento em que Pip está escrevendo. À medida que o almoço foi se tornando mais formal, passou-se a jantar mais tarde. Mas sempre havia muita variação, e talvez Dickens esteja sendo vago de propósito; ele próprio, pelo que se sabe, normalmente jantava por volta das cinco da tarde. capítulo 11 1 Ir até a esquina do Hyde Park para saber que horas eram: talvez para consultar o relógio que ficava no abrigo a oeste do portão de Hy de Park. Mas a expressão também pode significar “para informar-se sobre as novidades”. 2 Em busca do sr. Wopsle e da Dinamarca : o sr. Wopsle está interpretando o papel-título de Hamlet, como deixou claro o relato feito por Joe. Stanley Friedman discute as referências à peça no romance em “Echoes of Hamlet in Great expectations”, Hamlet Studies 9 (1987), pp. 86-9. capítulo 12 1 Um extraordinário corpo de bombeiros: os prédios que tinham seguro contra incêndio ostentavam placas grandes com o emblema da companhia de seguros, para que os carros de bombeiros, que eram operados pelas companhias, pudessem identificar qual prédio devia ser salvo. capítulo 13 1 Eles raramente ateavam fogo a suas prisões: em fevereiro de 1861, os prisioneiros da Chatham Prison se amotinaram, queixando-se da comida, e os jornais passaram a discutir se a reforma das prisões não teria ido longe demais. 2 Pombos volteadores: pombos que dão uma espécie de cambalhota em pleno voo. 3 Relatório do juiz: no final de cada circuito o juiz entregava seu relatório ao ministro recomendando clemência. Nesse ponto alguém que fora condenado à forca (como é o caso do coronel) podia ser perdoado, sob a condição de ser degredado ou condenado a trabalhos forçados. Entretanto, Wemmick acha improvável que um moedeiro falso seja perdoado. capítulo 14 1 Moisés em meio aos juncos […] abundância de salsa: a aparência da manteiga faz Pip pensar no episódio (Êxodo 2,3) em que Moisés, ainda bebê, é escondido em meio aos juncos. 2 As anquinhas verdes: uma anágua (saia de baixo) com armação de arames; no contexto, personificação de uma dama usando trajes do início do século xviii. capítulo 15 1 Ensinava os jovens a desabrochar: citação (versos 1152-3) do poema “Spring” [Primavera], de The seasons [As estações], de James Thomson (1700-48): “Delightful task! to rear the tender thought,/ To teach the young idea how to shoot” [Tarefa deliciosa! nutrir o pensamento tenro,/ Ensinar os jovens a desabrochar]. capítulo 16 1 Trabb & Cia. haviam realizado uma verdadeira execução funerária dela: os agentes funerários apropriaram-se da casa como se fossem oficiais de justiça ocupando a casa de um devedor. 2 Nada traz ao mundo: citações extraídas do ofício do enterro dos mortos: “Nada trouxemos a este mundo, e é certo que nada dele poderemos levar […]. O Senhor deu, e o Senhor tomou […]. O homem, nascido da mulher, vive pouco […] foge como uma sombra, e não permanece”. capítulo 17 1 Diversas pontes: a menção à ponte de Waterloo e a afirmação feita no capítulo 7 do volume iii, com referência à ponte London, que “naquele tempo, ainda era a ponte velha”, fixam os acontecimentos narrados entre o término da construção da ponte de Waterloo, em 1817, e a demolição da velha ponte London, uma estrutura medieval, depois que foi aberta sua substituta, mais para o oeste, em 1831. capítulo 18 1 Provador de vinho: o profissional que prova o vinho do barril e decide quando ele deve ser engarrafado e vendido; alguém que trabalha no ramo atacadista do comércio de vinho. capítulo 19 1 És pau, és pedra!: talvez uma citação de “On the late massacre in Piemont” de Milton, verso 4: “When all our fathers worshipped stocks and stones…” [Quando todos os nossos ancestrais adoravam paus e pedras…]. Mas a passagem de Milton, por sua vez, provavelmente ecoa uma passagem bíblica (Jeremias 2: 27), um lamento contra a ingratidão do povo de Israel, o que talvez também esteja por trás da escolha de palavras feita por Dickens aqui: “Que dizem ao pau: Tu és meu pai; e à pedra: Tu me geraste; porque me viraram as costas, e não o rosto…”. 2 Julgava que ele soubesse onde me encontrar: Pip está desafiando Drummle para um duelo. 3 Ter sido dominado por um impulso que…: ter falado de modo destemperado. A expressão era uma maneira elegante de dizer “por ter perdido as estribeiras e falado de modo indelicado a um de seus anfitriões”. 4 Baile de assembleia: baile realizado através de subscrição. 5 História oriental: quando menino, Dickens possuía um livro de autoria de “sir Charles Morell” (ou seja, James Ridley, 1736-65) intitulado Tales of the genii [Histórias dos gênios] (1764). Trata-se de uma série de narrativas interligadas à maneira das Mil e uma noites. A sexta história, que era de predileção de Dickens, pois sabe-se que ele fez uma adaptação teatral dela quando menino, chama-se “The enchanters, or, Misnar, the Sultan of India” [Os encantadores, ou Misnar, sultão da Índia]. O sábio vizir de Misnar, Horam, engana seus inimigos construindo a armadilha complexa mencionada aqui. capítulo 20 1 Temple: um dos Inns of Court [literalmente, “albergues do tribunal”]. O nome designa uma das organizações profissionais de advogados e os prédios por ela ocupados, onde pessoas que não eram advogados, como é o caso de Pip, também podiam alugar aposentos. O Temple era o único dos Inns com jardins que se estendiam até o Tâmisa. 2 Pastor de ovelha contratado: os prisioneiros degredados não ficavam presos na Austrália nem eram soltos ao chegar lá; normalmente recebiam contratos de trabalho com empregadores privados por um período fixo, que dependia da sentença recebida. Depois de certo número de anos de bom comportamento, o degredado ganhava o direito de trabalhar por conta própria, ainda que sujeito a certas condições. 3 Voltar é morrer : teoricamente, até 1834 era crime punível com a morte voltar do degredo, embora a última pessoa a ser executada por esse crime tivesse morrido em 1810. volume iii capítulo 1 1 Fumo solto do tipo denominado “cabeça-de-negro”: um fumo negro bem forte. 2 Botany Bay: essa baía era o destino original da primeira leva de degredados enviados para a Austrália em 1787, mas pouco depois que eles chegaram o governador transferiu o povoado para um local próximo, Port Jackson, a atual Sy dney. A referência deixa claro que Magwitch foi degredado para a colônia de Nova Gales do Sul, que parou de aceitar forçados em 1840. 3 Traje de marinheiro […] e o empoaria: os marinheiros eram das poucas pessoas que usavam roupas compradas prontas (mesmo no tempo em que era ferreiro, Pip mandava fazer trajes sob medida). Às vezes vendidas em lojas de artigos para navios, essas roupas, produzidas sem qualquer consideração com corte, eram largas e feitas com um tecido mais grosseiro do que o usado pelas outras pessoas. Usar polvilho no cabelo para que esse parecesse branco ou grisalho era um costume do século xviii, mas naquela época pessoas antiquadas e provincianas ainda recorriam a essa prática. 4 Todos os crimes do Calendar: referência ao Newgate Calendar (1771), uma série sensacionalista de histórias reais de crime, ou uma das muitas outras publicações semelhantes que se seguiram a ela. 5 O estudante imaginário perseguido pela criatura disforme: o protagonista do rom a nc e Frankenstein, ou o Prometeu moderno, de Mary Shelley (1818), que consegue criar um homem artificial, o qual passa então a persegui-lo. capítulo 3 1 Eles media minha cabeça: a pseudociência da frenologia baseava-se na teoria do anatomista alemão Franz Joseph Gall (1758-1828), segundo a qual a forma externa do crânio revelava a importância de diversas características mentais, e o exame do crânio podia ser usado para determinar o caráter. Tanto essa teoria quanto a fisionomia — uma teoria diversa, porém relacionada à outra —, a qual tentava determinar o caráter com base na expressão facial e na relação entre os diferentes traços de um rosto, influenciaram a caracterização de muitos ficcionistas do século xix. Essas teorias eram também estudadas pelos penologistas, que tentavam sistematizar o conceito de “tipo criminoso”; claramente, Magwitch foi medido por um deles. capítulo 4 1 A sua terra, Shropshire: ao que parece, Dickens esqueceu que antes foi dito que os pais de Drummle moram em Somerset (volume ii, capítulo 6). Na primeira versão do final do livro (ver Apêndice A), Drummle e Estella estão em Shropshire. 2 Como fez o ladrão com a velha, segundo o livro: trata-se de um dos crimes tradicionalmente atribuídos ao famoso salteador Dick Turpin (1706-39), cujos feitos foram explorados por tantos escritores sensacionalistas que não é possível determinar a que livro Dickens se refere aqui. Em The genuine history of the life of Richard Turpin, etc. (Londres: Standen, 1739), lê-se o seguinte trecho: “Turpin insistia que ela tinha dinheiro, e ela insistia em negá-lo, até que por fim ele exclamou: Que o D—o a carregue, sua p—a velha. Se não nos disser, vou encostar a sua b—a nua na grelha”. capítulo 5 1 Seguir a pé até Londres: uma caminhada de cerca de cinquenta quilômetros. capítulo 6 1 Hummuns: hotel que ocupava uma fileira de casas no lado sudeste de Covent Garden. Fechou em 1865, e o lugar foi reconstruído. O nome deriva de humoun, que em persa significa “banho turco” ou “suadouro”. 2 Uma tradicional vela de junco […] Argos insensato: o objeto em questão era uma vela barata, feita a partir de um pavio de junco mergulhado em banha, e não cera. As palavras “tradicional” e “virtuosos” aqui indicam que o objeto era econômico e antiquado. Na história, a vela de junco está colocada (por uma questão de segurança) dentro de um cilindro de lata furado; daí o padrão de manchas de luz nas paredes. Na mitologia grega, Argos Panoptes (Argos, o que tudo vê) era um gigante usado pelos deuses como guarda, por ter cem olhos, dos quais cinquenta estavam sempre abertos e cinquenta fechados, dormindo. Dadas as imagens de prisão dessa passagem, é relevante mencionar que o filósofo Jeremy Bentham (1748-1832) propôs em 1791 um modelo de prisão, o Panóptico, em que um único guarda podia manter sob vigilância um grande número de prisioneiros, cada um deles em sua solitária. capítulo 7 1 Old Green Copper Rope-Walk : ao contrário do que se dá com a maioria dos nomes de ruas mencionados no romance, este não é autêntico. O sentido do nome é “o lugar onde antigamente se fabricavam cordas com fio de cobre oxidado”. 2 Capitão Cook: James Cook (nascido em 1728), explorador que foi o primeiro a identificar a costa sudeste da Austrália como um lugar adequado para uma colônia britânica, foi assassinado por nativos no Havaí em 1779. A gravura em questão, feita por William By rne a partir de uma pintura de James Webber, também aparece na parede da sala de Esther em Bleak House. 3 A ponte velha: a ponte de pedra medieval tinha dezenove arcos estreitos, e a força da maré tornava-os perigosos até mesmo para barqueiros experientes. A ponte foi demolida depois da inauguração da nova ponte London, mais para o oeste, em 1831. Um artigo sobre pessoas que morreram afogadas tentando passar de barco sob a ponte foi publicado em All the Year Round 5 (4 de maio de 1861), pp. 130-1, o número que incluía o capítulo 19 do volume ii do livro. capítulo 8 1 Uma jovem fantasiada de cama: isto é, uma moça cuja roupa parecia ter sido feita com as cortinas de uma cama de baldaquino. capítulo 9 1 Na igreja verde: isto é, viviam maritalmente sem estar legalmente casados; assim, Estella é filha ilegítima. capítulo 10 1 Lousas de marfim: usadas para tomar notas; as anotações a lápis depois eram apagadas do marfim. capítulo 13 1 A terra das Mil e uma noites: Egito. Mais adiante, no capítulo 16, ficamos sabendo que Herbert parte rumo ao Cairo. capítulo 15 1 Funcionário da arfândega sabe o que fazer com os botão: a hostilidade de Jack com relação aos funcionários da alfândega, que eram muitas vezes recrutados entre ex-oficiais da Marinha e usavam um uniforme com botões semelhantes, porém não iguais, aos da Marinha, indica que ele já foi contrabandista. Porém, a prisão de Magwitch não seria da alçada da alfândega; provavelmente ele estava sendo perseguido pelos homens da Polícia do Tâmisa (fundada em 1800), que não usavam uniformes. 2 Nore: banco de areia ao largo da ilha Grain, na ponta da península em que fica o charco de Cooling, onde tem lugar a primeira cena do livro. Neste capítulo, a viagem empreendida por Pip em direção a leste, rumo a Londres, é feita em sentido contrário. capítulo 16 1 O livro vermelho: livro que a sra. Pocket está lendo quando Pip a vê pela primeira vez (volume ii, capítulo 4), o qual “dizia respeito a títulos de nobreza”; presume-se que fosse Peerage, de Debrett (primeira edição, 1784), ou alguma obra semelhante. 2 Himeneu: na mitologia grega, o deus que presidia aos casamentos, filho de Dioniso e Afrodite. capítulo 17 1 A sessão seguinte: as sessões eram realizadas quatro vezes por ano. O que se dá a entender aqui é que Magwitch tem menos de três meses de vida pela frente. 2 Antes que o juiz fizesse seu relatório: ver acima, volume ii, capítulo 13, nota 4. 3 Os dois homens que entraram no Templo para rezar : na parábola de Cristo, em Lucas 18:10-13: Dois homens subiram ao templo, para orar; um, fariseu, e o outro, publicano. O fariseu, estando em pé, orava consigo desta maneira: Ó Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros; nem ainda como este publicano. Jejuo duas vezes na semana, e dou os dízimos de tudo quanto possuo. O publicano, porém, estando em pé, de longe, nem ainda queria levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador! capítulo 18 1 Melhor vir para minha casa: o homem é um meirinho, e está prendendo Pip por ele não pagar suas dívidas. Ele administra uma sponging-house, casa onde os endividados podem morar, pagando diária, até conseguirem saldar suas dívidas. 2 Um codicílio: Joe quer dizer “codicilo”, espécie de pós-escrito acrescentado a um testamento. capítulo 19 1 Vendi tudo o que tinha : talvez um eco do conselho dado por Cristo ao rico que queria entrar no reino dos céus, mencionado anteriormente, volume i, capítulo 19. Lucas 18:22: “Vende tudo quanto tens, reparte-o pelos pobres, e terás um tesouro no céu; vem, e segue-me”. capítulo 20 1 As névoas vespertinas se dissipavam agora: tal como no final do volume i, há aqui um eco do final do Paraíso perdido de Milton, seção xii, versos 628-32: The cherubim descended; on the ground Gliding meteorous, as evening mist Risen from a river o’er the marish glides, And gathers ground fast at the labourer’s heel Homeward returning. [Desceram os querubins; e sobre o chão/ Meteóricos deslizavam, como a névoa vespertina/ Elevada de um rio sobre o charco desliza,/ E se acumula lépida no encalço do trabalhador/ Que volta para o lar.] 2 Não vi nenhuma sombra de um adeus a Estella: a última oração do final revisto [no original, I saw the shadow of no parting from her, literalmente “não vi a sombra de nenhum despedir-se dela”] foi modificada por Dickens na edição em um volume publicada em 1862, para: “não vi nenhuma sombra de um outro adeus a Estella” (I saw no shadow of another parting from her). É discutível se essa mudança aumenta ou não a ambiguidade do final. Cronologia do autor stephen wall 2002 1812 7 de fevereiro Charles John Huffman Dickens nasce em Portsmouth, onde seu pai é funcionário do escritório de pagamentos da Marinha, filho mais velho de uma família de oito, dois dos quais morrem na infância. 1817 Depois de ser transferido para Londres e Sheerness e de muitas mudanças de endereço, John Dickens instala-se com a família em Chatham. 1821 Dickens frequenta uma escola local administrada por um pastor batista. 1822 A família volta a Londres. 1824 O pai de Dickens é detido na prisão de Marshalsea para devedores por três meses. Durante esse período e por mais algum tempo, Dickens trabalha numa fábrica de graxa para sapatos, colando rótulos nos vidros. Retoma seus estudos na Wellington House Academy, Hampstead Road, Londres, entre 1825-7. 1827 Torna-se empregado de um advogado. 1830 É admitido como leitor no Museu Britânico. 1831 Torna-se repórter parlamentar após aprender estenografia. Apaixona-se por Maria Beadnell, 1830-3. Falta a um teste para obter trabalho como ator em Covent Garden por estar doente. 1833 Primeiro conto publicado, “A dinner at Poplar Walk”, na Monthly Magazine. Outras histórias e crônicas serão publicadas nesse periódico e em outros, 1834-5. 1834 Torna-se repórter do Morning Chronicle. 1835 Torna-se noivo de Catherine Hogarth, filha do editor do Evening Chronicle. 1836 Sketches by Boz, primeira e segunda séries, publicadas. Casa-se com Catherine Hogarth. Conhece John Forster, seu conselheiro literário e futuro biógrafo. The strange gentleman, uma farsa, e The village coquettes, opereta pastoral, são montadas profissionalmente em Londres. 1837 The Pickwick papers é publicado em um volume (lançado em seções m ensais, 1836-7). Nascimento de um filho, o primeiro de dez. Morte de Mary Hogarth, cunhada de Dickens. Edita a Bentley’s Miscellany, 1837-9. 1838 Oliver Twist é publicado em três volumes (lançado em folhetim na Bentley’s Miscellany , 1837-39). Conhece escolas em Yorskhire semelhantes à Dotheboy s, que aparece em Nicholas Nickleby. 1839 Nicholas Nickleby é publicado em um volume (lançado em seções mensais, 1838-9). Muda-se para 1 Devonshire Terrace, Regents Park, Londres. 1841 Recusa convite para se candidatar ao Parlamento. Publica The old curiosity shop e Barnaby Rudge em volumes separados, depois de saírem em folhetins semanais na Master Humphrey’s Clock , 1840-1. Jantar público em sua homenagem em Edimburgo. 1842 janeiro-junho Primeira viagem à América do Norte, relatada em American notes, dois volumes. Georgina Hogarth, cunhada de Dickens, passa a morar em caráter permanente com a família. 1843 Discurso sobre a imprensa na Sociedade de Pensão dos Impressores, seguido por outros em favor de várias causas ao longo de sua carreira. Publicação de A Christmas carol em dezembro. 1844 Martin Chuzzlewit é publicado em um volume (lançado em seções mensais, 1843-4). Viaja com a família para a Itália, Suíça e França. Volta a Londres por alguns dias para ler The chimes para os amigos antes da publicação em dezembro. 1845 Volta com a família da Itália. The cricket on the hearth é publicado no Natal. Escreve fragmento autobiográfico, ?1845-6, só publicado quando incluído na biografia de Dickens de John Forster (três volumes, 1872-4). 1846 Torna-se primeiro editor do Daily News, mas renuncia após dezessete números. Publicação de Pictures from Italy. Viaja com a família para a Suíça e Paris. The battle of life é publicado no Natal. 1847 Volta a Londres. Ajuda Angela Burdett Coutts a criar, e mais tarde administrar, um “Lar para Mulheres Sem Lar”. 1848 Dombey and Son é publicado em um volume (lançado em seções mensais, 1846-8). Organiza e atua em montagens beneficentes de As alegres comadres de Windsor, de Shakespeare, e Every man in his humour, de Ben Jonson, em Londres e outras localidades. The haunted man é publicado no Natal. 1850 Household Words, semanário “dirigido por Charles Dickens”, é lançado em março, prosseguindo até 1859. Dickens faz um discurso na primeira reunião da Associação Sanitária Metropolitana. David Copperfield é publicado em um volume (lançado em seções mensais, 1849-50). 1851 Morte do pai de Dickens e de sua filha de menos de um ano de idade. Mais atividades teatrais na Guilda de Literatura e Arte, inclusive uma apresentação à rainha Vitória. A child’s history of England é lançada em partes em Household Words , e em três volumes (1852, 1853, 1854). Muda-se para Tavistock House, Tavistock Square, Londres. 1853 Bleak house é publicado em um volume (lançado em seções mensais, 1852-3). Dickens faz suas primeiras leituras públicas beneficentes (de A Christmas carol). 1854 Vai a Preston, Lancashire, para observar agitação operária. Hard times sai como folhetim em Household Words, e também como livro. 1855 Discurso em prol da Associação de Reforma Administrativa. Encontro decepcionante com Maria Beadnell, já casada. 1856 Compra Gad’s Hill Place, perto de Rochester. 1857 Little Dorrit é publicado em um volume (lançado em seções mensais, 1855-7). Dickens atua no melodrama de Wilkie Collins, The frozen deep, e apaixona-se pela jovem atriz Ellen Ternan. The lazy tour of two idle apprentices, escrito a quatro mãos com Wilkie Collins sobre uma viagem de férias a Cumberland, é lançado em Household Words. 1858 Publica Reprinted pieces (reedição de artigos de Household Words ). Separa-se de sua esposa, publicando depois uma declaração sobre a separação em Household Words. Primeiras leituras públicas em benefício próprio em Londres, seguidas por turnê no interior. A casa de Dickens é agora administrada pela cunhada, Georgina. 1859 All the Year Round , um semanário também “dirigido por Charles Dickens”, é lançado. A tale of two cities, lançado tanto em folhetim em All the year round quanto em seções mensais, sai em um único volume. 1860 Vende a casa em Londres e muda-se com a família para Gad’s Hill. 1861 Great expectations [Grandes esperanças] é publicado em três volumes, depois de sair como folhetim em All the Year Round (1860-1) . The uncommercial traveller (com artigos publicados em All the Year Round) é lançado; versão aumentada, 1868. Mais leituras públicas, 1861-3. 1863 Morte da mãe de Dickens e de seu filho Walter (na Índia). Reconciliação com Thackeray, com quem Dickens havia brigado, pouco antes de sua morte. Publicação de “Mrs. Lirriper’s Lodgings” na edição natalina de All the Year Round. 1865 Our mutual friend publicado em dois volumes (lançado em seções mensais, 1864-5). Dickens fica seriamente traumatizado após sofrer grave acidente de trem em Staplehurst, Kent, voltando da França com Ellen Ternan e a mãe dela. 1866 Começa mais uma série de leituras. Aluga casa para Ellen em Slough. “Mugby Junction” é publicado na edição natalina de All the Year Round. 1867 Instala Ellen em Peckham. Segunda viagem à América. Faz leituras em Boston, Nova York, Washington e outras localidades, apesar de problemas de saúde crescentes. “George Silverman’s explanation” é publicado na Atlantic Monthly (e, em seguida, em All the Year Round, 1868). 1868 Volta à Inglaterra. Em suas leituras inclui o episódio sensacional “Sikes and Nancy ”, de Oliver Twist; problemas de saúde se agravam. 1870 Leituras de despedida em Londres. The mystery of Edwin Drood é lançado em seis seções mensais, a ser completado em doze, mas fica inacabado. 9 de junho Morre, após derrame, em Gad’s Hill, aos 58 anos de idade. É enterrado na abadia de Westminster. Apêndice apêndice a: versão original do final do romance E m 11 de junho de 1861, Dickens já havia terminado de escrever Grandes esperanças e recebeu para revisão as provas da última seção (o romance estava saindo como folhetim no semanário All the Year Round). Foi então passar uns dias (15 a 18 de junho) com um amigo, o romancista sir Edward Bulwer-Ly tton (1803-73), que leu as provas e argumentou que o final era muito decepcionante para os leitores. Em 24 de junho Dickens enviou a Bulwer um novo final, que deixa em aberto a possibilidade de um casamento entre Pip e Estella, e que foi utilizado em todas as versões do romance editadas até a morte do autor. Para um estudo detalhado da revisão, ver Edgar Rosenberg, “Last words on Great expectations: a textual brief on the six endings”, Dickens Studies Annual 9 (1981), pp. 87-115. A primeira versão do final, bem mais curta, sobrevive nas provas e foi também publicada em John Forster, The life of Charles Dickens (1872-4); além disso, sobrevive no manuscrito, até imediatamente antes das palavras “Shropshire doctor” [médico de Shropshire]. Na concepção original do romance, o atual penúltimo capítulo era o último, que emendava com o atual último capítulo. As palavras que agora dão início ao último, “For eleven years” [Fazia onze anos], eram originariamente “For eight years” [Fazia oito anos], e a conversa com Biddy tinha um tom ligeiramente diferente: “Querido Pip”, disse Biddy , “tens certeza de que não sofres mais por ela?” “Disso tenho certeza absoluta, Biddy .” “Fala comigo como a uma velha, velha amiga. Esqueceste-a por completo?” “Querida Biddy, não esqueci nada que ocupou um lugar importante na minha vida. Mas aquele sonho vão, como eu o chamava outrora, se esvaeceu completamente, Biddy , completamente!” Foi só dois anos depois que voltei a vê-la. Eu ficara sabendo que ela tivera uma vida muito infeliz, tendo se separado do marido, que fora muito cruel com ela, e que se tornara famoso por sua combinação de orgulho, avareza, brutalidade e mesquinhez. Soubera também da morte dele (num acidente causado pelos maus-tratos que ele infligira a um cavalo), e que Estella voltara a casar-se com um médico de Shropshire, o qual, contrariando seus próprios interesses, uma vez havia intervindo, de modo muito viril, numa ocasião em que estava prestando seus serviços profissionais ao sr. Drummle e testemunhou seu comportamento indigno para com ela. Eu ficara sabendo que o médico de Shropshire não era rico, e que o casal vivia da fortuna pessoal de Estella. Eu estava na Inglaterra outra vez — em Londres, caminhando por Piccadilly com o pequeno Pip — quando um criado veio correndo até mim pedindo-me que voltasse atrás um pouco, pois uma senhora numa carruagem queria falar comigo. Era um pequeno cabriolé puxado por um pônei, guiado pela própria senhora; e eu e ela entreolhamo-nos com muita tristeza. “Mudei muito, eu sei; mas achei que gostarias de apertar a mão de Estella também, Pip. Levanta esse menino bonito para que eu lhe dê um beijo!” (Ela supôs, creio eu, que o menino fosse meu filho.) Posteriormente, gostei muito de ter tido aquele encontro, pois em seu rosto e em sua voz, e em seu toque, ela me deu a certeza de que o sofrimento fora mais forte do que os ensinamentos da sra. Havisham, e lhe dera um coração para compreender como fora outrora o meu coração. apêndice b: anotações de trabalho de dickens Juntamente com o manuscrito de Grandes esperanças temos algumas anotações feitas pelo autor durante a redação do texto. São (a) duas meias folhas de papel com os cabeçalhos “Dates” [Datas] e “(Dates) 2”, que claramente foram escritas antes de Dickens batizar o vilão de Compey son em vez de Compey, enquanto redigia o capítulo 6 do volume iii; (b) duas meias folhas de papel com os cabeçalhos “General Mems: 1” [Mem[orandos] gerais: 1] e “General Mems: 2”; e (c) uma terceira folha com o cabeçalho “Tide” [Maré]. Eis as anotações: (a) Datas Herbert Pocket diz que o caso da sra. Havisham aconteceu “há vinte e cinco anos”. Na época, Pip teria por volta de dezoito, dezenove anos. Portanto, aconteceu seis ou sete anos antes de nascerem Pip e Estella — que tem mais ou menos a idade dele. Mas digamos que toda a coisa levou mais ou menos um ano para se desenrolar — o que é razoável —, então teria sido só cinco ou seis anos antes do nascimento deles. Magwitch conta sua história no Temple quando Pip está com 23 anos. Magwitch tem então por volta de sessenta anos. Digamos que Pip tem sete anos no início da história. A fuga de Magwitch foi então há cerca de dezesseis anos. Se Magwitch conheceu Compey uns vinte anos antes, então ele teve cerca de quatro anos para trabalhar para Compey até o momento da fuga. Com isso ele teria cerca de quarenta anos quando conheceu Compey , que era mais moço que ele. Quando Magwitch conheceu Compey, o caso da sra. Havisham teria portanto acontecido sete ou oito anos antes. Estella, como filha de Magwitch, deve ter nascido (Datas) 2 cerca de três anos antes de ele conhecer Compey . As idades na última parte das Esperanças de Pip são, portanto: Pip cerca de 23 Estella “ 23 Herbert “ 23 Magwitch “ 60 Compey “ 52 ou 53 sra. Havisham “ 56 (imagino que ela era mais velha no tempo do noivado) Biddy cerca d e 24 ou 25 Joe cerca de 45 Jaggers 55, Wemmick quase 50, e assim por diante. (b) Mems. gerais: 1 A sra. Havisham e Pip, e o dinheiro para Herbert. Assim Herbert vira sócio da Clarriker’s /Compey son. Como entra em cena? /Estella. Filha de Magwitch /Orlick, Pip cai na armadilha e escapa. — À fuga Início Perseguição Luta — ambos caem n’água juntos — Compey son se afoga. Magwitch salvo por Pip. E capturado. Em seguida: Magwitch julgado, declarado culpado & condenado à Morte Pouco depois morre em Newgate Propriedade confiscada pela Coroa. Herbert vai para o estrangeiro: Pip fica de talvez ir depois. Pip tem ordem de prisão quando está doente demais para ser removido — fica deitado em seu quarto com febre. Joe é seu anjo da guarda. Recuperado, Pip vai humilde para a velha aldeia no charco, para pedir Biddy em casamento. Encontra Biddy casada com Joe Mems. gerais: 2 Assim vai para o estrangeiro ao encontro de Herbert (casado e feliz com Clara Barley ), e trabalha como caixeiro para ele. Única coisa boa que fez quando era próspero, única coisa boa que perdura e dá bons frutos. (c) Maré Desce às sobe 9h 15 h até até 15h 9h desce às 21h até 3h Desce às 9h até 15h de quarta sobe às 15h até 9h de quarta desce às 9h até 3h de quinta-feira sobe às 15h até 9h de quinta-feira quando o barco dá a partida apêndice c: cabeçalhos acrescentados em 1867-8 A “edição Charles Dickens” dos romances (1867) acrescenta cabeçalhos às páginas da direita; um prospecto, segundo o qual o autor “atualmente cuida de sua própria edição”, indica que os cabeçalhos foram redigidos pelo próprio Dickens (Athenaeum, 04/05/1867, p. 600; Robert Patten, Charles Dickens and his publishers, Oxford: Clarendon Press, 1978, p. 42). As edições subsequentes por vezes utilizam esses cabeçalhos, adaptando-os quando conveniente. Aqui eles aparecem em sua forma original. Capítulo 1 Prometo dar ao forçado o que ele quer Capítulo 2 O sr. e a sra. Joe e eu / A busca do conhecimento apesar dos obstáculos Capítulo 3 Outro forçado / Eu faço o que prometi Capítulo 4 Pumblechook e os outros / Terríveis demonstrações de Pumblechook Capítulo 5 O sargento e os soldados / A perseguição / Encontramos os forçados Capítulo 6 A viagem de volta Capítulo 7 Minha vida como pau para toda a obra/ A educação de Joe / Chegada da sra. Joe com notícias Capítulo 8 Na casa da sra. Havisham / A sra. Havisham / Estella / Descubro que sou vulgar Capítulo 9 Minha descrição da sra. Havisham / Um dia memorável Capítulo 10 Rodadas de rum na Barqueiros Alegres /Duas notas de uma libra Capítulo 11 Meu primeiro encontro com um homem que voltaria a ver com frequência / Felicidade familiar / Um jogo de batalha Capítulo 12 O sangue do jovem cavalheiro pálido / Biddy , e minhas perspectivas em geral Capítulo 13 Joe na casa da sra. Havisham / Relato de Joe Capítulo 14 Minha inquietude Capítulo 15 Argumento de Joe / O velho Orlick e a sra. Joe / Um serão intelectual / Agressão brutal sofrida pela sra. Joe Capítulo 16 A sra. Joe torna-se inválida Capítulo 17 Uma mudança em Biddy / Abro meu coração com Biddy Capítulo 18 O cavalheiro desconhecido / Examinado pelo sr. Jaggers / O exame prossegue / Biddy fica sabendo que sou um cavalheiro Capítulo 19 Rumo a Londres! / O sr. Trabb e seu empregado / O servilismo de Pumblechook / Despeço-me da sra. Havisham / Viajo para Londres Capítulo 20 Os clientes do sr. Jaggers / Meu tutor e seu funcionário Capítulo 21 O Barnard’s Inn Capítulo 22 Eu e Herbert trocamos confidências / Herbert conta-me a história da sra. Havisham / As perspectivas de Herbert na vida/ A sra. Pocket e os pequenos Pocket Capítulo 23 Mais sobre os Pocket / A sra. Pocket e sua dignidade Capítulo 24 Disposições pecuniárias e outras / Os amigos pessoais de Wemmick Capítulo 25 Meus colegas / Vou para casa com Wemmick Capítulo 26 Um convite para jantar / O jantar na casa do sr. Jaggers / Não simpatizo com Bentley Drummle Capítulo 27 Joe vem ao Barnard’s Inn / O recado da sra. Havisham trazido por Joe Capítulo 28 Forçados na diligência / Pumblechook, fundador da minha fortuna! Capítulo 29 Estella tornou-se uma mulher / Quem será que Estella me faz lembrar? Chegada do sr. Jaggers Capítulo 30 De volta à velha aldeia / Herbert sabe que amo Estella! / A namorada de Herbert Capítulo 31 O sr. Wopsle no papel de Hamlet Capítulo 32 Um bilhete de Estella / Wemmick em casa em Newgate Capítulo 33 Estella diz-me aonde vai / Levo Estella a seu destino Capítulo 34 Os Tentilhões do Arvoredo / Eu e Herbert examinamos nossa situação Capítulo 35 O enterro de minha irmã / Eu repreendo Biddy Capítulo 36 Tenho uma breve conversa com meu tutor / Minha pergunta permanece sem resposta Capítulo 37 Mais uma peregrinação ao castelo / Abro meu coração com Wemmick / Ajudo Herbert sem que ele o saiba Capítulo 38 Estella com a sra. Havisham outra vez / Fiel à sua lição, ou não? / Drummle afirma conhecer Estella Capítulo 39 Noite de tempestade no Temple / Reconheço meu visitante / Ele desfaz meu grande equívoco / E desperto de meu sonho Capítulo 40 Provis / A morte, se identificado / Tento em vão escondê-lo / Muita virtude num juramento Capítulo 41 É preciso conhecer sua história Capítulo 42 Ele relata sua vida e suas aventuras / Ele continua sua narrativa / Fim da narrativa Capítulo 43 Meu encontro com Drummle Capítulo 44 Uma conversa com a sra. Havisham e Estella / Meu amor é incompreensível para Estella / Recebo um alerta Capítulo 45 Asso uma linguiça para o pai idoso / Os conselhos e a administração doméstica de Wemmick Capítulo 46 O velho Barley / Começo a preparar um bote Capítulo 47 O drama náutico / O sr. Wopsle me preocupa Capítulo 48 Sei agora em quem Estella me fez pensar / Informações de Wemmick Capítulo 49 Um empréstimo feito pela sra. Havisham / A sra. Havisham diz-me tudo que sabe Capítulo 50 Herbert torna-se meu enfermeiro / Uma conversa com meu enfermeiro Capítulo 51 Dirijo um apelo ao sr. Jaggers / Dois impostores Capítulo 52 Uma carta de Wemmick Capítulo 53 No charco / Caio numa armadilha / Face a face com a morte / Minha vida é preservada / A hora da fuga se aproxima Capítulo 54 Ele entra no barco / Uma galeota de quatro remos / A galeota nos aborda / Eu acompanho o prisioneiro Capítulo 55 Herbert despede-se e parte para o Oriente / O casamento de Wemmick Capítulo 56 Ele é julgado e condenado Capítulo 57 Joe cuida de mim em minha doença / Joe e eu conversamos / Coisas necessárias e desnecessárias / Joe delicadamente vaise embora Capítulo 58 O fundador de minha fortuna faz um sermão / Chego tarde demais, e penitencio-me Capítulo 59 O vulto nas ruínas Leituras complementares ackroy d, Peter. Dickens. Londres: Sinclair-Stevenson, 1990. brooks, Peter. Reading for the plot: design and intention in narrative. Nova York: Alfred A. 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Penguin and the associated logo and trade dress are registered and/or unregistered trademarks of Penguin Books Limited and/or Penguin Group (usa) Inc. Used with permission. Published by Companhia das Letras in association with Penguin Group (usa) Inc. título original Great expectations capa e projeto gráfico penguin-companhia Raul Loureiro, Claudia Warrak preparação Jacob Lebensztay n revisão Valquíria Della Pozza Márcia Moura ISBN 978-85-8086-316-1 Todos os direitos desta edição reservados à editora schwarcz s.a. Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32 04532-002 — São Paulo — sp Telefone: (11) 3707-3500 Fax: (11) 3707-3501 www.penguincompanhia.com.br www.companhiadasletras.com.br www.blogdacompanhia.com.br

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