Grandes esperanças - Charles Dickens
GRANDES ESPERANÇAS
CHARLES DICKENS
Charles dickens nasceu em Portsmouth em 7 de fevereiro de 1812, o segundo de
oito filhos. Começou a publicar pequenas crônicas em vários periódicos, que
foram reunidas posteriormente em Sketches by Boz [Esboços de Boz]. The
Pickwick Papers [Papéis de Pickwick] foi publicado em 1836-7 e, após um início
tímido, tornou-se um fenômeno editorial; e os personagens de Dickens, o centro
de um culto popular. Começou com Oliver Twist em 1837, seguido por Nicholas
Nickleby (1838-9) e The Old Curiosity Shop [Loja de Antiguidades] (1840-41).
Tendo concluído Barnaby Rudge (1841), ele viajou para os Estados Unidos. Suas
experiências ficaram registradas em American Notes [Notas americanas] (1842).
Martin Chuzzlewit (1843-4) não repetiu o sucesso de seus predecessores, mas
isso não tardou a ser compensado pela enorme popularidade dos Livros de Natal,
o primeiro dos quais, A Christmas Carol [Canção de Natal], foi publicado em
1842. Entre 1844 e 1846, Dickens viajou para o exterior e, na Suíça, iniciou
Dombey and Son [Dombey e filho] (1846-8). Este e David Copperfield (1849-50)
eram mais sérios no tema e planejados com mais cuidado que seus primeiros
romances. Nas obras tardias, como Bleak House [A casa sombria] (1852-3) e
Little Dorrit [A pequena Dorrit] (1855-7), a crítica social de Dickens tornou-se
mais radical; e seu humor, mais feroz. Em 1850, ele fundou o hebdomadário
Household Words, sucedido por All the Year Round em 1859; neles publicou Hard
Times [Tempos difíceis] (1854), A Tale of Two Cities [Um conto de duas cidades]
(1859) e Grandes esperanças (1860-61). Sua saúde ficou abalada na década de
1860, e o esforço físico das leituras públicas iniciadas em 1858 acelerou-lhe o
declínio. Sem concluir o último romance, The Mystery of Edwin Drood [O
mistério de Edwin Drood], Dickens faleceu no dia 9 de junho de 1870. Sua morte
causou grande consternação pública, e ele foi sepultado no Poets Corner da
Abadia de Westminster.
Paulo henriques britto nasceu no Rio de Janeiro em 1951. Poeta, contista,
ensaísta, professor e um dos principais tradutores brasileiros da língua inglesa,
formou-se em Português e Inglês pela puc-Rio. É professor de tradução, criação
literária e literatura brasileira na puc-Rio, onde também defendeu mestrado em
língua portuguesa. Em 2002, recebeu o título de Notório Saber na mesma
instituição.
Como poeta, estreou em 1982, com Liturgia da matéria. Depois, vieram os
volumes de poesia Mínima lírica (1989) , Trovar claro (Prêmio Alphonsus de
Guimaraens da Fundação Biblioteca Nacional, 1977) , Macau (Prêmio Portugal
Telecom , 2004) e Tarde (2007). Publicou também os contos Praísos artificiais
(2004) e Eu quero é botar meu bloco na rua (2009), sobre a música de Sérgio
Sampaio.
Já traduziu cerca de cem livros, entre eles volumes de poesia de By ron,
Elizabeth Bishop e Wallace Stevens, e romances de William Faulkner ( O som e a
fúria), Ian McEwan (Reparação), Philip Roth (O animal agonizante), V. S.
Naipaul (Uma casa para o sr. Biswas ), Thomas Py nchon (O arco-íris da
gravidade) e Don DeLillo (Submundo). Recebeu o Prêmio Paulo Rónai da
Fundação Biblioteca Nacional (1995) pela tradução de A mecânica das águas
(Companhia das Letras), de E.L. Doctorow.
david trotter é professor Quain de língua e literatura inglesas na University
College London. Entre seus livros, figuram Circulation: Defoe, Dickens and the
Economies of the Novel (1988) e The English Novel in History 1895-1920 (1993).
charlotte mitchell é professora de inglês na University College London. Foi
coeditora de Edwardian Fiction: An Oxford Companion (1997).
Sumário
Introdução David Trotter
Nota sobre o texto
GRANDES ESPERANÇAS
Notas
Cronologia do autor Stephen Wall
Apêndice
Leituras complementares
Aviso aos que leem o livro pela primeira vez:
esta Introdução revela detalhes do enredo.
Introdução
david trotter
Grandes esperanças é a obra mais contida de um escritor que não costuma ser
conhecido por sua contenção; é absolutamente perfeita, segundo George
Bernard Shaw, e suas qualidades decorrem do que ela tem de compacto.
Questões de peso permeiam todo o romance, de todos os lados, deixando marcas
em cada detalhe de descrição, cada lance da narrativa. À medida que vamos
lendo, acompanhamos por dentro, por assim dizer, as formas que elas moldaram
por fora. Tudo aquilo que o romance tem a dizer sobre a bondade, sobre a culpa
e o desejo, sobre a natureza do capitalismo e nenhuma dessas questões
poderia ser deixada de lado numa introdução ao livro ele o faz pela maneira
como mede a pressão de cada uma e como lhes distribui os pesos. Assim, ainda
que queiramos explorar suas incertezas e contradições, e desenvolver seus
contextos, devemos também, no final das contas, estar dispostos a simplesmente
apreciar o resultado. Foi a última grande obra do autor, comentou Swinburne;
os defeitos são quase tão imperceptíveis quanto manchas no sol ou sombras num
mar ensolarado.1
A característica mais imediata de Grandes esperanças é ser uma história de
redenção moral. O protagonista, um órfão criado num lar humilde, nas primeiras
décadas do século xix, herda uma fortuna, e imediatamente rejeita os familiares
e os amigos. Quando a fortuna perde o brilho, e depois desaparece por completo,
ele é obrigado a assumir sua própria ingratidão, e aprende a amar o homem que
o elevou e também o destruiu. A história é narrada pelo próprio protagonista, e ao
elaborar essa narrativa na primeira pessoa Dickens enfrentou um desafio duplo.
Era preciso fazer com que Pip parecesse sincero ao confessar seus defeitos, para
que os leitores não imaginem que ele os admite apenas para conquistar-lhes a
simpatia. E era preciso validar a redenção de Pip mostrando que ela gera não
apenas belas palavras, mas também bons atos. Numa análise meticulosa do tom
da narrativa, Christopher Ricks demonstra que ela funciona porque é tão franca
quanto se pode desejar, sem jamais se comprazer com a própria franqueza.2 Sua
notável agilidade é particularmente visível na passagem em que Pip descreve
seus sentimentos quando fica sabendo da visita próxima de seu velho amigo e
protetor, o ferreiro Joe Gargery. Não com prazer, embora tantos vínculos me
unissem a ele; não; com muita perturbação, uma certa mortificação e uma
intensa sensação de incongruência. Se eu pudesse mantê-lo afastado pagando
uma determinada quantia, certamente o teria feito. (p. 309.) A segunda frase,
em particular, é de fato implacável, sem fazer alarde de sua própria
implacabilidade. Trata-se de um tom difícil de manter, e como demonstra
Ricks nem sempre Dickens consegue fazê-lo. Há momentos em que Pip
carrega um pouco demais na automortificação, e momentos em que ele parece
pedir desesperadamente nossa aprovação. De modo geral, porém, ele é rigoroso
consigo mesmo no grau exato para ser convincente.
A prova da redenção de Pip está nos seus bons atos, e não em suas belas
palavras: seus rasgos secretos de generosidade, quando possibilita a Herbert
tornar-se sócio da Clarrickers e quando convence a sra. Havishman dos méritos
do sofrido Matthew Pocket; quando, no final das contas, recusa-se a aceitar
dinheiro da sra. Havisham ou de Magwitch; e, acima de tudo, quando demonstra
seu amor por Magwitch. O último desses atos de bondade, e o mais difícil de
autenticar para o autor, torna-se intensamente vívido graças a uma sutil
modificação da técnica narrativa. Isso se dá no volume iii, capítulo 15, quando
Pip tenta ajudar Magwitch a fugir num barco no Tâmisa. É a única passagem em
todo o romance em que a narrativa em primeira pessoa não focaliza os
pensamentos de Pip por mais honestos que sejam sobre si próprio, e sim
volta-se atentamente para os outros, e para o desenrolar dos acontecimentos.3
Uma tensão permeia a narrativa nas descrições das docas e do rio, mas trata-se
de uma ansiedade ou um estado de alerta geral, e não o autocentramento de Pip,
justificado ou não, que até então dominou a narrativa. O amor que Pip sente por
Magwitch depois de sua captura é, portanto, um conhecimento conquistado por
meio da submissão do eu ao outro.
Sem dúvida, Pip tem pecados a expiar, em particular sua ingratidão para
com Joe e Biddy, e a repulsa inicial que lhe inspira Magwitch. Mas sua
consciência de culpa parece ser sempre excessiva em relação ao mal causado:
menos um reconhecimento crescente dos defeitos morais do que uma afinidade
misteriosa e profunda com o crime. Essa afinidade torna-se explícita quando,
aguardando a chegada de Estella no escritório das diligências, Pip mata o tempo
acompanhando Wemmick numa visita à prisão de Newgate.
Consumi todo esse tempo pensando como era estranho que eu estivesse
sempre envolvido por essa nódoa de prisão e crime; que, na minha infância,
nos nossos charcos solitários numa noite de inverno, eu a houvesse
encontrado pela primeira vez; que ela tivesse reaparecido em duas ocasiões,
começando como uma nódoa desbotada, mas não desaparecida; que, desta
nova maneira, ela impregnasse minha fortuna e minha ascensão (p. 366).
Pip vê o crime não como um defeito moral, mas como uma predisposição
psicológica, até mesmo genética: uma nódoa que tudo engloba. Julian Moy nahan
propõe que a melhor maneira de abordar esse pressuposto é analisar a relação de
Pip não com Magwitch, mas com Orlick, o ajudante de Joe Gargery que se torna
assassino.4
Orlick é a sombra de Pip. Vemo-lo pela primeira vez trabalhando ao lado de
Pip na ferraria. Quando a sra. Joe é brutalmente atacada, quem a ataca é Orlick,
mas pode-se dizer que foi Pip quem lhe deu a arma: um grilhão. Pip é chamado
para distrair a sra. Havisham; Orlick, algum tempo depois, torna-se porteiro dela.
Pip vê Biddy como uma irmã; as intenções de Orlick com relação a ela são
menos louváveis. Pip associa-se a Magwitch, e Orlick ao inimigo mortal de
Magwitch, Compey son. Orlick, em suma, parece também ter lá suas grandes
esperanças, acompanhando com ressentimento a ascensão de Pip, do charco à
Casa Satis e por fim a Londres. Pip não consegue livrar-se dessa sombra
obscena.
No volume iii, capítulo 14, Orlick atrai Pip até uma cabana abandonada no
charco, com intenção de não apenas matá-lo, mas também atormentá-lo com
suas acusações. Ele afirma que Pip o prejudicou ao longo de toda sua vida. Mas a
acusação que ele faz com mais convicção é a de que Pip é o verdadeiro
responsável pela morte da sra. Joe, muito embora ele próprio, Orlick, a tenha
golpeado. Mas não foi o velho Orlick que fez a coisa, foste tu. Tu eras
favorecido, e ele vivia levando descompostura e apanhando. O velho Orlick
levava descompostura e apanhava, não é? Agora vais pagar por isso. Tu o fizeste,
e agora vais pagar. (p. 580.) Orlick, que atacou a sra. Joe com intenção de
matá-la, atribui a Pip, que lhe forneceu a arma sem querer, a responsabilidade
pelo crime. Essa fantasiosa inversão de responsabilidades nos permite
reconhecer em Orlick o duplo de Pip. Dickens sabia que sempre há obstáculos a
vencer para se concretizarem grandes esperanças, e que às vezes é preciso usar
de meios violentos para vencê-los. A sra. Joe, por não ver nada de positivo em
Pip, era um obstáculo para suas grandes esperanças. Era necessário que ela fosse
eliminada. E, no entanto, Pip, que inocentemente pensa que terá realizações e
status sem que precise fazer qualquer esforço, não consegue livrar-se dela. Orlick
realiza as fantasias de vingança de Pip. Tu o fizeste, e agora vais pagar. A
culpa é um reconhecimento da fantasia. Não admira que Pip, quando tem notícia
da morte da irmã, de saída presuma que de algum modo seja responsável.
Há outros obstáculos em seu caminho, como o tio Pumblechook, que jamais
perde uma oportunidade de tratá-lo com condescendência ou negar-lhe qualquer
mérito. Orlick também castiga Pumblechook, liderando um bando de ladrões que
saqueiam sua loja, bebem seu vinho, puxam-lhe o nariz e enchem-lhe a boca
com sementes de flores. Como Pumblechook só ofendeu Pip, sem propriamente
prejudicá-lo, a vingança é menos severa; mas o tom é mesmo de vingança,
como deixa claro o prazer com que Joe relata o evento (p. 632). Porém há
obstáculos fora do alcance de Orlick, que exigem os serviços de um segundo
duplo (o duplo de um duplo, talvez): Bentley Drummle. Drummle é uma cópia
de Orlick, só que pertence à classe dominante. Como Orlick, é poderoso, moreno,
incapaz de se expressar e impulsivo. Como Orlick, ele vive à espreita. Tendo
Estella rejeitado o amor de Pip, Drummle casa-se com ela, e depois lhe dá
surras. Os dois homens desaparecem da narrativa depois que realizam sua
função, executando as fantasias de vingança que Pip jamais assume.
Assim, talvez Pip tenha outros motivos para se sentir culpado, além da
ingratidão. Ele, porém, associa a culpa não a acontecimentos específicos, e sim a
uma sensação geral de mal-estar que o atormenta desde pequeno. A aparição de
Magwitch no cemitério coincide com sua primeira impressão da identidade das
coisas (p. 34). Pip sente esse mal-estar desde que começa a ter sentimentos.
Mas até mesmo essa primeira impressão é, sob certos aspectos, uma segunda
impressão. Ela assinala o momento não em que ele descobre, e sim em que
ele descobre com certeza (o grifo é meu) que o charco era o charco, o rio era
o rio, e assim por diante. Magwitch não é exatamente uma coisa nova, e sim uma
coisa arrancada de uma paisagem que Pip habita desde que nasceu. Um
homem que havia afundado na água, e chafurdado na lama, e torcido o pé nas
pedras, e se cortado nas pederneiras, e se espetado nas urtigas, e se rasgado nas
urzes; que mancava, e estremecia, e rosnava; e que me olhava com olhar feroz,
estalejando os dentes enquanto me agarrava pelo queixo (p. 34). Magwitch é
uma atmosfera, uma condição, não um dilema moral. Ele logo volta para o lugar
de onde veio. Junto ao rio há um patíbulo, do qual pendem algumas correntes às
quais outrora um pirata foi preso. Após esse primeiro encontro, Pip vê Magwitch
ir embora mancando em direção a esse patíbulo, como se fosse o pirata
redivivo, que dele tendo descido agora voltava, para lá se pendurar outra vez (p.
38).
No capítulo 2, conhecemos a irmã de Pip, a sra. Joe Gargery , a qual, tendo-o
criado com a mão, não precisa que ninguém a convença de que ele é um
criminoso nato. Para ela, já é muito difícil ser esposa de um ferreiro (e de um
Gargery inda por cima), quanto mais ser uma mãe para Pip (p. 41). O
ressentimento constante da sra. Joe já convenceu Pip há muito tempo de que ele
sempre foi um criminoso. A culpa redespertada de modo intenso pelo surgimento
de Magwitch é um sentimento que lhe é bem familiar. Assim, ele volta ao charco
com uma consciência duplamente oprimida no capítulo 3. A criminalidade,
representada pelo forçado, é e sempre foi uma condição física, de imundície e
fome, que a qualquer momento pode envolvê-lo, mas que pode também ser
anulada por um ato de bondade.
Alguma coisa estalou em sua garganta, como se ele tivesse dentro dele um
mecanismo como o de um relógio, que estivesse prestes a dar a hora. E ele
passou a manga rude e rasgada nos olhos.
Apiedando-me de seu desamparo, e vendo-o atacar aos poucos o
pastelão, criei coragem de dizer: Que bom que o senhor gostou.
Falaste?
Eu disse que bom que o senhor gostou.
Obrigado, meu menino. Gostei, sim. (p. 53.)
Por um momento, tem-se a impressão de que Dickens vai se tornar
conivente com a ênfase um pouco excessiva de manga rude e rasgada
com a autocomiseração avassaladora de Magwtich, com a irmanação
sentimental na culpa. Mas a firmeza admirável de atacar uma versão
abrutalhada da refeição a que assistimos no capítulo seguinte na casa dos
Gargery possibilita a clareza moral da conversa que se segue: só muitos anos
depois Pip vai conseguir manifestar gratidão de maneira tão espontânea. Esse
intervalo de clareza, porém, serve apenas para reforçar a desolação geral. Desde
o início, a nódoa da prisão e a do crime grudam em Pip, como a lama e a
umidade do charco. Antes de surgirem suas grandes esperanças, a expectativa de
Pip é que lhe vão mostrar que ele já cometeu algum crime. Trata-se de uma
expectativa voltada para o passado, sobre a volta do passado no futuro, o retorno
do reprimido. Muitas razões já foram propostas para esse sentimento de culpa
desproporcional, entre elas o egoísmo e a masturbação.5 Mas é necessário que
haja sempre um motivo para a culpa? Dickens, imagino, estava mais interessado
na insistência da culpa do que na sua etiologia.
Grandes esperanças, ao que parece, é uma história de revisão cognitiva
Pip descobre que seu benfeitor é Magwitch e não a sra. Havisham o que leva
a uma revisão moral: Eu via nele apenas um homem que fora muito melhor do
que eu fora para com Joe (p. 606). Mas os termos em que se dá essa revisão
cognitiva fazem com que sua eficácia seja muito duvidosa. A tarefa a ser
enfrentada por Pip é a de substituir uma fada madrinha por um forçado que fugiu
do degredo; ou, como observa Michal Peled Ginsburg, substituir o mundo do
desejo pelo mundo da culpa. O capítulo 8, que relata a primeira ida de Pip à Casa
Satis, enfatiza de modo brutal a diferença entre esses dois mundos. Diz Ginsburg:
Se o encontro com Magwitch repete uma sensação de culpa tão velha quanto a
vida e a própria consciência, o encontro com Estella e a sra. Havisham é o
nascimento de um novo conceito de eu: ele marca a primeira percepção do eu
como deficiente, como definido pela falta, e portanto sujeito ao desejo.6 Pip
toma consciência, pela primeira vez, de que suas mãos são grosseiras e suas
botas são pesadas. O anseio criado nesse momento dirige-se tanto a Estella
quanto ao status social. É porque ele vivencia um novo sentimento na Casa Satis,
e não a repetição de um sentimento antigo, que Pip identifica suas grandes
esperanças com a sra. Havisham e Estella. Foi para mim um dia memorável,
pois ocasionou grandes mudanças em mim (p. 121), ele relembra. A cena no
volume ii, capítulo 11, em que o empregado de Trabb debocha cruelmente das
roupas novas e dos novos ares de Pip, capta perfeitamente a sensação de
estranheza do eu, criada pelo desejo.
Não tenho palavras para exprimir a indignação e a mortificação que o
empregado de Trabb me proporcionou quando, passando a meu lado, ele
levantou o colarinho da camisa, retorceu os cabelos, pôs uma mão na cintura
e, com um sorriso afetadíssimo, sacudindo os cotovelos e o corpo, rosnou
para seus acompanhantes: Não conheço ocês, não conheço ocês, juro por
Deus que não conheço ocês! (p. 344.)
Como G. K. Chesterton observou, George Eliot ou Thackeray saberiam
descrever tão bem quanto Dickens a humilhação de Pip, mas não o vigor do
empregado de Trabb, o tom de vingança irreprimível e necessária.7
A culpa, porém, insiste. Cada encontro com um objeto cintilante de desejo é
precedido por uma manifestação de criminalidade. Jaggers vem anunciar as
grandes esperanças, no volume i, capítulo 18, logo após uma conversa sobre um
assassinato na taberna Três Barqueiros Alegres. Quando vai visitar a sra.
Havisham e Estella, no volume ii, capítulo 9, Pip se vê na diligência sentado entre
dois presidiários. Enquanto espera Estella, no capítulo 14, Pip faz uma visita a
Newgate, onde fica a meditar sobre a nódoa de prisão e crime que tudo
engloba. Os dois mundos se cruzam. A narrativa constantemente aponta para
e desse modo, talvez, qualifica a substituição da sra. Havisham por Magwitch.
Pip aprende a amar Magwitch. Aprende também que no encalço do desejo vem
sempre a culpa; no do que gostaríamos de ser, aquilo que não podemos deixar de
ser.
O primeiro gesto de gratidão de Magwitch é enviar a Pip certa quantia
através de um forçado que já ganhou a liberdade: duas notas gordas e suadas,
que pareciam ter gozado da maior intimidade com todos os mercados de gado do
condado (p. 129). Depois que Magwitch volta da Austrália, Pip, ainda supondo
que a fonte de sua fortuna seja a sra. Havisham, tenta devolver-lhe o dinheiro.
Ele ficou a olhar-me quando pus a carteira sobre a mesa e abri-a, e ficou a
olhar-me enquanto eu separava as duas notas de uma libra. Eram limpas e
novas, e eu desdobrei-as e entreguei-as a ele. Sempre olhando para mim, o
homem colocou-as uma sobre outra, dobrou-as no sentido do comprimento,
torceu-as, queimou-as no lampião e pôs as cinzas na bandeja. (p. 437.)
Pip pensa que, substituindo as notas velhas e sujas por cédulas limpas e
novas, seja possível dissociar-se de uma vez por todas da nódoa de prisão e
crime que até agora sempre o envolveu. Mas não é assim tão fácil, como
Magwitch sente-se obrigado a fazê-lo ver, separar o mundo da culpa do mundo
do desejo. Essa cena mostra, de modo silencioso e eficaz, o terrível despertar de
Pip para a realidade de sua situação. Também diz algo a respeito da natureza da
riqueza: dinheiro limpo não existe.
A sujeira radical daquelas notas gordas e suadas de uma libra sugere que
examinemos, além do tumulto emocional e moral de Pip, as ideias sobre o
processo social e econômico que Dickens já vinha expressando desde cerca de
quinze anos antes de escrever Grandes esperanças, tanto em seus romances
quanto em Household Words , o semanário que utilizava a partir de 1850 para
divulgar suas ideias. Reconhece-se há muito tempo que sua atuação como
reformador social tornou-se mais extensa e sistemática na década de 1840, e que
os romances da última fase incorporam esse seu novo comprometimento. Em
Pickwick papers, observa Humphry House, um cheiro ruim era um cheiro
ruim; em Our mutual friend é um problema.8 O cheiro das notas de uma libra é
um cheiro problemático.
Durante a Grande Exposição de 1851, Dickens e Richard Horne escreveram
um artigo publicado em Household Words que contrastava as maravilhas do
Palácio de Cristal com o que havia de antiquado na mostra de artefatos chineses
que ocorreu no mesmo evento. É muito curioso ver uma exposição de um povo
que parou no tempo, sabe-se lá quantos séculos atrás, ao lado da exposição de um
mundo em movimento. Para os autores, Inglaterra e China representavam os
extremos de progresso e reação, movimento e estagnação: A Inglaterra,
cultivando relações comerciais com todo o mundo; a China, mantendo-se
fechada em si própria, tanto quanto possível. A Inglaterra comunica-se com o
mundo e prospera. Sua prosperidade depende do intercâmbio, um fluxo
constante de produtos e informações dentro de suas fronteiras e com os outros
países. A China encerra-se em si mesma, recusando o intercâmbio, bloqueando o
fluxo de produtos e informações. Comparar a China com a Inglaterra é
comparar o estancamento com o progresso.9
Os chineses, em suma, ainda não tinham descoberto as vantagens do Livre
Comércio, uma doutrina que triunfara na Inglaterra desde a abolição das Corn
Laws em 1846.* Dickens e Horne insistiam que os tóris, que em 1851 ainda não se
haviam desvinculado da bandeira do protecionismo, estavam tentando
transformar o país numa segunda China. Household Words defendia a expansão
máxima do livre-câmbio por todo o mundo. Um artigo atacava a Companhia da
Baía do Hudson** por impedir que fossem exploradas as terras sob seu controle,
desse modo impedindo o avanço do trabalho e do capital. Para o autor, era
como se a empresa tivesse colocado uma imensa placa com os dizeres Proibida
a passagem em rios e estradas (07/01/1854). Quando Dickens e seus associados
falavam em estancamento, tinham em mente algo bem concreto: haviam sido
bloqueados os canais através dos quais deveriam fluir os produtos e as
informações.
Era o fluxo de dinheiro, acima de tudo, segundo outro autor, que garantia que
o intercâmbio comercial seguiria em frente sem solavancos incômodos nem
paradas súbitas (17/05/1856). Quando Dickens e W. H. Wills visitaram o Banco
da Inglaterra, eles admiraram o coração poderoso do capital ativo, por cujas
artérias e veias flui todo o meio circulante desta grande nação (06/07/1850). Era
a metáfora da circulação sanguínea, a metáfora básica da análise da riqueza no
século xviii, que exprimia a admiração de Dickens pela grande nação em que
ele vivia. Em 1850, ele ainda acreditava que a riqueza podia ser saudável: uma
riqueza medida em notas de uma libra, finas, frescas, sem cheiro.
Não estaríamos reduzindo de modo absurdo a visão política de Dickens se
disséssemos que ele era a favor da circulação e contra o estancamento, e que
não tinha medo algum da aplicação literal dessa metáfora à existência cotidiana.
Para ele, a vida do pobre só se tornaria suportável se houvesse uma circulação
apropriada de ar e água em suas moradias. Causavam-lhe repulsa o
estancamento físico, os espaços cercados e congestionados no centro da cidade,
como o mercado de Smithfield, ou os cemitérios urbanos (1117 cadáveres por
acre, segundo Household Words, emitindo 55,261 pés cúbicos de gases mefíticos
por acre por ano).*** Dickens escreveu um artigo atacando violentamente o
mercado de Smithfield, afirmando que representava um grande estorvo e perigo
para o público, além de crueldade para os animais (04/05/1850). Pip, recémchegado
a Londres, visita o mercado, e aquele lugar vergonhoso, todo coberto
de imundície, gordura, sangue e escuma, pareceu grudar-se em mim (p. 240).
A gordura, sangue e escuma que contaminavam as notas de uma libra que lhe
deram quando menino agora contaminam sua pessoa. A esclerose ameaça as
artérias e veias através das quais o capital ativo outrora fluía livremente.
Os romances da última fase associam um ponto de estancamento a outro, de
modo metafórico e metonímico. Esses pontos são ao mesmo tempo
intercambiáveis e contíguos. Pip livra-se da gordura e da escuma de Smithfield
entrando numa rua que o leva às imediações da prisão de Newgate, lugar que,
por sua vez, também gera sua quota de gordura e escuma. No volume ii, capítulo
13, enquanto Pip espera por Estella, Wemmick leva-o à prisão, na qual
encontram um homem corpulento, empertigado cujo chapéu tem a superfície
ensebada e gordurenta, como caldo de carne frio (p. 363). É significativo que,
ao falar com esse homem, Wemmick adote, pela primeira e única vez, a fala
agressiva de Bucket, personagem de Bleak house, e de Pancks, em Little Dorrit:
Não, não, disse Wemmick, imperturbável, o senhor não se importa (p. 364).
A função de Bucket e Pancks é resolver os mistérios que envolvem os principais
protagonistas, e ambos adquiriram o hábito de pôr palavras na boca dos outros
como método de extrair-lhes informações. Também Wemmick faz o possível
para obter informações que possam revelar o paradeiro do vilão Compey son.
Mas nisso ele não tem muito sucesso, e há em Grandes esperanças ao
contrário do que ocorre em Bleak house e Little Dorrit certa consciência de
que os mistérios não podem ser resolvidos, ou que só podem ser resolvidos numa
catástrofe.
É uma catástrofe, naturalmente, que resolve o mistério da sra. Havisham.
Esta personagem, que preserva a si própria e sua casa exatamente como eram
no dia em que foi abandonada, é a imagem mais impressionante do
estancamento em todo o romance. Era tão imutável aquela casa velha e
poeirenta, a luz amarela no quarto escurecido, a aparição murcha na cadeira
diante do espelho da penteadeira, que me dava a impressão de que, quando os
relógios foram parados, também o Tempo parara naquele lugar misterioso, e
embora fora dela tudo se tornasse mais velho, eu inclusive, ali nada mudava (p.
189). A sra. Havisham, como observa Susan Walsh, fechou não apenas a si
própria mas também a cervejaria do pai, e assim repudiou o papel do capital
econômico e corpóreo da mulher dentro do sistema empresarial da família.10
Perambulando pelos prédios abandonados, Pip encontra uma selva de barris
vazios, em torno dos quais ainda pairava uma lembrança azeda de dias melhores;
mas era azeda demais para ser tomada como amostra da cerveja que não havia
mais e, sob esse aspecto, esses reclusos, assim me pareceu, eram semelhantes
à maioria dos reclusos (p. 110). A proprietária da cervejaria certamente deve
ser incluída entre esses reclusos que azedaram além da conta. Quando a sra.
Havisham, instigada por Pip, ajuda Herbert Pocket a se tornar sócio da firma, ela
reassume até certo ponto seu papel de investidora nas empresas da família, e
assim dá sua contribuição à circulação do capital. Dickens ainda permite essas
reconstruções do processo econômico em pequena escala, mas temos a
impressão de que são pequenas demais, e chegam tarde demais.
Há quem afirme que Grandes esperanças exprime uma forte nostalgia pelas
certezas sociais e morais da ferraria de Joe Gargery, à qual Pip retorna, no
capítulo final, após a derrocada e reconstrução parcial de sua fortuna. Até certo
ponto, isso é verdade. Pois o cenário a que Pip retorna oferece nada menos do
que a reconstituição da família como meio de compreensão social e moral. No
início do romance, somos apresentados a uma família inautêntica e disfuncional:
Joe e a sra. Joe, um casal infeliz, que não tem filhos; o órfão Pip, deslocado em
qualquer lugar; e o tio Pumblechook, que se autonomeia protetor de Pip, porém
abusa dessa função para intimidar o menino e arrogar-se méritos inexistentes.
Quando Pip finalmente volta à ferraria, após onze anos no estrangeiro, ele
constata que essas posições têm agora, em sua maioria, novos ocupantes.
Lá, fumando seu cachimbo no lugar de sempre junto à lareira, saudável e
forte como sempre, ainda que um pouco grisalho, estava Joe; e lá,
encurralado no canto da cozinha pela perna de Joe, sentado no meu
banquinho, olhando para o fogo, estava
eu de novo!
A gente deu a ele o nome de Pip em tua homenagem, meu velho,
disse Joe, muito contente, quando me sentei em outro banco ao lado do
menino (mas não lhe despenteei o cabelo), e a gente espera que ele fique
um pouco como ti quando crescer, e a gente acha que ele vai ficar, sim.
Eu também pensava assim, e saí para caminhar com ele na manhã
seguinte, e conversamos muitíssimo, compreendendo um ao outro à
perfeição (p. 651).
Joe continua a ser o mesmo de sempre, no lugar de sempre ao pé da lareira.
Biddy assumiu o lugar da sra. Joe; seu filho, o de Pip; e Pip, o de Pumblechook.
Trata-se, é claro, de um Pumblechook benévolo, que não despenteia o cabelo do
sobrinho. A família foi reconstituída. Não é, porém, a família de Pip. Nela ele
não desempenha nenhum papel, senão o do benfeitor ocasional. Para ele, voltar à
ferraria é impossível. Esta cena é a última palavra do romance sobre as
vantagens e desvantagens do progresso, individual ou coletivo. É tão poderosa a
sensação de conclusão nele expressa que são pequenas as implicações do
encontro subsequente de Pip com Estella. O romance é elegíaco, sem dúvida;
mas não crê na possibilidade de voltar ao paraíso perdido.
Por mais compacta que fosse a forma com que Dickens se havia
comprometido, e por mais equilibrada que fosse sua visão do progresso individual
e coletivo, Dickens não conseguiu resistir de todo a uma manifestação de euforia
pequena e inteiramente gratuita. Ele quase nunca perdia uma oportunidade de
inserir, em seus romances, pequenos grupos de ociosos, cuja despreocupação
absoluta contradiz do modo mais enfático a industriosidade que motiva não
apenas os personagens principais mas também o próprio romancista. No volume
i, capítulo 8 de Grandes esperanças, Pip passa a noite antes de sua primeira visita
à sra. Havisham na casa de Pumblechook, numa cidade vizinha, onde ocorre
uma feira. É a única vez que ele o faz, e sua estada lá não serve para outra coisa
que não nos fornecer uma imagem da loja de Pumblechook e da rua principal.
Nessa mesma oportunidade, verifiquei que o sr. Pumblechook, ao que
parecia, realizava seu trabalho olhando para o seleiro do outro lado da rua,
enquanto o seleiro parecia cumprir suas tarefas sempre de olho no segeiro, o
qual parecia passar a vida com as mãos enfiadas nos bolsos olhando para o
padeiro, o qual, por sua vez, ficava de braços cruzados olhando para o
merceeiro, que, parado à porta de sua loja, bocejava olhando para o
boticário (p. 98).
A câmara de comércio parece ter se transformado numa câmara de inércia.
Mas a cena contém também outro grupo de ociosos. A única pessoa que trabalha
na rua é o relojoeiro, sempre sentado a uma pequena mesa, examinando um
mecanismo com uma lupa no olho, e sempre examinado por um grupo de
homens de guarda-pó que o viam através do vidro de sua vitrine (p. 98). A
repetição irônica de examinar capta de modo perfeito a ociosidade desses
ruminantes inofensivos, tão diferentes, em sua inércia e bisbilhotice, do sinistro
Orlick.
Esses guarda-pós descrevem um arco por sobre praticamente toda a carreira
de Dickens e apontam para a multidão reunida diante da casa do magistrado à
qual Pickwick e seus seguidores foram levados, no capítulo 25 de Pickwick
papers. Esses ociosos estão tão desesperados para saber o que está se passando, e
tão indignados com a falta de informações, que expressam seus sentimentos
chutando o portão e tocando a campainha, por uma ou duas horas. É quase
como se representassem os leitores impacientes do romance. Mas a busca do
significado não leva todos os que estão na multidão à mesma atividade frenética.
Três ou quatro felizardos, tendo encontrado uma grade no portão da qual se
tinha uma vista desimpedida para o nada, ficam a olhar por ela com uma
perseverança incansável. Essa perseverança, creio eu, é uma crítica à
curiosidade: eles sabem que nada vai sair de uma vista para o nada. Os guardapós
de Grandes esperanças fornecem uma vista de alguma coisa, mas bem
poderia ser do nada, pois eles nada extraem do que veem. Também essa
perseverança incansável, a meu ver, constitui uma crítica da curiosidade, no
ponto em que o romance hesita por um momento antes de chegar à Casa Satis e
à busca implacável do significado que lá terá início.
* Leis que visavam a proteger os produtores de cereais no Reino Unido da
concorrência das importações mais baratas, de 1815 a 1846. (n. t.)
** Fundada em 1670 e ainda hoje em existência, controlava boa parte do
comércio de peles no Canadá. (n. t.)
*** Em termos métricos: 2793 cadáveres por hectare, emitindo 3,913 metros
cúbicos de gases por ano. (n. t.)
Nota sobre o texto
Dickens começou a escrever Grandes esperanças em setembro de 1860, e sua
ideia inicial era publicar a obra em vinte seções mensais. No início de outubro,
porém, preocupado com a queda da circulação de sua revista semanal, All the
Year Round, que estava veiculando um romance de Charles Lever, A days ride ,
resolveu lançar seu próprio livro nela. Essa decisão levou-o a redimensionar a
obra: apesar de lançar trechos semanalmente, Dickens continuou, enquanto
escrevia, a agrupar os capítulos do livro em seções mensais, nove ao todo: três
para cada volume da primeira edição. O primeiro trecho semanal saiu em All the
Year Round em 1o de dezembro de 1860, e o último em 3 de agosto de 1861. Em
forma de livro, o romance foi lançado em três volumes em julho de 1861, pela
Chapman and Hall. Em novembro de 1862 saiu uma edição em volume único,
que continha, entre outras mudanças menores, uma mudança importante na
última linha do texto, que foi perpetuada na maioria das edições subsequentes,
inclusive na edição Charles Dickens de 1868. Antigamente se julgava que essa
edição representasse a revisão cautelosa feita pelo autor, e por isso ela foi usada
como base para muitas edições posteriores; hoje, porém, não é mais considerada
a referência final.
A edição inglesa em que se baseia esta tradução foi preparada a partir de um
exemplar da primeira edição de 1861, da biblioteca de Londres. Foram
corrigidas algumas gralhas e inseridas algumas das emendas encontradas no
manuscrito, propostas por Margaret Cardwell em sua edição do romance
(Oxford: Clarendon Press, 1993). Agradeço aos curadores do Wisbech and
Fenland Museum a permissão para examinar os manuscritos e publicar uma
transcrição das anotações de trabalho de Dickens no Apêndice B desta edição.
Os interessados na história da escrita e publicação de Grandes esperanças
devem consultar a edição de Cardwell, que contém uma detalhada análise da
complexa série de discrepâncias entre o manuscrito, o texto editado como
folhetim na revista de Dickens, All the Year Round, entre 1o de dezembro de 1860
e 3 de agosto de 1861, as diversas provas das revistas existentes, as edições em
seções e em livro nos Estados Unidos de 1861, a primeira edição em três
volumes de julho de 1861 e as edições de 1862, 1863, 1864, 1865 e 1868.
No Apêndice A temos o final do romance tal como foi concebido por
Dickens originariamente. O Apêndice B reproduz algumas de suas anotações de
trabalho.
Grandes esperanças
Afetuosamente dedicado
a
Chauncy Hare Townshend1
volume i
1
Sendo o sobrenome de meu pai Pirrip, e meu nome de batismo Philip, quando
menino minhas tentativas de pronunciar os dois nomes não resultavam em nada
mais longo nem mais explícito do que Pip. Por isso passei a denominar-me Pip, e
assim vim a ser chamado.
Digo que Pirrip era o sobrenome de meu pai com base na sua lápide e na
minha irmã a sra. Joe Gargery, que se casou com o ferreiro. Como jamais vi
meu pai nem minha mãe, e nunca vi retrato deles (pois que viveram muito antes
do tempo das fotografias),1 minhas primeiras fantasias a respeito de sua
aparência se fundavam, de modo nada razoável, nas suas lápides. A forma das
letras na lápide de meu pai me inspirou a estranha ideia de que ele teria sido um
homem quadrado, robusto, moreno, com cabelos negros crespos. A partir do
aspecto e fraseado da inscrição, Também Georgiana Esposa do Acima , extraí a
conclusão infantil de que minha mãe era sardenta e doente. Cinco pequenos
losangos de pedra, cada um com cerca de meio metro de comprimento,
dispostos numa fileira ordenada ao lado da sepultura dos dois, e dedicados à
memória de cinco irmãozinhos meus que desistiram de tentar viver
excepcionalmente cedo nesse conflito universal me inspiraram a convicção, à
qual me apegava com fervor religioso, de que todos eles haviam nascido de
costas, com as mãos nos bolsos das calças, e de lá jamais as tiraram neste estado
da existência.
Nossa região era o charco junto ao rio,2 a uma distância, onde o rio fazia
curva, de trinta quilômetros do mar. Minhas primeiras impressões vívidas e
abrangentes da identidade das coisas, creio eu que as vivenciei numa memorável
tarde fria e úmida, já perto do anoitecer. Nessa ocasião descobri com certeza
que aquele lugar lúgubre, coberto de urtigas, era o campo-santo; e que Philip
Pirrip, paroquiano de lá, e também Georgiana, esposa do acima, estavam mortos
e enterrados; e que Alexandre, Bartholomew, Abraham, Tobias e Roger, filhos
pequenos dos dois, também estavam mortos e enterrados; e que o descampado
escuro e plano que se estendia além do campo-santo, pontuado por diques e
outeiros e porteiras, com algumas cabeças de gado esparsas a pastar, era o
charco; e que a linha plana e cor de chumbo mais além era o rio; e que aquele
pasto selvagem e longínquo de onde vinha o vento era o mar; e que o serzinho
estremecendo de medo de tudo isso, e começando a chorar, era Pip.
Para com esse barulho!, gritou uma voz terrível, e um homem veio vindo
por entre as sepulturas ao lado do alpendre da igreja. Fica quieto, seu diabrete,
senão eu te corto a garganta!
Um homem assustador, com uma roupa grosseira toda cinzenta, com um
grande ferro na perna.3 Um homem sem chapéu, e com sapatos rasgados, e
com um trapo velho amarrado em torno da cabeça. Um homem que havia
afundado na água, e chafurdado na lama, e torcido o pé nas pedras, e se cortado
nas pederneiras, e se espetado nas urtigas, e se rasgado nas urzes; que mancava,
e estremecia, e rosnava; e que me olhava com olhar feroz, estalejando os dentes
enquanto me agarrava pelo queixo.
Ah! Não me corte a garganta, senhor, implorei apavorado. Por favor,
não faça isso, senhor.
Diz o teu nome!, ordenou o homem. Depressa!
Pip, senhor.
De novo, disse o homem, olhando-me fixamente. Fala!
Pip. Pip, senhor!
Mostra onde tu moras, disse o homem. Aponta pro lugar!
Indiquei a direção de nossa aldeia, na margem plana do rio, em meio a
amieiros e árvores podadas, a quase dois quilômetros da igreja.
O homem, tendo me olhado por um momento, virou-me de cabeça para
baixo e esvaziou-me os bolsos. Neles não havia nada além de um pedaço de pão.
Quando a igreja se endireitou pois ele foi tão repentino e forte que a fez virar
de ponta-cabeça diante de mim, e vi o campanário debaixo de meus pés ,
quando a igreja se endireitou, como eu dizia, dei por mim sentado numa lápide
alta, tremendo, enquanto ele devorava o pão com avidez.
Filhote de cachorro, disse o homem, lambendo os beiços, tuas bochecha é
bem gorducha.
Creio que eram mesmo gordas, embora na época eu fosse um menino
pequeno para minha idade, e nada forte.
Ora se eu não comia elas, disse o homem, sacudindo a cabeça de modo
ameaçador, e posso muito bem comer, mesmo!
Manifestei enfaticamente a esperança de que ele não fizesse tal coisa, e
agarrei-me com mais força à lápide em que ele me colocara; em parte para não
cair dela, em parte para não chorar.
Escuta aqui!, disse o homem. Que é da tua mãe?
Ali, senhor!, apontei.
Ele assustou-se, correu um pouco, parou e olhou para trás.
Ali, senhor!, expliquei, tímido. Também Georgiana. É a minha mãe.
Ah!, ele exclamou, voltando. E aquele ali ao lado da tua mãe é o teu
pai?
Sim, senhor, respondi, paroquiano de cá.
Ah!, ele murmurou então, pensativo. Tu vives com quem se é que eu
vou ser bonzinho e te deixar viver, coisa que ainda não decidi?
Minha irmã, senhor a senhora Joe Gargery mulher de Joe Gargery, o
ferreiro, senhor.
Ferreiro, é?, disse ele. E olhou para a própria perna.
Depois de olhar feroz para a perna e para mim algumas vezes, aproximou-se
de minha lápide, segurou-me pelos dois braços e inclinou-me para trás até onde
pôde fazê-lo, de modo que pudesse me olhar nos olhos do modo mais penetrante,
enquanto os meus olhavam para os dele, impotentes.
Escuta aqui, disse ele, o negócio é saber se te deixo viver ou não. Tu
sabes o que é uma lima de ferro.
Sei, sim, senhor.
E sabes o que é comida.
Sei, sim, senhor.
Depois de cada pergunta, ele me inclinava um pouco mais, de modo a
acentuar minha sensação de impotência e perigo.
Me traz uma lima. Inclinou-me outra vez. E me traz comida. Inclinoume
outra vez. Me traz as duas coisa. Inclinou-me outra vez. Senão eu te ranco
o coração e o figo. Inclinou-me outra vez.
Eu estava terrivelmente assustado, e tão tonto que me agarrei a ele com as
duas mãos, dizendo: Se o senhor por favor parar de me entortar, pode ser que eu
não fique enjoado, e preste mais atenção no senhor.
Ele me virou ao contrário com toda a força, de modo que a igreja pulou por
cima de seu próprio cata-vento. Então me segurou pelos braços, de cabeça para
cima, sobre a lápide, e continuou, ameaçador:
Me traz amanhã, de manhã bem cedo, a lima e a comida. Leva tudo pra
mim, na velha bateria4 acolá. Faz isso e não ouses dizer uma palavra a ninguém,
nem dar a entender que encontraste uma pessoa como eu, nem pessoa nenhuma,
que aí eu te deixo viver. Se não fizeres o que mando, ou se desviares do que eu te
digo, por pouco que seja, teu coração e teu figo vai ser arrancado, assado e
comido. Olha, eu não estou sozinho não, ao contrário do que podes estar
pensando. Tem um rapaz escondido comigo, e em comparação com esse rapaz
eu sou um anjo. Esse rapaz está ouvindo tudo que eu digo. Esse rapaz tem um
jeito secreto que só ele sabe de pegar um garoto, e rancar o coração dele, e o
figo dele. Não adianta tentar se esconder desse rapaz. O garoto pode trancar a
porta, se enfiar na cama quentinha, se embrulhar todo nas coberta, puxar elas até
cobrir a cabeça, crente que está muito confortável e bem protegido, mas aí esse
rapaz entra sem fazer barulho, chega até ele e rasga ele ao meio. Eu estou no
momento impedindo esse rapaz de fazer mal a ti, com muita dificuldade. É muito
difícil impedir esse rapaz de te rasgar ao meio. E então, o que me dizes?
Eu disse que ia lhe trazer a lima, e os restos de comida que conseguisse
pegar, e viria a seu encontro na bateria de manhã cedinho.
Diz que Deus te mate mortinho se não fizeres isso!, disse o homem.
Obedeci, e ele me pôs no chão.
Pois então, insistiu, lembra do que foi combinado, e lembra daquele
rapaz, e vai pra casa!
Bo-boa noite, senhor, gaguejei.
Boa uma ova!, exclamou, correndo a vista pela planície fria e úmida. Eu
queria ser um sapo. Ou então uma enguia!
Enquanto abraçava o próprio corpo, que tremia, com os dois braços
apertando com força, como para não se desmanchar seguia mancando até a
mureta da igreja. Fiquei a vê-lo, contornando com cuidado as urtigas, por entre
as sarças que cingiam os montículos verdes, e a meus olhos de criança ele dava a
impressão de estar se esquivando das garras dos defuntos, que esticavam os
braços cautelosos de suas sepulturas, para lhe agarrar o tornozelo e puxá-lo para
dentro.
Chegando à mureta, passou por cima dela, como um homem cujas pernas
estão dormentes e duras, e depois se virou para me procurar. Quando vi que ele
se virava, voltei-me na direção de minha casa, e corri o mais depressa que pude
correr. Mas pouco depois olhei para trás e vi que ele voltava para os lados do rio,
ainda a abraçar-se com os dois braços, pondo com cuidado os pés feridos entre
as pedras grandes postas aqui e ali no charco, para servirem de passadeiras
quando chovia forte, ou quando subia a maré.
O charco era apenas uma longa linha horizontal negra quando parei para
tentar encontrá-lo; e o rio não passava de mais uma linha horizontal, bem menos
larga e menos negra; e o céu, só um feixe de linhas longas de um vermelho
colérico, entremeadas com faixas negras e densas. Na margem do rio eu
divisava, com dificuldade, os dois únicos vultos negros em toda a paisagem que
pareciam estar em posição vertical; um deles era o farol que orientava os
marinheiros parecia um barril sem aros no alto de um poste uma coisa feia
quando vista de perto; o outro, um patíbulo onde pendiam umas correntes, no qual
outrora fora enforcado um pirata. O homem seguia mancando em direção a esse
patíbulo, como se fosse o pirata redivivo, que dele tendo descido agora voltava,
para lá se pendurar outra vez. Esse pensamento fez-me muito mal; e, ao ver os
bois levantando as cabeças e olhando para o homem, perguntei a mim mesmo se
eles também teriam a mesma impressão. Corri a vista à minha volta, temendo
deparar com o rapaz terrível, e não vi nenhum sinal dele. Porém, como estava
com medo de novo, fui para casa correndo sem parar.
2
Minha irmã, a sra. Joe Gargery, era mais de vinte anos mais velha que eu, e
granjeara grande reputação junto a si própria e à vizinhança por ter me criado
com a mão.1 Sendo, na época, obrigado a descobrir por conta própria o
significado da expressão, e sabendo que sua mão era dura e pesada, e que ela
tinha o hábito de usá-la com frequência contra o marido e contra mim, concluí
que tanto eu quanto Joe Gargery tínhamos sido criados com a mão.
Não era uma mulher bonita, a minha irmã; e tinha eu a impressão geral de
que ela havia obrigado Joe Gargery a casar-se com ela com a mão. Joe era um
homem claro, com cachos de cabelo cor de palha dos dois lados do rosto liso, e
olhos de um azul tão indeciso que pareciam de algum modo misturar-se com os
brancos à sua volta. Era um homem tranquilo, bondoso, bem-humorado, de fácil
trato, simplório e amável uma espécie de Hércules2 em força, e também na
fraqueza.
Minha irmã, a sra. Joe, de cabelos e olhos negros, tinha uma pele tão
vermelha que por vezes eu ficava a imaginar se era possível que ela se lavasse
com um ralador de noz-moscada em vez de sabão. Era alta e ossuda, e quase
sempre usava um avental grosseiro, amarrado a sua pessoa com dois laços atrás,
e tendo um peitilho quadrado inexpugnável à frente, cheio de agulhas e alfinetes
cravados. Parecia-lhe um grande mérito seu, e uma grave acusação contra Joe,
o fato de que ela usava tanto esse avental. Se bem que não consigo entender por
que motivo ela o usava: ou por que, se o usava, não poderia tirá-lo, todos os dias
de sua vida.
A ferraria de Joe ficava ao lado de nossa casa, que era de madeira, como
eram muitas das casas de nossa região a maioria delas, na época. Quando
cheguei correndo do campo-santo, a ferraria estava fechada, e encontrei Joe a
sós na cozinha. Sendo eu e Joe companheiros de infortúnio, trocávamos
confidências, e ele me fez uma confidência tão logo levantei a tranca da porta e
pela fresta olhei para ele, sentado no canto da chaminé.
A senhora Joe já saiu umas doze vezes, à tua procura, Pip. E está lá fora
outra vez, completando uma dúzia de frade.3
É mesmo?
É, sim, Pip, disse Joe, e o pior é que ela levou o pau-de-cosca.
Diante dessa terrível informação, fiquei a torcer o único botão de meu
colete, olhando com muito desânimo para o fogo. O pau-de-cócega era um
pedaço de bengala com cera na ponta, já liso de tanto me fazer cócegas no
couro.
Ela sentou, disse Joe, e levantou, e garrou no pau-de-cosca, e saiu
espumando. Foi o que ela fez, disse Joe, lentamente abrindo espaço para o fogo
entre as barras inferiores com o atiçador, e olhando para ele: Saiu espumando,
Pip.
Ela já saiu há muito tempo, Joe? Eu sempre o tratava como uma espécie
maior de criança, e como um igual.
Bom, ele respondeu, olhando de relance para o relógio alemão,4 ela saiu
espumando, da última vez, há coisa de cinco minuto, Pip. Lá vem ela! Te
esconde atrás da porta, meu velho, e fica atrás da toalha rolante.
Segui seu conselho. Minha irmã, a sra. Joe, escancarando a porta, e
encontrando um obstáculo atrás dela, de imediato adivinhou a causa, e valeu-se
do pau-de-cócega para investigar. Terminou jogando-me eu amiúde lhe
servia de projétil conubial em cima de Joe, o qual, satisfeito por se apoderar
de mim, mesmo dessa maneira, me pôs dentro da chaminé e discretamente
protegeu-me com sua perna enorme.
Adonde que te enfiaste, macaquinho?, disse a sra. Joe, batendo com o pé
no chão. Me diz logo o que andaste fazendo pra me matar de preocupação e
aflição, senão eu te tiro desse canto, mesmo que fosses cinquenta Pips, e
houvesse quinhentos Gargery s na frente.
Fui só lá no campo-santo, respondi, de meu banquinho, chorando e me
esfregando.
Campo-santo!, repetiu minha irmã. Se não fosse eu, já tinhas ido parar no
campo-santo há muito tempo, e de lá não saías. Quem que te criou com a mão?
A senhora, respondi.
E por que foi que eu fiz isso, me diz, hein?, exclamou minha irmã.
Choraminguei: Não sei.
Eu é que não sei!, retrucou minha irmã. Nunca que eu fazia isso de novo!
Isso eu sei. Com toda certeza, nunca que tirei esse meu avental desde que
nasceste. Como se não bastasse ser mulher de ferreiro (e de um Gargery inda
por cima), inda fui ser tua mãe.
Meus pensamentos se desviaram dessa questão enquanto meus olhos
desconsolados contemplavam o fogo. Pois o fugitivo lá no charco, com o ferro na
perna, o rapaz misterioso, a lima, a comida e o horrível juramento que eu fizera,
comprometendo-me a cometer um furto contra o lar que me servia de abrigo,
surgiam diante de mim nas brasas vingativas.
Ah!, exclamou a sra. Joe, recolocando o pau-de-cócega em seu devido
lugar. Campo-santo, ora, essa é boa! Vocês dois falando de campo-santo. Um
de nós, aliás, não havia tocado no assunto. Vocês dois, um dia desses, ainda vão
me fazer parar no campo-santo, e quero só ver o que será dessa bela dupla sem
mim!
Enquanto ela cuidava dos apetrechos do chá, Joe olhou de esguelha para
mim por cima da perna, como se estivesse mentalmente nos somando os dois, eu
e ele, e calculando que dupla haveríamos de fazer, nas lamentáveis
circunstâncias antevistas. Em seguida, ficou a cofiar os cachos e as suíças cor de
palha do lado direito, e acompanhando a sra. Joe com os olhos azuis, como
sempre fazia em momentos de tempestade.
Minha irmã tinha um modo vigoroso de cortar pão com manteiga para nós,
que nunca variava. Primeiro, com a mão esquerda apertava o pão com força
contra o peitilho onde por vezes nele se cravava um alfinete, e por vezes uma
agulha, que depois terminava em nossas bocas. Depois pegava um pouco de
manteiga (não muita) com a faca e espalhava-a no pão, como um boticário
preparando um emplastro5 usando os dois lados da faca com uma destreza
abrupta, aparando e aplainando a manteiga em torno da côdea. Então dava um
último golpe preciso com a faca na beira do emplastro, e em seguida cortava um
pedaço bem grosso do pão: o qual, por fim, antes de separá-lo do resto do pão,
ela serrava ao meio, dando a Joe uma das metades e a mim a outra.
Na ocasião em questão, embora estivesse com fome, não ousei comer
minha fatia. Julgava eu que era necessário guardar alguma coisa para meu
terrível conhecido e seu aliado mais terrível ainda, o rapaz. Eu sabia que a sra.
Joe era muito minuciosa quanto aos gastos da família, e que se eu explorasse o
cofre talvez não encontrasse nada. Por isso resolvi enfiar minha fatia de pão com
manteiga na perna de minha calça.
O esforço de determinação necessário para atingir esse objetivo foi,
conforme verifiquei, terrível. Era como se eu tivesse de me obrigar a saltar do
telhado de uma casa alta, ou mergulhar em águas muito profundas. E tudo se
tornava mais difícil por não estar Joe a par do que acontecera. Na nossa
maçonaria de companheiros de infortúnio, já mencionada, e numa atitude de
camaradagem simpática, tínhamos o hábito de comparar, todas as noites, a
maneira como mordíamos nossas fatias, exibindo-as em silêncio para a
admiração mútua, de vez em quando, o que nos incentivava a empreender novos
esforços. Naquela noite, Joe várias vezes me convidou, exibindo sua fatia cada
vez menor, a participar de nossa costumeira competição amistosa; porém a cada
vez ele deparava com minha caneca amarela de chá num dos joelhos e minha
fatia intacta de pão com manteiga no outro. Por fim, concluí em desespero que
era preciso fazer o que havia de ser feito, e que devia fazê-lo da maneira menos
improvável compatível com as circunstâncias. Aproveitei-me de um momento
em que Joe tinha acabado de olhar para mim e enfiei o pão na perna da calça.
Joe, sem dúvida, estava preocupado com o que julgou ser minha perda de
apetite, e deu em sua fatia uma mordida que pareceu não lhe dar prazer. Revirou
o bocado na boca por muito mais tempo do que era seu costume, pensando
profundamente, e no fim engoliu-o como se fosse uma pílula. Ia dar mais uma
mordida, e já havia posicionado a cabeça em um dos lados do pão para
abocanhá-lo com jeito, quando olhou para mim e percebeu que minha fatia
havia desaparecido.
O espanto e a consternação com que Joe se deteve no instante antes de
morder e ficou a olhar para mim eram evidentes demais para que minha irmã
não os observasse.
O que foi, agora?, indagou ela, vigorosa, pondo a xícara na mesa.
Ora, o que é isso!, murmurou Joe, sacudindo a cabeça para mim numa
repreensão muito séria. Pip, meu velho! Isso vai te fazer mal. Há de ficar
entalado em algum lugar. Não é possível que tenhas mastigado, Pip.
O que foi, agora?, repetiu minha irmã, com mais vigor ainda que antes.
Se conseguires botar para fora, Pip, recomendo-te que o faças, disse Joe,
assustado. Boas maneiras é importante, mas saúde é saúde.
A essa altura, minha irmã estava desesperada, e assim avançou sobre Joe e,
pegando-o pelas duas suíças, bateu-lhe a cabeça por algum tempo contra a
parede atrás dele; enquanto isso, no meu canto, eu assistia à cena, cheio de culpa.
Agora, quem sabe, vais me dizer o que houve, falou minha irmã, ofegante,
estafermo de uma figa.
Joe olhou-a, impotente; depois deu uma mordida impotente, e voltou a olhar
para mim.
Sabes, Pip, disse Joe, muito sério, com a última bocada na bochecha, e
falando num tom confidencial, como se nós dois estivéssemos a sós, somos
sempre amigos, tu e eu, e eu seria a última pessoa a te delatar, em qualquer
ocasião. Mas
ele mudou de posição a cadeira e olhou para o trecho de
chão entre nós dois, e depois voltou a olhar para mim
engolir tudo assim
sem mastigar!
Então ele anda engolindo a comida sem mastigar, é?, exclamou minha
irmã.
Tu sabes, meu velho, disse Joe, olhando para mim, e não para a sra. Joe,
com o bocado ainda na bochecha, eu também fazia isso, quando tinha a tua
idade fazia muito e quando menino conheci muitos que fazia a mesma
coisa; mas nunca vi nada igual ao que fizeste, Pip, e não sei como não morreste
entalado.
Minha irmã saltou sobre mim e me fisgou pelos cabelos, dizendo apenas as
palavras terríveis: Vem tomar o remédio.
Algum médico sem alma havia restituído o prestígio medicinal da água
alcatroada,6 e a sra. Joe sempre tinha uma provisão da substância em seu
armário, pois acreditava que suas virtudes eram tão grandes quanto era horrendo
seu gosto. Na melhor das hipóteses, fazia-me ingerir uma quantidade tamanha
desse elixir, tido como tônico excelente, que depois eu percebia que estava
exalando um cheiro de cerca recém-erigida. Na noite em questão, a urgência de
meu caso exigia meio litro dessa mistura, que foi despejada em minha goela,
para meu maior conforto, enquanto a sra. Joe segurava minha cabeça debaixo do
braço, como quem prende uma bota numa descalçadeira. Joe se safou com
apenas um quarto de litro; porém foi obrigado a tomar a mistura (muito a
contragosto, lentamente a mastigar e meditar diante da lareira), porque ele
estava com um achaque. Do meu ponto de vista, eu diria que sem dúvida ele
teve um achaque depois, ainda que nada tivesse antes.
A consciência é uma coisa terrível quando ela acusa um homem ou um
menino; mas quando, no caso de um menino, esse ônus secreto coopera com
outro ônus secreto enfiado na perna de suas calças, o resultado (como posso
testemunhar) é um tremendo castigo. O pensamento culposo de que eu iria
roubar a sra. Joe jamais pensei que ia roubar Joe, pois nunca encarei os
objetos da casa como propriedade dele associado à necessidade de manter
sempre uma das mãos no pão com manteiga, estando eu sentado ou realizando
alguma tarefa na cozinha, quase me enlouqueceu. Então, quando os ventos que
vinham do charco atiçaram o fogo, imaginei que ouvia a voz lá fora, a voz do
homem com ferro na perna, que me obrigara a jurar manter segredo, afirmando
que ele não podia e não queria morrer de fome esperando até amanhã, porém
precisava da comida agora. Em outros momentos, eu pensava: e se o rapaz, que
com tanta dificuldade ele impedia de sujar as mãos com o meu sangue, cedesse
a sua impaciência constitucional, ou se enganasse a respeito do combinado e
julgasse ter direito a meu coração e meu fígado naquela noite, e não no dia
seguinte? Se alguma vez alguém ficou com o cabelo em pé de terror, certamente
terei sido eu. Mas talvez isso jamais tenha acontecido com ninguém.
Era noite de Natal, e eu tinha que ficar a mexer o pudim para o dia seguinte
no tacho de cobre, das sete às oito pelo relógio alemão. Tentei mexer com o
tacho em cima da perna (o que me fez pensar outra vez no homem com o ferro
na perna) e verifiquei que era impossível fazê-lo com o pão com manteiga
querendo a toda hora escapulir pela boca da calça. Felizmente, consegui sair de
fininho e guardar esse pedaço de minha consciência na água-furtada que me
servia de quarto.
Que foi isso?, exclamei, quando, tendo terminado de mexer o pudim,
estava a me aquecer no canto da chaminé antes de ser mandado para a cama.
Foi tiro de canhão, Joe?
Ah!, disse Joe. Mais um forçado que se escafedeu.
O que quer dizer isso, Joe?, perguntei.
A sra. Joe, que sempre assumia as explicações, disse, irritada: Fugiu.
Fugiu. Administrando a definição como se fosse água alcatroada.
Estando a sra. Joe debruçada sobre sua costura, formei as palavras com a
boca em silêncio olhando para Joe: O que é forçado?, Joe formou com a boca
as palavras de uma resposta tão complicada que a única coisa que entendi foi:
Pip.
Ontem um forçado escapou, disse ele em voz alta, depois do tiro do pôr
do sol. E deram outro tiro pra anunciar a fuga dele. E agora, parece que estão
anunciando mais outra.
Quem é que está atirando?, perguntei.
Diabo de menino, interveio minha irmã, fechando a cara para mim sem
interromper o trabalho, não para de fazer pergunta. Não faças perguntas que
não lhe dirão mentiras.
Ela não estava sendo muito delicada consigo própria, pensei, dando a
entender que mentiria para mim se eu lhe fizesse perguntas. Mas ela nunca era
delicada, a menos que estivesse em presença de visitas.
A essa altura, Joe em muito aumentou minha curiosidade dando-se o
trabalho de escancarar a boca ao máximo, e formar uma palavra que me
pareceu ser esgana. Naturalmente, apontei para a sra. Joe, e formei a palavra
ela?. Mas Joe sacudiu a cabeça com veemência, e mais uma vez escancarou a
boca, formando com ela uma palavra muito enfática. Mas não consegui entender
que palavra seria.
Senhora Joe, arrisquei, como último recurso, eu queria saber se a
senhora não se incomodar de onde vêm esses tiros?
Deus abençoe esse menino!, exclamou minha irmã, num tom que parecia
exprimir o sentimento contrário. Das presigangas.7
Ah!, disse eu, olhando para Joe. As presigangas!
Joe repreendeu-me com uma tosse cujo sentido era: Eu não te disse?
E, por favor, o que é presiganga?
Com esse menino é sempre assim!, exclamou minha irmã, apontando
para mim com a agulha e a linha, e sacudindo a cabeça. A gente responde uma
pergunta, e ele faz mais uma dúzia na mesma hora. As presigangas são naviosprisões,
do outro lado do chaco. Era esse o nome que sempre dávamos ao
charco, na nossa região.
Quem será que mandam pra esses navios-prisões, e por que será que fazem
isso?, perguntei eu, uma pergunta de caráter geral, com um desespero contido.
Foi demais para a sra. Joe, que imediatamente se levantou. Eu vou te dizer
uma coisa, rapazinho, disse ela, eu não te criei com a mão pra ficares a maçar
a vida dos outros. Desse jeito o que fiz não merece elogio, e sim censura.
Mandam pras presigangas quem mata, e quem rouba, e quem frauda, e quem
faz tudo que é errado; e quem faz essas coisas sempre começa fazendo pergunta.
Já pra cama!
Nunca me deixavam levar uma vela para ir até a cama, e, enquanto subia a
escada no escuro, com a cabeça latejando por efeito do dedal da sra. Joe, que
nela tocara pandeiro como acompanhamento de suas palavras finais tive a
impressão preocupante de que as presigangas eram muito práticas para gente
como eu. Sem dúvida, meu destino era lá. Eu começara fazendo perguntas, e
agora ia roubar a sra. Joe.
Desde aquele tempo, já muito distante agora, com frequência me ocorre o
pensamento de que poucas pessoas sabem quantos segredos guardam as crianças
sob o impacto do terror. Não importa que o terror seja ilógico, desde que terror
seja. Inspirava-me um terror mortal o rapaz que queria meu coração e meu
fígado; e também o meu interlocutor com ferro na perna; e também eu mesmo,
que fora obrigado a fazer uma promessa tremenda; não tinha eu esperança de
me salvar através de minha irmã todo-poderosa, que me repelia a cada passo;
tremo de pensar no que eu teria sido capaz de fazer, se me mandassem, sob o
impacto de meu terror secreto.
Se dormi aquela noite, foi para imaginar-me descendo o rio numa forte
maré de sizígia, até chegar às presigangas; um pirata espectral gritou para mim
através de um porta-voz, quando passei pelo patíbulo, que era melhor eu ir me
enforcar logo de uma vez, em vez de adiar o inevitável. Eu temia adormecer,
mesmo que tal fosse possível, pois sabia que assim que o dia começasse a raiar
seria obrigado a saquear a despensa. Não havia como fazê-lo à noite, pois era
impossível acender o fogo com um atrito suave8 na época; para tal seria
necessário usar pederneira e aço, o que faria tanto barulho quanto o pirata a
chocalhar suas correntes.
Tão logo o grande manto de veludo negro do lado de fora de minha pequena
janela começou a tingir-se de cinza, levantei-me e desci; cada tábua do caminho,
e cada rachadura em cada tábua, gritava atrás de mim: Pega ladrão! e
Acorde, senhora Joe!. Na despensa, que estava muito mais bem abastecida do
que de costume, por ser Natal, fiquei muito assustado com uma lebre
dependurada pelas patas, a qual me deu a nítida impressão, quando fui lhe dar as
costas, de ter piscado o olho. Não havia tempo para nenhuma verificação, para
escolhas, para coisa alguma, pois eu corria contra o relógio. Roubei um pouco de
pão, um pedaço de casca de queijo, cerca de meio pote de recheio de torta* (que
guardei numa trouxa feita com meu lenço, junto com minha fatia de pão da
véspera), um pouco de brande de uma garrafa de pedra (que eu verti dentro de
uma garrafa de vidro em que, secretamente, eu preparara uma bebida
inebriante, sumo de alcaçuz,9 no meu quarto: compensando o brande roubado
com água tirada de uma jarra no armário da cozinha), um osso com muito pouca
carne nele, e um belo pastelão de porco, redondo e compacto. Por um triz não saí
sem o pastelão, porém senti-me tentado a subir até uma prateleira, para ver o
que fora guardado com tanto cuidado num prato de cerâmica, coberto, num
canto, lá encontrei o pastelão e o peguei, na esperança de que a intenção fosse
consumi-lo mais tarde, e que, portanto, não se desse por sua falta por algum
tempo.
Havia na cozinha uma porta que dava direto para a ferraria; destranquei-a e
levantei a retranca, e peguei uma lima em meio às ferramentas de Joe. Depois
fechei tudo tal como estava antes, abri a porta pela qual eu entrara na véspera,
quando voltei correndo para casa, fechei-a e saí correndo em direção ao charco
nevoento.
* Recheio de torta: no original, mincemeat, mistura de frutas secas, passas, cravo,
canela, noz-moscada, brande (isto é, conhaque, às vezes substituído por rum) e
outros ingredientes, além de carne moída e banha bovina, para servir de recheio
de tortas servidas no Natal. (n. t.)
3
Era uma manhã de geada, muito úmida. Eu vira a umidade do lado de fora de
minha janelinha, como se um duende tivesse ficado ali a noite inteira a chorar,
usando a janela à guisa de lenço. Agora eu a via nas sebes desfolhadas e na
grama rala, formando como que teias de aranha de uma espécie mais grosseira,
pendendo de graveto a graveto e de folha a folha. Em cada grade e portão a
umidade formava uma camada grudenta; e a névoa do charco era tão espessa
que a placa de madeira do poste que indicava a direção da nossa aldeia uma
direção que ninguém tomava, pois ninguém jamais ia lá só se tornou visível
para mim quando fiquei bem embaixo dela. Então, quando levantei a vista para a
placa, que pingava, ela tomou forma na minha consciência oprimida como um
espectro que me sentenciava às presigangas.
A névoa ficou mais pesada ainda quando penetrei o charco, de modo que,
em vez de eu correr em direção às coisas, tudo parecia correr em minha
direção. Essa sensação era muito desagradável para um espírito cheio de culpa.
As porteiras e diques e barrancos surgiam-me de repente em meio à névoa,
como se gritassem de modo perfeitamente claro: Um menino com um pastelão
de porco que não é dele! Peguem esse menino!. Os bois também surgiam
diante de mim subitamente, olhando-me com seus olhos fixos, vapor saindo de
suas narinas: Ora essa, um ladrãozinho!. Um boi preto, com uma gravata
branca o qual parecia à minha consciência despertada ter um ar clerical
fixou-me os olhos de modo tão obstinado, e girava a cabeçorra de maneira tão
acusadora, que choraminguei para ele: Não foi por querer, senhor! Não foi para
mim que eu peguei!. Quando então o animal baixou a cabeça, exalou uma
nuvem de fumaça pelo nariz e desapareceu, com um coice e um floreio da
cauda.
Enquanto isso, eu me aproximava do rio; mas por mais depressa que
caminhasse, não conseguia aquecer os pés, aos quais o frio úmido parecia estar
pregado, tal como o ferro estava preso à perna do homem com quem eu ia me
encontrar. Eu conhecia bem o caminho da bateria, pois já estivera lá uma vez,
num domingo, com Joe, o qual, sentado num canhão velho, me dissera que
quando eu fosse seu aprendiz,1 com contrato e tudo, nós haveríamos de fazer
grandes patuscadas ali! Porém, na confusão da névoa, terminei me dando conta
de que me desviara demais para a direita, e por isso tive que tentar voltar
seguindo o rio, pela margem de pedras soltas acima da lama e estacas que
traçavam o limite da maré. Caminhando com toda a pressa, tinha eu acabado de
atravessar uma vala que sabia ser bem próxima à bateria, e subira o montículo
do outro lado dela, quando vi o homem sentado à minha frente. Estava de costas
para mim, de braços cruzados, a cabeça caída para a frente, pesada de sono.
Julguei que o homem ficaria mais satisfeito se eu me aproximasse dele, com
seu desjejum, de modo inesperado; assim fui chegando pé ante pé e toquei-o no
ombro. No mesmo instante ele levantou-se de um salto, e não era o mesmo
homem, e sim outro!
E, no entanto, ele estava com a mesma roupa de pano cinzento grosseiro, e
também tinha um ferro grande na perna, e estava manco, e rouco, e transido de
frio, e era sob todos os aspectos igual ao outro homem; só que não tinha o mesmo
rosto, e usava um chapéu de feltro chato, de aba larga e copa baixa. Tudo isso vi
num momento, pois tive apenas um momento para ver: ele xingou-me, tentou
golpear-me um golpe fraco e confuso que não me atingiu e teve o efeito de
fazê-lo tropeçar e quase cair e depois saiu correndo pela névoa adentro,
tropeçando duas vezes no caminho, até que o perdi de vista.
É o rapaz!, pensei, sentindo meu coração disparar ao identificá-lo. Creio
que teria sentido uma dor no fígado também, se soubesse onde ele ficava.
Logo cheguei à bateria, e lá estava o homem certo abraçando o próprio
corpo e mancando de um lado para o outro, como se tivesse passado a noite
inteira a abraçar-se e mancar sem interrupção à minha espera. Ele estava
mesmo com muito frio. Eu meio que esperava que a qualquer momento ele
caísse duro diante de meus olhos, morto de frio. Havia também tanta fome em
seu olhar que, quando lhe entreguei a lima e ele a depôs na grama, ocorreu-me
que teria tentado comê-la se não tivesse visto minha trouxa. Não me virou de
cabeça para baixo, dessa vez, para pegar o que eu tivesse, porém me deixou na
posição normal enquanto eu abria a trouxa e esvaziava os bolsos.
O que tem nessa garrafa, menino?, ele perguntou.
Brande, respondi.
Ele já estava enfiando o recheio de torta goela abaixo de um modo muito
curioso mais parecia um homem que estivesse guardando a comida em
algum lugar com muitíssima pressa do que alguém comendo porém
interrompeu o processo para tomar um gole de bebida. Enquanto isso, estremecia
de modo tão violento que era com dificuldade que conseguia manter o gargalo
entre os dentes sem trincá-lo.
Acho que o senhor está com sezão,2 disse eu.
Sou mais ou menos da tua opinião, menino, disse ele.
Aqui é muito ruim, prossegui. O senhor tem dormido no chaco, e isso
sempre dá sezão. E reumatismo também.
Vou fazer meu desjejum antes que eles me pegue pra me matar, disse
ele. Eu havia de comer mesmo que eles me fosse pendurar naquela forca
acolá, logo adespois. Duvido que a sezão me derrube, sou capaz de apostar.
Ele devorava recheio de torta, osso, pão, queijo e pastelão de porco, tudo ao
mesmo tempo: olhando desconfiado, enquanto comia, para a névoa que nos
cercava, e a toda hora parando parando até de mastigar para escutar.
Algum som ouvido ou imaginado, algum estalido no rio ou respiração de animal
no charco, assustou-o, e ele disse de repente:
Tu não és um diabrete traiçoeiro? Não trouxeste ninguém junto contigo?
Não, senhor! Ninguém!
Nem mandaste ninguém não vir atrás?
Não!
Bom, disse ele, acredito em ti. Só mesmo sendo um filhote de cão feroz
pra, pequeno como és, ajudar a caçar um rato desgraçado, já quase morto e
jogado no lixo, como esse pobre rato desgraçado de mim!
Alguma coisa estalou em sua garganta, como se ele tivesse dentro dele um
mecanismo como o de um relógio, que estivesse prestes a dar a hora. E ele
passou a manga rude e rasgada nos olhos.
Apiedando-me de seu desamparo, e vendo-o atacar aos poucos o pastelão,
criei coragem de dizer: Que bom que o senhor gostou.
Falaste?
Eu disse que bom que o senhor gostou.
Obrigado, meu menino. Gostei, sim.
Muitas vezes eu vira um cão grande que tínhamos devorando seu alimento; e
me dei conta então de que havia uma semelhança nítida entre a maneira de
comer do cachorro e a dele. O homem dava mordidas fortes, intensas, súbitas, tal
como o animal. Ele engolia, ou melhor, abocanhava, cada bocado, cedo demais
e rápido demais; e olhava para os lados, para lá e para cá, enquanto comia, como
se acreditasse haver o perigo, em todas as direções, de que alguém viesse lhe
tomar o pastelão. De tal modo o perturbava essa possibilidade que ele não
aproveitava direito a comida, pensei, nem suportaria ter algum comensal a seu
lado sem ficar trincando os dentes para ele. Sob todos esses aspectos ele muito se
assemelhava ao cão.
Acho que o senhor não vai deixar nada pra ele, comentei, tímido; após um
silêncio durante o qual hesitei, não sabendo se minha observação seria educada.
Lá de onde veio essa comida tem mais. Foi a certeza desse fato que me levou
a fazer a insinuação.
Deixar nada pra quem? Ele quem?, disse meu amigo, parando de mastigar
um pedaço de pastelão.
O rapaz. De quem o senhor falou. Que estava escondido com o senhor.
Ah, ah!, ele retrucou, com uma espécie de riso áspero. Ele? Sei, sei! Ele
não quer saber de comida.
Ele me deu a impressão de que queria, sim, disse eu.
O homem parou de comer, e me encarou com uma atenção intensa e uma
enorme surpresa.
Ele? Quando?
Logo agora.
Adonde?
Ali, respondi, apontando, onde ele estava cochilando, e pensei que fosse o
senhor.
O homem agarrou-me pelo colarinho e olhou-me de tal modo que comecei
a achar que ele voltara a pensar na ideia de cortar-me a garganta.
Vestido tal como o senhor, sabe, só que com chapéu, expliquei, trêmulo,
e
e
eu queria dizê-lo do modo mais delicado e com
a mesma
razão pra querer uma lima emprestada. O senhor não ouviu o canhão ontem à
noite?
Então deram tiro mesmo!, disse ele a si próprio.
Não entendo como o senhor pode ter dúvida, retruquei, pois nós ouvimos
lá em casa, que é mais longe, e ainda por cima estávamos com as janelas
fechadas.
Ora, vê lá, explicou ele, quem está sozinho nesse descampado, com a
cabeça tonta e a barriga vazia, morrendo de frio e fome, não faz outra coisa a
noite toda que não ouvir tiro de canhão e gente gritando. Ouvir? Ele vê os
sordado, de túnica vermelha iluminada pelos archote, vindo cercar o lugar onde
ele está. Ouve chamar o número dele, ouvi gente provocando, ouve o barulho dos
mosquete, ouve as ordem de Preparar! Apontar! Bala nele, sordado!, sente as
mão agarrando e não tem nada! Ora, essa noite mesmo eu vi um esquadrão
de busca vindo tudo em ordem, os desgraçado, marchando, marchando vi
bem uns cem. E os tiro! Ora, eu vi a bruma tremer com os tiro de canhão,
adespois que já tinha clareado. Mas esse homem ele falara até então
como se tivesse esquecido a minha presença reparaste alguma coisa nele?
O rosto dele estava muito machucado, disse eu, relembrando algo que eu
mal sabia que sabia.
Não aqui?, exclamou o homem, batendo na face esquerda de modo
impiedoso, com a mão aberta.
Isso, aí mesmo!
Que é dele? Enfiou o pouco de comida que restava no peito do casaco
cinzento. Mostra pra que lado que ele foi. Eu mato ele feito um cachorro. O
diabo leve esse ferro na minha perna machucada! Me dá a lima, menino.
Apontei a direção onde a névoa havia ocultado o outro homem, e ele
levantou a vista por um instante. Mas logo se escarrapachou na grama crescida e
úmida, atacando o ferro com a lima como um louco, sem ligar para mim nem
para sua própria perna, onde havia uma escoriação antiga e também sangue,
mas que ele manipulava com brutalidade, como se ela fosse tão insensível quanto
a lima. Ele voltara a me fazer muito medo, agora que estava possuído por aquela
pressa feroz, e além disso eu tinha muito medo de prolongar aquela minha saída
por mais tempo. Disse-lhe que tinha de ir embora, mas ele sequer percebeu, e
assim julguei que o melhor a fazer era escapulir. Quando vi o homem pela
última vez, ele estava debruçado sobre o joelho e limando com força o grilhão,
murmurando imprecações impacientes dirigidas ao ferro e à perna. Quando ouvi
o homem pela última vez, ao parar na névoa e aguçar os ouvidos, a lima
continuava em ação.
4
Eu realmente imaginava que encontraria um policial na cozinha, esperando para
levar-me preso. Porém, não apenas não havia policial algum, como também
ninguém ainda se dera conta do furto. A sra. Joe estava ocupadíssima com os
preparativos das festividades, e Joe fora instalado no degrau da porta da cozinha
para não ir parar na pá de lixo lugar onde seu destino sempre acabava por
levá-lo mais cedo ou mais tarde, quando minha irmã estava a ceifar
vigorosamente os soalhos de seu estabelecimento.
E onde foi que te enfiaste? foi a saudação natalina da sra. Joe, quando eu e
minha consciência nos fizemos presentes.
Eu disse que tinha ido ouvir os cânticos de Natal. Ah, bom! observou a sra.
Joe. Podia ter sido coisa pior. Quanto a isso, não havia dúvida, pensei.
Quem sabe, se eu não fosse mulher de ferreiro, e (o que é a mesma coisa)
uma escrava que nunca tira o avental, eu também tinha ido ouvir as cantigas,
disse a sra. Joe. Gosto bastante de cânticos de Natal, e é justamente por isso que
eu nunca ouço nenhum.
Joe, que se havia aventurado a adentrar a cozinha atrás de mim, já que a pá
de lixo tinha sido recolhida, passou as costas da mão no nariz com uma expressão
conciliatória quando a sra. Joe lhe dirigiu um olhar faiscante, e, quando ela
desviou a vista, em segredo cruzou os dois indicadores para mim, um gesto que
entre nós queria dizer que a sra. Joe estava mal-humorada. Essa condição era seu
estado natural, de modo que eu e Joe por vezes passávamos semanas a fio com
os dedos na mesma posição que as pernas dos cruzados nos monumentos.1
Teríamos um almoço magnífico, que consistiria em um pernil de porco no
vinagre com verduras e duas galinhas assadas recheadas. Uma bela torta tinha
sido preparada na manhã da véspera (motivo pelo qual não se deu pela falta do
recheio de torta que eu roubara), e o pudim já estava fervendo. Esses complexos
preparativos justificavam que nosso desjejum fosse suspenso sem a menor
cerimônia; porque eu, explicou a sra. Joe, não quero saber de ninguém
engolindo comida e se entupindo pra depois ter que lavar tudo, com tanta coisa
pra fazer pela frente, ora essa!
Assim, nossas fatias foram dispostas na mesa, como se fôssemos dois mil
soldados numa marcha forçada e não um homem e um menino em casa; e
bebemos goles de leite com água, com expressões compungidas, de uma jarra
posta no aparador. Nesse ínterim, a sra. Joe instalou cortinas brancas limpas, e
um falbalá novo com padrão de flores em frente à chaminé larga para substituir
o velho, e descobriu a saleta especial do outro lado do corredor, a qual jamais era
aberta em qualquer outra ocasião, porém passava o resto do ano numa névoa
fresca de folha de estanho, que se estendia até os quatro pequenos poodles
brancos de louça no console da lareira, cada um com um focinho preto e um
cesto de flores na boca, um igual ao outro. A sra. Joe era uma dona de casa
asseadíssima, porém dominava a sutil arte de tornar sua limpeza mais
desconfortável e insuportável do que a própria sujeira. Limpeza vem logo depois
da santidade, e há pessoas que agem do mesmo modo quanto à sua religião.
Minha irmã, de tão ocupada que estava, iria à igreja por procuração; ou seja,
eu e Joe é que iríamos em seu lugar. Com suas roupas de trabalho, Joe era o
típico ferreiro; endomingado, mais parecia um espantalho próspero do que
qualquer outra coisa. Nessas ocasiões, nada que usava lhe caía bem nem parecia
lhe pertencer; e tudo que usava o incomodava. Na ocasião festiva em questão, ao
emergir de seu quarto, quando soaram os sinos alegres, Joe era a própria
imagem da infelicidade, ostentando um traje completo de penitência dominical.
Quanto a mim, creio que minha irmã imaginava que eu era um jovem criminoso
que um parteiro da polícia havia detido (no dia de meu nascimento) e entregado
a ela, para que lidasse comigo nos termos da majestade lesada da lei. Sempre fui
tratado como se houvesse insistido em nascer, em oposição aos ditames da razão,
da fé e da moral, e ignorando os argumentos de meus melhores amigos. Mesmo
quando eu era levado para adquirir roupas novas, o alfaiate tinha ordens de fazêlas
como se fossem uma espécie de reformatório,2 e que não me deixassem de
modo algum ter a liberdade de usar meus membros.
Assim, eu e Joe indo para a igreja certamente havíamos de formar um
espetáculo comovente para espectadores compassivos. No entanto, o que eu
sofria por fora não era nada em comparação com o que se passava em meu
interior. Os terrores que me haviam dominado cada vez que a sra. Joe passava
perto da despensa, ou saía da cozinha, só eram comparáveis ao remorso com que
minha mente relembrava o que minhas mãos tinham feito. Sob o ônus de meu
segredo malévolo, eu me perguntava se a Igreja teria poderes suficientes para
me proteger da vingança do terrível rapaz, se eu o divulgasse àquela instituição.
Estava convicto de que, quando fossem lidos os proclamas e o sacerdote dissesse
que fale agora!, eu teria de me levantar e propor uma conversa reservada na
sacristia. Não estou de modo algum certo de que não teria sido capaz de
surpreender nossa pequena congregação com essa medida extrema, não fosse o
fato de que era Natal e não domingo.3
O sr. Wopsle, o sacristão, vinha almoçar conosco; e também o sr. Hubble, o
segeiro, com a sra. Hubble; e o tio Pumblechook (era tio de Joe, mas a sra. Joe se
apropriara dele), um próspero comerciante de cereais que morava na cidade
mais próxima, e que conduzia sua própria carruagem. O almoço estava marcado
para uma e meia. Quando eu e Joe chegamos em casa, encontramos a mesa
posta, e a sra. Joe vestida, e o almoço preparado, e a porta da frente destrancada
(vivia trancada, em qualquer outra ocasião) para que os convidados entrassem, e
tudo esplêndido. E, por enquanto, nada a respeito do roubo.
Deu uma e meia, sem trazer nenhum alívio para meus sentimentos, e os
convidados chegaram. O sr. Wopsle, portando um nariz romano e uma testa
larga, calva e reluzente, tinha uma voz grave que lhe inspirava um orgulho
descomunal; de fato, dava a entender que, se permitissem que ele lesse em voz
alta, o pároco entraria em pânico; ele próprio confessava que, se a Igreja fosse
escancarada, isto é, aberta para a concorrência, ele não estava certo de que
não deixaria sua marca nela. Não estando escancarada a Igreja, ele era, como
já disse, nosso sacristão. Porém seus améns eram tremendos; e quando lia o
salmo sempre dando o versículo completo antes corria os olhos por toda a
congregação, como se dissesse: Vocês ouviram meu amigo lá de cima;4 por
favor, digam-me o que acham do meu estilo!.
Fui abrir a porta para os convidados fazendo de conta que para nós era
habitual abrir aquela porta primeiro para o sr. Wopsle, depois para o sr. e a
sra. Hubble, e por fim para o tio Pumblechook. N. B. Eu não tinha permissão para
chamá-lo tio, estando sujeito a castigos severíssimos.
Senhora Joe, disse o tio Pumblechook: um homem grandalhão e lerdo, de
meia-idade, de respiração pesada, com boca de peixe, olhos mortiços e parados
e cabelos ruivos que ficavam espetados em sua cabeça, dando a impressão de
que fora estrangulado quase até a morte e tinha acabado de recobrar os sentidos;
eu lhe trouxe, como presente de Natal eu lhe trouxe, senhora, uma garrafa
de xerez e lhe trouxe, senhora, uma garrafa de vinho do Porto.
Todo Natal ele se apresentava, como se fosse uma novidade profunda, com
exatamente as mesmas palavras, e carregando as duas garrafas como se fossem
halteres. Todo Natal a sra. Joe respondia, tal como o fazia agora: Ah ti-o Pumble-
chook! Muita bondade sua!. Todo Natal ele respondia, tal como o fazia
agora: A senhora merece. E então, estão todos patuscos, e como vai o nosso
Meio-Tostão?. A referência era a mim.
Nessas ocasiões, almoçávamos na cozinha, e depois, na hora das frutas
secas, laranjas e maçãs, nos transferíamos para a sala de visitas; mudança essa
que muito se assemelhava à mudança de traje de Joe, das roupas de trabalho
para as de domingo. Minha irmã estava excepcionalmente animada na ocasião
em questão, e de modo geral derramava-se em gentilezas com a sra. Hubble
mais do que com qualquer outro convidado. Lembro-me da sra. Hubble como
uma mulherzinha de cabelos crespos e feições bem definidas, com um traje
azul-celeste, que ocupava uma posição convencionalmente juvenil por ter
desposado o sr. Hubble não sei em que período remoto quando era muito
mais jovem que ele. Lembro-me do sr. Hubble como um velho durão, de
ombros altos e costas recurvas, com uma fragrância de serragem, que andava
com as pernas extraordinariamente afastadas uma da outra: tanto assim que,
quando pequeno, eu sempre via uma grande extensão de campo aberto entre elas
quando me deparava com ele subindo a rua.
Em meio a tão boa companhia eu deveria sentir-me, mesmo que não tivesse
tomado de assalto a despensa, como um impostor. Não por ter sido instalado num
ângulo agudo da toalha da mesa, com a mesa no meu peito e o cotovelo
pumblechookiano no meu olho, nem por não ter permissão para falar (eu não
queria falar), nem por me regalarem com as pontas escamosas das coxas dos
frangos e com aqueles recantos obscuros do porco de que o animal, quando vivo,
tinha menos motivos para se orgulhar. Não; nada disso me importaria, se eles me
deixassem em paz. Porém eles não me deixavam em paz. Parecia-lhes que
estariam perdendo uma oportunidade se não conseguissem me tornar assunto da
conversa, de vez em quando, e me alfinetar. Era como se eu fosse um pequeno
touro infeliz numa arena espanhola, de tanto que me feriam essas aguilhoadas
morais.
Começou no momento em que nos sentamos para comer. O sr. Wopsle deu
as graças com uma declamação teatral em retrospecto, parecia um
cruzamento religioso do fantasma do pai de Hamlet com Ricardo iii e
terminou com a aspiração muito apropriada de que fôssemos sinceramente
gratos. Ao ouvir isso, minha irmã fixou o olhar em mim e disse, em voz baixa e
em tom de reprovação: Ouviste? Sê grato.
Especialmente, disse o sr. Pumblechook, sê grato, menino, a quem te
criou com a mão.
A sra. Hubble sacudiu a cabeça e, contemplando-me com o melancólico
pressentimento de que eu haveria de terminar mal, perguntou: Por que será que
os jovens nunca são gratos?. Esse mistério moral parecia estar além da
compreensão dos comensais, até que o sr. Hubble o resolveu de modo sumário,
dizendo: Ruindade natural. Todos então murmuraram: É verdade!, e
olharam para mim de um modo particularmente desagradável e pessoal.
A posição e a influência de Joe eram um pouco mais fracas (se tal era
possível) na presença de visitas do que na ausência delas. Porém ele sempre me
ajudava e confortava quando podia, lá a sua maneira, e durante as refeições sua
maneira de fazê-lo era me dar molho, quando molho havia. Como naquele dia o
molho era farto, Joe pôs no meu prato, a essa altura, cerca de um quarto de litro.
Um pouco mais tarde, ainda durante o almoço, o sr. Wopsle criticou o
sermão com certa severidade, e nos deu uma ideia sob a hipótese habitual de
ser a Igreja escancarada que espécie de sermão ele teria feito. Após
brindar os convivas com alguns dos tópicos desse discurso, comentou que a seu
ver o tema da homilia que tinham ouvido fora mal escolhido; o que era tão
menos desculpável, acrescentou, por haver tantos temas por aí.
É verdade, mais uma vez, disse o tio Pumblechook. O senhor acertou em
cheio! Há muitos temas por aí, é só saber pegá-los no ar. É só isso que falta. Não
é preciso ir longe para achar um tema, desde que se esteja atento. O sr.
Pumblechook acrescentou, após um curto intervalo para reflexão: Por exemplo,
o porco. Eis um tema! Quer um tema, tome o porco!.
É verdade, meu senhor. Muitas morais para os jovens, retorquiu o sr.
Wopsle; e eu já sabia que seria o alvo da estocada antes mesmo que ele
prosseguisse, podem ser deduzidas desse texto.
(Escuta bem, disse-me minha irmã, num parêntese severo.)
Joe me deu mais um pouco de molho.
Os porcos, prosseguiu o sr. Wopsle, com sua voz mais grave, apontando
com seu garfo para minhas faces enrubescidas, como se estivesse me chamando
pelo nome de batismo, os porcos eram os companheiros do filho pródigo.5 A
gula do porco nos é apresentada como um exemplo para os jovens. (Achei
muito boa essa, vindo de quem pouco antes tinha elogiado o porco por ser tão
gorducho e suculento.) O que é detestável num porco, é mais detestável ainda
num menino.
Ou numa menina, sugeriu o sr. Hubble.
Sim, claro, ou numa menina, senhor Hubble, concordou o sr. Wopsle, um
tanto irritado, mas não há nenhuma menina aqui.
Além disso, disse o sr. Pumblechook, virando-se diretamente para mim,
pensa nos motivos que tens para agradecer. Se tivesses nascido um
porquinho
E ele era mesmo um porquinho, quando pequeno, disse minha irmã, com
muita ênfase.
Joe me deu mais molho.
Sim, mas quero dizer um porquinho mesmo, quadrúpede, disse o sr.
Pumblechook. Se tivesses nascido assim, estarias aqui agora? Não
A menos que fosse nessa forma, disse o sr. Wopsle, indicando a travessa.
Mas não me refiro a essa forma, meu senhor, devolveu o sr.
Pumblechook, que não gostava de ser interrompido; e sim a desfrutar da
companhia dos mais velhos e mais sábios, e aprender com a conversa deles, e
desfrutar tantos luxos. Ele estaria fazendo isso? Não. E qual seria o teu destino?,
virando-se para mim outra vez. Serias vendido por tantos xelins de acordo com
o preço de mercado do artigo, e o Dunstable, o açougueiro, vinha buscar-te na
palha onde estavas deitado, e te enfiava debaixo do braço esquerdo, e com a mão
direita levantava o avental para pegar um canivete no bolso do colete, e então te
tirava o sangue e a vida. Ninguém havia de te criar com a mão. Nem pensar!
Joe ofereceu-me mais molho, que tive medo de aceitar.
Ele deu muitíssimo trabalho à senhora, disse a sra. Hubble, apiedando-se
de minha irmã.
Trabalho?, ecoou minha irmã, trabalho? E então deu início a um
tremendo catálogo de todas as doenças de que eu fora culpado, e todos os atos de
insônia que eu cometera, e todos os lugares altos de que eu havia caído, e todos os
lugares baixos em que eu havia caído, e todos os machucados que eu infligira a
mim mesmo, e todas as vezes que ela desejara me ver no túmulo e eu,
teimosamente, me recusara a ir para lá.
Imagino que os romanos deviam irritar-se mutuamente sobremaneira, com
aqueles narizes. Talvez fosse por isso que se tornaram um povo tão inquieto.
Fosse como fosse, o nariz romano do sr. Wopsle de tal modo me irritou, durante o
recital de minhas infrações, que tive vontade de puxá-lo até que ele urrasse. Mas
tudo que eu havia suportado até aquele momento não foi nada em comparação
com os sentimentos terríveis que me dominaram quando foi interrompida a
pausa que se seguiu ao recital de minha irmã, durante a qual todos ficaram a me
olhar (como percebi dolorosamente) com indignação e repugnância.
E, no entanto, disse o sr. Pumblechook, levando os comensais
delicadamente de volta para o tema de que se haviam afastado, o porco,
considerado no estado cozido, também tem seu lado bom; é ou não é?
O senhor aceita um brande, tio?, disse minha irmã.
Meu Deus, era agora! Ele acharia a bebida fraca, diria que estava fraca, e
eu estaria perdido! Agarrei com força a perna da mesa por baixo da toalha, com
as duas mãos, e fiquei aguardando meu destino.
Minha irmã foi pegar a garrafa de pedra, voltou com a garrafa de pedra e
serviu uma dose: ninguém mais ia beber brande. O desgraçado brincou com a
taça levantou-a, olhou para a luz através dela, pousou-a na mesa
prolongando meu sofrimento. Enquanto isso, a sra. Joe e Joe, eficientes, tiravam
a mesa para servir a torta e o pudim.
Eu não conseguia tirar os olhos dele. Sempre agarrando com força a perna
da mesa, com as mãos e os pés, vi a desgraçada criatura dedilhar sua taça,
brincalhão, levantá-la, sorrir, jogar a cabeça para trás e beber o brande de um só
gole. No instante seguinte, todos os comensais foram tomados por uma
consternação indizível, porque ele se levantou de um salto, correu de um lado
para o outro várias vezes numa horrenda dança espasmódica de coqueluche e
saiu correndo pela porta afora; em seguida, vimo-lo pela janela, abaixando-se e
expectorando violentamente, fazendo as caretas mais horrendas, aparentemente
enlouquecido.
Continuei agarrado ao pé da mesa, enquanto a sra. Joe e Joe corriam para
acudi-lo. Eu não sabia como o fizera, mas sem dúvida tinha dado um jeito de
assassiná-lo. Na minha terrível situação, foi um alívio quando o trouxeram de
volta, e ele, correndo a vista por todos como se eles tivessem discordado dele,
jogou-se em sua cadeira exclamando apenas: Alcatrão!.
Eu havia enchido a garrafa com água alcatroada. Eu sabia que ele ia acabar
se sentindo pior ainda. Fiz a mesa deslocar-se, como um médium de nossos
tempos,6 pelo vigor com que minha mão invisível a apertava.
Alcatrão!, exclamou minha irmã, perplexa. Ora, como foi que isso foi
parar lá?
Mas o tio Pumblechook, que era onipotente naquela cozinha, não queria ouvir
a palavra, nem queria que se tocasse no assunto, com um gesto imperioso pôs de
lado todo o incidente e pediu um gim com água quente. Minha irmã, que estava
ficando perigosamente pensativa, teve que providenciar o gim, a água quente, o
açúcar e a casca de limão, e misturá-los. Por ora, ao menos, eu estava salvo.
Continuei agarrado à perna da mesa, mas agora eu a agarrava com o fervor da
gratidão.
Pouco a pouco, fui me acalmando, até que pude largar a perna da mesa e
provar o pudim. O sr. Pumblechook provou o pudim. Todos provaram o pudim.
Terminado o pudim, o sr. Pumblechook já sorria sob o efeito benévolo do gim
com água. Comecei a pensar que escaparia incólume naquele dia, quando minha
irmã disse a Joe: Pratos limpos frios.
Imediatamente voltei a agarrar a perna da mesa, apertando-a contra o peito
como se fosse a companheira de minha juventude e amiga de minha alma. Eu
previa o que estava por vir, e sentia que dessa vez eu estava mesmo perdido.
Vocês precisam provar, disse minha irmã, dirigindo-se aos convivas do
modo mais afável, vocês precisam provar, pra terminar, o presente delicioso do
tio Pumblechook!
Precisavam mesmo? Ah, que eles não quisessem provar!
Vou lhes dizer, insistiu minha irmã, levantando-se, é uma torta; uma
deliciosa torta de porco.
Os comensais murmuraram elogios. O tio Pumblechook, cônscio de ser
merecedor dos bons sentimentos de seus semelhantes, disse de modo bem
vivaz, dadas as circunstâncias: Bem, senhora Joe, vamos fazer o possível;
provemos essa famosa torta.
Minha irmã foi pegá-la. Ouvi seus passos indo em direção à despensa. Vi o
senhor Pumblechook brincar com a faca. Vi o apetite do sr. Wopsle redespertar
em suas narinas romanas. Ouvi o sr. Hubble dizer que um pouco de torta de
porco, por cima de qualquer outra coisa, mal não faz, e ouvi Joe dizer: Hás de
comer um pouco também, Pip. Nunca consegui determinar com certeza se
soltei um grito lancinante de terror apenas em espírito ou se concretamente, nos
ouvidos dos convivas. Senti que não aguentava mais, e que tinha de fugir dali.
Soltei a perna da mesa, e saí correndo a toda velocidade.
Porém, não passei da porta da frente, pois lá esbarrei num grupo de soldados
armados de mosquetes, um dos quais me mostrou um par de algemas, dizendo:
Até que enfim, depressa, vamos!.
5
A aparição de uma coluna de soldados batendo com as coronhas dos mosquetes
carregados na soleira de nossa casa fez os comensais se levantarem da mesa
atabalhoadamente, e a sra. Joe, ao voltar para a cozinha de mãos abanando,
parar de súbito de olhos arregalados, com o lamento atrapalhado: Meu Deus,
Deus do céu, como foi, o que foi o que é da torta!.
Eu e o sargento estávamos na cozinha quando a sra. Joe lá ficou parada com
o olhar fixo; e nessa crise recobrei em parte o juízo. Quem se dirigira a mim fora
o sargento, e ele agora corria o olhar pelos convivas, estendendo-lhes as algemas,
num gesto convidativo, com a mão direita, estando a esquerda pousada em meu
ombro.
Perdão, senhoras e senhores, disse o sargento, mas como já disse ao
entrar pra esse rapazinho esperto (coisa que ele não havia feito), estou fazendo
uma busca em nome do rei, e quero falar com o ferreiro.
E, diga lá, o que é que o senhor quer com ele?, retrucou minha irmã,
irritada só de saber que alguém queria alguma coisa com Joe.
Minha senhora, respondeu o galante sargento, falando por mim, eu diria
que é pra ter a honra e o prazer de travar conhecimento com a senhora esposa
dele; falando em nome do rei, digo que é por conta de um pequeno serviço.
Essa resposta do sargento foi julgada muito boa; tanto assim que o sr.
Pumblechook exclamou, para todos ouvirem: Muito bem dito!.
Ferreiro, disse o sargento, que a essa altura já havia identificado Joe e para
ele olhava, temos um problema com estas algemas, a tranca de uma delas não
funciona, não engata direito. Como temos precisão delas pra uso imediato, você
poderia lhes dar uma olhadela?
Joe olhou-as rapidamente, e diagnosticou que o serviço exigiria que fosse
acesa a fornalha da forja, e levaria mais para duas horas do que para uma. É
mesmo? Então trate de começar agora mesmo, ferreiro, disse o sargento, sem
maiores cerimônias, pois é a serviço do rei. E se meus homens puderem lhe dar
uma mãozinha, pode contar com eles. Em seguida, convocou os soldados, que
entraram na cozinha um por um, e empilharam suas armas num canto. Depois
ficaram parados, como fazem os soldados; ora com as mãos entrelaçadas
frouxamente caídas a sua frente; ora descansando um joelho ou um ombro; ora
afrouxando um cinto ou um bornal; ora abrindo a porta para lançar uma
cusparada, por cima dos colarinhos altos e duros, no quintal.
Todas essas coisas eu via sem saber que as via, tamanha a angústia de minha
apreensão. Porém, começando a entender que as algemas não eram destinadas a
mim, e que os militares haviam conseguido relegar a torta ao segundo plano,
consegui juntar mais um pouco os cacos de meu juízo.
O senhor me diria as horas?, indagou o sargento, dirigindo-se ao sr.
Pumblechook, como se reconhecendo nele um homem cuja capacidade de
apreciação justificava a inferência de que ele seria capaz de saber as horas.
Passa um pouco das duas e meia.
Nada mau, refletiu o sargento; mesmo se eu tivesse que ficar aqui quase
duas horas, está bom. A que distância fica o charco, mais ou menos? Menos de
dois quilômetros, imagino?
Um e meio, respondeu a sra. Joe.
Está bom. Vamos começar a cercá-los por volta do entardecer. Um pouco
antes do entardecer, foram as ordens que recebi. Está bom.
Forçados, sargento?, perguntou o sr. Wopsle, num tom bem natural.
Exato!, retrucou o sargento. Dois. Não há dúvida que estão ainda soltos no
charco, e não vão tentar sair de lá antes do anoitecer. Alguém aqui viu alguma
coisa suspeita?
Todos, menos eu, responderam que não, confiantes. Ninguém pensou em
mim.
Bom!, exclamou o sargento. Eles vão ficar cercados, calculo, mais cedo
do que imaginam. Vamos, ferreiro! Se você estiver pronto, sua majestade o rei
também está.
Joe já havia tirado o paletó e o colete e a gravata, e vestido o avental de
couro, e entrado na ferraria. Um dos soldados abriu as janelas de madeira, outro
acendeu o fogo, outro se ocupou com o fole e os demais ficaram parados em
torno das chamas, que logo começaram a rugir. Então Joe pôs-se a martelar e
tinir, martelar e tinir, e todos nós ficamos olhando.
O interesse pela iminente caçada não apenas absorveu a atenção de todos
como também tornou até mesmo minha irmã generosa. Ela encheu uma jarra
com cerveja do barril, para os soldados, e ofereceu ao sargento uma taça de
brande. Mas o sr. Pumblechook interveio, severo: Dê-lhe vinho, senhora. Esse
eu garanto que não tem alcatrão. E assim o sargento agradeceu-lhe, dizendo
que, como preferia bebida sem alcatrão, ia ficar com o vinho, se não fosse
nenhum incômodo. Quando o vinho lhe foi servido, bebeu à saúde de sua
majestade e desejou a todos um feliz Natal, e bebeu tudo de um gole só e estalou
os lábios.
Bom, hein, sargento?, exclamou o sr. Pumblechook.
Vou lhe dizer uma coisa, retrucou o sargento; desconfio que quem trouxe
foi o senhor.
O sr. Pumblechook, com uma espécie de gargalhada gorda, perguntou: É
mesmo? Por quê?
Porque, explicou o sargento, apertando-lhe o ombro, o senhor é um
homem que sabe das coisas.
O senhor acha isso mesmo?, disse o sr. Pumblechook, com o mesmo riso
de antes. Aceite mais um copo!
Com o senhor. À sua, à minha, retrucou o sargento. Meu pé sobre o seu
seu pé sobre o meu bate copo até estalar melhor música não há!1 Sua
saúde. Que o senhor viva mil anos, e seja sempre tão bom juiz dos homens como
é no atual momento da sua vida!
O sargento virou seu copo mais uma vez e parecia pronto para mais um.
Percebi que o sr. Pumblechook, com sua hospitalidade, parecia ter esquecido que
dera o vinho de presente e o tomara de volta da sra. Joe, chamando para si a
generosidade do gesto de oferecê-lo numa explosão de jovialidade. Até eu
ganhei um pouco. E tão prodigamente o distribuiu que chegou a pedir a outra
garrafa e serviu-a com a mesma liberalidade, quando a primeira terminou.
Observando-os agrupados ao redor da forja, a divertirem-se tanto, ocorreume
que meu amigo fugitivo no charco era um molho terrivelmente bom para um
jantar. Todos estavam aproveitando muito menos a ocasião antes da animação
fornecida por ele. E agora, quando todos antecipavam alegremente a apreensão
dos dois malfeitores, e quando o fole parecia rugir para os fugitivos, o fogo
arder para eles, a fumaça ir correndo a persegui-los, Joe martelar e tinir para
eles, e todas as sombras turvas na parede estremecer para ameaçá-los, enquanto
as chamas subiam e desciam e as fagulhas rubras caíam e morriam, a tarde
pálida lá fora quase parecia, à minha fantasia compassiva, ter empalidecido por
pena daqueles pobres-diabos.
Por fim, Joe concluiu seu serviço, e as marteladas e o rugido cessaram.
Enquanto vestia o paletó, ele criou coragem e propôs que alguns de nós fôssemos
com os soldados para ver no que dava a caçada. O sr. Pumblechook e o sr.
Hubble não aceitaram o convite, argumentando que preferiam fumar seus
cachimbos e privar da companhia das senhoras; mas o sr. Wopsle disse que iria,
se Joe fosse. Joe retrucou que estava inclinado a ir, e que me levaria, se a sra. Joe
permitisse. Jamais teríamos tido autorização para ir, disso estou certo, se a sra.
Joe não estivesse curiosa para saber tudo sobre a caçada, e como haveria de
acabar. Assim, ela limitou-se a estipular: Se trouxeres o menino com a cabeça
esmigalhada por um tiro de mosquete, depois não me vás pedir que eu junte os
cacos.
O sargento despediu-se educadamente das senhoras, e disse adeus ao sr.
Pumblechook como se ele fosse um camarada de armas; porém duvido que
reconhecesse tantos méritos naquele cavalheiro em condições mais secas, quanto
em situações mais úmidas. Os soldados retomaram suas armas e entraram em
forma. O sr. Wopsle, Joe e eu fomos seriamente advertidos a ficar sempre na
retaguarda e não dizer palavra tão logo chegássemos ao charco. Quando já
estávamos todos no frio lá fora, avançando em direção a nosso objetivo,
cochichei para Joe, como um traidor: Espero, Joe, que não encontremos
ninguém. E Joe cochichou para mim: Eu daria um xelim para que eles
cortassem as correntes e fugissem, Pip.
Ninguém da aldeia nos acompanhou, pois o tempo estava gelado e
ameaçador, o caminho era lúgubre, a pista era ruim, estava escurecendo e as
pessoas tinham boas lareiras acesas em casa e celebravam o Natal. Uns poucos
rostos apareceram afobados nas janelas iluminadas e ficaram a olhar para nós,
mas ninguém saiu. Passamos pelo poste indicador, e seguimos direto para o
campo-santo. Lá, paramos por alguns minutos, a um sinal de mão do sargento,
enquanto dois ou três de seus homens se espalhavam por entre as sepulturas e
examinavam o pórtico. Voltaram sem ter encontrado nada, e então seguimos
para o charco vazio, pelo portão lateral do campo-santo. Castigava-nos uma
chuva cortante misturada com gelo, trazida pelo vento leste, e Joe me colocou
nas suas costas.
Agora que estávamos no descampado lúgubre onde ninguém imaginava que
eu estivera oito ou nove horas antes e vira os dois homens a esconder-se,
ocorreu-me pela primeira vez uma ideia, acompanhada por intenso terror: se os
encontrássemos, será que o meu fugitivo, em particular, pensaria que fora eu
quem tinha levado os soldados até aquele lugar? Ele me perguntara se eu não
seria um diabrete traiçoeiro, e dissera que eu havia de ser um filhote de cão feroz
se me juntasse a seus perseguidores. Não me veria como um diabrete e um cão
traiçoeiro, que o havia entregado?
Era inútil fazer a mim mesmo essa pergunta agora. Lá estava eu, nas costas
de Joe, e lá estava Joe embaixo de mim, avançando sobre as valas como um
caçador, e animando o sr. Wopsle para que ele não caísse de ponta em seu nariz
romano, e não ficasse para trás. Os soldados seguiam à nossa frente, formando
uma fileira bem larga, com um bom intervalo cada homem e seu vizinho. Íamos
pelo caminho que eu tomara de início, e do qual acabara por me afastar no meio
da névoa. Ou bem a névoa ainda não havia descido, ou bem o vento a dissipara.
Sob o brilho avermelhado do poente, o farol, o patíbulo, o montículo da bateria e
a margem oposta do rio eram todos claramente visíveis, ainda que todos
assumissem um tom aguado de chumbo.
Com o coração a martelar feito um ferreiro sobre os ombros largos de Joe,
eu olhava para todos os lados, procurando algum sinal dos forçados. Não via
ninguém, não ouvia ninguém. O sr. Wopsle já havia me assustado mais de uma
vez, ao bufar e respirar de modo ruidoso; mas a essa altura eu aprendera a
reconhecer esses sons e distingui-los do alvo da caçada. Levei um susto terrível
quando julguei ouvir o ruído da lima ainda sendo esfregada; mas era só a sineta
de um carneiro. Os carneiros paravam de pastar e ficavam a nos olhar, tímidos;
e os bois, virando as cabeças para o lado contrário ao do vento e do gelo,
encaravam-nos zangados, como se nos julgassem responsáveis pelos dois
incômodos; fora essas coisas, porém, e o estremecimento do dia moribundo em
cada folha de relva, nada perturbava a imobilidade desoladora do charco.
Os soldados caminhavam em direção à velha bateria, e nós os seguíamos a
curta distância, quando, de súbito, todos paramos. Pois chegara até nós, nas asas
do vento e da chuva, um grito prolongado. Ele se repetiu. Vinha de certa distância
ao leste, mas era alto e demorado. Não, eram dois ou mais gritos simultâneos
até onde era possível julgar naquela confusão dos sons.
Era o que diziam o sargento e os homens que estavam mais próximos dele,
aos sussurros, quando eu e Joe nos aproximamos. Depois de ficar à escuta mais
um momento, Joe (que era bom em tais questões) concordou, e o sr. Wopsle
(que não era bom em tais questões) concordou. O sargento, um homem decidido,
mandou que não respondessem ao grito, mas que alterassem o curso, e que os
soldados seguissem em marcha acelerada. Assim, guinamos para a direita
(em direção ao leste), e Joe caminhava tão depressa que eu era obrigado a
segurar-me com força para me manter em meu lugar.
Agora estávamos correndo mesmo, uma corrida, como disse Joe, com as
únicas palavras que pronunciou em todo aquele tempo, de tirar o fôlego. Íamos
descendo taludes e subindo taludes, e passando por porteiras, e chafurdando nos
diques, e irrompendo pelo meio dos juncos grossos: ninguém se importava onde
pisava. À medida que nos aproximávamos da origem dos gritos, foi ficando cada
vez mais evidente que havia mais de uma voz a gritar. Por vezes a gritaria
parecia parar por completo, e então os soldados se detinham. Quando
recomeçava, os homens voltavam a correr ainda mais depressa do que antes, e
nós íamos atrás deles. Após algum tempo estávamos tão perto que pudemos ouvir
uma voz gritando: Assassino!, e uma outra: Prisioneiros! Fugitivos! Guarda!
Os fugitivos foram por lá!. Então as vozes pareciam ser sufocadas numa luta, e
logo irrompiam outra vez. E quando isso acontecia, os soldados corriam como
gazelas, e Joe também.
O sargento foi o primeiro a entrar correndo, quando chegamos ao local de
onde vinham os gritos, e dois de seus homens o seguiram de perto. Suas armas
estavam engatilhadas e apontadas quando todos nós entramos.
Lá estão os dois!, exclamou o sargento, ofegante, lutando no fundo da vala.
Rendam-se, vocês dois! O diabo os carregue, suas feras danadas! Parem!
Água espirrava, e lama voava, e xingamentos soavam, e socos eram
desferidos, e mais homens entraram na vala para ajudar o sargento, e de lá
arrastaram, separadamente, o meu prisioneiro e o outro. Os dois estavam
sangrando, ofegantes, xingando-se e debatendo-se; mas é claro que reconheci
ambos.
Viu só!, disse o meu forçado, enxugando o sangue do rosto com as mangas
esfarrapadas, e sacudindo os dedos cheios de cabelos arrancados. Fui que eu
peguei ele! Eu que entreguei ele pra vocês! Vocês todos viu!
Não te fies muito nisso, disse o sargento; de pouco isso te vai valer, meu
caro, pois estás na mesma situação que ele. Passem as algemas!
Sei que não vai me valer de nada. Basta o bem que me faz agora, disse o
meu forçado, com uma risada ávida. Eu peguei ele. Ele sabe disso. Pra mim,
isso me basta.
O outro prisioneiro era um espetáculo terrível de se ver, pois, além do
machucado antigo no lado esquerdo do rosto, parecia ter contusões e feridas por
todo o corpo. Ele só conseguiu recuperar o fôlego suficientemente para falar
quando os dois já haviam sido algemados separadamente, apoiando-se num
soldado para não cair.
Veja lá, seu guarda ele tentou me matar, foram suas primeiras
palavras.
Tentei matar?, disse meu prisioneiro, com desdém. Tentei e não matei?
Eu peguei ele, e depois larguei; foi isso que eu fiz. Eu não só não deixei ele fugir
pro charco mas também arrastei ele até aqui lá de longe até aqui. É um
cavalheiro, mesmo, esse malfeitor. Agora esse cavalheiro vai voltar pra
presiganga, graças a mim. Matar ele? Matar pra quê, se eu posso fazer coisa
muito pior, que é levar ele de volta pra lá!
O outro ainda estava ofegante. Ele tentou
tentou
me matar. Vocês
são testemunhas.
Olha aqui!, disse o meu forçado ao sargento. Sozinho eu escapuli do
navio-prisão; saí correndo e caí fora. Eu podia ter saído desse brejo gelado
também olha pra minha perna: vocês vai ver que não tem mais quase ferro
nela se eu não descubro que ele está aqui. Deixar ele escapar? Deixar ele
escapar pelo caminho que eu descobri? Deixar ele me fazer de bobo outra vez?
Mais uma vez? Não, não e não. Se eu tivesse morrido lá embaixo, e com um
gesto vigoroso das mãos algemadas indicou a vala, eu ia agarrar ele com tanta
força que vocês ia me encontrar grudado nele.
O outro fugitivo, que claramente sentia um horror extremo de seu
companheiro, repetiu: Ele tentou me matar. Eu estaria morto agora se vocês
não tivessem chegado.
É mentira!, exclamou o meu prisioneiro, com energia feroz. Ele nasceu
mentindo, e vai morrer mentindo. Olha só pra cara dele; não está escrito nela?
Manda ele olhar nos meus olhos. Duvido que ele olha.
O outro, esforçando-se para esboçar um sorriso de deboche sem
conseguir, porém, conter o tremor nervoso dos lábios numa expressão fixa
olhava para os soldados, e olhava para o charco à sua volta, e para o mar, mas
certamente não para o outro.
Está vendo?, insistiu o meu forçado. Está vendo que pulha que ele é? Está
vendo essa cara de lambe-botas e esse olho arisco? É assim que ele estava
quando nós foi julgado junto. Não olhou pra mim nem uma vez.
O outro, retorcendo sem parar os lábios secos e voltando os olhos para tudo
que o cercava, longe e perto, finalmente fixou-os por um momento no primeiro,
com as palavras: Sua cara não é coisa que se olhe, e com um olhar algo
desafiador para as mãos atadas. Nesse momento, o meu forçado foi tomado por
tal frenesi de exasperação que teria se jogado sobre ele, não fosse a interposição
dos soldados. Eu não disse, observou o outro, que ele me mataria, se
pudesse? E todos podiam ver que ele tremia de medo, e que se formaram sobre
seus lábios curiosos flocos brancos, como de neve fina.
Chega de conversa, disse o sargento. Acendam os archotes.
Enquanto um dos soldados, que levava uma cesta em vez de arma,
ajoelhava-se para abri-la, o meu forçado olhou à sua volta pela primeira vez, e
me viu. Eu havia descido dos ombros de Joe à beira da vala assim que chegamos,
e desde então não me movera. Olhei para ele ansioso quando ele olhou para
mim, e de leve acenei com as mãos e sacudi a cabeça. Eu estava aguardando o
momento em que ele me veria, para tentar convencê-lo de minha inocência.
Não ficou claro para mim se ele sequer compreendeu minha intenção, pois ele
me dirigiu um olhar que não compreendi, e tudo se passou num momento. Mas
mesmo se ele tivesse ficado olhando para mim por uma hora ou por um dia, eu
não teria guardado na lembrança uma expressão mais atenta do que aquela.
O soldado da cesta fez fogo, e acendeu três ou quatro archotes, ficando com
um deles e distribuindo os outros. Antes estava quase escuro, mas agora a
escuridão se aprofundara, e logo depois se tornou absoluta. Antes de sairmos
daquele lugar, quatro soldados em círculo dispararam dois tiros para o alto. Logo
em seguida vimos outros archotes ardendo a alguma distância atrás de nós, e
outros no charco, na margem oposta do rio. Muito bem, disse o sargento.
Ordinário, marcha.
Não havíamos avançado muito quando três canhões dispararam à frente de
nós, com um estrépito que pareceu estourar algo dentro de meu ouvido. Estão à
tua espera a bordo, disse o sargento ao meu forçado, sabem que estás vindo.
Não faças corpo mole, meu caro. Anda mais depressa.
Os dois eram mantidos separados, e cada um caminhava cercado por uma
guarda diferente. Agora eu seguia de mãos dadas com Joe, e Joe carregava um
dos archotes. O sr. Wopsle havia manifestado o desejo de voltar para casa, mas
Joe estava decidido a ver a coisa até o fim, e assim seguimos com o grupo. O
caminho agora era razoavelmente bom, e seguíamos a maior parte do tempo à
beira-rio, fazendo um ou outro desvio quando surgia um dique, com um moinho
de vento em miniatura e uma comporta lamacenta. Olhando a minha volta, eu
via as outras luzes que vinham atrás de nós. Os archotes que levávamos
deixavam cair grandes manchas de fogo na pista, e eu as via também, a fumegar
e emitir clarões. Fora isso, eu só via uma escuridão negra. Nossas luzes aqueciam
o ar que nos cercava com seu brilho resinoso, e os dois prisioneiros pareciam
apreciá-lo, enquanto seguiam mancando entre os mosquetes. Não podíamos ir
depressa por estarem os dois mancos; e tamanha era a exaustão deles que duas
ou três vezes tivemos de parar para que descansassem.
Depois de cerca de uma hora de caminhada, chegamos a uma cabana
rústica de madeira e um desembarcadouro. Havia um guarda na cabana; ele deu
a senha, e o sargento respondeu com a contrassenha. Então entramos na cabana,
onde havia um cheiro de fumo e cal, e um fogo vivo na lareira, e uma luminária,
e um porta-mosquetes, e um tambor, e um estrado de cama baixo, de madeira,
como uma calandra enorme sem a maquinaria, onde caberia uma dúzia de
soldados ao mesmo tempo. Os três ou quatro que lá estavam deitados, por cima
de seus sobretudos, não estavam muito interessados em nós, e limitaram-se a
levantar as cabeças e dirigir-nos um olhar sonolento, para depois reassumirem a
posição original. O sargento fez uma espécie de relatório, e um registro num
livro, e em seguida aquele a quem me refiro como o outro forçado foi levado por
sua guarda, para ser o primeiro a voltar à presiganga.
O meu forçado não voltou a olhar para mim, após aquela única vez. Quando
estávamos na cabana, ele postou-se diante do fogo, contemplando-o pensativo,
pondo ora um pé, ora o outro, junto à lareira, e contemplando-os pensativo, como
se deles se apiedasse pelas recentes desventuras que haviam sofrido. De repente
voltou-se para o sargento, e comentou:
Quero dizer uma coisa sobre essa minha fuga. Pra que ninguém mais vire
suspeito junto comigo.
Podes dizer o que quiseres, retrucou o sargento, olhando-o tranquilo, de
braços cruzados, mas não carece de ser aqui. Depois não te faltará ocasião para
falar sobre isso, e ouvir falar, antes de encerrar o processo, como sabes.
Sei, sim, mas é uma outra coisa, uma questão separada. Ninguém aguenta
passar fome; eu, pelo menos, não aguento. Eu peguei comida, na aldeia acolá
perto da igreja já quase no meio do charco.
Tu roubaste, é o que queres dizer, disse o sargento.
E vou dizer donde que foi. Da casa do ferreiro.
Ora, ora!, exclamou o sargento, olhando para Joe.
Ora, Pip!, exclamou Joe, olhando para mim.
Foi uns restos de comida só isso e um trago de bebida, e uma torta.
Você deu pela falta de alguma coisa assim, como uma torta, ferreiro?,
perguntou o sargento, em tom confidencial.
Minha mulher deu, no momento exato em que o senhor chegou. Não foi,
Pip?
Então, disse o meu prisioneiro, voltando um olhar melancólico para Joe, e
sem dirigir o mais rápido relance a mim, então você é o ferreiro, é? Lamento
dizer que comi a sua torta.
Deus sabe que por mim, espero que tenha aproveitado até onde ela era
minha, retrucou Joe, lembrando-se da sra. Joe. A gente não sabe o que ocê
fez, mas nós não ia querer que um pobre semelhante morresse de fome. É ou
não é, Pip?
Aquela coisa em que eu havia reparado antes estalou na garganta do homem
outra vez, e ele nos deu as costas. O barco havia voltado, e sua guarda estava
pronta, por isso o acompanhamos até o desembarcadouro feito de pedras e
estacas grosseiras, e o vimos sendo levado para dentro do bote, que tinha ao remo
uma tripulação de forçados como ele. Ninguém parecia surpreso por vê-lo, nem
interessado em vê-lo, nem alegre por vê-lo, nem triste por vê-lo, nem disse
palavra; apenas uma voz no barco rosnou, como se se dirigisse a cães: Força,
vocês aí!, que era o sinal para que começassem a remar. À luz dos archotes,
vimos a presiganga negra a pouca distância do lodo da margem, como uma arca
de Noé perversa. Cercado de troncos e barras e atracado com correntes pesadas
e enferrujadas, o navio-prisão parecia a meus olhos de menino estar agrilhoado,
tal como os prisioneiros. Vimos o barco aproximar-se dele, e vimos o homem
sendo levantado e depois desaparecer. Então os restos dos archotes foram
jogados dentro dágua, a silvar, e apagaram-se, como se para ele tudo estivesse
terminado.
6
Meu estado mental com relação ao furto de que eu fora inocentado tão
inesperadamente não me impelia a fazer uma confissão sincera; porém continha,
espero, alguma coisa de bom, no fundo.
Não me lembro de ter sentido algum peso na consciência quanto à sra. Joe,
quando fui libertado do medo de ser descoberto. Mas eu gostava de Joe talvez
pelo simples motivo, nessa fase de minha vida, de que esse excelente sujeito me
permitia gostar dele e, quanto a ele, meu eu interior não se aquietou com tanta
facilidade. Assediava-me a ideia (em particular depois que o vi procurando a
lima) de que eu devia contar a ele toda a verdade. No entanto, não o fiz, e não o
fiz por temer que, se o fizesse, ele me julgaria pior do que eu era. O medo de
perder a confiança de Joe, e doravante permanecer no canto junto à chaminé
olhando desconsolado para o companheiro e amigo que eu perdera, prendia
minha língua. Ocorreu-me o pensamento mórbido de que, se ele soubesse, nunca
mais eu poderia vê-lo junto ao fogo cofiando as suíças louras, sem pensar que ele
estaria meditando sobre o assunto. Que, se Joe soubesse, nunca mais eu poderia
vê-lo, mesmo de relance, comendo a carne ou pudim de ontem servido à mesa
hoje, sem pensar se ele estaria perguntando a si próprio se eu teria feito uma
incursão à despensa. Que, se Joe soubesse, e se em qualquer momento
subsequente de nossa vida doméstica ele comentasse que a cerveja estava choca
ou espessa, a convicção de que ele suspeitava haver alcatrão nela faria o sangue
me subir às faces. Em suma, fui covarde demais para fazer o que eu sabia ser
certo, tal como fora covarde demais para evitar fazer o que sabia ser errado. Eu
ainda não travara contato com o mundo nesse tempo, e assim sendo não imitei os
muitos de seus habitantes que agem desse modo. Verdadeiro gênio inato,
descobri essa linha de ação sozinho.
Como fiquei sonolento ainda antes de nos termos afastado muito do navioprisão,
Joe pôs-me nas costas de novo e carregou-me para casa. A viagem deve
ter sido um tanto cansativa para ele, pois o sr. Wopsle, exausto, estava de tal
modo mal-humorado que, se a Igreja tivesse sido escancarada, ele
provavelmente teria excomungado toda a expedição, a começar por Joe e por
mim. Na condição de leigo, insistia em sentar-se no chão molhado de modo tão
enlouquecido que, quando tirou seu casaco para secá-lo junto ao fogo, na
cozinha, as provas circunstanciais em suas calças haveriam de levá-lo à forca se
a coisa fosse crime capital.
A essa altura, eu cambaleava no chão da cozinha como se fosse um
ebriozinho, por ter sido colocado de pé ainda há pouco, e por ter dormido a sono
solto, e por ter sido despertado num lugar quente e iluminado e cheio de vozes.
Quando acordei (com a ajuda de um tapa pesado entre os ombros e a
exclamação restauradora Eh! Onde já se viu um menino igual a este!, da
minha irmã), Joe estava a falar-lhes sobre a confissão do forçado, e todas as
visitas propunham hipóteses diferentes sobre o modo como ele conseguira entrar
na despensa. O sr. Pumblechook concluiu, tendo examinado o recinto com
cuidado, que ele primeiro subira ao telhado da ferraria, em seguida passara para
o telhado da casa, e depois descera pela chaminé da cozinha usando uma corda
feita com tiras compridas a que havia reduzido seus lençóis; e como o sr.
Pumblechook estava muito certo do que dizia e conduzia sua própria carruagem
passando por cima de qualquer um concordou-se que certamente fora
assim. O sr. Wopsle, é bem verdade, exclamou loucamente Não!, com a
malícia débil de um homem cansado; porém, não tendo ele uma teoria, nem um
casaco que pudesse vestir, foi unanimemente desprezado ainda por cima,
saía-lhe muita fumaça do traseiro, estando ele parado em frente à lareira da
cozinha para secar-se: o que sem dúvida não haveria de inspirar confiança.
Isso foi tudo que ouvi aquela noite antes que minha irmã me agarrasse, por
estar minha sonolência ofendendo os olhos dos presentes, e me ajudasse a subir
para o quarto com mão tão pesada que me dava a impressão de estar eu
calçando cinquenta pares de botas, arrastando todas elas contra as beiras dos
degraus. Meu estado mental, tal como o descrevi, começou antes mesmo de eu
me levantar pela manhã, e perdurou muito depois de o assunto ter sido esquecido,
só voltando a ser mencionado em ocasiões excepcionais.
7
Na época em que fui ao campo-santo e fiquei a ler as lápides da minha família,
eu sabia ler apenas o suficiente para decifrar as inscrições. Meu entendimento do
significado delas, tão simples, não era muito correto, pois julgava eu que esposa
do Acima se referia à condição elevada de meu pai num mundo melhor; e se
alguma referência fosse feita a um de meus falecidos familiares como
Abaixo, sem dúvida eu teria formado uma péssima opinião a respeito desse
indivíduo. Do mesmo modo, os conceitos que eu formara a respeito das posições
teológicas que me impunha o catecismo1 não eram de modo algum corretos;
pois, como me lembro muito bem, pensava que assim caminhar por todos os
dias de minha vida me obrigava a caminhar em nossa aldeia, a partir de nossa
casa, sempre na mesma direção, e jamais me desviar dela entrando no caminho
do segeiro ou subindo até o moinho.
Quando atingisse a idade apropriada, haveria de tornar-me aprendiz de Joe, e
até poder assumir esse digno cargo eu não devia ser papá-ricado, ou (como
interpreto o termo) paparicado. Assim, não apenas eu atuava como pau para toda
a obra na ferraria, como também se algum vizinho precisasse de um menino a
mais para enxotar aves, ou catar pedras, ou executar qualquer tarefa afim, era
eu o escolhido para o cargo. Porém, para que nossa posição de superioridade não
fosse comprometida por isso, uma caixa de dinheiro era mantida no console da
cozinha, na qual, como era divulgado para o público em geral, todos os
pagamentos por mim recebidos eram colocados. Tenho a impressão de que eles
seriam utilizados futuramente em prol da liquidação da dívida nacional, mas sei
que não tinha eu nenhuma esperança de ter qualquer participação pessoal nesse
tesouro.
A tia-avó do sr. Wopsle mantinha uma escola noturna na aldeia; em outras
palavras, era uma velha ridícula de renda limitada e debilidade ilimitada, que
cochilava das seis às sete todas as tardes na companhia de jovens que pagavam
dois pence por semana cada, para ter a instrutiva oportunidade de vê-la cochilar.
Ela alugava uma casa pequena, e o sr. Wopsle ficava no quarto do andar de
cima, onde nós, os alunos, o ouvíamos ler em voz alta de maneira mui digna e
terrível, e de vez em quando esbarrar no teto. Nutria-se a ficção de que o sr.
Wopsle examinava os alunos uma vez a cada trimestre. O que ele fazia em tais
ocasiões era arregaçar as mangas, pôr o cabelo para cima e recitar para nós a
oração de Marco Antônio sobre o cadáver de César. Essa fala era sempre
seguida pela Ode sobre as paixões de Collins,2 sendo que conquistava minha
veneração em particular o sr. Wopsle no papel de Vingança, jogando a espada
ensanguentada trovejante, e tomando a trombeta que anuncia a guerra com olhar
tremendo. Eu não era ainda como me tornei mais tarde, quando, passando a
conviver com as paixões, comparei-as com Collins e Wopsle, comparação essa
que resultou desvantajosa para ambos os cavalheiros.
A tia-avó do sr. Wopsle, além dessa instituição educacional, tinha também
no mesmo cômodo uma pequena venda. Não fazia ela ideia do estoque que
tinha, nem do preço de qualquer mercadoria; havia, porém, um caderninho
ensebado guardado numa gaveta, que servia como catálogo de preços, e era com
base nesse oráculo que Biddy pautava todas as transações comerciais. Biddy era
a neta da tia-avó do sr. Wopsle; confesso-me incapaz de fazer os cálculos
necessários para determinar qual seu grau de parentesco com o sr. Wopsle. Era,
tal como eu, uma órfã; também como eu, fora criada com a mão. O que mais
nela chamava a atenção, a meu ver, eram suas extremidades; pois o cabelo
estava sempre precisando ser escovado; as mãos, ser lavadas; e os sapatos, ser
consertados e ganhar saltos novos. Essa descrição, porém, deve ser tomada com
uma limitação semanal. Aos domingos, ela ia à igreja toda paramentada.
Muitas vezes sem ajuda, e, quando ajudado, mais por Biddy do que pela tiaavó
do sr. Wopsle, atravessei o alfabeto como quem atravessa uma sarça, sendo
mordido e arranhado por cada letra. Depois disso, caí nas mãos daqueles
salteadores,3 os nove algarismos, que a cada noite pareciam fazer algo de novo
para se disfarçarem e não serem reconhecidos. Porém, por fim comecei, à
maneira de um catacego que anda tateando, a ler, escrever e fazer contas, na
mais mínima escala.
Uma noite, estava eu no meu cantinho da chaminé com minha lousa,
produzindo com muito esforço uma carta a Joe. Creio que deve ter sido um ano
após nossa caçada no charco, pois foi um bom tempo depois, era inverno e fazia
muito frio. Com um alfabeto a meus pés para me servir de referência, em uma
ou duas horas compus, após muito rabiscar e apagar, esta epístola:
cAru JO ispEru Q sTejaS bEm ispEru Q em bREvi eu PoçO enCinArti JO ai
vAi Se MunTo Bom quAnDu eu fOr tEu apRenDis JO vaMu faZe gRAndiS
BatUsCaDas saUdasOns PiP.
Não era absolutamente indispensável que eu me comunicasse com Joe
através de uma carta, já que ele estava sentado a meu lado e estávamos sozinhos.
Porém, entreguei-lhe essa comunicação escrita (com lousa e tudo)
pessoalmente, e Joe recebeu-a como um milagre de erudição.
Olha só, Pip, meu velho!, exclamou Joe, arregalando os olhos azuis, que
estudioso tu te tornaste! És ou não és um estudioso?
Eu bem que gostaria de ser, respondi, olhando para a lousa enquanto ele a
segurava: constrangido por ser minha letra um tanto acidentada.
Ora, eis aqui um J, disse Joe, e um O muito bem-feito! Eis um J e um O,
Pip, e J-O, Joe.
Eu nunca ouvira Joe ler em voz alta um texto mais longo do que esse
monossílabo, e já havia observado na igreja, no domingo anterior, quando por
engano segurei nosso Livro de Oração de cabeça para baixo, que para ele isso
lhe convinha tanto quanto se estivesse de cabeça para cima. Querendo aproveitar
a oportunidade para descobrir se, para ensinar Joe, seria necessário começar
bem no início, eu disse: Ah! Mas lê o resto, Joe.
O resto, é, Pip?, retrucou Joe, percorrendo a lousa lentamente com o olhar.
Um, dois, três. Ora, tem três J, e três O, e três J-O, Joes, Pip!
Debrucei-me sobre Joe e, com a ajuda do meu indicador, li para ele toda a
carta.
Espantoso!, disse Joe quando terminei. És mesmo um estudioso.
Como é que tu escreves Gargery, Joe?, perguntei-lhe, com uma
condescendência modesta.
Eu não escrevo, disse Joe.
Mas, vamos supor, e se escrevesses?
Não há como supor isso, disse Joe. Apesar de que eu gosto muitíssimo de
ler.
É mesmo, Joe?
Mui-tíssimo. Dá-me, disse Joe, um bom livro, ou um bom jornal, e põeme
ao pé de um bom fogo, e não peço mais nada. Meu Deus!, prosseguiu ele,
depois de esfregar as mãos nos joelhos. Quando a gente acha um J e um O, e
diz: Olha aqui, finalmente, J-O, Joe, como é interessante ler!
Concluí, com base nisso, que a instrução de Joe, tal como a máquina a vapor,
ainda estava em seus primórdios. Insisti, perguntando:
Nunca foste à escola, Joe, quando eras pequeno como eu?
Não, Pip.
E por que nunca foste à escola, Joe, quando eras pequeno como eu?
Bom, Pip, disse Joe, pegando o atiçador e assumindo sua ocupação
habitual sempre que estava pensativo, de lentamente atiçar o fogo por entre as
grades mais baixas, vou te contar. Meu pai, Pip, era chegado à bebida, e quando
ficava chumbado ele martelava a minha mãe sem dó. Era quase que só nessas
vez que ele martelava alguma coisa, quer dizer, e também quando martelava eu.
E ele me martelava com toda a força que ele não punha quando martelava a
bigorna dele. Estás escutando e compreendendo, Pip?
Estou, Joe.
E em consequência eu e a minha mãe fugiu do meu pai, mais de uma vez;
e aí minha mãe ia trabalhar, e ela me dizia: Joe, dizia ela, agora, se Deus
quiser, vais estudar um pouco, e aí ela me punha na escola. Mas o meu pai tinha
bom coração e não conseguia viver sem nós. E aí ele vinha com um monte de
gente e fazia uma barulheira tamanha na porta da casa onde nós estava, que aí
eles não tinha jeito de não entregar nós pra ele. E aí ele levava nós pra casa e
martelava nós. E isso, Pip, tu entendes, disse Joe, fazendo uma pausa no seu
pensativo atiçar do fogo, e olhando para mim, prejudicou um bocado os meus
estudo.
É claro, Joe, pobre de ti!
Mas, vê lá, Pip, disse Joe, com um ou dois toques precisos do atiçador na
grade de cima, dando a César o que é de Deus, e fazendo justiça de homem a
homem, meu pai tinha bom coração, não vês?
Eu não via tal coisa, mas nada disse.
Pois bem!, Joe prosseguiu. Alguém tem que pôr pão na despensa, senão
na despensa pão não há, não vês?
Eu via, e disse que sim.
E em consequência meu pai não via nenhum pobrema de eu começar a
trabalhar; foi assim que passei a trabalhar no meu ofício, que era também o dele,
só que ele não praticava, e eu trabalhava com muito afinco, Pip, isso eu posso te
garantir. Em pouco tempo eu já sustentava ele, e fiquei sustentando até que um
ataque pepiléptico levou ele. E eu queria mandar escrever no tumo dele assim:
Perfeito ele não era, não, Mas porém tinha bom coração.
Joe recitou esse dístico com tanto orgulho explícito e tamanha perspicácia
cuidadosa que lhe perguntei se ele próprio o havia composto.
Foi eu que fiz, respondeu, sozinho. Foi coisa de um momento. Foi que
nem aprontar uma ferradura inteirinha de uma martelada só. Nunca fiquei tão
dimirado na minha vida eu não conseguia imaginar que aquilo saiu da minha
cabeça pra falar com franqueza, eu quase não acreditava que era da minha
cabeça mesmo que tinha saído. Como eu ia dizendo, Pip, eu queria mandar
escrever no tumo dele; mas poesia custa dinheiro, com letra pequena ou grande,
e a coisa acabou que não se fez. Pra nem falar nos carregador do caixão, todo o
dinheiro que havia era pra minha mãe. Ela estava ruim de saúde, e sem um
tostão. Não demorou muito, coitada, e ela também acabou descansando.
Os olhos azuis de Joe ficaram um pouco úmidos; ele esfregou-os, primeiro
um, depois o outro, de um modo nada característico e bem constrangido, com o
cabo redondo do atiçador.
Aí eu fiquei muito sozinho, disse Joe, morando aqui só eu, e aí conheci a
tua irmã. Sabe, Pip, Joe olhou firme para mim, como se soubesse que eu não
iria concordar com ele, a sua irmã é uma bela duma mulher.
Não pude deixar de desviar a vista para o fogo, num evidente estado de
dúvida.
Diga o que disser a família, ou o mundo todo, Pip, a tua irmã, Joe batia na
grade de cima, um toque para cada palavra, é uma bela duma
mulher!
Não me ocorreu nada melhor para dizer do que: Ainda bem que pensas
assim, Joe.
Ainda bem, sim, retrucou Joe, reforçando minhas palavras. Ainda bem
que eu penso assim, Pip. Um pouco vermelha aqui, um pouco ossuda ali, e o que
me importa isso?
Fiz o comentário sagaz de que, se a ele não importava, a quem haveria de
importar?
Isso mesmo!, concordou Joe. É isso. Tens razão, meu velho! Quando
conheci tua irmã, todo mundo falava que ela tinha criado você com a mão. Muita
bondade dela, toda a gente dizia, e eu dizia também, junto com os outro. Quanto a
ti, Joe insistiu, com cara de quem vê algo de muito desagradável, se tu
pudesses saber na época o quanto eras pequenino e fraquinho e mirrado, tu terias
formado uma ideia muito ruim de ti próprio!
Não muito feliz de ouvir tal coisa, eu disse: Não ligues pra mim, Joe.
Mas eu ligava pra ti, Pip, ele retrucou, com terna simplicidade. Quando
me ofereci à tua irmã pra lhe fazer companhia, e pra perguntar a ela na igreja se
ela viria de bom grado ficar comigo na ferraria, eu disse a ela: E traz também a
pobre criancinha. Deus abençoe a pobre criancinha, eu disse à tua irmã, que há
lugar pra ela na ferraria!.
Comecei a chorar e a pedir perdão, e a abraçar o pescoço de Joe, o qual
largou o atiçador para me abraçar, dizendo: A gente é amigo de verdade, não é,
hein, Pip? Não chores, meu velho!.
Finda essa pequena interrupção, Joe recomeçou:
Pois é, Pip, e cá estamos nós! A coisa é mais ou menos essa, e cá estamos
nós! Pois se vais te ocupar de me ensinar, Pip (e devo te avisar logo de saída que
sou muito bronco, muito bronco), é bom que a senhora Joe não fique sabendo o
que estamos fazendo. A coisa tem que ser feita, diguemos assim, às escondida. E
às escondida por quê? Eu te digo por quê, Pip.
De novo tinha na mão o atiçador; sem ele, creio que dificilmente teria sido
capaz de prosseguir em sua demonstração.
Tua irmã é dada ao governo.
Dada ao governo, Joe? Fiquei atônito, pois formei a ideia vaga (e, devo
confessar, a vaga esperança) de que Joe havia se divorciado dela, cedendo-a ao
almirantado ou ao Tesouro nacional.
Dada ao governo, repetiu Joe. Quer dizer, a governar eu e tu.
Ah!
E ela não há de gostar da ideia de ter estudioso na casa dela, prosseguiu
Joe, principalmente de eu virar estudioso, com medo de eu me revoltar. Uma
espécie de rebelde, não vês?
Ia eu retrucar com uma pergunta, e cheguei mesmo a articular um Por
que
, quando Joe me deteve.
Espera um pouco. Sei o que vais dizer, Pip, espera um pouco! Não nego que
tua irmã seje um verdadeiro grão-mogol4 pra nós, vez em quando. Não nego que
ela nos derruba no chão, e que cai em cima de nós com vontade. Nessas hora
que a tua irmã está espumando, Pip, Joe baixou a voz, reduzindo-a a um
sussurro e olhando de esguelha para a porta, confesso que ela é uma fera.
Joe pronunciou a palavra como se ela começasse com pelo menos uma
dúzia de F maiúsculos.
Por que eu não me revolto? Era isso que ias me perguntar quando eu
terrompi, não era, Pip?
Era, sim, Joe.
Pois bem, disse Joe, passando o atiçador para a mão esquerda, para poder
cofiar a suíça; eu perdia as esperanças quanto a ele sempre que ele se entregava
a essa ocupação plácida; a tua irmã é um crânio. Um crânio.
O que é isso?, perguntei, com alguma esperança de detê-lo. Mas Joe tinha
a definição mais na ponta da língua do que eu esperava, e foi ele quem me
deteve de vez argumentando circularmente, ao responder, com o olhar parado:
É o que ela é.
E eu não sou um crânio, prosseguiu Joe, quando seu olhar se despregou de
seu ponto fixo, e retomou a suíça. E, por fim, Pip e isso eu queria te dizer
muito sério, meu velho vi minha pobre mãe se matando tanto de trabalhar, e
sofrendo tanto que partiu o coração, e nunca teve paz em vida, que tenho muito
medo de não fazer direito o que se tem que fazer com uma mulher, e na dúvida
prefiro errar pro outro lado, e ser um pouco maltratado por isso. Eu preferia que
fosse só eu a me dar mal, Pip, que o pau-de-cosca fosse só pra eu e não pra ti
também; eu preferia que caísse tudo em mim; mas é assim que as coisas é, Pip,
e espero que tu aguentes tudo que é pobrema.
Apesar de minha tenra idade, creio que foi a partir dessa noite que se formou
em mim uma nova admiração por Joe. Continuamos a ser iguais, tal como já
éramos; porém, quando eu ficava a olhar para Joe e pensar nele em momentos
de tranquilidade, a partir daí passei a experimentar uma nova sensação, cônscio
de que, em meu coração, eu tomava Joe por modelo.
Seja lá como for, disse Joe, levantando-se para pôr mais lenha na lareira,
o relógio alemão já está quase dando as oito, e ela inda não voltou! Tomara que
a égua do tio Pumblechook não tenha pisado numa pedra de gelo e caído.
Ocasionalmente a sra. Joe acompanhava o tio Pumblechook em dias de
feira, para ajudá-lo a fazer compras de casa e outros bens que requeriam o
discernimento de uma mulher; pois o tio Pumblechook era solteiro e não confiava
muito em sua criada. Era dia de feira, e a sra. Joe saíra numa dessas expedições.
Joe acendeu o fogo e varreu a lareira, e em seguida fomos até a porta para
aguardar a chegada da sege. Era uma noite fria e seca, com um vento cortante, e
uma geada branca e dura. Se houvesse um homem hoje deitado no chão do
charco, pensei, ele haveria de morrer de frio. E depois olhei para as estrelas, e
pensei como seria terrível virar o rosto para elas ao morrer congelado, e não
encontrar nenhuma ajuda nem piedade em toda aquela imensidão cintilante.
Lá vem a égua, disse Joe, tilintando que nem um monte de sino!
O som das ferraduras contra o piso duro da estrada era bem musical, pois ela
vinha trotando num passo bem mais rápido que o costumeiro. Levamos para fora
uma cadeira, a fim de ajudar a sra. Joe a desmontar, e atiçamos o fogo para que
eles vissem a janela bem iluminada, e examinamos a cozinha pela última vez,
para verificar se não havia nada fora do lugar. Quando terminamos esses
preparativos, eles chegaram, agasalhados de modo que só os olhos ficavam de
fora. A sra. Joe logo desmontou, e pouco depois o tio Pumblechook fez o mesmo,
cobrindo a égua com um pano, e em seguida fomos todos para a cozinha,
trazendo tanto frio conosco que era como se todo o calor do fogo tivesse ido
embora.
Ora, disse a sra. Joe, tirando os agasalhos afobada e excitada, e jogando
para trás o capuz, que lhe caiu sobre os ombros, dependurado pelos cordéis, se
esse menino não ficar grato hoje, nunca mais há de ficar!
Exibi o máximo de gratidão de que seria capaz um menino que não fizesse
ideia alguma do motivo que tinha para assumir tal expressão.
Só espero, disse minha irmã, que ele não fique papá-ricado. Mas fico
preocupada.
Ela não é dessas, disse o Pumblechook. Ela não é boba.
Ela? Olhei para Joe, fazendo movimentos com os lábios e as sobrancelhas.
Ela? Joe olhou para mim, fazendo os mesmos movimentos com os lábios e as
sobrancelhas: Ela?. Como minha irmã o apanhasse em flagrante fazendo isso,
ele passou as costas da mão na frente do nariz, com seu ar conciliador de sempre
em tais ocasiões, e encarou-a.
E então?, exclamou minha irmã, com seu jeito brusco. O que é que estás
olhando? A casa está pegando fogo?
É que se falou em algum individo, explicou Joe, delicadamente, ela.
E ela não é ela?, insistiu minha irmã. A menos que queiras chamar a
senhora Havisham de ele. E duvido que sejas capaz disso.
A senhora Havisham, da cidade?, perguntou Joe.
E há alguma senhora Havisham fora da cidade?, redarguiu minha irmã.
Ela quer que este menino vá brincar lá. E é claro que ele vai. E é bom ele
brincar lá, mesmo, disse minha irmã, sacudindo a cabeça para mim, de modo a
me estimular a ser extremamente alegre e brincalhão, senão ele vai ver.
Eu ouvira falar da sra. Havisham, da cidade todo mundo em toda a região
ouvira falar da sra. Havisham, da cidade como um mulher muitíssimo rica e
severa que morava numa casa grande e lúgubre, fortificada para proteger-se de
ladrões, e vivia isolada do mundo.
Claro, claro!, exclamou Joe, perplexo. Não sei como ela ficou sabendo
do Pip!
Pateta!, retrucou minha irmã. E quem que disse que ela sabia dele?
É que algum individo, mais uma vez Joe explicou, delicadamente, falou
que ela queria que ele fosse brincar lá.
E ela não podia perguntar ao tio Pumblechook se ele conhecia algum
menino que podia ir brincar lá? Será que não dá pra imaginar que o tio
Pumblechook seja inquilino dela, e que às vezes já não digo de três em três
meses nem de seis em seis, porque aí seria pedir demais de ti mas só às vezes
ele tem que ir lá pra pagar o aluguel? E nessa ocasião ela não podia perguntar
se ele conhecia algum menino que podia ir brincar lá? E o tio Pumblechook, que
sempre pensa em nós e se preocupa conosco ainda que tu penses que não,
Joseph, num tom profundamente acusatório, como se ele fosse o mais ingrato
dos sobrinhos, não podia então falar nesse menino que está aqui a dar pinotes
coisa que, afirmo solenemente, eu não estava fazendo de quem sou uma
verdadeira escrava voluntária há tantos anos?
Muito bem dito!, exclamou o tio Pumblechook. Muito bem expresso!
Falou muito bem! Muito bem, mesmo! Pois agora, Joseph, sabes de tudo.
Não, Joseph, disse minha irmã, ainda em tom de acusação, enquanto Joe,
conciliador, passava as costas da mão à frente do nariz vez após vez, ainda não
sabes mesmo que penses o contrário de tudo. Talvez penses que sabes, mas
não sabes, Joseph. Pois não sabes que o tio Pumblechook, percebendo que é bem
possível que a fortuna deste menino seja garantida por essa ida à casa da senhora
Havisham, ofereceu-se pra levá-lo à cidade hoje na carruagem dele, para ele
passar a noite na casa dele, e entregá-lo pessoalmente à senhora Havisham
amanhã de manhã. E Deus me perdoe, exclamou minha irmã, jogando para o
lado o capuz num desespero súbito, cá estou a falar com esses dois basbaques,
enquanto o tio Pumblechook está esperando, e a égua está no frio lá fora, e o
menino coberto de fuligem e sujeira da ponta dos cabelos até a sola dos pés!
Dizendo isso, saltou sobre mim, como uma águia sobre um cordeiro, e meu
rosto foi espremido em vasilhas de madeira dentro de pias, e minha cabeça foi
posta debaixo de bicas, e fui ensaboado, e esfregado, e enxugado, e sacudido, e
arranhado, e raspado, até não aguentar mais. (Vale a pena observar neste ponto
que, na minha opinião, não há ninguém vivo que conheça tão bem quanto eu a
sensação de ter o rosto riscado por uma aliança enfiada num dedo nem um
pouco delicado.)
Findas minhas abluções, vestiram-me uma roupa de baixo limpa e muito
dura, como se eu fosse um penitente com um cilício, e enfiaram-me no meu
traje mais apertado e terrível. Fui então entregue ao sr. Pumblechook, o qual me
recebeu formalmente como se fosse o xerife e me fez o sermão que, eu sabia,
ele estava morrendo de vontade de fazer desde o início: Menino, sê sempre
grato a todos os teus amigos, mas principalmente a quem te criou com a mão!.
Até logo, Joe!
Deus te abençoe, Pip, meu velho!
Eu nunca me separara dele antes, e sob o impacto das emoções e da espuma
de sabão, de início não vi estrela alguma pela janela da sege. Mas elas foram
surgindo, a tremeluzir, uma por uma, sem iluminar nem um pouco a questão do
motivo inimaginável pelo qual eu ia brincar na casa da sra. Havisham, e que
brincadeira inimaginável eu haveria de brincar lá.
8
As instalações do sr. Pumblechook, na High-street* da cidade onde era realizada
a feira, eram pimentosas e farinhentas, como era de se esperar em se tratando
de um comerciante de cereais e sementes. Parecia-me que ele haveria de ser
um homem muito feliz, por ter tantas gavetinhas em sua loja; e fiquei a imaginar,
quando examinei uma ou duas delas, das mais baixas, e vi os pacotes de papel
pardo amarrados que lá havia, se as sementes e bulbos não teriam vontade, num
dia de sol, de escapulir daquelas prisões e florescer.
Foi de manhã bem cedo, no dia após a minha chegada, que elaborei essa
especulação. Na noite da véspera eu fora posto para dormir num sótão de telhado
inclinado, telhado esse que era tão baixo no canto onde ficava a cama que,
segundo meus cálculos, as telhas ficariam a no máximo trinta centímetros de
minhas sobrancelhas. Nessa mesma manhã, constatei a existência de uma
afinidade singular entre as sementes e as calças de veludo. O sr. Pumblechook
usava calças de veludo, e o caixeiro de sua loja também usava; e de tal modo
havia nas calças de veludo certa atmosfera e um sabor que eram da natureza das
sementes, e havia nas sementes certa atmosfera e um sabor que eram da
natureza das calças de veludo, que eu mal conseguia distinguir uma coisa da
outra. Nessa mesma oportunidade, verifiquei que o sr. Pumblechook, ao que
parecia, realizava seu trabalho olhando para o seleiro do outro lado da rua,
enquanto o seleiro parecia cumprir suas tarefas sempre de olho no segeiro, o qual
parecia passar a vida com as mãos enfiadas nos bolsos olhando para o padeiro, o
qual, por sua vez, ficava de braços cruzados olhando para o merceeiro, que,
parado à porta de sua loja, bocejava olhando para o boticário. O relojoeiro,
sempre sentado a uma pequena mesa, examinando um mecanismo com uma
lupa no olho, e sempre examinado por um grupo de homens de guarda-pó que o
viam através do vidro de sua vitrine, parecia ser a única pessoa na High-street
cujo trabalho exigia atenção.
O sr. Pumblechook e eu fizemos o desjejum às oito horas numa sala nos
fundos da loja, enquanto o caixeiro bebia sua caneca de chá e comia seu pão
com manteiga sentado num saco de ervilhas na loja. Eu considerava o sr.
Pumblechook péssima companhia. Além de compartilhar com minha irmã a
ideia de que minha dieta deveria ter um caráter mortificador e penitencial
além de me dar o máximo de miolo de pão e o mínimo de manteiga, e pôr
tamanha quantidade de água quente no meu leite que seria mais honesto omitir o
leite por completo sua conversação consistia exclusivamente em aritmética.
Quando educadamente lhe desejei bom-dia, ele retrucou, pomposo: Sete vezes
nove, menino!. E como poderia eu lhe dar resposta sendo ignorado daquela
maneira, num lugar estranho, e de estômago vazio! Eu tinha fome, mas antes de
ter engolido o primeiro bocado ele deu início a uma longa soma que durou todo o
desjejum. Sete? Mais quatro? Mais oito? Mais seis? Mais dois? Mais
dez? E assim por diante. Uma vez resolvida mais uma soma, mal tinha eu tempo
de engolir mais um pedaço ou beber mais um gole antes que viesse mais uma;
enquanto isso, ele ficava à vontade, sem ter que calcular nada, comendo toucinho
com pães quentes, de um modo (se me permitem a expressão) voraz e glutônico.
Por tais motivos, muito me alegrei quando deram as dez horas e partimos em
direção à casa da sra. Havisham, embora eu não me sentisse nem um pouco
seguro quanto à maneira como deveria me comportar sob o teto dessa senhora.
Em um quarto de hora chegamos à casa da sra. Havisham, que era uma
estrutura velha, de tijolo, de aparência lúgubre, cercada de grades de ferro.
Algumas das janelas haviam sido fechadas com tijolos; das que restavam, todas
as do andar de baixo eram protegidas por grades enferrujadas. Havia um pátio
na frente, cercado por grades; assim, tivemos que esperar, após tocar a
campainha, até que alguém viesse abrir. Enquanto aguardávamos junto ao
portão, dei uma espiada lá dentro (mesmo nesse momento o sr. Pumblechook
perguntou: Mais catorze?, porém fingi que não o ouvia), e vi que ao lado da
casa havia uma cervejaria grande. A fábrica não estava funcionando no
momento, e parecia não funcionar há muito, muito tempo.
Abriu-se uma janela, e uma voz límpida perguntou: Nome?. A que meu
portador respondeu: Pumblechook. A voz retrucou: Muito bem, e a janela
voltou a se fechar; e uma jovem veio atravessando o pátio, com um chaveiro na
mão.
Este, disse o sr. Pumblechook, é Pip.
Então este é o Pip?, retrucou a jovem, que era muito bonita e parecia
muito orgulhosa. Entra, Pip.
O sr. Pumblechook ia entrar também, quando ela o deteve no portão.
Ah!, ela exclamou. O senhor queria falar com a senhora Havisham?
Se a senhora Havisham quiser falar comigo, respondeu o sr. Pumblechook,
desconcertado.
Ah, disse a jovem, mas, o senhor entende, ela não quer.
Ela falou de modo tão definitivo, num tom tão inquestionável, que o sr.
Pumblechook, apesar de sua dignidade ofendida, não conseguiu protestar. Porém
olhou para mim com ar severo como se eu tivesse feito alguma coisa a ele!
e partiu com estas palavras ditas em tom de acusação: Menino! Que a sua
conduta aqui seja motivo de orgulho para quem o criou com a mão!. Não
estava eu livre do temor de que ele voltaria para me perguntar, do outro lado do
portão: Mais dezesseis?. Mas tal não se deu.
Minha jovem guia trancou o portão, e atravessamos o pátio. Era
pavimentado e estava limpo, porém crescia mato em cada rachadura. Os prédios
da cervejaria eram ligados a ele por um pequeno caminho; e os portões de
madeira desse caminho estavam abertos para toda a cervejaria, também aberta,
que se estendia até o muro alto ao longe; e tudo estava vazio e abandonado. O
vento frio parecia mais frio ali dentro do que fora dos portões; e uivava de modo
estridente ao entrar e sair pelas portas abertas da cervejaria, e era um som
semelhante ao do vento no cordame de um navio em alto-mar.
A jovem viu que eu olhava para lá, e disse: Podias sem te prejudicar beber
toda a cerveja forte que lá se faz agora, menino.
Acho que podia, sim, moça.
Melhor nem tentar fazer cerveja lá agora, pois ela ficaria azeda, menino;
não achas?
É o que parece, moça.
Não que alguém vá tentar tal coisa, ela acrescentou, pois isso agora é
passado, e o prédio há de ficar ocioso como está, até cair de podre. Quanto à
cerveja forte, o que há no celeiro já é bastante para inundar a mansão.
Esse é o nome da casa, moça?
É um dos nomes dela, menino.
Então ela tem mais de um, moça?
Tem dois. O outro era Satis;1 o que em grego, ou latim, ou hebraico, ou nas
três línguas e, pra mim, tanto se me dá quer dizer bastante.
A Casa Bastante, disse eu; é um nome curioso, moça.
É, concordou ela; mas queria dizer mais do que isso. Queria dizer, quando
foi dado a casa, que quem dela era dono não podia querer mais nada. Naquele
tempo as pessoas se satisfaziam com pouca coisa, eu diria. Mas não fiques aí a
vaguear, menino.
Embora me chamasse menino tantas vezes, e num tom descuidado que
estava longe de ser elogioso, ela era mais ou menos da minha idade. Parecia
muito mais velha do que eu, é claro, por ser menina, e bonita, e senhora de si; e
me tratava com tanto desdém quanto se tivesse vinte e um anos e fosse uma
rainha.
Entramos na casa por uma porta lateral a grande porta da frente era
atravessada por duas correntes do lado de fora e a primeira coisa de que me
dei conta foi que todos os corredores estavam às escuras, e que a moça deixara
uma vela acesa ali. Ela pegou a vela, e passamos por mais alguns corredores e
subimos uma escada, e tudo ainda estava escuro, e só a vela nos iluminava o
caminho.
Por fim chegamos à porta de um quarto, e ela disse: Entra.
Respondi, mais por timidez do que por delicadeza: Primeiro a senhora,
moça.
Ao ouvir isso, ela retrucou: Não sejas ridículo, menino; eu não vou entrar.
E afastou-se, desdenhosa, e o que era pior levou consigo a vela.
Isso era desagradável, e senti um pouco de medo. Porém, como a única
coisa a fazer era bater à porta, bati à porta, e uma voz vinda lá de dentro me
mandou entrar. Entrei, pois, e me vi num quarto bem grande, muito bem
iluminado com velas de cera. Nenhum raio de luz solar entrava ali. Era um
toucador, a julgar pelos móveis, se bem que boa parte deles tinha formas e
funções que eu desconhecia por completo. Porém ocupava um lugar de destaque
uma mesa coberta por uma toalha, com um espelho dourado, e que identifiquei à
primeira vista como uma bela penteadeira.
Se eu teria identificado esse móvel tão rapidamente se não houvesse uma
senhora imponente sentada diante dele, não sei dizer. Numa cadeira de braços,
cotovelo apoiado na mesa e cabeça pousada na mão, estava a senhora mais
estranha que eu jamais vira ou hei de ver.
Trajava roupas de materiais nobres cetins, rendas e sedas tudo branco.
Os sapatos eram brancos. E um longo véu branco caía-lhe dos cabelos, e nos
cabelos havia flores, como se ela fosse uma noiva, mas os cabelos eram brancos.
Algumas joias brilhantes cintilavam no pescoço e nas mãos, e outras cintilavam
sobre a penteadeira. Outros vestidos, não tão esplêndidos quanto o que ela estava
usando, estavam espalhados pelo recinto. Ela ainda não havia terminado de se
vestir, pois só calçara um pé do sapato o outro estava na penteadeira, perto de
sua mão o véu não estava ainda disposto de modo correto, o relógio e a
corrente e uma peça de renda para usar no busto também aguardavam sobre a
penteadeira, juntamente com o lenço, e as luvas, e algumas flores, e um livro de
orações, tudo isso amontoado de modo confuso em torno do espelho.
Não foi nos primeiros momentos que vi todas essas coisas, se bem que delas
vi mais nos primeiros momentos do que se pode imaginar. Porém vi que tudo no
meu campo de visão que era para ser branco fora branco há muito tempo, e
perdera o brilho, e estava desbotado e amarelado. Vi que a noiva com seu vestido
de noiva havia fenecido tal como o vestido, e como as flores, que não havia nela
nada que brilhasse senão os olhos fundos. Vi que o vestido havia sido usado antes
por uma jovem de formas arredondadas, e o corpo que ele agora cobria, em
dobras folgadas, reduzira-se a pele e osso. Uma vez levaram-me a um horrendo
museu de cera na feira, representando sei lá qual personagem absurdo em
câmara ardente. Numa outra vez, levaram-me para uma das velhas igrejas do
charco para ver um esqueleto coberto pelas cinzas de um vestido elegante, que
fora escavado de uma cova debaixo do piso da igreja. Agora, a figura de cera e
o esqueleto pareciam ter olhos negros que se mexiam e olhavam para mim. Eu
teria gritado, se pudesse gritar.
Quem é?, indagou a dama, junto à penteadeira.
É o Pip, senhora.
Pip?
O menino do senhor Pumblechook, senhora. Que veio
para brincar.
Chega mais perto, quero te ver. Chega mais perto.
Foi quando me plantei diante dela, evitando seus olhos, que pude observar os
objetos que a cercavam em detalhe, e vi que seu relógio havia parado às oito e
quarenta, e que o relógio do quarto havia parado às oito e quarenta.
Olha para mim, disse a sra. Havisham. Não tens medo de uma mulher
que não vê o sol desde que nasceste?
Lamento confessar que tive medo de dizer a tremenda mentira que estaria
resumida na palavra Não.
Sabes onde ponho a mão, aqui?, perguntou ela, pondo as mãos, uma sobre
a outra, no lado esquerdo do peito.
Sei, sim, senhora. (Aquilo me fez pensar no rapaz.)
Onde estou pondo a mão?
No seu coração.
Partido!
Pronunciou a palavra com uma expressão ávida, e muita ênfase, e um
sorriso estranho que parecia conter uma espécie de bravata. Depois, manteve as
mãos no lugar por mais algum tempo, e lentamente tirou-as do peito como se
fossem pesadas.
Estou cansada, disse a sra. Havisham. Quero uma distração, e cansei dos
homens e das mulheres. Brinca.
Creio que até mesmo meu leitor mais disputativo há de reconhecer que ela
não poderia ter mandado um menino infeliz fazer nada no mundo mais difícil que
isso, dadas as circunstâncias.
Por vezes tenho fantasias doentias, prosseguiu ela, e tenho a fantasia
doentia de que quero ver uma brincadeira. Vamos, vamos!, com um
movimento impaciente dos dedos da mão direita; brinca, brinca, brinca!
Por um momento, temendo vir a ver fosse o que fosse que minha irmã me
ameaçara de ver, tive a ideia desesperada de começar a correr ao redor da sala
fazendo de conta que era a carruagem do sr. Pumblechook. Senti-me, porém, tão
incapaz de fazer tal coisa que desisti, e fiquei parado olhando para a sra.
Havisham de um modo que, imagino, ela deve ter considerado insistente, pois,
depois que passamos um bom tempo olhando um para o outro, perguntou-me:
És aborrecido e obstinado?
Não, senhora; lamento muito pela senhora, e lamento muito não conseguir
brincar agora. Se a senhora se queixar de mim, minha irmã vai me castigar, por
isso eu bem que brincava se pudesse; mas aqui é tudo tão novo para mim, tão
estranho, e tão bonito
e melancólico
Parei, temendo dizer demais, ou
mesmo já ter dito demais, e passamos mais um tempo olhando um para o outro.
Antes de voltar a falar, ela desviou os olhos de mim e voltou-os para o
vestido que usava, e a penteadeira, e, por fim, à sua própria imagem no espelho.
Tão novo para ele, ela murmurou, tão velho para mim; tão estranho para
ele, tão familiar para mim; tão melancólico para nós dois! Chama a Estella.
Como ela continuava a olhar para seu próprio reflexo, julguei que estivesse
falando sozinha, e permaneci calado.
Chama a Estella, repetiu, dirigindo-me um rápido relance. Isso podes
fazer. Chama a Estella. Da porta.
Ficar parado no escuro num corredor misterioso de uma casa desconhecida,
gritando Estella para uma moça desdenhosa que não se podia ver e que não
me respondia, achando que gritar seu nome era tomar uma liberdade terrível,
era quase tão desagradável quanto brincar por obrigação. Porém ela respondeu
por fim, e sua luz veio descendo o longo corredor escuro como se fosse uma
estrela.
A sra. Havisham fez sinal para que ela se chegasse, e pegou uma joia na
penteadeira, e experimentou seu efeito sobre seu seio jovem e formoso e sobre
seus belos cabelos castanhos. Será tua, um dia, minha querida, e tu a usarás
bem. Quero ver-te jogando cartas com este menino.
Com este menino! Ora, mas ele é um trabalhadorzinho vulgar!
Julguei ouvir o que a sra. Havisham disse em resposta só que parecia uma
resposta improvável E daí? Podes partir o coração dele.
O que sabes jogar, menino?, perguntou Estella a mim, com o máximo de
desdém.
Só batalha, moça.
Derrota-o na batalha, disse a sra. Havisham a Estella. E assim sentamonos
e começamos a jogar.
Foi então que me dei conta de que tudo naquele quarto havia parado, tal
como os dois relógios, muitos anos antes. Percebi que a sra. Havisham colocou a
joia exatamente no lugar onde estava antes. Enquanto Estella dava as cartas,
voltei a olhar para a penteadeira, e vi que o sapato que estava nele, outrora
branco, agora amarelo, jamais fora usado. Olhei de relance para o pé a que
faltava o sapato, e vi que a meia de seda que o envolvia, outrora branca, agora
amarela, estava rasgada com o uso. Se não fosse essa interrupção de todo
movimento, essa imobilidade de todos os objetos pálidos e gastos, nem mesmo o
vestido de noiva fenecido que recobria aquele corpo destroçado poderia
assemelhar-se tanto ao traje de um defunto, nem o véu tanto a uma mortalha.
Assim, ela permaneceu imóvel como um cadáver enquanto nós dois
jogávamos cartas; os babados e enfeites de seu vestido de noiva pareciam papel
esfarelento. Na época, eu não sabia que por vezes são descobertos cadáveres
enterrados na antiguidade, que se reduzem a pó no instante em que são vistos
com clareza; mas posteriormente vim a refletir muitas vezes que a sra.
Havisham certamente tinha a aparência de quem, se atingida pela luz do dia,
teria se transformado em poeira.
Ele chama os valetes de jotas, este menino!, exclamou Estella com
desprezo, antes de terminarmos nossa primeira partida. E como são grosseiras
as mãos dele. E que botas mais pesadas!
Nunca me ocorrera envergonhar-me de minhas mãos; mas comecei a achálas
bem ordinárias. O desprezo de Estella era tão forte que se tornava infeccioso,
e contaminou-me.
Estella ganhou a partida, e eu dei as cartas. Errei ao fazê-lo, o que era
natural, pois eu sabia que ela estava aguardando a hora de me ver errar; e a
moça me acusou de ser um trabalhadorzinho boçal e desajeitado.
Não dizes nada dela, dirigiu-se a mim a sra. Havisham, enquanto assistia à
partida. Ela diz muitas coisas ruins de ti, mas não dizes nada a respeito dela. O
que pensas dela?
Não quero falar, gaguejei.
Fala no meu ouvido, disse a sra. Havisham, abaixando-se.
Acho que ela é muito orgulhosa, respondi, num cochicho.
Mais alguma coisa?
Acho que ela é muito bonita.
Mais alguma coisa?
Acho que ela é muito desdenhosa. (No momento, ela olhava para mim
com uma expressão de aversão extrema.)
Mais alguma coisa?
Acho que eu queria voltar para casa.
E nunca mais voltar a vê-la, embora ela seja tão bonita?
Não sei se não quero voltar a vê-la, mas eu queria mesmo voltar para
casa.
Vais voltar daqui a pouco, disse a sra. Havisham, em voz alta. Termina a
partida.
Não fosse aquele sorriso estranho que ela sorrira no início, eu teria quase
certeza de que o rosto da sra. Havisham não era capaz de sorrir. Sua face
assumira uma expressão atenta e pensativa muito provavelmente no momento
em que tudo que a cercava se imobilizara e parecia que nada seria capaz de
reanimá-la. Seu peito caíra, de modo que ela ficara recurva; e sua voz caíra, de
modo que ela falava baixo, e com uma quietude de morte que a envolvia; no
todo, dava a impressão de ter caído, corpo e alma, por dentro e por fora, sob o
peso de um golpe esmagador.
Joguei até o fim a partida com Estella, e ela me derrotou. Lançou as cartas
na mesa depois que as ganhou todas, como se as desprezasse por tê-las ganhado
de mim.
Quando vou te mandar voltar?, disse a sra. Havisham. Deixa-me pensar.
Ia eu dizer-lhe que era uma quarta-feira, quando ela me calou com mais um
movimento impaciente dos dedos da mão direita.
Não, não! Não sei nada dos dias da semana; não sei nada das semanas do
ano. Volta daqui a seis dias. Ouviste?
Sim, senhora.
Estella, leva-o daqui. Dá-lhe algo de comer, e deixa-o ficar a andar e olhar
à sua volta enquanto come. Vai, Pip.
Fui seguindo a vela ao sair, tal como seguira a vela ao entrar, e Estella
colocou-a no lugar onde a encontráramos. Até o momento em que ela abriu a
porta lateral, eu imaginava, sem pensar de fato no assunto, que haveria de ser
noite. O impacto da luz do dia me confundiu bastante, e me deu a impressão de
que eu havia ficado muitas horas naquele quarto à luz de velas.
Tu tens que esperar aqui, menino, ouviu?, disse Estella; e desapareceu,
fechando a porta.
Aproveitei a oportunidade de estar sozinho no pátio e olhei para minhas mãos
grosseiras e minhas botas ordinárias. Minha opinião a respeito desses acessórios
não era favorável. Eles jamais haviam me incomodado antes, mas agora me
incomodavam, por serem apêndices vulgares. Resolvi perguntar a Joe por que
ele me ensinara a chamar de jotas aquelas cartas de figura que deviam ser
chamadas de valetes. Pensei como seria bom se Joe houvesse sido criado como
um cavalheiro, pois aí eu também teria sido criado assim.
Ela voltou, com um pouco de pão e carne e um pequeno caneco de cerveja.
Pôs o caneco no pavimento de pedra do pátio, e deu-me o pão e a carne sem
olhar para mim, tão insolente como se eu fosse um cachorro caído em desgraça.
Eu estava tão humilhado, magoado, desprezado, ofendido, zangado, triste não
consigo encontrar o nome exato para a dor Deus sabe qual seria tal nome
que me vieram lágrimas aos olhos. Assim que elas surgiram, a moça olhou-me,
subitamente contente por tê-las causado. Isso me deu forças para contê-las e
olhar para ela: assim, ela levantou a cabeça de repente e jogou-a para trás, com
desdém porém com a consciência, pareceu-me, de ter-se excedido ao
verificar se eu estava mesmo tão magoado e deixou-me.
Porém, depois que ela saiu, olhei a meu redor, à procura de um lugar onde
pudesse esconder a cara, e enfiei-me atrás de um dos portões do caminho da
cervejaria, e apoiei o braço na parede, e encostei a testa na manga da camisa e
chorei. Enquanto chorava, eu dava pontapés na parede, e retorcia com força
meu cabelo; tão amargos eram meus sentimentos, e tão intensa a dor sem nome,
que exigiam alguma reação.
Minha irmã me criara de tal modo que eu me tornara sensível. No pequeno
mundo em que vivem as crianças, seja quem for que as crie, nada é percebido
com tanta intensidade, e sentido com tanta intensidade, quanto a injustiça. As
injustiças a que a criança é exposta podem ser pequenas; mas a criança é
pequena, e seu mundo é pequeno, e seu cavalo de balanço é tão alto, guardadas
as proporções, quanto um Irish hunter de ossos grandes. No meu íntimo, eu vivia,
desde a mais tenra infância, um conflito perpétuo com a injustiça. Eu sabia,
desde que aprendi a falar, que minha irmã, com sua coerção caprichosa e
violenta, era injusta comigo. Eu nutria a convicção profunda de que ter ela me
criado com a mão não lhe dava o direito de me criar aos cachações. Em meio a
todos os castigos, vexames, jejuns e vigílias, e outras penitências, eu nutria essa
certeza; e é a intensa convivência com ela, de um modo solitário e desprotegido,
que me parece ser a principal causa de eu ter-me tornado moralmente tímido e
muito sensível.
Livrei-me de meus sentimentos feridos por algum tempo, golpeando-os com
meus pés contra a parede da cervejaria, e arrancando-os de meu cabelo ao
torcê-lo, e depois alisei o rosto contra a manga da camisa, e saí detrás do portão.
O pão e a carne eram aceitáveis, e a cerveja me aquecia e animava, e logo tive
ânimo de olhar à minha volta.
Sem dúvida, era um lugar deserto, como estava deserto o pombal no pátio da
cervejaria, no alto de um poste que algum vento forte entortara, de tal modo que
os pombos haveriam de se imaginar em alto-mar, se pombos lá houvesse a
balouçar-se. Mas não havia pombos no pombal, nem cavalos na estrebaria, nem
porcos na pocilga, nem malte no armazém, nem cheiros de cereais e cerveja no
tacho nem no tonel. Era como se todas as funções e todos os cheiros da
cervejaria houvessem evaporado junto com o último fiapo de fumaça. Num
pátio adjacente, havia uma selva de barris vazios, em torno dos quais ainda
pairava uma lembrança azeda de dias melhores; mas era azeda demais para ser
tomada como amostra da cerveja que não havia mais e, sob esse aspecto,
esses reclusos, assim me pareceu, eram semelhantes à maioria dos reclusos.
Atrás da extremidade mais distante da cervejaria havia um jardim
abandonado, cercado por um muro velho: não tão alto que eu não pudesse subir
nele e me segurar o tempo suficiente para olhar por cima dele, e ver que o
jardim abandonado era o jardim da casa, e que ele estava tomado por um
emaranhado de mato, mas que havia marcas de passos nas pistas verdes e
amarelas, como se alguém por vezes andasse lá, e vi Estella afastando-se de
mim naquele exato momento. Mas ela parecia estar em toda parte. Pois quando
não resisti à tentação e comecei a caminhar sobre os barris, vi Estella andando
sobre eles no outro lado do pátio. Estava de costas para mim, e segurava com as
duas mãos o lindo cabelo castanho, e não olhava para trás, e logo saiu de meu
campo de vista. Assim, entrei na cervejaria em si ou seja, no prédio amplo e
majestoso onde outrora se fabricava cerveja, e onde os implementos usados para
fazer cerveja ainda estavam em seus lugares. Tão logo entrei, e, um tanto
oprimido pela escuridão, parei junto à porta olhando a meu redor, vi Estella
passar por entre os fogões apagados, e subir por uma escada de ferro leve, e sair
por uma galeria bem elevada, como se fosse penetrar no céu.
Foi nesse lugar, e nesse momento, que uma coisa estranha sucedeu com
minha fantasia. Julguei estranho o que vi então, e julguei-o ainda mais estranho
por muito tempo depois. Voltei os olhos um pouco ofuscados por estarem
virados para a fria luz do dia em direção a uma grande viga de madeira num
recanto baixo do prédio perto de mim, à minha direita, e vi um vulto pendurado
ali pelo pescoço. Um vulto todo de branco amarelado, com apenas um dos pés
calçados; e pendurado de tal modo que me permitia ver que os babados
desbotados do vestido pareciam papel esfarelento, e que o rosto era o da sra.
Havisham, a mover-se como se ela estivesse tentando chamar-me. Apavorado
por me ver diante daquele vulto, e apavorado por estar certo de que ele não
estivera ali um momento antes, de início fugi correndo, e depois corri em direção
ao vulto. E fiquei ainda mais apavorado quando verifiquei que não havia vulto
algum ali.
Nada menos que a luz fria do céu alegre, a visão de gente passando do outro
lado das grades do portão e a influência revivificante do que restava do pão, da
carne e da cerveja teria feito com que eu recuperasse os sentidos. Mesmo com
esses estímulos, eu talvez não tivesse recuperado os sentidos tão depressa se não
tivesse visto Estella se aproximando com as chaves, vindo abrir o portão para
mim. Ela teria bons motivos para me desprezar, pensei, se me visse assustado; e
eu não queria que ela tivesse bons motivos.
Estella voltou-me um olhar triunfal quando passou por mim, como se
estivesse se regozijando com minhas mãos grosseiras e minhas botas pesadas, e
abriu o portão, e ficou a segurá-lo. Eu estava saindo sem olhar para ela, quando
ela me tocou com uma mão provocante.
Por que não choras?
Porque não quero.
Choras, sim, disse ela. Choraste até não poder mais, e agora estás quase
chorando de novo.
Ela riu, desdenhosa, empurrou-me para fora e trancou o portão na minha
cara. Fui direto à casa do sr. Pumblechook, e fiquei muitíssimo aliviado quando
soube que ele não estava em casa. Assim, tendo dito ao caixeiro em que dia a
sra. Havisham queria que eu voltasse, comecei a caminhar as quatro milhas que
me separavam da nossa ferraria; pensando, enquanto seguia, em tudo que eu
vira, e remoendo profundamente a ideia de que eu era um trabalhadorzinho
vulgar; que minhas mãos eram grosseiras, que minhas botas eram pesadas; que
eu adquirira o hábito desprezível de chamar os valetes de jotas; que eu era muito
mais ignorante do que julgava ser na véspera, e, de modo geral, que minha vida
era muito vil e má.
* High-street: a rua principal de uma cidade. (n. t.)
9
Quando cheguei em casa, minha irmã estava curiosíssima para que eu lhe
contasse tudo a respeito da sra. Havisham, e me fez uma série de perguntas. E
logo em seguida comecei a levar cachações fortes na nuca e no lombo, e minha
cabeça foi empurrada contra a parede da cozinha do modo mais humilhante, por
não ter eu dado respostas suficientemente longas a essas perguntas.
Se o pavor de não ser compreendido se oculta no coração das outras crianças
tanto quanto se ocultava no meu o que me parece provável, pois não tenho
nenhum motivo para me considerar uma espécie de monstro ele explica
muitos casos de reserva. Eu estava convicto de que, se descrevesse a sra.
Havisham tal como meus olhos a viram, não seria compreendido. Não só isso,
como também estava convicto de que também a sra. Havisham não seria
compreendida; e embora ela fosse de todo incompreensível para mim, tinha eu a
impressão de que seria de algum modo grosseiro e traiçoeiro eu evocar a
imagem real dessa senhora (para não falar na da jovem Estella) para a
contemplação da sra. Joe. Assim, falei o mínimo possível, e terminei com a
cabeça empurrada contra a parede da cozinha.
O pior de tudo foi que Pumblechook, aquele velho tirânico, consumido por
uma curiosidade doentia, queria ser informado de tudo que eu vira e ouvira, e
chegou sequioso em sua carruagem na hora do chá, para que os detalhes lhe
fossem divulgados. E, diante daquele tormento, com seus olhos de peixe e boca
entreaberta, o cabelo ruivo espetado como se numa interrogação, o peito arfando
de aritmética gasosa, por pirraça tornei-me ainda mais reticente.
Bem, menino, foi dizendo o tio Pumblechook, tão logo se instalou no lugar
de honra ao pé do fogo. Como foi lá?
Respondi: Muito bem, senhor, e minha irmã sacudiu o punho para mim.
Muito bem?, repetiu o sr. Pumblechook. Muito bem não é resposta.
Explique o que queres dizer com muito bem, menino?
Cal de parede na testa endurece o cérebro, tornando-o obstinado, talvez. Seja
como for, tendo eu a testa suja de cal, minha obstinação tornou-se férrea. Refleti
por algum tempo, e em seguida respondi, como se tivesse tido uma nova ideia:
Quero dizer que fui muito bem.
Minha irmã, com uma exclamação de impaciência, estava prestes a partir
para cima de mim eu não tinha qualquer esperança de proteção, pois Joe
estava trabalhando na ferraria quando o sr. Pumblechook interveio: Não!
Não perca as estribeiras. Deixe o rapazinho comigo, minha senhora; deixe o
rapazinho comigo. O sr. Pumblechook virou-me para si, como se fosse cortar
meu cabelo, e disse:
Primeiro (para pôr em ordem as ideias): quarenta e três pence.1
Calculei as consequências de responder quatrocentas libras, e concluindo
que elas seriam negativas para mim, aproximei-me da resposta certa tanto
quanto pude ou seja, errando por cerca de oito pence. Então o sr.
Pumblechook me fez recitar a tabuada dos pence desde doze pence dão um
xelim até quarenta pence dão três xelins e quatro pence, e em seguida exigiu,
triunfante, como se me houvesse encurralado: Agora! Quarenta e três pence
dão quanto?. Respondi, após um longo intervalo de reflexão: Não sei. E eu
estava tão irritado que quase chego a pensar que não sabia, mesmo.
O sr. Pumblechook retorceu a cabeça como se fosse um parafuso, para com
ele abrir meu raciocínio, e indagou: Quarenta e três pence dão sete xelins, seis
pence e três farthings,* por exemplo?.
Isso!, exclamei. E embora minha irmã na mesma hora socasse meus
ouvidos, para mim foi muito gratificante ver que minha resposta tirou a graça de
sua brincadeira, e o fez calar-se por completo.
Menino! Como é a senhora Havisham?. O sr. Pumblechook voltou à carga
depois que se recuperou, com os braços cruzados sobre o peito e apertando seu
parafuso.
Muito alta e morena, respondi.
É mesmo, tio?, perguntou minha irmã.
O sr. Pumblechook fez que sim com uma piscadela, com base na qual deduzi
na mesma hora que ele jamais vira a sra. Havisham, pois ela em nada
correspondia a tal descrição.
Bom!, exclamou o sr. Pumblechook, presunçoso. (É assim que vamos
pegá-lo! Estamos começando a avançar, creio eu, não é, senhora?)
Certamente, tio, retrucou a sra. Joe. Eu queria muito que o senhor o
pegasse sempre: o senhor sabe lidar com ele muito bem.
Mas sim, menino! O que ela estava fazendo quando chegaste lá hoje?,
perguntou o sr. Pumblechook.
Ela estava sentada, respondi, dentro de uma carruagem de veludo preto.
O sr. Pumblechook e a sra. Joe entreolharam-se e não era para menos
repetindo ambos: Dentro de uma carruagem de veludo preto?.
Isso mesmo, respondi. E a Estella a sobrinha dela, eu acho serviulhe
bolo e vinho pela janela da carruagem, num prato de ouro. E nós todos
comemos bolo e tomamos vinho em pratos de ouro. E eu subi atrás da
carruagem para comer meu bolo, porque ela mandou.
Havia mais alguém lá?, perguntou o sr. Pumblechook.
Quatro cachorros, respondi.
Grandes ou pequenos?
Enormes, disse eu. E eles ficaram brigando por umas costeletas de vitelas
servidas numa cesta de prata.
O sr. Pumblechook e a sra. Joe entreolharam-se outra vez, em total
perplexidade. Eu estava completamente frenético uma testemunha
desarvorada sob tortura e seria capaz de lhes dizer qualquer coisa.
Onde estava essa carruagem, Deus do céu?, indagou minha irmã.
No quarto da senhora Havisham. Os dois entreolharam-se de novo. Mas
não havia cavalo nenhum. Fiz essa ressalva salvadora imediatamente após
rejeitar quatro corcéis ricamente ajaezados, que tive a ideia louca de atrelar à
carruagem.
Isso é possível, tio?, indagou a sra. Joe. O que esse menino está querendo
dizer?
Eu sei o que é, minha senhora, replicou o sr. Pumblechook. A meu ver, é
uma liteira. Ela é caprichosa, sabe muito caprichosa o bastante pra ficar o
tempo todo dentro de uma liteira.
O senhor já a viu na liteira, tio?, perguntou a sra. Joe.
Mas como?, retrucou ele, obrigado a confessar-se. Como, se eu nunca a
vi na minha vida? Nunca pus os olhos nela!
Meu Deus, tio! E, no entanto, o senhor já falou com ela?
Ora, a senhora não sabe, ele explicou, irritado, que quando vou lá, levamme
até junto à porta do quarto dela, e a porta fica entreaberta, e ela fala comigo
pela fresta? Não me diga que a senhora não sabia disso. Mas, enfim, o menino foi
lá para brincar. De que brincaste, menino?
Brincamos com bandeiras, respondi. (Peço licença para comentar que
vejo a mim mesmo com perplexidade, quando relembro as mentiras que contei
nessa ocasião.)
Bandeiras!, repetiu minha irmã.
Isso mesmo, respondi. A Estella sacudia uma bandeira azul, e eu sacudia
uma vermelha, e a senhora Havisham uma toda salpicada de estrelinhas
douradas, pela janela da carruagem. E depois todos nós sacudíamos nossas
espadas e gritávamos hurra.
Espadas!, repetiu minha irmã. Onde vocês pegaram as espadas?
Num armário, expliquei. E vi que dentro dele tinha pistolas também e
geleia e pílulas. E não entrava a luz do dia na sala, era só luz de velas.
Isso é verdade, sim, senhora, disse o sr. Pumblechook, balançando a
cabeça, solene. É essa a situação, pois eu próprio já verifiquei. E então os dois
olharam para mim, e eu, com uma expressão atrevida de espontaneidade no
rosto, olhei para eles, enquanto pregueava a perna direita das calças com a mão
direita.
Se eles houvessem feito mais perguntas, sem dúvida eu terminaria por me
entregar, pois estava prestes a acrescentar que havia um balão no quintal, e só
não cheguei a arriscar tal afirmação porque minha inventividade estava dividida
entre esse fenômeno e a presença de um urso na cervejaria. Eles, porém,
estavam tão entretidos em comentar as maravilhas por mim expostas a sua
consideração, que escapei. O assunto ainda os ocupava quando Joe veio da
ferraria para tomar uma xícara de chá. E a ele minha irmã, mais para aliviar sua
própria mente do que para gratificar a dele, relatou minhas supostas
experiências.
Ora, quando vi Joe arregalar os olhos azuis e correr a vista por toda a
cozinha, sem saber o que fazer de tão atônito, fui tomado pelo remorso; mas o
sentimento era dirigido a ele apenas nem um pouco aos outros dois. Em
relação a Joe, e só a Joe, eu me sentia um monstrinho, enquanto eles
conversavam sobre as possíveis consequências de eu travar conhecimento com a
sra. Havisham e cair nas graças dela. Estavam certos de que a sra. Havisham
faria alguma coisa por mim; mas não tinham certeza a respeito do que essa
coisa viria a ser. Minha irmã apostava na propriedade. O sr. Pumblechook era
a favor de um generoso pagamento para que eu me tornasse aprendiz de algum
ofício refinado por exemplo, o comércio de cereais e sementes. Joe caiu em
desgraça junto a ambos, por dar a brilhante sugestão de que talvez apenas eu
ganhasse de presente um dos cães que haviam disputado as costeletas de vitela.
Se na tua parvoíce não tens opiniões melhores para dar, disse minha irmã, e
tens trabalho a fazer, melhor ir trabalhar. Foi o que Joe fez.
Depois que o sr. Pumblechook voltou para sua casa, e quando minha irmã foi
se lavar, escapuli para a ferraria para ficar com Joe, e lá permaneci até que ele
encerrasse o expediente. Então eu lhe disse: Antes de apagar o fogo, Joe, queria
te contar uma coisa.
É mesmo, Pip?, disse Joe, puxando seu banquinho para perto da fornalha.
Então dize lá. O que foi, Pip?
Joe, comecei, segurando a manga enrolada de sua camisa e retorcendo-a
entre o indicador e o polegar, lembra tudo que falei sobre a casa da senhora
Havisham?
Se lembro?, disse Joe. Acredito em ti! Maravilhoso!
É terrível, Joe; mas não é verdade.
O que estás dizendo, Pip?, exclamou Joe, jogando-se para trás na maior
perplexidade. Não é possível que estejas me dizendo que
Isso mesmo, Joe; é mentira.
Mas não tudo? Ora, não vais me dizer, Pip, que não havia nenhuma
carruagem de veludo pr
hein? Pois eu sacudi a cabeça. Mas pelo menos
tinha cachorro, Pip. Ora, Pip, disse Joe, num tom persuasivo, se não tinha
costeleta de vitela, pelo menos cachorro tinha?
Não, Joe.
Nem unzinho?, insistiu ele. Um filhote? Hein?
Não, Joe, não havia nada disso.
Enquanto eu olhava fixamente para Joe, desconsolado, ele me olhava com
desânimo. Pip, meu velho! Isso não se faz, rapaz! Ora veja! Onde que
pretendes ir parar?
É terrível, Joe, não é?
Terrível?, exclamou ele. É horrendo! O que deu em ti?
Não sei o que deu em mim, Joe, respondi, soltando a manga de sua camisa
e me sentando em meio às cinzas a seus pés, de cabeça baixa; mas eu queria
que tu não tivesses me ensinado a chamar os valetes do baralho de jotas; e queria
que minhas botas não fossem tão pesadas, e minhas mãos não fossem tão
grosseiras.
Então disse a Joe que era muito infeliz, que não conseguira me explicar à sra.
Joe e ao sr. Pumblechook que me tratavam tão mal, e que havia uma mocinha
muito bonita na casa da sra. Havisham que era terrivelmente orgulhosa, e que ela
dissera que eu era vulgar, e que eu sabia que era vulgar, e que eu queria não ser
vulgar, e que as mentiras haviam surgido a partir disso, se bem que eu não sabia
como.
Tratava-se de uma questão metafísica, ao menos tão difícil para Joe quanto
era para mim. Mas Joe retirou o problema da esfera da metafísica, e desse modo
o resolveu.
De uma coisa não deves ter dúvida, Pip, disse Joe, após ruminar por algum
tempo, é que mentira é mentira. Seja lá como ela aparece, ela não devia de
aparecer, e ela vem do pai das mentira, e todas ela dá no mesmo. Não contes
mais mentira, não, Pip. Não é assim que vais deixar de ser vulgar, meu velho. E
quanto a ser vulgar, não entendi muito bem essa. Não tens nada de vulgar numas
coisa. És muito pequeno pra tua idade, o que não é vulgar. E também em matéria
de estudo não és vulgar.
Sou, sim, Joe. Sou muito ignorante, Joe.
Ora, então eu não vi a carta que escreveste ontem! E em letra de imprensa
ainda por cima! Já vi carta e carta escrita por gente de qualidade que juro
que não era escrita em letra de imprensa, disse Joe.
Não aprendi quase nada, Joe. Tu me tens em alta conta. É só isso.
Bem, Pip, disse Joe, seje ou não seje verdade, o fato é que tens que
começar sendo vulgar em matéria de estudo pra depois poder ser invulgar, a
meu ver! O rei lá, sentado no trono dele, com a coroa na cabeça, não pode
escrever as lei do Parlamento em letra de imprensa sem antes começar, quando
ainda era príncipe, antes de ser promovido, a aprender as letra do alfabeto
Ah!, acrescentou Joe, com um meneio de cabeça cheio de significados, e tem
que começar no A, e seguir até o Z. E eu sei o que é fazer isso, mesmo não tendo
feito muito direitinho.
Havia alguma esperança nessa sabedoria, e ela me animou um bocado.
E se pra quem é vulgar em matéria de profissão e renda, prosseguiu Joe,
pensativo, não é melhor mesmo continuar andando com quem é vulgar, em vez
de ir brincar com os invulgar aliás, por falar nisso, tinha mesmo bandeira, não
tinha? Eu espero que sim.
Não tinha, não, Joe.
(Pena que não tinha bandeira, Pip.) Se isso é ou não é verdade, é coisa que
não dá pra descobrir agora, sem a tua irmã ficar espumando, e fazer isso de
propósito, nem pensar. Olha aqui, Pip, quem te fala é amigo de verdade. Ouve o
que te diz este amigo de verdade. Se não conseguires ser invulgar andando às
direita, não vais conseguir andando às torta. Então não contes mais mentira, não,
Pip, e vive bem e morre feliz.
Não estás zangado comigo, não, Joe?
Não, meu velho. Mas levando-se em conta que as que contaste eram,
diguemos assim, de uma natureza muito assombrosa e exagerada inclusive
com alusães a costeleta de vitela e briga de cachorro meu conselho de amigo,
Pip, é que tu penses nelas quando fizeres tuas meditaçães, na hora de te deitares.
Só isso, meu velho, e nunca mais voltes a fazer isso.
Quando subi a meu quartinho e pus-me a rezar, não me esqueci da
recomendação de Joe, e, no entanto, minha mente infantil estava em tal estado
de perturbação ingrata que muito após me deitar continuava pensando que Estella
acharia Joe, um mero ferreiro, muito vulgar: botas tão pesadas, mãos tão
grosseiras. Pensei que Joe e minha irmã estavam na cozinha e que eu viera da
cozinha a meu quarto, e que a sra. Havisham e Estella nunca ficavam na cozinha,
porém estavam muito acima dessas vulgaridades. Adormeci pensando no que eu
costumava fazer quando ia à casa da sra. Havisham, como se eu a
frequentasse há semanas e meses, e não horas; como se fosse um tema que há
muito ocupasse minhas recordações, e não um que surgira apenas naquele dia.
Foi para mim um dia memorável, pois ocasionou grandes mudanças em
mim. Mas é assim com todas as vidas. Imagine que um determinado dia fosse
eliminado de sua vida, e pense em todas as consequências que isso teria sobre o
resto dela. Para e pensa, tu que me lês, por um momento, na longa cadeia de
ferro ou ouro, de espinhos ou flores, que jamais te teria cingido, não fosse a
formação do primeiro elo num dia memorável.
* O farthing era uma moeda que valia um quarto de um pêni. (n. t.)
10
Ocorreu-me, uma ou duas manhãs depois, ao despertar, a ideia feliz de que o
melhor a fazer, no sentido de me tornar invulgar, era extrair de Biddy tudo que
ela sabia. Tendo em vista esse plano luminoso, disse eu a Biddy, quando fui à
casa da tia-avó do sr. Wopsle naquela noite, que tinha um motivo especial para
querer subir na vida, e que eu lhe ficaria muito agradecido se ela me transmitisse
todos os seus conhecimentos. Biddy, que era a mais prestativa das moças, de
imediato prometeu-me que o faria, e de fato começou a cumprir sua promessa
cinco minutos depois.
O plano ou curso educacional estabelecido pela tia-avó do sr. Wopsle pode
ser resumido na sinopse que se segue. Os alunos comiam maçãs e punham palha
um nas costas do outro, até que a tia-avó do sr. Wopsle reunia suas forças e
esboçava em direção a eles um gesto indiscriminado com uma vara de vidoeiro.
Tendo reagido a esse ataque com muitas manifestações de deboche, os alunos
entravam em fila e ruidosamente passavam um livro rasgado de mão em mão.
O livro continha um alfabeto, algumas cifras e tabuadas e um pouco de
ortografia melhor dizendo, contivera tais coisas outrora. Tão logo esse volume
começava a circular, a tia-avó do sr. Wopsle entrava num estado de coma,
provocado pelo sono ou por algum paroxismo reumático. Quanto aos alunos,
esses começavam a disputar uma espécie de sabatina competitiva a respeito do
assunto botas, com o fito de determinar quem era capaz de pisar com mais força
nos pés de quem. Esse exercício mental perdurava até o momento em que Biddy
se precipitava sobre eles e distribuía três Bíblias desfiguradas (cuja forma levava
a pensar que eram extremidades mal cortadas de alguma coisa), cuja impressão
era mais ilegível do que qualquer outra curiosidade literária que me tenha caído
nas mãos desde então, bíblias todas salpicadas de tinta e contendo diversos
espécimes de insetos esmagados entre suas páginas. Essa parte do curso
costumava ser animada por uma série de combates individuais entre Biddy e
alunos refratários. Findas as lutas, Biddy dava o número da página e todos nós
líamos em voz alta o que conseguíamos ler ou o que não conseguíamos ler
num coro horrendo, puxado por Biddy com uma voz alta, estridente e monótona,
sendo que nenhum de nós fazia a menor ideia, nem sentia a mínima reverência,
pelo que estávamos lendo. Quando essa barulheira terrível se prolongava por
certo tempo, tinha o efeito automático de despertar a tia-avó do sr. Wopsle, que
avançava sobre um menino aleatório e lhe puxava as orelhas. Este era o sinal
convencional que assinalava o término da aula daquela noite, e saíamos para a
rua com gritos de vitória intelectual. Há que admitir que os alunos não eram
proibidos de se entreterem com uma lousa ou mesmo com tinta (quando havia
tinta), porém não era fácil entregar-se a tais atividades no inverno, porque a
pequena loja onde eram realizadas as aulas e que era também a sala de estar
e o quarto de dormir da tia-avó do sr. Wopsle era mal iluminada por uma
única e desanimada vela de imersão, sem espevitadeiras.1
Parecia-me que seria necessário muito tempo para me tornar invulgar em
tais circunstâncias; não obstante, resolvi tentar, e naquela mesma noite Biddy
começou a pôr em prática o que havíamos combinado, repassando-me
informações de seu pequeno catálogo de preços, referentes ao açúcar mascavo,
e me emprestando, para que eu copiasse em casa, um D grande e antiquado que
ela imitara do cabeçalho de algum jornal, e que me parecera, até ela me
explicar o que era, o desenho de uma fivela.
Havia, é claro, uma taberna na aldeia, e Joe, é claro, gostava de ir lá às vezes
para fumar seu cachimbo. Eu recebera ordens rigorosas de minha irmã para ir
chamá-lo nesse estabelecimento, chamado Aos Três Barqueiros Alegres,
naquela noite, quando voltasse da escola, e o trouxesse para casa, senão eu seria
punido. Assim sendo, segui para o Três Barqueiros Alegres.
Havia na Três Barqueiros um salão de bebidas, com umas contas
assustadoramente longas escritas em giz na parede ao lado da porta, que me
pareciam jamais ter sido pagas. Estavam ali desde que eu me tinha por gente, e
haviam crescido mais do que eu. Mas havia muito giz na nossa região, e talvez as
pessoas não quisessem perder uma oportunidade de utilizá-lo.
Como era sábado, encontrei o proprietário a contemplar essas anotações
com ar um tanto tristonho, mas como eu estava ali para falar com Joe e não com
ele, limitei-me a desejar-lhe boas-noites e segui em direção ao salão no final do
corredor, onde um fogão grande estava aceso, e onde Joe fumava seu cachimbo
acompanhado pelo sr. Wopsle e um desconhecido. Joe me saudou, como
sempre, com Olá, Pip, meu velho!, e tão logo ele me saudou o estranho virouse
e olhou para mim.
Era um homem de ar misterioso que eu jamais vira antes. A cabeça estava
inclinada para um lado, e um de seus olhos estava entrefechado, como se ele
mirasse algum alvo com uma arma invisível. Tinha na boca um cachimbo, e
tirou-o, e após soprar lentamente toda a fumaça, olhando para mim o tempo
todo, acenou com a cabeça. Fiz o mesmo, e depois ele repetiu o gesto, e chegouse
para o lado no banco de madeira para que eu pudesse me sentar também.
Mas, como costumava sentar-me ao lado de Joe sempre que ia àquele lugar,
eu disse: Não, obrigado, senhor, e instalei-me no lugar que Joe abrira para
mim no banco em frente. O estranho, após olhar para Joe, e vendo que a atenção
de Joe estava voltada para outro foco de interesse, acenou outra vez para mim
depois que me sentei, e em seguida esfregou a mão na perna de um modo
muito estranho, foi o que me pareceu.
O senhor estava dizendo, disse o desconhecido, virando-se para Joe, que
era ferreiro.
Sim. Foi o que eu disse, respondeu Joe.
O que o senhor vai tomar, senhor
? Aliás, ainda não me disse sua graça.
Joe identificou-se, e o desconhecido chamou-o pelo nome. O que o senhor
vai tomar, senhor Gargery ? Às minhas custas? Pra fechar?
Sabe, disse Joe, pra falar com franqueza, não tenho o hábito de beber às
custa dos outro, não.
Hábito? Ora, retrucou o estranho, mas uma vez na vida só, e numa noite
de sábado inda por cima. Vamos lá! Diga o que vai tomar, senhor Gargery .
Não quero ser má companhia, disse Joe. Rum.
Rum, repetiu o desconhecido. E o outro cavalheiro vai manifestar sua
preferência?
Rum, disse o sr. Wopsle.
Três rum!, exclamou o estranho, dirigindo-se ao proprietário. Copo pra
todo mundo!
Este outro cavalheiro, observou Joe, como forma de apresentar o sr.
Wopsle, o senhor havia de gostar de ouvir este cavalheiro fazendo uma leitura.
É o sacristão da nossa igreja.
Ahá!, disse o estranho, mais que depressa, inclinando a cabeça e olhando
para mim. A igreja solitária, no meio do charco, cercada de túmulo!
Essa mesma, disse Joe.
O desconhecido, pitando com um grunhido de prazer, pôs as pernas em cima
do banco que ocupava sozinho. Usava um chapéu de viajante, de abas largas e
moles, debaixo do qual havia um lenço amarrado na cabeça à guisa de capuz: de
modo que dele não se via o cabelo. Enquanto ele olhava para o fogo, julguei
divisar em seu rosto uma expressão astuciosa, seguida por um meio riso.
Não conheço esta terra, mas parece ser um lugar solitário, ali perto do rio.
Chaco é sempre um lugar solitário, disse Joe.
Sem dúvida, sem dúvida. Por lá hoje em dia a gente encontra cigano, ou
vagabundo, ou alguma outra espécie de gente vadia?
Não, disse Joe, só um que outro forçado fugido de vez em quando. E
esses, a gente nunca que encontra, com facilidade. Não é, senhor Wopsle?
O sr. Wopsle concordou, com um gesto majestoso que reconhecia a
lembrança de um desconforto antigo; mas sem entusiasmo.
Pelo visto, vocês já saíram atrás de um deles?, indagou o estranho.
Uma vez, respondeu Joe. Não que a gente quisesse pegar eles, veja lá;
nós fumo só pra ver; eu, o senhor Wopsle, e mais o Pip. Não foi, Pip?
Foi, Joe.
O desconhecido olhou-me outra vez ainda de cabeça inclinada, como se
estivesse me mirando com sua arma invisível e disse: Simpático, esse
rapazinho magricela. Como foi que o senhor chamou ele?.
Pip, respondeu Joe.
Nome de batismo?
Não, não é nome de batismo, não.
Sobrenome?
Não, explicou Joe, é uma espécie de apelido que ele se deu quando
pequeno, e a gente chama ele assim.
Seu filho?
Bem, respondeu Joe, pensativo não, é claro, que fosse necessário
meditar acerca da questão, mas porque, na Três Barqueiros, as pessoas pareciam
meditar profundamente a respeito de tudo enquanto pitavam seus cachimbos,
bem
não. Não é, não.
Sobrinho?, perguntou o estranho.
Bem, disse Joe, com o mesmo ar de cogitação profunda, não não, não
vou lhe enganar, ele não é meu sobrinho.
Mas então, o que cargas-dágua ele é?, indagou o estranho. O que me
pareceu uma interrogativa excessivamente enfática.
Nesse momento, interveio o sr. Wopsle, um entendido em relacionamentos,
que tinha oportunidades profissionais de saber quais parentas um homem não
podia desposar,2 e explicou o vínculo que havia entre mim e Joe. Tendo entrado
na conversa, o sr. Wopsle aproveitou para encaixar uma passagem terrivelmente
violenta de Ricardo III,3 e pelo visto julgou ter justificado muito bem a citação
acrescentando:
como diz o poeta.
E aqui cabe observar que quando o sr. Wopsle se referia a mim, ele via
como parte necessária dessa referência os gestos de despentear meu cabelo e
enfiá-lo em meus olhos. Não consigo entender por que motivo todas as pessoas
da mesma condição social que ele, ao visitar nossa casa, sempre me faziam
passar pelo mesmo processo inflamatório em circunstâncias semelhantes. Não
me lembro de uma única ocasião na minha infância em que, sendo objeto de
algum comentário no círculo social de nossa família, alguma pessoa de mãos
grandes não tenha recorrido ao mesmo método oftálmico de me tratar com
condescendência.
Durante todo esse tempo, o homem estranho olhava apenas para mim, e
olhava-me como se estivesse decidido a encontrar uma oportunidade de por fim
atirar em mim, e me derrubar. Não disse nada, porém, após sua observação
sobre as cargas-dágua, enquanto não foram trazidos os copos de rum com água;
e foi então que deu seu tiro, um tiro dos mais extraordinários.
Não foi um comentário verbal, e sim um procedimento de mímica,
claramente endereçado a mim. Mexeu seu copo de rum com água de maneira
ostensivamente dirigida a mim, e provou seu rum com água de maneira
ostensivamente dirigida a mim. E o mexeu e o provou: não com a colher que lhe
foi entregue, e sim com uma lima.
Fez isso de tal modo que ninguém, além de mim, viu a lima; e, tendo-o feito,
enxugou a lima e guardou-a num bolso interno. Percebi que era a lima de Joe, e
que o homem conhecia o meu forçado, tão logo pus os olhos na ferramenta.
Fiquei a olhá-lo fixamente, fascinado. Depois, porém, o estranho reclinou-se no
banco, dando-me muito pouca atenção, e falando principalmente sobre nabos.
Havia uma deliciosa sensação de arrumar as coisas e fazer uma pausa
tranquila antes de tocar a vida para a frente, na nossa aldeia, nas noites de
sábado, algo que estimulava Joe a ousar voltar para casa meia hora mais tarde
aos sábados do que nos outros dias. Como já chegavam ao fim a meia hora e o
copo de rum com água, Joe levantou-se para sair, e pegou-me pela mão.
Espere só um instante, senhor Gargery , disse o desconhecido. Acho que
tenho um xelim novinho em folha no bolso, e se tiver mesmo, vou dá-lo ao
menino.
Encontrou o xelim num punhado de moedas, embrulhou-o num papel
amassado e entregou-o a mim. É teu!, disse ele. Veja lá! Só teu.
Agradeci, olhando para ele muito além dos limites da boa educação,
agarrado a Joe. Ele deu as boas-noites a Joe, e deu as boas-noites ao sr. Wopsle
(que saiu conosco), e a mim limitou-se a dirigir um olhar com seu olho de fazer
pontaria não, não foi um olhar, pois ele fechou o olho, mas coisas
maravilhosas podem ser feitas com um olho escondendo-o.
A caminho de casa, se estivesse com vontade de conversar, eu teria de falar
sozinho, pois o sr. Wopsle despediu-se de nós à porta da Três Barqueiros, e Joe foi
até em casa com a boca escancarada, para que o ar levasse embora o cheiro de
rum tanto quanto possível. Mas eu estava de certo modo estupefato diante dessa
consequência da má ação que eu cometera e do conhecimento que eu travara no
passado, e não conseguia pensar em mais nada.
Minha irmã não estava de humor muito mau quando nos apresentamos na
cozinha, e Joe sentiu-se estimulado por essa circunstância inesperada para lhe
falar do xelim novo em folha. Deve ser falso, aposto, disse a sra. Joe, triunfal,
senão ele não dava pro menino! Mostra cá.
Desembrulhei a moeda do papel, e ela se revelou verdadeira. Mas o que é
isso?, disse a sra. Joe, largando o xelim e pegando o papel. Duas notas de uma
libra?4
Nada menos do que duas notas gordas e suadas, que pareciam ter gozado da
maior intimidade com todos os mercados de gado do condado. Joe pegou o
chapéu e saiu correndo para devolvê-las ao dono. Na sua ausência, sentei-me em
meu banquinho costumeiro e fiquei olhando para minha irmã com um olhar sem
expressão, certo de que o homem não estaria lá.
Pouco depois Joe voltou, dizendo que o homem tinha ido embora, mas que
ele, Joe, deixara um recado para ele na Três Barqueiros Alegres a respeito das
notas. Então minha irmã embrulhou-as num pedaço de papel que ela lacrou, e
colocou-as debaixo de umas folhas de roseira secas num bule ornamental em
cima de um armário na sala de visitas de cerimônia. E lá ficaram, um pesadelo
para mim, por muitos dias e muitas noites.
Quando me deitei, meu sono foi tristemente interrompido por pensamentos
do estranho a mirar-me com sua arma invisível, e do que havia de culposamente
grosseiro e vulgar em ter relações clandestinas e secretas com forçados um
momento da minha carreira de vilezas que eu havia esquecido. Também me
assombrava aquela lima. Dominava-me o medo de que, quando eu menos
esperasse, a lima reaparecesse. Convenci-me a dormir pensando na ida à casa
da sra. Havisham, na quarta-feira seguinte; e num sonho vi a lima saindo de uma
porta e aproximando-se de mim, sem que eu visse quem a segurava, e acordei
gritando.
11
À hora combinada, voltei à casa da sra. Havisham, e quando toquei a campainha
do portão, hesitante, Estella veio abrir. Ela trancou o portão assim que entrei,
como da outra vez, e tal como antes foi seguindo à minha frente pelo corredor
escuro onde ficava a sua vela. Ignorou minha presença até o momento em que
pegou a vela, quando então se virou para trás, numa atitude arrogante, e disse:
Hoje tens que vir por aqui, e conduziu-me por um caminho que levava a outra
parte bem diferente da casa.
Este corredor era longo, e parecia estender-se por todo o porão quadrado da
mansão. Porém atravessamos apenas um lado do quadrado; ao final ela parou,
largou a vela e abriu uma porta. Então a luz do dia reapareceu, e me vi num
pequeno pátio pavimentado, o lado oposto do qual era formado por uma casa
separada, que parecia ter pertencido outrora ao administrador ou diretor da
cervejaria extinta. Havia um relógio na parede externa dessa casa. Tal como o
relógio do quarto da sra. Havisham, e como o relógio de bolso dela, ele estava
parado indicando as oito e quarenta.
Entramos pela porta, que estava aberta, e fomos dar num cômodo escuro de
teto baixo, no andar térreo, nos fundos da casa. Havia outras pessoas presentes, e
Estella me disse ao juntar-se a elas: Fica parado ali, menino, até que te
chamem. Como ali se referia à janela, fui até ela, e fiquei ali, num estado
mental de grande desconforto, olhando para fora.
A janela dava para o terreno, para um canto muito desolador do jardim
abandonado, com pés de repolho transformados em mato e um buxo que fora
podado muitos anos antes, em forma de pudim, do alto do qual brotara um outro
ramo, de forma e cor diferentes, como se aquele pedaço do pudim tivesse
grudado na panela e queimado. Foi esse o pensamento singelo que tive ao
contemplar o buxo. Havia nevado um pouco durante a noite, e que eu soubesse
não restava mais neve em lugar algum; porém nem toda a neve havia derretido
na sombra fria daquele trecho de jardim, e o vento levantava-a em pequenos
torvelinhos e lançava-a contra a vidraça, como se protestando por estar eu ali.
Eu imaginava que minha chegada houvesse interrompido as conversas na
sala, e que os outros presentes estivessem olhando para mim. Da sala eu nada via
além do brilho do fogo refletido na vidraça, mas enrijeci todas as minhas
articulações por ter consciência de que estava sendo examinado detidamente.
Havia na sala três senhoras e um cavalheiro. Antes que eu completasse cinco
minutos parado à janela, essas pessoas de algum modo me fizeram entender que
eram todas bajuladoras e impostoras, mas que cada uma delas fingia não saber
que as outras eram bajuladoras e impostoras: pois se admitisse que sabia disso,
então ficaria claro que também ela era uma bajuladora e uma impostora.
Todas essas pessoas tinham o ar desanimado e entediado de quem está à
disposição de alguém, e a mais falante das senhoras tinha de falar com certa
rigidez para não bocejar. Essa senhora, que se chamava Camilla, em muito me
lembrava minha irmã, com a diferença de que era mais velha, e (como percebi
quando olhei para ela) tinha feições mais duras. De fato, depois que a conheci
melhor, comecei a achar que era de admirar que tivesse feições de alguma
espécie, pois seu rosto era um muro sem vida, alto e nu.
Coitado!, exclamou esta senhora, com um jeito abrupto igual ao de minha
irmã. Só tem a si próprio por inimigo!
Seria bem mais aceitável ser inimigo de outra pessoa, observou o
cavalheiro; bem mais natural.
Primo Ray mond, comentou outra senhora, nós devemos amar o
próximo.
Sarah Pocket, redarguiu o primo Ray mond, se um homem não é seu
próprio próximo, quem haverá de ser?
A sra. Pocket riu, e Camilla riu e disse (contendo um bocejo): Que ideia!.
Porém pareceu-me que todos achavam a ideia muito boa também. A outra
senhora, que ainda não havia falado, disse, muito séria e enfática: Tem toda a
razão!.
Coitado!, prosseguiu Camilla depois de algum tempo (eu sabia que todos
tinham ficado a olhar-me nesse ínterim). Ele é tão estranho! Vocês
acreditariam se eu dissesse que quando a mulher do Tom morreu, não foi
possível convencê-lo que era importante que os filhos usassem o luto mais
profundo? Meu Deus! ele disse, Camilla, que diferença faz desde que os
pobrezinhos estejam de preto? Só mesmo o Matthew! Que ideia!
Ele tem lá suas qualidades, tem lá suas qualidades, comentou o primo
Ray mond; Deus me livre de negar que ele tem qualidades; mas nunca teve, e
nunca vai ter, o senso da medida.
Imaginem que fui obrigada, prosseguiu Camilla, fui obrigada a ser firme.
Eu disse: Isso é inadmissível, pelo bom nome da família. Eu disse a ele que, sem
o luto mais profundo, a família cairia em desgraça. Chorei desde o desjejum até
o almoço. Prejudiquei minha digestão. E por fim, daquele modo violento dele,
ele exclamou, com uma imprecação: Então faz o que bem entenderes. Graças
a Deus que sempre hei de me consolar com o pensamento de que na mesma
hora saí no meio de um temporal e comprei as coisas.
Foi ele quem pagou, não foi?, perguntou Estella.
A questão, minha querida menina, não é quem pagou, respondeu Camilla,
mas que fui eu quem comprou. E hei de me lembrar disso muitas vezes, com
alívio, quando acordar no meio da noite.
O soar de uma campainha ao longe, juntamente com o eco de um grito no
corredor pelo qual eu viera, interrompeu a conversa e fez com que Estella me
dissesse: Vai, menino!. Quando me virei, todos olhavam para mim com o
máximo de desprezo, e, quando saí, ouvi Sarah Pocket dizendo: Mas que coisa!
Era só o que faltava!, e Camilla acrescentar, indignada: Onde já se viu um
capricho assim! Que i-dei-a!.
Enquanto seguíamos com nossa vela pelo corredor escuro, Estella parou de
repente e, virando-se para trás, disse, com seu jeito provocador, aproximando
bem o rosto do meu:
E então?
E então, moça?, respondi, tendo que me deter para não cair em cima dela.
Ela ficou parada olhando para mim, e, é claro, eu fiquei parado olhando para
ela.
Sou bonita?
É, sim; acho a senhora muito bonita.
Sou desdenhosa?
Menos do que da outra vez, disse eu.
Menos?
É.
Ela abespinhou-se ao fazer essa última pergunta, e deu-me um tabefe com
toda a sua força, quando respondi.
E agora?, ela perguntou. Monstrinho grosseiro, o que achas de mim
agora?
Não vou dizer, não.
Porque vai dizer a ela, lá em cima. Não é?
Não, respondi, não é.
Por que não choras de novo, criaturinha desgraçada?
Porque nunca mais vou chorar pela senhora, respondi. O que, creio eu, foi
uma mentira deslavada; pois por dentro eu estava chorando por ela naquele exato
momento, e sei o que sei da dor que ela me proporcionou depois.
Tomamos a escada depois desse episódio; e, enquanto subíamos,
encontramos um cavalheiro descendo a escada escura, tateando.
Quem é que está aí?, perguntou ele, parando e olhando para mim.
Um menino, disse Estella.
Era um homem corpulento, de tez muitíssimo escura, com uma cabeça
grandíssima e mãos proporcionais a ela. Pegou meu queixo com sua manzorra e
virou meu rosto para cima a fim de vê-lo à luz da vela. Tinha uma calva
prematura no cocuruto, e sobrancelhas espessas e negras que não ficavam no
lugar, porém erguiam-se, espetadas. Tinha olhos muito fundos,
desagradavelmente penetrantes e desconfiados. Do bolso pendia uma corrente de
relógio avantajada, e no rosto havia pontos negros grandes nos lugares que
seriam cobertos pela barba e pelas suíças se ele não as raspasse. O homem não
era nada para mim, e eu não poderia prever naquele momento que ele viria a ser
alguma coisa para mim, mas por acaso tive essa oportunidade de observá-lo
bem.
Um menino da vizinhança? Hein?, ele perguntou.
Sim, senhor, respondi.
O que fazes aqui?
A senhora Havisham mandou-me vir, senhor, expliquei.
Ora! Comporta-te. Eu tenho muita experiência com meninos, e os meninos
não são flor que se cheire. Vê lá, disse ele, mordendo o lado do dedo médio
comprido, franzindo o cenho para mim, comporta-te!
Com essas palavras, soltou-me o que me aliviou, pois sua mão cheirava a
sabonete perfumado e continuou descendo a escada. Fiquei a pensar se ele
seria médico; mas não, pensei; não devia ser médico, senão teria um jeito mais
discreto e persuasivo. Não havia muito tempo para pensar na questão, pois logo
estávamos entrando no quarto da sra. Havisham, onde ela e tudo o mais estavam
tal como estavam quando eu lá estivera antes. Estella deixou-me junto à porta, e
ali fiquei parado até que a sra. Havisham, sentada à penteadeira, olhou para
mim.
Pois então!, ela exclamou, sem parecer assustada nem surpresa; os dias
se passaram, não?
Sim, senhora. Hoje é
Não, não, não! Fez aquele gesto de impaciência com os dedos. Não quero
saber. Estás pronto para brincar?
Fui obrigado a responder, um tanto constrangido: Acho que não estou não,
senhora.
Nem para jogar cartas, de novo?, ela indagou, com um olhar perscrutador.
Sim, senhora; isso eu posso fazer, se a senhora quiser.
Como esta casa te parece velha e severa, menino, disse a sra. Havisham,
impaciente, e não estás disposto a brincar, estás disposto a trabalhar?
Essa pergunta eu podia responder com mais ânimo do que a anterior, e disse
que sim, que estava muito bem-disposto a trabalhar.
Então vai pra aquele quarto, ali em frente, ordenou, apontando para a
porta atrás de mim com a mão engelhada, e espera até eu chegar.
Atravessei o patamar da escada e entrei no cômodo por ela indicado. Dentro
dele, também, a luz do sol estava de todo excluída, e havia um cheiro abafado
que era opressivo. O fogo fora aceso pouco antes na lareira úmida e antiquada, e
estava mais disposto a apagar do que a pegar, e a fumaça relutante que pairava
no recinto parecia mais fria que o ar mais limpo tal como a névoa do nosso
charco. Alguns galhos hibernais de velas no console alto da lareira iluminavam o
ambiente fracamente; ou, para ser mais expressivo, perturbava de leve a
escuridão. O cômodo era espaçoso, e pareceu-me que outrora fora belo, mas
tudo que ali se podia ver estava coberto de poeira e mofo, e estava caindo aos
pedaços. O objeto que mais se destacava era uma mesa comprida com uma
toalha, como se uma festa estivesse sendo preparada no momento em que a casa
e os relógios pararam todos juntos. Havia uma espécie de centro de mesa no
ponto central da toalha; estava de tal modo recoberto de teias de aranha que era
impossível distinguir sua forma; e, enquanto eu contemplava aquela extensão
amarela da qual, lembro-me, ela parecia brotar como se fosse um fungo escuro,
vi aranhas de patas pintadas e corpos manchados correndo para ela ou dela
saindo, como se algum evento da maior importância pública tivesse acabado de
ocorrer na comunidade das aranhas.
Eu ouvia ratos também, a tamborilar atrás dos lambris de madeira, como se
o mesmo acontecimento também fosse importante para eles. As baratas, porém,
não se davam conta da agitação, e arrastavam-se em torno da lareira lerdas e
desajeitadas como velhos, como se enxergassem e escutassem mal, e não
falassem umas com as outras.
Esses seres rastejantes mantinham-me fascinado, e eu os contemplava à
distância quando a sra. Havisham pousou a mão no meu ombro. Na outra mão
ela levava uma bengala que era como uma muleta no alto, na qual se apoiava, e
parecia a bruxa daquele lugar.
É aqui, disse ela, apontando para a mesa comprida com a bengala, que
vão me deitar quando eu estiver morta. Eles vão vir me ver aqui.
Com o vago temor de que ela pudesse subir na mesa naquele exato instante e
morrer de imediato, tornando-se a concretização completa da figura de cera que
eu vira na feira, recuei de seu toque.
O que pensas que é aquilo?, perguntou-me ela, novamente apontando com
a bengala; aquilo, cheio de teias de aranha.
Não posso imaginar, não, senhora.
É um bolo grande. Um bolo de casamento.1 Meu!
Ela olhou a seu redor com os olhos arregalados, e depois disse, apoiando-se
em mim enquanto apertava meu ombro: Vem, vem, vem! Anda comigo, anda
comigo!.
Entendi que o trabalho que me cabia era andar com a sra. Havisham, dando
voltas e mais voltas na sala. Assim, comecei a andar de imediato, com ela
apoiada em meu ombro, seguindo nós dois num ritmo que parecia uma imitação
(fundada no primeiro impulso que eu tivera naquela casa) da carruagem do sr.
Pumblechook.
A sra. Havisham tinha pouca força física, e não demorou para que ela
dissesse: Mais devagar!. Assim mesmo, seguimos a um ritmo espasmódico e
impaciente, e enquanto seguíamos ela me apertava o ombro, e contorcia a boca,
e me fazia pensar que estávamos andando depressa porque seus pensamentos
eram rápidos. Depois de algum tempo ela ordenou: Chama a Estella!. Assim,
fui até o patamar da escada e gritei o nome tal como na ocasião anterior. Quando
a luz de Estella apareceu, voltei para o lado da sra. Havisham, e recomeçamos a
dar voltas e mais voltas na sala.
Se Estella viesse sozinha para ser espectadora de nossa caminhada, eu já
haveria de ficar um tanto desconcertado; mas como ela trouxe consigo as três
senhoras e o cavalheiro que eu vira no andar de baixo, eu não sabia o que fazer.
Por educação, teria parado; mas a sra. Havisham apertou meu ombro, e
seguimos adiante eu, com muita vergonha de que as pessoas achassem que a
ideia era minha.
Cara senhora Havisham, disse a sra. Sarah Pocket, a senhora está muito
bem!
Não estou, não, redarguiu ela. Sou só pele amarela e ossos.
Camilla alegrou-se quando a sra. Pocket recebeu essa resposta; e murmurou,
enquanto contemplava a sra. Havisham com olhar melancólico: Coitadinha!
Como poderia estar bem a pobrezinha. Que ideia!.
E como está você?, a sra. Havisham perguntou a Camilla. Como
estávamos naquele momento perto dela, naturalmente inclinei-me a parar, só
que a sra. Havisham não quis parar. Seguimos em frente, e senti que estava
sendo muito indelicado com Camilla.
Obrigada, senhora Havisham, ela respondeu. Estou tão bem quanto era
de se esperar.
Ora, qual o seu problema?, perguntou a sra. Havisham, num tom muito
áspero.
Nada que valha a pena dizer, retrucou Camilla. Não quero fazer um
espetáculo de meus sentimentos, mas tenho pensado mais na senhora à noite do
que posso suportar.
Então não pense em mim, retorquiu a sra. Havisham.
Falar é fácil!, respondeu Camilla, simpaticamente reprimindo um soluço,
enquanto seu lábio superior começou a tremer, e as lágrimas transbordavam os
olhos. Pergunte ao Ray mond quanto eu tenho de tomar de gengibre e sais
voláteis2 toda noite. Pergunte ao Ray mond quantos espasmos nervosos eu tenho
nas pernas. Mas sufocações e espasmos nervosos não são novidade para mim,
quando penso com ansiedade nos meus entes queridos. Se eu conseguisse ser
menos afetuosa e sensível, minha digestão seria melhor e eu teria nervos de aço.
Quisera eu. Mas quanto a não pensar na senhora à noite
que ideia! Mais uma
explosão de lágrimas.
Entendi que o Ray mond por ela mencionado era o cavalheiro ali presente, e
entendi também que ele seria o sr. Camillo. A essa altura ele veio a seu auxílio, e
disse, num tom de consolação e elogio: Camilla, minha querida, todos sabem
que teus sentimentos pela família estão aos poucos te abalando de tal modo que
uma das tuas pernas está ficando mais curta que a outra.
Que eu saiba, observou a senhora severa cuja voz eu só ouvira uma vez,
pensarmos numa pessoa não nos dá mais direitos sobre essa pessoa, minha
cara.
A sra. Sarah Pocket, a qual, verifiquei nesse momento, era uma velhinha
seca, de pele escura e enrugada, com um rostinho que parecia feito de cascas de
nozes, e uma boca larga como a boca de um gato, sem os bigodes, concordou,
dizendo: Não dá, não, minha cara. Hm!.
Pensar é fácil, disse a senhora severa.
Haverá coisa mais fácil do que pensar?, concordou a sra. Sarah Pocket.
É mesmo, é mesmo!, exclamou Camilla, cujos sentimentos pareciam, ao
fermentar, subir das pernas para o peito. É verdade, sim! É uma fraqueza ser
tão afetuosa, mas não posso fazer nada. Sem dúvida, minha saúde seria muito
melhor se eu não fosse assim, mas eu não gostaria de ser diferente, mesmo que
eu pudesse. Por mais sofrimento que me cause, é um consolo saber que sou
assim, quando acordo no meio da noite. Mais uma explosão de sentimentos.
Eu e a sra. Havisham não paramos nenhuma vez durante todo esse tempo,
porém continuávamos dando voltas e mais voltas, ora roçando nas saias das
visitas, ora afastando-nos delas para o outro lado daquela sala lúgubre.
Vejam o Matthew!, disse Camilla. Nunca se aproxima dos parentes,
nunca vem aqui ver como está a senhora Havisham! Já fui levada a um sofá
com o laço do espartilho cortado, e fiquei três horas deitada, desacordada, com a
cabeça caída para um lado, todo o cabelo solto, meus pés não sei onde
(Bem mais altos que tua cabeça, meu amor, disse o sr. Camillo.)
Já passei horas nesse estado, horas e horas, por conta do comportamento
estranho e inexplicável do Matthew, e ninguém me agradece.
Mas, falando sério, não vejo por quê!, interveio a senhora severa.
Minha cara, acrescentou a sra. Sarah Pocket (uma personagem
suavemente repugnante), a pergunta que deves fazer a ti própria é: quem
haveria de te agradecer, querida?
Sem esperar agradecimento, nem nada semelhante, prosseguiu Camilla,
já permaneci nesse estado horas e horas, e perguntem ao Ray mond quantas
vezes não sufoquei, sem que o gengibre tivesse o menor efeito, a ponto de eu ser
ouvida da casa do afinador de pianos do outro lado da rua, onde as crianças,
pobrezinhas, chegaram a pensar que fossem pombos arrulhando ao longe e
agora vêm me dizer
Nesse ponto Camilla levou a mão à garganta, e novos
compostos químicos pareceram formar-se ali.
Quando o tal de Matthew voltou a ser mencionado, a sra. Havisham deteve a
mim e a si própria e ficou parada olhando para quem falava. Essa mudança teve
o efeito de fazer com que a química de Camilla terminasse de súbito.
O Matthew há de vir me ver no final, disse a sra. Havisham, grave,
quando eu estiver estendida nessa mesa, morta. Ali é onde ele vai ficar,
batendo com a bengala na mesa, junto à minha cabeça! E o seu lugar será ali!
E o do seu marido ali! E o da Sarah Pocket ali! E o da Georgiana ali! Agora
vocês todos sabem quais são os seus lugares, quando vierem me devorar. Agora
vão embora!
Ao mencionar cada nome ela batia na mesa com a bengala, cada vez num
lugar diferente. Então se virou para mim: Anda comigo, anda comigo!. E
voltamos a caminhar.
Acho que não há outra coisa a fazer, exclamou Camilla, senão obedecer
e partir. Não é pouca coisa ver o objeto do nosso amor e nosso dever, mesmo
que seja por tão pouco tempo. Vou pensar nisso com uma satisfação melancólica
quando acordar no meio da noite. Eu queria muito que o Matthew pudesse ter
esse conforto, mas ele o renega. Estou decidida a não exibir meus sentimentos,
mas é muito difícil ouvir alguém me dizer que quero devorar um parente
como se eu fosse um gigante3 e ser mandada embora. Mas que ideia!
Como o sr. Camillo interveio no momento em que a sra. Camilla pôs a mão
no seio arfante, a senhora em questão assumiu uma postura de firmeza forçada,
que, imaginei, significava seu propósito de cair no chão sufocada tão logo saísse
de cena, e após beijar a mão da sra. Havisham ela foi levada para fora da sala.
Sarah Pocket e Georgiana ficaram disputando quem deveria ser a última a sair;
mas Sarah era esperta demais para ser passada para trás, e ficou a andar em
torno de Georgiana de modo tão ardiloso que a outra foi obrigada a ir embora
primeiro. Sarah Pocket então pôde partir sozinha exclamando Deus a abençoe,
querida senhora Havisham!, com um sorriso em seu rosto de casca de noz que
exprimia piedade magnânima para as fraquezas das outras pessoas.
Enquanto Estella iluminava a escada para as visitas, a sra. Havisham
continuava a caminhar com a mão no meu ombro, porém cada vez mais
devagar. Por fim parou diante da lareira, e disse, depois de resmungar e olhar
para o fogo por alguns instantes:
Hoje é meu aniversário, Pip.
Eu ia dar-lhe os parabéns quando ela levantou a bengala.
Não permito que falem no meu aniversário. Não permito que as pessoas
que acabam de sair daqui, ou quem quer que seja, falem nele. Elas vêm aqui no
dia, mas não ousam falar nele.
Naturalmente, eu não esbocei mais nenhuma tentativa de me referir à data.
Neste dia do ano, muito antes de nasceres, esse monte de podridão,
apontando com a bengala a pilha de teias de aranha na mesa, mas sem tocá-la,
foi trazido aqui. Ele e eu decaímos juntos. Os ratos o roeram, e dentes mais
afiados que os dos ratos me roeram.
Apertou a parte de cima da bengala contra o coração enquanto contemplava
a mesa; ela, com seu vestido outrora branco, todo amarelado e fenecido; a toalha
de mesa outrora branca toda amarelada e fenecida; tudo que a cercava prestes a
desmoronar ao menor toque.
Quando a ruína for completa, disse ela, com um olhar horrendo, e
quando me deitarem morta, com meu vestido de noiva, na mesa da festa do
casamento o que há de ser feito, e há de ser a maldição final sobre a cabeça
dele tanto melhor se for neste dia!
Ficou olhando para a mesa como se contemplasse seu próprio corpo nela
estendido. Permaneci mudo. Estella voltou, e também ela ficou muda. Tive a
impressão de que ficamos assim por um bom tempo. No ar pesado da sala, e na
escuridão pesada que pairava nos cantos mais remotos, tive a fantasia
assustadora de que eu e Estella logo começaríamos a apodrecer também.
Por fim, saindo de seu estado de perturbação não aos poucos, mas de
repente, a sra. Havisham disse: Quero ver vocês dois jogando cartas; por que
ainda não começaram?. Com isso, voltou para seu quarto, e nós nos sentamos
como antes; fui derrotado na batalha, como antes; e mais uma vez, como antes, a
sra. Havisham ficou a observar-nos o tempo todo, dirigindo minha atenção para a
beleza de Estella, e fazendo-me percebê-la mais ainda ao colocar suas joias no
peito e no cabelo da moça.
Estella, por sua vez, tratou-me como antes; só que dessa vez não
condescendeu em me dirigir a palavra. Depois que jogamos meia dúzia de
partidas, foi marcado o dia em que eu voltaria, e fui levado ao quintal para ser
alimentado tal como antes, como se fosse um cachorro. Lá, também,
permitiram-me que ficasse a andar para todos os lados, conforme me desse na
veneta.
Pouco importa se o portão no muro do jardim, em que da vez anterior eu
subira para olhar do outro lado, estava, nesta ocasião, aberto ou fechado. O
importante é que da outra vez não vi portão algum, e nesta ocasião eu o vi. Como
estava aberto, e como eu sabia que Estella o abrira para as visitas pois ela
voltara com as chaves na mão entrei no jardim e andei por todo ele. Era uma
verdadeira selva, e havia alguns estufins velhos para melões e pepinos, que
pareciam ter produzido, em sua decadência, rebentos espontâneos que eram
tentativas malsucedidas de produzir pedaços de botas e chapéus velhos, com um
ou outro broto em forma de frigideira estragada.
Tendo visto todo o jardim, e uma estufa na qual não havia nada além de uma
videira caída e algumas garrafas, dei por mim naquele canto melancólico que eu
vira pela janela. Absolutamente convicto de que a casa estava vazia, olhei para
dentro de uma das outras janelas e dei por mim, com grande espanto, trocando
um olhar direto com um jovem cavalheiro pálido de pálpebras avermelhadas e
cabelo claro.
Esse jovem pálido rapidamente desapareceu, reaparecendo a meu lado.
Estava ocupado com seus livros quando me vi olhando para ele, e percebi agora
que estava sujo de tinta.
Ei!, exclamou ele. Garoto!
Como ei é uma observação de caráter geral que, como aprendi por
observação, deve ser respondida do mesmo modo, também eu exclamei ei!,
mas por educação não repeti garoto.
Quem deixou você entrar?, ele perguntou.
A senhora Estella.
Quem deixou você ficar andando por aí?
A senhora Estella.
Venha lutar, disse o jovem cavalheiro pálido.
O que podia eu fazer senão segui-lo? Muitas vezes tenho dirigido essa
pergunta a mim mesmo desde então; mas, de fato, que outra coisa eu poderia
fazer? Seu tom era tão decidido e eu estava tão atônito que segui atrás dele, como
se estivesse sob o efeito de um encantamento.
Mas espere um pouco, disse ele, dando meia-volta após darmos apenas
uns poucos passos. Preciso lhe dar uma razão para lutar, também. É esta! Do
modo mais irritante, na mesma hora ele bateu uma mão contra a outra,
delicadamente jogou uma das pernas para trás, puxou-me o cabelo, bateu
palmas de novo, abaixou a cabeça e deu-me uma cabeçada no estômago.
Este último gesto taurino, além de ser indubitavelmente um abuso, era mais
desagradável ainda por ocorrer logo após a ingestão de pão e carne. Assim
sendo, investi contra ele, e ia investir de novo quando ele exclamou: Ah, é?
Então é assim?, e começou a dançar para a frente e para trás, de uma maneira
de todo inédita para a minha limitada experiência.
As leis do jogo!, disse ele. Nesse ponto, pulou, jogando o peso da perna
esquerda para a direita. As regras regulares! Nesse ponto, pulou, jogando o
peso da perna direita para a esquerda. Venha ao campo, e passe pelas
preliminares! Nesse ponto, ficou a saltitar para trás e para a frente, fazendo
uma série de movimentos enquanto eu olhava para ele, impotente.
Fiquei, no íntimo, com medo dele ao ver que era tão ágil; sentia-me, porém,
moral e fisicamente convicto de que aquela cabeça loura não tinha o direito de
intrometer-se no meu estômago, e que eu tinha o direito de considerá-la
irrelevante quando ela de tal modo se impunha à minha atenção. Portanto, seguio
sem dizer palavra até um recanto remoto do jardim, formado pela junção de
dois muros e ocultado por um monte de lixo. Quando ele me perguntou se eu
estava satisfeito com a escolha do lugar, e respondi que sim, ele me pediu
permissão para ausentar-se por um momento, voltando mais que depressa com
uma garrafa dágua e uma esponja embebida em vinagre. É para nós dois,
disse, colocando os objetos junto ao muro. E então se pôs a despir não apenas o
paletó e o colete, mas também a camisa, de um modo ao mesmo tempo
tranquilo, eficiente e sanguissedento.
Embora ele não parecesse muito saudável pois tinha espinhas no rosto, e
uma erupção na boca esses terríveis preparativos me horrorizaram. Eu
calculava que ele teria mais ou menos a minha idade, mas era muito mais alto, e
tinha um jeito de rodopiar que era muito impressionante. No mais, era um jovem
cavalheiro com um terno cinzento (antes de se despir para o combate), com
cotovelos, joelhos, pulsos e calcanhares bem mais avançados que o resto do
corpo em seu desenvolvimento.
Meu ânimo fraquejou quando o vi assumindo a posição de luta, dando todas
as demonstrações de habilidade mecânica, e encarando minha anatomia como
se estivesse escolhendo um osso com todo o cuidado. A maior surpresa de toda a
minha vida foi, ao dar o primeiro soco, vê-lo caído no chão, olhando-me com o
nariz ensanguentado e o rosto visto por um ângulo que o deformava.
Mas na mesma hora ele se pôs de pé, e após limpar-se com a esponja, dando
grandes mostras de agilidade, voltou a assumir a posição de combate. A segunda
maior surpresa de minha vida foi vê-lo caído outra vez, olhando para mim com
um olho roxo.
Sua disposição despertou em mim um profundo respeito. Ele parecia não ter
força alguma, e não me acertou um único golpe violento, e sempre era
derrubado; porém levantava-se logo em seguida, limpando-se com a esponja ou
bebendo um gole dágua, reanimando-se com muita satisfação da maneira
apropriada, e depois investindo contra mim com um ar e um ânimo tais que eu
era levado a acreditar que finalmente ele ia acabar comigo dessa vez. Ele
acabou ficando bem machucado, pois lamento dizer que quanto mais eu batia
nele, mais força eu usava; mas ele se levantava vez após vez após vez, até que
por fim levou um tombo feio e deu com a cabeça no muro. Mesmo após essa
crise nas nossas relações, ele se pôs de pé e deu algumas voltas, confuso, sem
saber onde eu estava; mas por fim foi de joelhos até a esponja e jogou-a para o
alto, exclamando ao mesmo tempo, ofegante: Isto quer dizer que você ganhou.
Ele parecia tão corajoso e inocente que, embora não tivesse sido eu quem
propusera a disputa, senti apenas uma satisfação melancólica com minha vitória.
De fato, chego a desejar que eu tenha pensado, enquanto me vestia, que não
passava de uma espécie de filhote de lobo selvagem, ou de alguma outra fera.
Porém, vesti-me, de vez em quando enxugando meu rosto sanguinário com um
gesto soturno, e perguntei: Posso ajudá-lo?, e ele respondeu: Não, obrigado,
e eu disse: Boa tarde, e ele respondeu: Para você também.
Quando voltei para o pátio, encontrei Estella esperando com as chaves na
mão. Mas ela não me perguntou onde eu estivera, nem por que eu a fizera
esperar-me; e seu rosto estava corado de alegria, como se tivesse acontecido
alguma coisa que lhe dera enorme prazer. Além disso, em vez de ir diretamente
ao portão, ela deu um passo atrás e fez sinal para mim.
Vem cá! Podes me beijar, se quiseres.
Beijei-lhe o rosto quando ela o virou para mim. Creio que teria sido capaz de
sofrer muito para poder beijar-lhe o rosto. Mas senti que aquele beijo fora dado
ao trabalhadorzinho grosseiro tal como se fosse uma moeda, e não valia nada.
Com as visitas de aniversário, e os jogos de cartas, e a luta, minha estada se
prolongara tanto que, quando me aproximei de minha casa, a luz do farol na
ponta de areia que saía do cabo no charco brilhava contra um céu negro, e a
fornalha de Joe lançava uma faixa de fogo que atravessava a rua.
12
Eu estava intranquilo com relação à luta com o jovem cavalheiro pálido. Quanto
mais eu pensava no assunto, e me lembrava do jovem cavalheiro caído no chão,
o rosto cada vez mais inchado e vermelho, mais me parecia certo que haveriam
de fazer alguma coisa comigo. Tinha eu a impressão de ser culpado por
derramar o sangue do jovem cavalheiro, e que a lei haveria de vingá-lo. Sem ter
uma ideia nítida das penas em que eu incorrera, estava claro para mim que os
meninos da aldeia não podiam andar por aí, invadindo as casas das pessoas de
bem e atacando os jovens estudiosos da Inglaterra, sem se expor a castigos
severos. Por alguns dias, evitei afastar-me muito de casa, e fiquei a olhar para
fora pela porta da cozinha com todo o cuidado e muito temor antes de sair para
realizar alguma tarefa, julgando que os homens da cadeia do condado poderiam
pegar-me. O nariz do jovem cavalheiro pálido havia sujado minhas calças, e
tentei lavar a prova do crime na alta madrugada. Eu havia ferido os nós dos
dedos nos dentes do jovem cavalheiro pálido, e retorcia minha imaginação de
milhares de maneiras, concebendo justificativas incríveis para aquelas
circunstâncias incriminadoras, a serem utilizadas quando eu fosse levado a
julgamento.
Quando chegou o dia de voltar ao local de meu ato de violência, meu terror
atingiu o auge. Haveria mirmídones da justiça,1 vindos especialmente de
Londres, aguardando-me em emboscada atrás do portão? A sra. Havisham,
preferindo vingar-se pessoalmente do ultraje ocorrido em sua casa, haveria de
levantar-se, envolta naquelas suas roupas de defunto, sacar uma pistola e matarme?
Meninos contratados um bando numeroso de mercenários viriam
atacar-me na cervejaria, socando-me até a morte? Tamanha era minha
confiança na honra do jovem cavalheiro pálido que jamais concebi a
possibilidade de que ele fosse cúmplice de tais retaliações; elas sempre me
vinham à mente como atos de seus parentes insensatos, movidos pelo estado de
seu rosto e pela solidariedade indignada com os traços fisionômicos da família.
Porém eu tinha de ir à casa da sra. Havisham, e para lá fui. E, maravilha das
maravilhas, nada aconteceu em consequência da luta. Não foi feita nenhuma
menção a ela, e nenhum jovem cavalheiro pálido foi visto na propriedade.
Encontrei aberto o mesmo portão, e explorei o jardim, e cheguei mesmo a olhar
pelas janelas da casa dos fundos; porém minha visão esbarrou nas persianas
baixadas por dentro, e não havia sinal de vida. Apenas no canto onde a luta tivera
lugar pude detectar sinais da existência do jovem cavalheiro. Havia marcas de
sangue no lugar, e com terra do jardim ocultei-as de olhares humanos.
No largo patamar entre o quarto da sra. Havisham e a sala onde ficava a
mesa grande, vi uma cadeira de jardim uma cadeira leve com rodas, dessas
que são empurradas por detrás. Fora colocada ali após minha última visita, e
nesse mesmo dia passei a ocupar-me regularmente com a tarefa de empurrar a
sra. Havisham nessa cadeira (quando ela se cansava de andar apoiada no meu
ombro) dando voltas em seu próprio quarto, e atravessando o patamar, e dando
voltas na sala da mesa. Vez após vez após vez, percorríamos essa trajetória, em
algumas ocasiões por três horas corridas. Dou-me conta de que passei a me
referir a essas viagens como numerosas, porque foi na mesma hora decidido que
eu voltaria um dia sim, outro não, ao meio-dia, com esse fim, e porque passo
agora a resumir um período de no mínimo oito ou dez meses.
À medida que nos fomos acostumando um com o outro, a sra. Havisham
começou a falar mais comigo, e perguntar-me coisas como o que havia eu
aprendido, e que seria eu na vida. Respondi-lhe que ia me tornar aprendiz de Joe,
ao que parecia; e muito me estendi sobre o fato de que eu nada sabia e queria
saber tudo, na esperança de que ela me oferecesse alguma ajuda no sentido de
atingir essa meta desejável. Mas ela não o fez; pelo contrário, dava a impressão
de preferir que eu permanecesse ignorante. Também nunca me deu dinheiro
algum nada além de meu jantar nem sequer estipulou que eu fosse pago
pelos meus serviços.
Estella estava sempre por perto, e sempre abria o portão para eu entrar e
sair, mas nunca me permitiu que a beijasse outra vez. Às vezes me tolerava
friamente; às vezes agia comigo com muita familiaridade; às vezes afirmava
com veemência que me odiava. A sra. Havisham com frequência perguntavame
num cochicho, ou quando estávamos a sós: Ela está cada vez mais bonita,
Pip?. E quando eu respondia que sim (pois de fato Estella estava cada vez mais
bonita), ela parecia saborear minha resposta com avidez. Além disso, quando
jogávamos cartas a sra. Havisham assistia, gozando com um prazer avaro os
estados de espírito de Estella, quaisquer que fossem. E por vezes, quando esses
estados de espírito eram tantos e tão contraditórios que eu ficava sem saber o que
dizer ou fazer, a sra. Havisham abraçava-a com uma abundância de carinhos,
murmurando em seu ouvido algo que parecia ser: Parte-lhes os corações, meu
orgulho e esperança, parte-lhes os corações sem piedade!.
Havia uma canção que Joe gostava de cantarolar de modo fragmentário na
ferraria, que tinha no estribilho o velho Clem.2 Não era uma maneira muito
respeitosa de homenagear um santo padroeiro; mas creio que o velho Clem era
mesmo muito íntimo dos ferreiros. Era uma canção que imitava o ritmo de quem
bate no ferro, e era apenas uma desculpa lírica para introduzir o nome
respeitável do velho Clem. Assim, todos devem martelar velho Clem!
fazendo a bigorna vibrar velho Clem! bate forte, bate sempre velho
Clem! para os fortes e valentes velho Clem! sopra o fogo sem parar
velho Clem! para a chama avivar velho Clem! Um dia, pouco depois do
aparecimento da cadeira, a sra. Havisham de repente me ordenou, com aquele
movimento impaciente dos dedos: Vamos, vamos, vamos! Canta!. E dei por
mim, surpreso, cantando essa cançoneta enquanto a empurrava pelo quarto. A
canção de tal modo lhe agradou que ela começou a cantá-la também, em voz
baixa, como se cantasse dormindo. Depois disso, adquirimos o hábito de cantá-la
enquanto passeávamos, e Estella muitas vezes fazia coro; mas o canto era
discreto, mesmo quando nós três cantávamos, e fazia menos barulho na velha
casa soturna do que a brisa mais leve.
O que eu podia me tornar num tal ambiente? Como poderia meu caráter não
ser influenciado por ele? Não era de se esperar que meus pensamentos ficassem
deslumbrados, tanto quanto meus olhos, quando eu emergia para a luz do dia ao
sair daqueles cômodos nevoentos e amarelos?
Talvez eu tivesse falado com Joe sobre o jovem cavalheiro pálido, se antes
não me houvessem levado a inventar aqueles dislates que depois havia
confessado. Dadas as circunstâncias, parecia-me que Joe sem dúvida veria o
jovem cavalheiro pálido como um provável passageiro da carruagem de veludo
negro; por isso nada lhe falei a respeito dele. Além do mais, minha aversão a
falar sobre a sra. Havisham e Estella, que eu sentia desde o início, foi se tornando
muito mais forte com o passar do tempo. Eu só depositava total confiança em
Biddy ; mas à pobre Biddy eu contava tudo. Por que isso me parecia natural, e
por que ela se interessava profundamente por tudo que eu lhe contava, eu não
sabia na época, se bem que agora, creio, o sei.
Nesse ínterim, lá em casa realizavam-se reuniões na cozinha, que
proporcionavam uma irritação quase insuportável a meu espírito indignado. O
idiota do Pumblechook vinha com frequência à noite com o fito de conversar
com minha irmã a respeito das minhas perspectivas; e estou convicto (e até hoje
me penitencio menos do que deveria) de que se minhas mãos fossem capazes de
retirar uma cavilha de uma das rodas de sua carruagem, elas o teriam feito. O
miserável era de tal modo insensível que não conseguia conversar sobre minhas
perspectivas sem me ter diante de si para, por assim dizer, atuar sobre mim
e assim me arrastava de meu banquinho (normalmente pelo colarinho) onde eu
estava quieto em meu canto, e, pondo-me diante do fogo como se fosse me
assar, começava com as palavras: Mas sim, minha senhora, cá está o menino!
O menino que a senhora criou com a mão. Levanta a cabeça, menino, e seja por
todo o sempre grato por quem fez isso por ti. Mas sim, minha senhora, quanto às
perspequitívias desse menino!. E então virava meu cabelo para o lado errado
algo que, desde a mais tenra infância, como já dei a entender, no fundo de minha
alma sempre achei que nenhum semelhante tinha o direito de fazer e
segurava-me diante de si pela manga: um espetáculo de imbecilidade de que só
ele mesmo era capaz.
Então ele e minha irmã entregavam-se a tais especulações insensatas a
respeito da sra. Havisham, sobre o que ela haveria de fazer comigo e para mim,
que me dava vontade o que era muito doloroso de me debulhar em
lágrimas de despeito, partir para cima de Pumblechook e socá-lo dos pés à
cabeça. Nesses diálogos, minha irmã falava de mim como se estivesse
moralmente arrancando cada um de meus dentes cada vez que me mencionava;
enquanto Pumblechook, que se autoproclamava meu protetor, me inspecionava
com um olhar depreciativo, como se fosse o arquiteto de meu destino a
considerar que seu encargo era muito pouco remunerativo.
Nesses colóquios, Joe não tinha nenhuma participação. Mas muitas vezes lhe
dirigiam comentários, durante as conversações, porque a sra. Joe julgava que ele
não aprovava a ideia de me retirar da ferraria. Eu já estava em idade de me
tornar aprendiz de Joe; e quando Joe, com o atiçador entre os joelhos, revolvia
pensativo as cinzas entre as grades mais baixas, minha irmã concluía com tanta
certeza que esse ato inocente era uma manifestação de oposição de sua parte que
corria para cima dele, tirava-lhe das mãos o atiçador, sacudia Joe e guardava o
instrumento. Todos esses debates terminavam sempre do modo mais irritante. De
uma hora para a outra, sem nenhuma preparação, minha irmã se detinha com
um bocejo e, percebendo minha presença como se por acaso, investia contra
mim dizendo: Vamos! Chega de aturar a ti! Já para a cama; já me deste
trabalho bastante por uma noite, espero eu!. Como se eu tivesse lhes implorado
que me fizessem o favor de me infernizar a vida.
Assim prosseguimos por muito tempo, e tudo indicava que assim haveríamos
de continuar por muito tempo, quando um dia a sra. Havisham parou de repente,
durante uma de nossas caminhadas, apoiada no meu ombro; e disse, com um
pouco de desprazer:
Estás ficando alto, Pip!
Julguei melhor dar a entender, através de uma expressão meditativa, que
talvez isso fosse consequência de circunstâncias sobre as quais eu não tinha
controle.
Ela nada mais disse naquele momento; pouco depois, porém, parou e olhoume
de novo; e em seguida fez o mesmo; e depois disso ficou carrancuda e malhumorada.
Na vez seguinte em que fui a sua casa, quando terminamos nosso
exercício habitual, depois que a deixei diante de sua penteadeira, ela me deteve
com um movimento dos dedos impacientes:
Diz-me outra vez o nome desse teu ferreiro.
Joe Gargery , senhora.
É dele que ias te tornar aprendiz?
Sim, senhora.
Melhor que te tornes aprendiz o quanto antes. Crês que esse Gargery viria
aqui contigo, e traria teu contrato de aprendizagem?
Dei a entender que ele sem dúvida se sentiria honrado se tal lhe fosse pedido.
Então que venha.
Em algum dia em particular, senhora Havisham?
Ora, ora! Não sei nada sobre dias. Que ele venha em breve, e venha
contigo e mais ninguém.
Quando voltei para casa à noite e dei esse recado a Joe, minha irmã
começou a espumar, num grau mais assustador do que em qualquer ocasião
anterior. Ela perguntou a mim e a Joe se imaginávamos que ela fosse um
capacho sob nossos pés, e como tínhamos o desplante de usá-la desse modo, e a
que ambiente julgávamos ser apropriado levá-la? Tendo esgotado uma torrente
de tais indagações, ela jogou um castiçal em Joe, começou a chorar
ruidosamente, pegou a lata de lixo o que era sempre péssimo sinal vestiu
seu avental mais grosseiro e começou a limpar a casa num grau terrível. Não
satisfeita em fazer uma limpeza a seco, pegou um balde e um esfregão, e
expulsou-nos de nossa casa e lar, de modo que ficamos a tiritar no quintal dos
fundos. Foi só às dez da noite que ousamos entrar de fininho, e então ela
perguntou a Joe por que motivo ele não se casara com uma escrava negra logo
de uma vez? Joe, coitado, não deu resposta, porém ficou a cofiar as suíças e a
olhar-me com desânimo, como se lhe parecesse que talvez tivesse mesmo sido
melhor tal opção.
13
Foi uma provação para meus sentimentos, dois dias depois, ver Joe endomingarse
para me acompanhar até a casa da sra. Havisham. Porém, como ele julgava
que seu melhor terno era requerido pela ocasião, não cabia a mim lhe dizer que
sua aparência ficava bem melhor quando ele trajava suas roupas de trabalho;
ainda mais por saber eu que ele se submetia àquele desconforto terrível apenas
por mim, e que era por mim que ele levantara o colarinho da camisa ao máximo
na nuca, a ponto de fazer com que os cabelos de seu cocuruto ficassem em pé
como um tufo de penas.
No desjejum, minha irmã declarou sua intenção de ir à cidade conosco, para
que a deixássemos na casa do tio Pumblechook e a fôssemos buscar depois que
tivéssemos tratado com as nossas senhoras elegantes uma maneira de
encarar a situação que parecia levar Joe a esperar o pior. A ferraria não abriu
naquele dia, e Joe rabiscou a giz na porta (como sempre fazia nas raríssimas
vezes em que não estava trabalhando) a palavra sai, acompanhada por uma seta
que supostamente indicava a direção por ele tomada.
Caminhamos até a cidade, minha irmã indo à frente com uma touca de
castor muito grande, e levando uma cesta que era como o Grande Selo da
Inglaterra em palha trançada,1 tamancos para proteger os sapatos, um xale
sobressalente e um guarda-chuva, embora fosse um belo dia de sol. Não sei bem
se esses artigos eram levados por penitência ou por ostentação; mas tendo a crer
que eram exibidos como propriedades do mesmo modo como Cleópatra ou
qualquer outra soberana, espumando de raiva, poderia exibir sua riqueza num
cortejo ou desfile.
Quando chegamos à casa de Pumblechook, minha irmã foi logo entrando e
nos deixou. Como já se aproximava o meio-dia, eu e Joe seguimos direto para a
casa da sra. Havisham. Estella abriu o portão como sempre, e, tão logo ela
apareceu, Joe tirou o chapéu e ficou a sopesá-lo pela aba com as duas mãos:
como se tivesse um motivo urgente para verificar seu peso exato, até o último
décimo de grama.
Estella não deu atenção a mim nem a ele, porém nos conduziu pelo caminho
que já me era familiar. Eu ia imediatamente atrás dela, e Joe por último. Quando
olhei para trás e vi Joe no longo corredor, ele continuava a sopesar o chapéu com
o maior cuidado, seguindo-nos com passos largos nas pontas dos pés.
Estella disse-me que nós dois deveríamos entrar, e por isso puxei Joe pela
bainha do casaco e conduzi-o até a sra. Havisham. Ela estava sentada à
penteadeira, e de imediato virou-se para nós.
Ah!, ela exclamou para Joe. O senhor é o marido da irmã deste
menino?
Eu jamais poderia ter imaginado meu querido Joe tão diferente da sua
aparência normal, ou tão semelhante a uma ave extraordinária; parado, mudo,
com seu tufo de penas eriçadas e a boca aberta, como se aguardasse que lhe
servissem uma minhoca.
O senhor é o marido, repetiu a sra. Havisham, da irmã deste menino?
Era muito irritante; mas durante toda a entrevista Joe insistiu em dirigir-se a
mim e não à sra. Havisham.
O que eu quero dizer, Pip, observou Joe então, num tom que ao mesmo
tempo exprimia uma argumentação irrespondível, uma confidência íntima e
uma extrema polidez, é que eu se casei com a tua irmã, sendo que na época eu
era, por assim dizer (se é isso que queres dizer), solteiro.
Bem!, disse a sra. Havisham. E o senhor criou o menino, com a intenção
de torná-lo seu aprendiz é isso, senhor Gargery ?
Sabes, Pip, respondeu Joe, como tu e eu sempre fumo amigo, isso era
uma coisa que eu sempre achei que era bom de acontecer, porque nós ia fazer
grandes patuscadas. Se bem que, Pip, se alguma vez tu levantasses alguma
obijeção a esse tipo de trabalho quer dizer, isso da gente ficar sujo de fulige, e
coisa e tal é claro que, nesses caso, a gente ia levar isso em conta, não é?
O menino, perguntou a sra. Havisham, levantou alguma objeção? Ele
gosta desse ofício?
De formas que, como bem sabes, Pip, respondeu Joe, fortalecendo a
mistura de argumentação, confidência e polidez, é o que desejas do fundo do
coração. (Percebi que de súbito lhe ocorreu a ideia de adaptar seu epitáfio à
ocasião, antes de prosseguir.) E se da tua parte não há obijeção, e sendo o que
desejas do fundo do coração!
Era inútil tentar fazê-lo dar-se conta de que deveria dirigir-se à sra.
Havisham. Quanto mais eu fazia caretas e gestos nesse sentido, mais
confidencial, argumentativo e polido ele se tornava em relação a mim.
O senhor trouxe o contrato de aprendizagem dele?, indagou a sra.
Havisham.
Bom, Pip, tu sabes, respondeu Joe, como se essa pergunta não fosse muito
razoável, tu mesmo me viste botar ele dentro do meu chapéu, de formas que
bem sabes que o cujo está aqui. Ao dizer isso, tirou o contrato e estendeu-o não
à sra. Havisham, mas a mim. Creio que tive vergonha do meu bom amigo sei
que tive vergonha dele quando vi que Estella estava atrás da cadeira da sra.
Havisham, e que seus olhos riam travessos. Tirei o contrato de sua mão e
entreguei-o à sra. Havisham.
O senhor não esperava, disse a sra. Havisham, enquanto lia o documento,
nenhuma gratificação associada ao menino?
Joe!, adverti-o, pois ele nada disse em resposta. Por que não
respondes
Pip, interrompeu-me Joe, como se estivesse magoado, o que eu quis dizer
é que isso não era uma pergunta que precisava de resposta entre eu e tu, pois
bem sabes que a resposta é não. Tu sabes disso, Pip, e assim por que é que tenho
que responder?
A sra. Havisham olhou-o como se o compreendesse tal como ele era,
melhor do que eu julgava possível, vendo-o ali; e pegou um pequeno saco na
mesa a seu lado.
Pip fez jus a uma gratificação aqui, disse ela, e ei-la aqui. Nesse saco há
vinte e cinco guinéus.2 Entrega-o ao teu mestre, Pip, sim?
Como se estivesse de todo fora de si por efeito do deslumbramento nele
causado pela figura estranha da sra. Havisham e por aquela sala estranha, Joe,
mesmo depois disso, continuou se dirigindo a mim.
Muito generoso da sua parte, Pip, disse ele, e assim sendo aceito com
muita gratidão, se bem que nunca pensei nem esperei por isso, de jeito nem
maneira. E agora, meu velho, disse Joe, proporcionando-me uma sensação
primeiro de ardência e depois de frio intenso, pois tive a impressão de que aquela
expressão familiar se aplicava à sra. Havisham, e agora, meu velho, vamos
cumprir nossa obrigação! Que tu e eu compremos nossa obrigação, da parte de
um tanto quanto do outro, de formas que o teu generoso presente
nos
proporciona
para a sastifação
de
quem nunca
Neste ponto, Joe
demonstrou estar esbarrando em dificuldades terríveis, até que se salvou,
triunfalmente, com as palavras: e longe de mim tal coisa!. Essas palavras
tinham para ele um som tão retumbante e convincente que ele as pronunciou
duas vezes.
Adeus, Pip!, disse a sra. Havisham. Abre a porta para eles, Estella.
Devo voltar outra vez, senhora Havisham?, indaguei.
Não. Agora teu mestre é Gargery . Gargery ! Só mais uma coisa!
Chamando-o quando eu já saía pela porta afora, ouvi-a dizer a Joe num tom
enfático: Esse menino se portou bem aqui, e essa é a recompensa dele. É claro
que o senhor, como um homem honesto, não há de esperar mais nada.
De que modo Joe saiu da sala, jamais pude descobrir; só sei que, quando o
fez, começou a subir a escada em vez de descer, e fez-se surdo a todas as minhas
advertências até que fui atrás dele e o agarrei. Um minuto depois estávamos do
lado de fora do portão, e o portão estava trancado, e Estella se fora.
Quando nos vimos a sós à luz do dia, Joe andou para trás até encostar num
muro, e disse-me: Espantoso!. E ali ficou por tanto tempo, repetindo
Espantoso! de quando em quando, e tantas vezes, que comecei a pensar que
ele jamais haveria de recuperar a razão. Por fim ele prolongou o comentário
neste outro: Pip, eu te digo, isso é es-pan-to-so!. E assim, aos poucos, voltou a
conversar e conseguiu começar a caminhar.
Tenho motivos para crer que o intelecto de Joe foi beneficiado por aquele
encontro, e que a caminho da casa de Pumblechook ele elaborou um plano sutil e
ladino. Digo isso com base no que se passou na sala do sr. Pumblechook: onde,
quando nos apresentamos, minha irmã estava confabulando com o detestável
comerciante de grãos.
E então?, exclamou minha irmã, dirigindo-se a nós dois ao mesmo tempo.
E o que aconteceu contigo? Muito me admiro de ver que ainda te dignas a
misturar-te com gente tão pobre quanto nós!
A senhora Havisham, disse Joe, olhando fixamente para mim, como se
fizesse um esforço de memória, deixou muito claro que nós devia mandar
era saudações ou cumprimentos, Pip?
Saudações, respondi.
O que, aliás, era a minha opinião
, afirmou Joe, as saudações dela à
senhora J. Gargery
E de muita valia elas me hão de ser!, observou minha irmã, porém um
tanto gratificada.
E desejando, prosseguiu Joe, olhando-me fixamente outra vez, como se
fazendo outro esforço de memória, que o estado de saúde da senhora Havisham
permitisse que ela tivesse
o que mesmo, Pip?
Tivesse o prazer, acrescentei.
Da companhia de senhoras, disse Joe. E respirou fundo.
Pois bem!, exclamou minha irmã, com um olhar apaziguado para o sr.
Pumblechook. Ela podia ter tido a delicadeza de mandar esse recado antes, mas
antes tarde do que nunca. E o que foi que ela deu ao nosso pequeno Rantipole?3
A ele, respondeu Joe, não deu nada.
A sra. Joe ia irromper, mas Joe prosseguiu:
O que ela deu, disse Joe, ela deu pros amigos dele. E por amigos dele,
ela explicou, me refiro-me às mãos da irmã dele, a senhora J. Gargery. Foi
assim mesmo que ela falou: a senhora J. Gargery . Acho que ela nem sabia,
acrescentou Joe, com ar reflexivo, se era Joe ou Jorge.
Minha irmã olhou para Pumblechook, o qual alisou os braços de sua cadeira
e acenou com a cabeça para ela e para a lareira, como se já soubesse de tudo de
antemão.
E quanto ganhaste?, indagou minha irmã, rindo. Rindo, sim!
O que diriam ocês se eu disser dez libra?, perguntou Joe.
Diríamos, respondeu minha irmã, seca, razoável. Não muito, mas
razoável.
Pois é mais que isso, disse Joe.
O terrível impostor, Pumblechook, de imediato fez que sim e disse,
esfregando as mãos nos braços da cadeira: É mais que isso, minha senhora.
O senhor não vai me dizer que
, começou minha irmã.
Isso mesmo, minha senhora, disse Pumblechook, mas espere um pouco.
Continue, Joseph. Muito bem! Continue!
O que diriam ocês, prosseguiu Joe, se eu disser vinte libra?
Uma bela quantia, respondeu minha irmã.
Pois, disse Joe, é mais de vinte libras.
O abjeto hipócrita, Pumblechook, fez que sim outra vez e comentou, com um
riso condescendente: É mais que isso, minha senhora. Muito bem! Continue,
Joseph!.
Então, pra terminar, disse Joe, entregando o saco à minha irmã com muita
alegria, são vinte e cinco libra.
São vinte e cinco libras, senhora, repetiu o mais vil dos patifes,
Pumblechook, levantando-se para apertar a mão dela; e a senhora bem as
mereceu (como eu disse quando me pediram a opinião), e que faça bom
proveito do dinheiro!
Se o calhorda tivesse ficado por aí, já teria sido terrível, mas ele aumentou
ainda mais sua culpa ao se apropriar de mim, assumindo um poder que deixava
longe todos os seus atos criminosos anteriores.
Como vocês sabem, Joseph e esposa, disse Pumblechook, enquanto
segurava meu braço acima do cotovelo, sou dessas pessoas que não deixam
nada pelo meio. É preciso contratar este menino, imediatamente. Comigo é
assim. É contratar imediatamente.
Ah, tio Pumblechook, disse minha irmã (agarrando o dinheiro), Deus
sabe o quanto devemos ao senhor.
Que nada, minha senhora, retrucou o diabólico comerciante de grãos.
Um prazer é um prazer, aqui e na China. Mas quanto a este menino, sabe, há
que contratá-lo. Eu disse que eu mesmo o faria para lhe falar a verdade.
Os juízes estavam reunidos na prefeitura ali perto, e lá fomos de imediato
para lavrar meu contrato de aprendizagem com Joe na presença dos
magistrados. Digo que fomos lá, mas na verdade fui empurrado por
Pumblechook, tal como se eu tivesse acabado de bater uma carteira ou
incendiado uma meda de trigo; de fato, todos no tribunal tiveram a impressão de
que eu fora apanhado em flagrante, pois, quando Pumblechook abriu caminho
pela multidão empurrando-me a sua frente, ouvi pessoas dizendo: O que foi que
ele fez? e É pequenino, mas tem má cara, não é?. Uma pessoa de aspecto
mansueto e benévolo chegou mesmo a me entregar um folheto com uma
estampa que representava um rapaz malévolo recebendo toda uma panóplia de
grilhões, com o título para ser lido na minha cela.
A prefeitura era um lugar estranho, pensei, com bancos mais altos que os da
igreja e com pessoas debruçadas sobre os bancos para assistir ao que se
passava e juízes poderosos (um deles com uma peruca empoada) recostados
em suas cadeiras, de braços cruzados, ou cheirando rapé, ou cochilando, ou
escrevendo, ou lendo jornais e alguns retratos reluzentes nas paredes, que para
meus olhos nada artísticos pareciam composições feitas com tofe de amêndoas e
emplastros adesivos.4 Ali, num canto, meu contrato de aprendizado foi
devidamente assinado e atestado; o tempo todo o sr. Pumblechook me segurava,
como se estivéssemos ali de passagem a caminho da forca, para cuidar daqueles
pequenos detalhes preliminares.
Quando saímos do tribunal, e nos livramos dos garotos que estavam
animadíssimos com a perspectiva de me ver sendo torturado em público e
ficaram muito decepcionados ao compreender que meus amigos estavam
apenas reunidos a meu redor, voltamos à casa de Pumblechook. E lá minha irmã
ficou tão entusiasmada com a história dos vinte e cinco guinéus que só se
aquietou quando resolvemos jantar fora, com o dinheiro obtido de modo tão
inesperado, no Javali Azul, e Pumblechook foi em sua carruagem buscar os
Hubble e o senhor Wopsle.
Assim foi feito; e vivi um dia dos mais melancólicos. Pois, por motivos
inescrutáveis, parecia claro, para todos os convivas, que eu era uma
excrescência naquela comemoração. E, para piorar as coisas, todos me
perguntavam de vez em quando em suma, sempre que não tinha outra coisa
para fazer por que eu não estava me divertindo. E que poderia eu fazer, nesse
caso, senão dizer que estava me divertindo, sim embora não estivesse?
Porém, eles eram adultos, e foi feita a vontade deles, e eles aproveitaram ao
máximo a ocasião. O trapaceiro do Pumblechook, que assumira ares de benfeitor
responsável por tudo, chegou mesmo a instalar-se na cabeceira; e quando falou à
mesa sobre meu contrato de aprendizagem, e diabolicamente regozijou-se ao
afirmar que eu estava sujeito à prisão se jogasse cartas, bebesse bebidas
destiladas, ficasse na rua até tarde ou me entregasse a outras práticas irregulares
que, nos termos do contrato, pareciam praticamente inevitáveis, ele me fez ficar
em pé numa cadeira a seu lado, para ilustrar seus comentários.
Minhas únicas outras lembranças do grande festejo são as que se seguem.
Não me deixavam dormir, e toda vez que me viam cochilando me despertavam
com ordens de que eu me divertisse. Quando já era bem tarde, o sr. Wopsle
brindou-nos com a ode de Collins,5 e jogou sua espada ensanguentada com um
estrondo, e foi tamanho o estardalhaço que veio um garçom dizer que os
comerciantes do andar de baixo mandavam seus cumprimentos, e que ali não
era o Recanto dos Acrobatas.6 Todos estavam na maior animação no caminho
de volta para casa, e cantaram O Lady fair!.7 O sr. Wopsle cantava a parte do
baixo, afirmando com uma voz tonitruante (em resposta ao abelhudo que canta
essa canção do modo mais impertinente, querendo saber tudo sobre os assuntos
particulares de todos) que ele era o homem com os cachos brancos ao vento, e
que era, sob todos os aspectos, o mais fraco de todos os peregrinos.
Por fim, lembro que, ao entrar em meu quartinho, eu me sentia realmente
infeliz, e estava convicto de que não gostaria jamais do ofício de Joe. Eu gostara
dele outrora, mas outrora não era agora.
14
É terrível ter vergonha do próprio lar. Talvez seja a mais negra ingratidão, e o
castigo seja proporcional e bem merecido; mas que é uma coisa terrível, isso
posso afirmar com conhecimento de causa.
O lar nunca fora um lugar muito agradável para mim, por causa do
temperamento da minha irmã. Mas Joe o santificava, e antes eu acreditava no
meu lar. Antes eu acreditava na sala de visitas de cerimônia, como um salão dos
mais elegantes; acreditava na porta da frente, como um portal misterioso do
templo sagrado cuja abertura solene era marcada por um sacrifício de aves
assadas; acreditava na cozinha como um cômodo casto, ainda que não
magnífico; acreditava na ferraria como o caminho reluzente da maturidade e da
independência. No decorrer de um ano, tudo isso mudara. Agora, tudo lá era
grosseiro e vulgar, e eu faria tudo para que a sra. Havisham e Estella não vissem
minha casa em quaisquer circunstâncias.
Até que ponto essa minha atitude ingrata era culpa minha, da sra. Havisham
ou da minha irmã, é algo que agora não tem mais nenhuma relevância para mim
nem para ninguém. A mudança ocorrera em mim; era um fato consumado.
Bom ou mau, desculpável ou indesculpável, era um fato.
Antes, parecia-me que no dia em que por fim arregaçasse as mangas e
entrasse na ferraria como aprendiz de Joe, eu me tornaria uma pessoa distinta e
feliz. Agora que isso se tornara realidade, tudo que eu sentia era que estava
coberto de pó de carvão, e que tinha na minha consciência cotidiana um peso em
comparação com o qual a bigorna era leve como uma pluma. Na minha vida
subsequente, houve ocasiões (como imagino que ocorra com a maioria das
pessoas) em que por algum tempo tive a impressão de que uma cortina grossa
havia caído por cima de tudo que havia de interessante e romântico, reduzindome
apenas à sobrevivência pura e simples. Essa cortina jamais foi tão pesada e
escura quanto no momento em que vi minha vida estendida à minha frente pela
estrada recém-aberta do aprendizado com Joe.
Lembro que numa época posterior da minha vida eu costumava ir ao
campo-santo aos domingos, ao cair da tarde, e lá ficava a comparar minhas
perspectivas com a vista do charco percorrido pelo vento, observando as
semelhanças que havia entre eles, pensando que ambos eram monótonos e
baixos, e que a ambos chegava um caminho desconhecido, uma névoa escura e
por fim o mar. No meu primeiro dia de trabalho na ferraria, eu me sentia tão
desanimado quanto nesse período posterior; mas dá-me satisfação pensar que
jamais esbocei a menor queixa para Joe durante toda a minha época de
aprendizagem. É praticamente a única coisa de que me orgulho, no que diz
respeito a esse assunto.
Pois, embora isso inclua o que vou acrescentar, todo o mérito do que vou
acrescentar cabe a Joe. Não foi por eu permanecer fiel, mas por Joe
permanecer fiel, que jamais fugi para me tornar soldado ou marinheiro. Não foi
por eu ter a firme consciência da virtude do trabalho, e sim porque Joe tinha a
firme consciência da virtude do trabalho, que trabalhei com uma dedicação
razoável, contra minha própria inclinação. É impossível saber até onde a
influência de um homem simpático, honesto e cumpridor de seus deveres se
estende no mundo; mas é perfeitamente possível saber até que ponto essa
influência tocou a nós, e sei muito bem que tudo de bom que porventura tenha
havido na minha aprendizagem se deveu a Joe, esse homem simples e contente,
e não a mim, sempre inquieto, cheio de aspirações e de descontentamento.
O que eu queria, quem poderá dizer? Que posso eu dizer, se jamais o soube?
O que eu mais temia era a possibilidade de, num momento particularmente
infeliz, em que eu estivesse mais sujo e vulgar, eu levantar os olhos e deparar
com Estella olhando para dentro da ferraria por uma das janelas de madeira.
Atormentava-me o medo de que ela, mais cedo ou mais tarde, me encontrasse
ali, com as mãos e o rosto negros, realizando as tarefas mais grosseiras de meu
trabalho, e tripudiasse sobre mim e me desprezasse. Muitas vezes, depois que
escurecia, quando eu estava acionando o fole para Joe, e nós dois cantávamos a
canção do velho Clem, e me vinha a lembrança do tempo em que cantava essa
música na casa da sra. Havisham, eu parecia ver o rosto de Estella no fogo, com
seu belo cabelo ao vento, zombando de mim com o olhar muitas vezes, nessas
ocasiões, eu olhava para os quadrados negros1 na parede formados pelas janelas
de madeira, e imaginava ver o rosto dela a se afastar naquele exato momento, e
pensava que finalmente ela havia aparecido.
Depois, quando íamos jantar, a casa e a refeição me pareciam mais feios do
que nunca, e eu sentia mais vergonha do lar do que nunca, no meu coração
ingrato.
15
Como eu já estava ficando crescido demais para a sala da tia-avó do sr. Wopsle,
meus estudos sob os auspícios daquela mulher absurda terminaram. Mas só
depois que Biddy me ensinou tudo que ela sabia, desde o pequeno catálogo de
preços até uma canção humorística que ela comprara uma vez por meio pêni.
Embora o único trecho coerente dessa obra literária fossem os dois primeiros
versos:
Eu fui a Londres mês passado,
Ta-ra-lá, ta-ra-lá
Ta-ra-lá, ta-ra-lá
E fui muito bem engambelado,
Ta-ra-lá, ta-ra-lá
Ta-ra-lá, ta-ra-lá1
mesmo assim, movido pelo desejo de me tornar mais sábio, decorei essa
composição com a maior seriedade; tampouco me recordo de lhe ter
questionado o mérito, ainda que pensasse (como ainda penso) que a quantidade
de ta-ra-lás era um tanto excessiva em relação à de poesia. Na minha fome de
conhecimento, propus ao sr. Wopsle que me concedesse algumas migalhas
intelectuais; e ele teve a bondade de me atender. Como, porém, verifiquei que
ele me queria apenas para me usar como um manequim teatral, a ser contradito,
abraçado, lamentado, intimidado, agarrado, esfaqueado e derrubado de várias
maneiras, em pouco tempo recusei tal curso de estudos, mas não antes que o sr.
Wopsle, possuído de sua fúria poética, tivesse me machucado bastante.
Tudo que eu adquiria eu tentava transmitir a Joe. Esta afirmativa pode causar
tão boa impressão que minha consciência não me permite que ela seja feita sem
uma ressalva. Eu queria fazer com que Joe se tornasse menos ignorante e vulgar
para que ele se tornasse mais digno da minha companhia e ficasse menos
exposto às críticas de Estella.
A velha bateria no charco era nosso lugar de estudo, e uma lousa quebrada e
um toco de lápis de lousa eram nossos instrumentos educacionais: a eles Joe
sempre acrescentava um cachimbo cheio de fumo. Não me lembro de Joe ter
lembrado uma única vez, num domingo, de algo que aprendera no domingo
anterior, ou de ter ele adquirido, sob minha instrução, qualquer informação.
Porém, lá na bateria ele fumava seu cachimbo com um ar bem mais sagaz do
que o fazia em qualquer outro lugar até mesmo com um ar de sapiência
como se julgasse estar realizando progressos extraordinários. Espero que meu
querido amigo de fato o tenha feito.
O lugar era agradável e tranquilo, com as velas singrando o rio além do
aterro, e por vezes, quando a maré era vazante, elas pareciam fazer parte de
navios naufragados que continuavam a navegar no fundo do mar. Sempre que eu
ficava a ver as embarcações seguindo rumo ao alto-mar com suas velas brancas
ao vento, por algum motivo lembrava-me da sra. Havisham e de Estella; e
sempre que a luz atingia em ângulo, ao longe, uma nuvem ou vela ou encosta
verdejante ou linha-dágua, era a mesma coisa a sra. Havisham e Estella e a
casa estranha e aquela vida estranha pareciam ter algo a ver com tudo que era
pitoresco.
Num domingo em que Joe, regozijando-se com seu cachimbo, tanto se
gabou de ser terrivelmente bronco que desisti de continuar insistindo naquele
dia, fiquei deitado no chão por algum tempo, com o queixo na mão, descobrindo
vestígios da sra. Havisham e de Estella em toda a paisagem, no céu e no mar, até
que por fim me decidi a falar sobre uma coisa que vinha ocupando meus
pensamentos.
Joe, disse eu, não achas que eu devia visitar a senhora Havisham?
Ora, Pip, redarguiu Joe, pensando lentamente, por quê?
Por quê, Joe? Por que é que a gente visita as pessoas?
Tem umas visitas, talvez, disse Joe, que essa pergunta fica pra sempre
sem resposta, Pip. Mas no caso da senhora Havisham ela pode ficar achando que
queres alguma coisa que esperas alguma coisa da parte dela.
E achas que eu não posso dizer que não quero nada, Joe?
Poder, podes, meu velho, respondeu Joe, e ela pode acreditar. Mas
também ela pode não acreditar.
Joe julgava ter dado um bom argumento, no que eu estava de acordo, e
começou a tirar baforadas de seu cachimbo para impedir-se de enfraquecê-lo ao
repeti-lo.
Sabes, Pip, insistiu Joe, assim que esse perigo passou, a senhora
Havisham foi muito boa contigo. Adespois do que ela fez o que fez por ti, ela me
chamou pra dizer que não ia fazer mais nada.
Eu sei, Joe. Eu ouvi o que ela disse.
Mais nada, repetiu Joe, com muita ênfase.
Eu sei, Joe, como já falei, ouvi o que ela disse.
Quer dizer, Pip, pode ser que ela quis dizer com isso: Acabou! Volta tudo
como era antes! Eu pro norte, tu pro sul! Cada um prum lado!
Eu também tinha pensado nisso, e não me era nem um pouco confortador
saber que ele também o pensara; pois isso parecia tornar a possibilidade mais
provável.
Mas, Joe.
Sim, meu velho.
Estou cumprindo meu primeiro ano de aprendizagem, e desde o dia do
contrato que não agradeci senhora Havisham, nem pedi notícias dela, nem dei
sinais de que me lembro dela.
É verdade, Pip; e a menos que levasses pra ela quatro pés de sapato e
olha que até mesmo quatro pés de sapato pode não ser um presente aceitável, já
que ninguém tem quatro patas nessa história
Não estou falando em lembrar-me dela nesse sentido; não estou falando em
lhe dar um presente.
Mas Joe havia enfiado na cabeça a ideia do presente, e agora não largava do
assunto. Até mesmo, disse ele, se fizesses pra ela uma corrente nova pra
porta da rua ou uma ou duas grosa de parafuso de cabeça redonda de uso
geral ou uma coisa mais leve e bonita, que nem um garfo pra tostar bolinho
ou uma grelha de fritar peixe ou então
Não estou falando em presente, não, Joe, interrompi.
Bom, prosseguiu Joe, como se eu estivesse insistindo em dar um presente,
se eu fosse tu, Pip, eu não fazia isso não. Não mesmo. Pois pra quê corrente na
porta pra quem já tem uma sempre fechada? E parafuso pode dar em malentendido.
E garfo de torrar ias ter de mexer com latão e a coisa ia acabar não
ficando boa. E o ferreiro mais invulgar não tem como demonstrar que é invulgar
fazendo uma grelha porque uma grelha é uma grelha, disse Joe,
argumentando de modo implacável, como se tentasse me arrancar de uma ideia
fixa, e faças o que fizeres, uma grelha acaba saindo apenas uma grelha, ou
porque querias mesmo que assim fosse, ou porque não querias que assim fosse, e
não tens como
Meu querido Joe, exclamei, em desespero, agarrando-o pelo casaco,
para com isso. Eu nunca pensei em dar presente nenhum à senhora Havisham.
Não, Pip, concordou Joe, como se estivesse tentando me convencer esse
tempo todo; e o que te digo é: tens razão, Pip.
Sim, Joe, mas o que eu queria dizer era que, como não estamos com muito
trabalho no momento, se me desses meio feriado amanhã, creio que eu iria
visitar a senhora Est
Havisham.
O nome da cuja, disse Joe, muito sério, não se chama Estavisham, Pip, só
se ela foi batizada outra vez.
Eu sei, Joe, eu sei. Fui eu que troquei na hora de falar. O que achas disso,
Joe?
Em resumo, Joe achava que, se eu achava que era uma ideia, também para
ele a ideia era boa. Mas ele fez questão de estipular que se eu não fosse recebido
com cordialidade, e se eu não fosse estimulado a voltar a visitar na condição de
um visitante que não tinha segundas intenções, e sim queria apenas manifestar a
gratidão pelo favor que lhe foi feito, então essa experiência não devia ser
repetida. Prometi aceitar essas condições.
Ora, Joe tinha um empregado que recebia um salário semanal, chamado
Orlick. Dizia ele que seu nome de batismo era Dolge algo claramente
impossível porém era um homem de tal modo obstinado que, a meu ver, não
devia ter nenhuma ilusão a esse respeito, porém impunha esse nome à aldeia
como uma afronta a seu entendimento. Era um sujeito moreno, ágil, de ombros
largos e uma força extraordinária, que jamais tinha pressa e andava sempre
recurvado. Nunca parecia vir ao trabalho com determinação, porém entrava
todo recurvado, como se ali estivesse por acaso; e quando ia à Três Barqueiros
almoçar, saía de lá recurvado, como Caim ou o Judeu Errante,2 como se não
fizesse ideia de para onde ia e não tivesse intenção de jamais voltar. Morava na
casa de um guardador de eclusa no charco, e nos dias de trabalho vinha de seu
refúgio caminhando recurvado, as mãos nos bolsos e o almoço numa trouxa
pendurada no pescoço, que lhe caía às costas. Nos domingos ficava a maior parte
do tempo deitado o dia inteiro junto às comportas da barragem, ou então parado
ao lado de medas e celeiros. Andava sempre recurvado, os olhos no chão; e
quando o abordavam ou de algum outro modo o obrigavam a levantar a vista, ele
o fazia com um misto de irritação e perplexidade, como se o único pensamento
que jamais tivesse na cabeça fosse a ideia estranha e enervante de que ele nunca
estava pensando em nada.
Este empregado mal-humorado não tinha simpatia por mim. Quando eu era
bem pequeno e medroso, ele me convenceu de que o Demônio morava num
canto escuro da ferraria, e que ele o conhecia muito bem: e também que era
necessário alimentar o fogo, uma vez a cada sete anos, com um menino vivo, e
que eu podia me considerar combustível. Quando me tornei aprendiz de Joe,
Orlick talvez visse confirmada alguma suspeita sua de que eu viria a substituí-lo;
fosse como fosse, passou a gostar de mim ainda menos que antes. Não que
jamais dissesse alguma coisa, ou fizesse alguma coisa que abertamente
manifestasse hostilidade; eu apenas percebia que ele sempre batia as fagulhas na
minha direção, e que sempre que eu cantava a canção do velho Clem ele entrava
no canto fora do tom.
Dolge Orlick estava no trabalho e presente, no dia seguinte, quando lembrei
Joe de meu meio feriado. Não disse nada na hora, pois ele e Joe naquele instante
estavam ambos trabalhando com um pedaço de ferro quente, e eu estava
acionando o fole; mas pouco depois ele observou, apoiado no martelo:
Ora, mestre! O senhor não vai querer privilegiar um de nós. Se o jovem Pip
vai ter meio feriado, então o senhor podia fazer o mesmo pelo velho Orlick.
Creio que ele tinha cerca de vinte e cinco anos, porém costumava referir-se a si
próprio como um ancião.
Mas o que é que vais fazer com um meio feriado, se o tiveres?, perguntou
Joe.
O que eu vou fazer? O que é que ele vai fazer? Eu faço o mesmo que ele
fizer, respondeu Orlick.
O Pip vai à cidade, disse Joe.
Então o velho Orlick também vai à cidade, retrucou o ilustre cavalheiro.
Dois pode ir à cidade. Não carece de ser só um, não.
Não vás perder as estribeiras, disse Joe.
Se quiser, eu perco, sim, rosnou Orlick. Então ele vai à cidade! Ora,
mestre! Isso, não. Nada de privilégios. Seja homem!
Como o mestre se recusava a discutir a questão enquanto o empregado não
recuperasse a calma, Orlick atacou a fornalha, dela tirou uma barra de ferro em
brasa, fez menção de enfiá-la em meu corpo, girou-a em torno da minha
cabeça, a pôs na bigorna, martelou-a como se ela fosse eu, pensei, e as
faíscas fossem meu sangue a esguichar e por fim, quando ele já havia ficado
quente e o ferro havia ficado frio de tanto ele malhar, voltando a apoiar-se no
martelo, disse:
Agora, mestre!
Então, estás bem agora?, perguntou Joe.
Ah! Estou bem, sim, rosnou o velho Orlick.
Então, como normalmente costumas trabalhar direito como todo mundo,
disse Joe, que seja meio feriado pra todos.
Minha irmã estivera esse tempo todo parada no quintal, a escutar ela era
uma espiã e bisbilhoteira sem escrúpulo algum e na mesma hora pôs a cabeça
numa das janelas.
És mesmo um pateta!, disse ela a Joe. Dando feriado a dois maganões
ociosos. Pelo visto, és muito rico, pra desperdiçar salários assim. Ah, se eu fosse
mestre!
A senhora seria mestre de todos, se pudesse, retorquiu Orlick, com um
sorriso mau.
(Deixa ela em paz, disse Joe.)
Comigo, bobo e malandro não tinha vez, respondeu minha irmã,
começando a enraivecer-se. E se bobo comigo não tinha vez, imagina então o
seu mestre, que é o rei dos bobalhões. E se malandro não tinha vez, o que seria de
você, que é o malandro mais feio e mais sem-vergonha do país. Ora!
E a senhora é uma megera, rosnou o empregado. Se quem é megera
entende de malandro, então a senhora é a maior entendida que há.
(Deixa ela em paz, ouviu?, disse Joe.)
O que foi que você disse?, exclamou minha irmã, começando a gritar. O
que foi que você disse? O que foi que esse tal de Orlick disse a mim, Pip? Ele me
chamou do quê, com o meu marido do lado? Ah! Ah! Ah! Cada uma dessas
interjeições era um berro; e devo dizer a respeito de minha irmã algo que se
aplica a todas as mulheres violentas que já conheci: a emoção não era uma
desculpa para ela, pois não havia dúvida de que, em vez de sucumbir à emoção,
ela deliberadamente se esforçava de modo extraordinário no sentido de se
emocionar, e chegava a uma fúria cega por etapas regulares. De que nome ele
me xingou, na cara do homem que jurou me defender? Ah! Me segurem! Ah!
Há-há-há!, rosnou o empregado entre os dentes. Eu bem que segurava a
senhora, se fosse minha mulher. Segurava debaixo da bica aberta, até ficar
engasgada.
(Eu já disse pra deixar ela em paz, insistiu Joe.)
Ah! Olha só!, exclamou minha irmã, batendo palmas e gritando ao
mesmo tempo era essa a etapa seguinte. Olha só como ele me xinga! Esse
Orlick! Na minha casa! Eu, uma mulher casada! E na cara do meu marido! Ah!
Ah! Nesse ponto, após um acesso de palmas e gritos, minha irmã começou a
bater com as mãos no peito e nos joelhos, e jogou no chão a touca, e puxou os
cabelos para baixo as últimas etapas rumo ao frenesi. Como já se havia
transformado numa verdadeira Fúria,* e obtido total sucesso, ela partiu como
uma bala em direção à porta, a qual felizmente eu havia trancado.
O que podia fazer agora o pobre Joe, tendo sido ignoradas suas intervenções
parentéticas, senão abordar seu empregado, e perguntar-lhe que ideia era aquela
de se meter entre ele e a sra. Joe, e também se ele era homem o bastante para
enfrentá-lo? O velho Orlick sentiu que a situação não admitia outra alternativa
senão o enfrentamento, e na mesma hora assumiu uma postura defensiva; e
assim, sem que sequer tirassem seus aventais chamuscados e queimados, os dois
partiram um para cima do outro, como dois gigantes. Mas se havia algum
homem na nossa vizinhança capaz de resistir a Joe por mais tempo, não cheguei
a conhecê-lo. Orlick, como se fosse tão fraco quanto o jovem cavalheiro pálido,
em pouco tempo deu por si caído no meio do pó de carvão, sem a menor pressa
de emergir de lá. Então Joe destrancou a porta e pegou minha irmã, que havia
caído desacordada junto à janela (mas que antes assistira à luta, creio eu) e foi
levada para dentro de casa e deitada, e estimulada a acordar, não fazendo outra
coisa senão debater-se e puxar os cabelos de Joe. Então sobrevieram aquela
calmaria e silêncio singulares que sempre se seguem a todos os tumultos; e
depois, com a vaga sensação que sempre associo a tais calmarias a de que era
domingo e alguém havia morrido subi a escada e fui me vestir.
Quando mais tarde desci, encontrei Joe e Orlick varrendo a ferraria, tendo
como único vestígio do ocorrido um corte numa das narinas de Orlick, que não
era nem expressivo nem ornamental. Uma jarra de cerveja viera da Três
Barqueiros, e os dois bebiam um de cada vez, de modo pacífico. A calmaria teve
um efeito sedativo e filosófico em Joe, que foi comigo até a rua para me dar, à
guisa de despedida, uma espécie de conselho: Uma hora está espumando,
depois para de espumar, Pip a vida é assim!.
Que sentimentos absurdos (pois os sentimentos que são muito sérios num
homem parecem-nos cômicos num menino) me tomaram quando me vi outra
vez indo em direção à casa da sra. Havisham, não interessa dizer agora.
Tampouco interessa relatar quantas vezes passei e repassei pelo portão até criar
coragem de tocar a campainha. Nem tampouco o quanto perguntei a mim
mesmo se deveria ir embora sem tocá-la; nem que eu sem dúvida teria ido
embora, se fosse dono de meu tempo, e pudesse voltar depois.
A sra. Sarah Pocket veio abrir o portão. Ela, e não Estella.
O quê, tu por aqui outra vez?, disse a sra. Pocket. O que queres?
Quando respondi que viera apenas para saber como estava a sra. Havisham,
Sarah claramente ficou a pensar se devia ou não despachar-me na hora. Porém,
não querendo arcar com a responsabilidade, deixou-me entrar, e pouco depois
voltou trazendo o recado seco de que eu devia subir.
Tudo permanecia tal como antes, e a sra. Havisham estava a sós. Sim?,
disse ela, fixando os olhos em mim. Espero que não queiras nada? Não vais
ganhar nada.
Não, senhora Havisham. Só queria lhe dizer que estou indo muito bem no
aprendizado, e que sou sempre muito grato à senhora.
Ora, ora! com aqueles velhos dedos irrequietos. Venha de vez em
quando; venha no seu aniversário. Isso!, exclamou de repente, virando o
corpo e a cadeira em minha direção. Estás à procura de Estella? Hein?
De fato, eu estava olhando à minha volta sim, à procura de Estella e
respondi, gaguejando, que esperava que ela estivesse bem.
No estrangeiro, disse a sra. Havisham, educando-se para se tornar uma
dama; fora do teu alcance; mais bela do que nunca; admirada por todos que a
veem. Achas que a perdeste?
Havia tanto prazer maligno nessas suas últimas palavras, e foi tão
desagradável a gargalhada que lhe irrompeu dos lábios, que fiquei sem saber o
que dizer. Ela poupou-me o trabalho de decidir, despachando-me. Quando o
portão se fechou após minha saída, pelas mãos de Sarah, a de rosto de noz, sentime
mais do que nunca insatisfeito com minha casa e meu ofício e tudo o mais; e
foi esse o único resultado do meu impulso.
Enquanto eu perambulava pela rua principal, olhando desanimado para as
vitrines e pensando no que eu haveria de comprar se fosse um cavalheiro, vi
saindo da livraria ninguém menos que o sr. Wopsle. Ele tinha nas mãos a tocante
tragédia de George Barnwell,3 livro em que ele naquele momento investira seis
pence, com o objetivo de derramar cada palavra ali contida na cabeça de
Pumblechook, com quem ia tomar chá. Tão logo me viu, pareceu dar sinais de
julgar que uma Providência especial pusera um aprendiz à sua frente para ouvir
a leitura da peça, e insistiu para que eu o acompanhasse até o salão
pumblechookiano. Como eu sabia que haveria de me sentir muito infeliz em casa,
e as noites eram escuras e lúgubre o caminho, e quase qualquer companhia na
estrada era melhor do que ir sozinho, não lhe opus muita resistência; assim,
entramos na casa de Pumblechook na hora em que se acendiam as luzes da rua e
das lojas.
Como jamais assisti a outra encenação de George Barnwell, não sei quanto
tempo o espetáculo costuma durar; sei muito bem, porém, que naquela noite
durou até as nove e meia, e que quando o sr. Wopsle entrou em Newgate, **
achei que jamais chegaria ao cadafalso, porque se tornou muito mais lento do
que em qualquer etapa anterior de sua vergonhosa carreira. Achei um pouco
excessivo ele queixar-se de ser abatido na flor da vida, como se desde o começo
de sua trajetória, folha após folha, já não estivesse semeando seu fim. Mas isso
era apenas uma questão de duração excessiva e tédio. O que me indignou foi a
identificação de toda aquela história com minha inofensiva pessoa. Quando
Barnwell começou a enveredar pelo mal, confesso que senti um impulso de pedir
desculpas, tão indignado era o olhar que Pumblechook passou a me dirigir.
Também Wopsle fazia questão de me pintar com as mais feias cores. Ao mesmo
tempo feroz e sentimental, fui levado a assassinar meu tio sem quaisquer
circunstâncias atenuantes; Millwood me derrotava em todas as discussões;
tornou-se mera obsessão da parte da filha de meu mestre importar-se por mim o
mínimo que fosse; e tudo que posso dizer da minha atitude hesitante e
procrastinadora na manhã fatal é que ela esteve bem à altura da debilidade geral
de meu caráter. Mesmo depois que fui felizmente enforcado e Wopsle fechou o
livro, Pumblechook continuou a olhar para mim e sacudir a cabeça, dizendo:
Cuida bem, menino, cuida bem!, como se fosse um fato sabido de todos que eu
planejava assassinar um parente próximo, bastando para tal que eu conseguisse
convencer um deles a cair no erro de se tornar meu benfeitor.
Era uma noite muito escura quando tudo terminou, e quando saí com o sr.
Wopsle em direção a minha casa. Fora da cidade, havia uma névoa pesada, que
descia úmida e espessa. O lampião da barreira era apenas um borrão, parecendo
estar fora de seu lugar habitual, e sua luz parecia transformar-se numa substância
sólida na neblina. Estávamos observando esse fato, e comentando que a névoa
surgia quando o vento vinha de certa direção do charco, quando vimos um
homem, todo encurvado, protegendo-se do vento junto à cabine da barreira.
Olá!, dissemos, parando. É o Orlick?
Ah!, ele respondeu, aproximando-se, recurvo. Eu estava ali, parado, um
minuto, vendo se vinha alguém.
É tarde pra você estar aí, comentei.
Orlick retrucou, não sem razão: E pra vocês, não é?.
Nós, respondeu o sr. Wopsle, entusiasmado por seu desempenho de ainda
há pouco, estávamos desfrutando, senhor Orlik, de um serão intelectual.
O velho Orlick rosnou, como se não tivesse nada a comentar sobre tal
assunto, e seguimos em frente juntos. Depois de algum tempo, perguntei-lhe se
ele havia passado seu meio feriado andando de alto a baixo.
Isso mesmo, disse ele, andei por toda a cidade. Eu estava andando atrás
de vocês. Não vi vocês, mas devia estar logo atrás. Aliás, estão dando tiro de
novo.
Lá nas presigangas?, indaguei.
É! Tem mais uns pássaro aí fora da gaiola. Estão dando tiro desde o
entardecer, mais ou menos. Daqui a pouco vocês vai ouvir mais um.
De fato, havíamos caminhado mais uns poucos metros apenas quando o
estrondo bem conhecido veio em nossa direção, amortecido pela névoa, e foi
ecoando pesado pelas terras baixas à margem do rio, como se perseguindo e
ameaçando os fugitivos.
Uma boa noite pra fugir, disse Orlick. Hoje é que não ia ser fácil de
derrubar um desses pássaro que estiver voando por aí.
Aquele assunto era sugestivo para mim, e fiquei a pensar sobre ele em
silêncio. O sr. Wopsle, no papel do tio vitimado da tragédia daquela noite, pôs-se
a meditar em voz alta em seu jardim em Camberwell.4 Orlick, com as mãos nos
bolsos, caminhava a meu lado, muito encurvado. Era uma noite muito escura,
muito úmida, muito lamacenta, e assim andávamos espadanando água. De vez
em quando um tiro de canhão nos surpreendia outra vez, e mais uma vez ecoava,
sombrio, ao longo do curso do rio. Eu permanecia calado, imerso em meus
pensamentos. O sr. Wopsle morreu amavelmente em Camberwell, com muito
estoicismo em Bosworth Field, e em meio a agonias indizíveis em Glastonbury. 5
Orlick rosnava às vezes: Bate forte, bate sempre velho Clem! para os
fortes e valentes velho Clem!. Achei que Orlick havia bebido, mas ele não
estava bêbado.
Chegamos enfim à aldeia. O caminho que seguíamos nos fez passar pela
porta da Três Barqueiros Alegres, e ficamos surpresos de ver que o lugar
embora já fossem onze horas estava em estado de comoção, a porta
escancarada, luzes não habituais acesas às pressas espalhadas pelo lugar. O sr.
Wopsle entrou para perguntar o que ocorrera (imaginando que um forçado
tivesse sido apreendido), mas saiu correndo afobado.
Ocorreu alguma coisa séria, disse ele, sem parar, na sua casa, Pip.
Vamos correr!
O que foi?, perguntei, correndo ao lado dele. Orlick corria também.
Não entendi direito. Parece que a casa foi arrombada quando Joe Gargery
não estava. Parece que por forçados. Uma pessoa foi atacada e ferida.
Estávamos correndo depressa demais para continuar conversando, e só
paramos ao chegarmos à cozinha de nossa casa. Estava cheia de gente; toda a
aldeia estava lá dentro ou no quintal; e lá estavam um médico, e Joe, e um grupo
de mulheres, todos reunidos em torno do chão do meio da cozinha. Os curiosos
desocupados recuaram ao me ver, e assim foi que deparei com minha irmã
deitada desacordada e imóvel sobre as tábuas nuas, tendo sido derrubada por um
golpe fortíssimo dado por trás na cabeça, por uma mão desconhecida, quando ela
estava voltada para a lareira claramente condenada a nunca mais espumar de
raiva enquanto fosse esposa de Joe.
* Fúria: na mitologia clássica, as Fúrias, ou Eríneas, eram três divindades
vingativas, que castigavam os criminosos. (n. t.)
** Newgate: famosa prisão em Londres. (n. t.)
16
Com a história de George Barnwell na cabeça, de início fui levado a pensar que
eu estaria de algum modo envolvido na agressão contra minha irmã, ou ao
menos que, na condição de seu parente mais próximo, que sabidamente lhe devia
obediência, eu era um objeto de suspeita mais legítimo do que qualquer outro.
Mas quando, à luz clara da manhã seguinte, voltei a pensar na questão e a ouvi
discutida a meu redor por todas as partes, passei a encarar o caso por um ângulo
diferente, e mais razoável.
Joe tinha ficado na Três Barqueiros Alegres, fumando seu cachimbo, das oito
e quinze às quinze para as dez. Enquanto estava lá, minha irmã fora vista parada
à porta da cozinha, e trocara boas-noites com um camponês que voltava para
casa. O homem não fora capaz de especificar melhor a hora em que a vira
(quando tentou fazê-lo, confundiu-se todo) senão que teria sido antes das nove.
Quando Joe chegou em casa às cinco para as dez, encontrou-a derrubada no
chão, e imediatamente pediu ajuda. O fogo na lareira não estava excessivamente
baixo, nem o morrão da vela estava longo demais, porém a vela fora soprada.
Nenhum objeto fora levado de nenhum cômodo da casa. E, além do fato de
que fora soprada a vela a qual estava numa mesa entre a porta e minha irmã,
atrás dela no momento em que, em pé diante da lareira, e voltada para o fogo,
ela fora atingida nada na cozinha fora mexido, fora as consequências de ter
minha irmã caído no chão sangrando. Mas havia uma prova notável no local do
crime. A vítima tinha sido atingida por algum objeto contundente pesado, na
cabeça e na coluna; depois que ela fora golpeada, alguma coisa pesada foi
jogada sobre seu corpo com muita violência, estando ela caída de bruços. E no
chão, a seu lado, quando Joe a levantou, havia um grilhão de ferro de forçado,
que havia sido aberto com uma lima.
Ora, examinando o grilhão com seu olho de ferreiro, Joe afirmou que ele
teria sido limado algum tempo antes. Tendo o clamor público chegado até as
presigangas, veio gente de lá examinar o grilhão, e a opinião de Joe foi
confirmada. Não afirmaram quando o objeto fora retirado dos navios-prisões dos
quais sem dúvida ele provinha; porém disseram ter certeza de que aquele grilhão
em particular não fora usado por nenhum dos dois forçados que haviam fugido
na noite da véspera. Ademais, um deles já fora recapturado, e não havia
conseguido livrar-se de seus grilhões.
Sabendo o que eu sabia, fiz minha própria inferência neste ponto. Julgava eu
que o grilhão pertencesse ao meu forçado o grilhão que eu vira e o ouvira
limando no charco porém não acreditava que fosse ele quem o utilizara na
véspera. A meu ver, uma de duas outras pessoas se havia apossado dele, usandoo
com aquele fim cruel. A pessoa era ou Orlick ou o desconhecido que me havia
mostrado a lima.
Quanto a Orlick, ele havia ido à cidade tal como nos dissera quando o
encontramos na cabine da barragem, fora visto em vários lugares da cidade ao
longo de toda a noite, estivera em companhia de diversas pessoas em mais de
uma taberna, e voltara comigo e com o sr. Wopsle. Nada havia que o
incriminasse, senão a discussão da véspera; e minha irmã discutira com ele, e
com quase todas as outras pessoas a seu redor, dez mil vezes. Quanto ao
desconhecido, se ele voltara para pegar suas duas cédulas não poderia ter havido
briga por esse motivo, pois minha irmã estava perfeitamente disposta a devolvêlas.
Além disso, não houvera briga; o agressor entrara de modo tão silencioso e
súbito que ela fora derrubada antes que tivesse tempo de olhar para trás.
Era horrível concluir que eu providenciara a arma do crime, ainda que sem
intenção, mas era impossível tirar outra conclusão. Sofri uma agonia indizível ao
pensar e repensar se devia por fim me livrar daquele encantamento da minha
infância e contar tudo a Joe. Durante os meses que se sucederam, todos os dias
eu decidia a questão de modo categórico na negativa, e a reabria e reconsiderava
na manhã seguinte. No final das contas, a questão resumia-se a isto: o segredo
era tão antigo, de tal modo criara raízes em mim e se tornara uma parte de meu
ser, que eu já não podia arrancá-lo. Além do medo de que, tendo tido
consequências tão terríveis, mais do que nunca ele teria agora o efeito de afastar
Joe de mim se ele acreditasse no que lhe fosse dito, paralisava-me também o
medo de que ele não acreditasse, porém pusesse a revelação na mesma conta
que os cães fabulosos e os pratos de vitela, como uma invenção monstruosa. Mas
contemporizei comigo mesmo, é claro pois não estava eu hesitando entre o
certo e o errado, quando não havia dúvida do que havia de ser feito? e decidi
que contaria tudo se uma nova situação constituísse mais uma oportunidade de
ajudar a descobrir a identidade do criminoso.
Os policiais e os homens da Bow-Street1 vindos de Londres pois isto se
deu nos tempos da extinta força policial que usava coletes vermelhos
frequentaram a casa por uma ou duas semanas, fazendo mais ou menos o que,
conforme já li e ouvi dizer, tais autoridades costumam fazer em casos assim.
Detiveram várias pessoas que claramente nada tinham a ver com o caso, e se
apegaram do modo mais obstinado a ideias erradas, insistindo em adaptar as
circunstâncias às ideias, em vez de tentar extrair ideias das circunstâncias. Além
disso, ficavam parados à porta da Três Barqueiros com expressões sagazes e
reservadas que inspiravam admiração a toda a vizinhança; e tinham um jeito
misterioso de beber que quase equivalia a prender o culpado. Não mais que
quase, porém; pois isso eles nunca conseguiram fazer.
Por muito tempo depois que esses poderes constitucionais se dispersaram,
minha irmã permaneceu acamada, em péssimo estado. Sua visão foi
prejudicada, de modo que ela via os objetos multiplicados, e tentava segurar
xícaras de chá e taças de vinho imaginárias em vez das reais; sua audição ficou
muito reduzida; sua memória também foi afetada; e sua fala tornou-se
ininteligível. Quando, por fim, ela já conseguia, com ajuda de alguém, descer a
escada, ainda assim era necessário manter minha lousa sempre a seu lado, para
que ela pudesse exprimir por escrito o que não conseguia falar. Como (além de
ter péssima letra) ela escrevia muito mal, e como Joe lia pior ainda,
complicações extraordinárias surgiam entre eles, para as quais eu era sempre
chamado para esclarecer. Servir repolho em vez de remédio, confundir Joe com
pão e tesoura com toucinho foram alguns dos erros menos sérios que cometi.
O gênio de minha irmã, porém, melhorou muito, e ela tornou-se paciente.
Uma incerteza trêmula quanto ao funcionamento de todos os seus membros logo
se tornou uma parte de seu estado normal, e posteriormente, com intervalos de
dois ou três meses, ela muitas vezes levava as mãos à cabeça e em seguida
permanecia por cerca de uma semana imersa num estado mental aberrante de
melancolia. Não sabíamos como encontrar uma acompanhante apropriada para
ela, até que uma circunstância conveniente veio a nosso auxílio. A tia-avó do sr.
Wopsle livrou-se do hábito teimoso de viver que havia adquirido, e Biddy passou
a morar conosco.
Foi talvez um mês depois que minha irmã voltou a frequentar a cozinha que
Biddy veio a nossa casa com uma caixinha sarapintada contendo todos os seus
bens, e tornou-se uma bênção para toda a família. Acima de tudo, foi uma
bênção para Joe, pois essa adorável criatura não suportava ter que contemplar
constantemente os destroços de sua esposa, e adquirira o costume de virar-se
para mim de vez em quando, ao cuidar dela à noite, e dizer-me, com os olhos
azuis rasos dágua: E pensar que ela já foi uma bela mulher, Pip!. Biddy de
imediato assumiu os cuidados de minha irmã com tanta destreza quanto se fizesse
isso desde a infância, e Joe pôde aproveitar um pouco a tranquilidade maior que
sua vida conquistara, podendo ir de vez em quando à Três Barqueiros para uma
mudança de ares que lhe fazia bem. Era típico dos policiais todos eles meio que
desconfiarem do pobre Joe (se bem que disso ele jamais teve ciência), e
acreditarem de comum acordo que ele era um dos mais refinados ladinos que
eles jamais conheceram.
O primeiro triunfo de Biddy em seu novo cargo foi resolver um problema
que me derrotara por completo. Eu me esforçara muito, mas nada conseguira.
Eis a questão:
Vez após vez após vez, minha irmã traçava na lousa um símbolo que parecia
um T curioso, e depois com muita ansiedade chamava nossa atenção para ele,
como algo que ela desejava em particular. Eu tentara em vão trazer-lhe todos os
objetos que começassem com a letra T, fosse terebintina, torrada ou tábua.
Depois de algum tempo comecei a pensar que o símbolo parecia um martelo, e
quando pronunciei a palavra com ênfase no ouvido de minha irmã ela pôs-se a
martelar na mesa e manifestar uma aprovação limitada. Em seguida, eu lhe
trouxe todos os martelos da casa, um após o outro, mas sem êxito. Em seguida,
ocorreu-me que a forma era bem semelhante a uma muleta, e assim tomei uma
emprestada na aldeia, exibindo-a a minha irmã com muita confiança. Ela,
porém, sacudiu a cabeça de tal modo que ficamos apavorados, temendo que, no
seu estado de fraqueza e invalidez, ela deslocasse o pescoço.
Quando minha irmã se deu conta de que Biddy conseguia compreendê-la
com muita rapidez, o símbolo misterioso reapareceu na lousa. Biddy olhou-o
pensativa, ouviu minha explicação, olhou pensativa para minha irmã, olhou
pensativa para Joe (o qual era sempre representado na lousa por sua inicial
maiúscula) e correu para a ferraria, seguida por Joe e por mim.
Ora, é claro!, exclamou Biddy, com uma expressão triunfal no rosto.
Vocês não veem? É ele!
Orlick, sem dúvida! Minha irmã perdera seu nome, e só conseguia
representá-lo por seu martelo. Explicamos-lhe por que queríamos que ele viesse
à cozinha, e ele lentamente largou o martelo, enxugou a testa no braço, enxugoua
de novo com o avental e veio, caminhando recurvado, com aqueles joelhos
dobrados do modo curioso, típico dos vagabundos, que o caracterizava de modo
tão enfático.
Devo confessar que esperava que minha irmã o denunciasse, e que fiquei
decepcionado quando vi o que aconteceu. Ela revelou-se muito ansiosa por fazer
as pazes com ele, ficou claramente satisfeitíssima por conseguir estar com ele
depois de tanto tempo, e indicou que gostaria que lhe fosse servido algo para
beber. Ela observava-lhe o rosto como se desejasse certificar-se de que Orlick
aceitava de bom grado aquela recepção, demonstrou toda intenção de
reconciliar-se com ele, e havia em tudo o que ela fazia aquele ar de propiciação
que tenho observado na conduta de uma criança para com um mestre rigoroso.
Desde então, era raro que se passasse um dia sem que ela desenhasse o martelo
na sua lousa, e sem que Orlick entrasse, todo recurvo, e se postasse a sua frente,
lealmente, como se entendesse tão pouco quanto eu o que estava acontecendo.
17
Mergulhei então na rotina da vida de aprendiz, que teve como única variação,
levando-me além dos limites da aldeia e do charco, a circunstância nada notável
da chegada de meu aniversário e mais uma visita à sra. Havisham. Encontrei a
sra. Sarah Pocket ainda ocupando o posto de porteira, e encontrei a sra.
Havisham tal como a havia deixado, e ela falou sobre Estella exatamente do
mesmo modo que antes, se não com as mesmas palavras. A conversa durou
apenas alguns minutos, e ela me deu um guinéu quando nos despedimos, e me
disse que voltasse no próximo aniversário. Aproveito para observar que essas
visitas anuais se tornaram costumeiras. Tentei não aceitar o guinéu nessa
primeira ocasião, mas o único efeito de minha recusa foi fazê-la me perguntar,
muito zangada, se eu esperava mais. Depois dessa, aceitei.
Era tão imutável aquela casa velha e poeirenta, a luz amarela no quarto
escurecido, a aparição murcha na cadeira diante do espelho da penteadeira, que
me dava a impressão de que, quando os relógios foram parados, também o
Tempo parara naquele lugar misterioso, e embora fora dela tudo se tornasse
mais velho, eu inclusive, ali nada mudava. A luz do dia jamais entrava na casa
em todos os meus pensamentos e lembranças associados a ela, tal como não
entrava na casa em si. Isso me deixava perplexo, e sob tal influência continuava,
no fundo do coração, a odiar meu ofício e a ter vergonha de minha casa.
De modo imperceptível, fui tomando consciência de uma mudança em
Biddy, porém. Seus sapatos não estavam mais amarfanhados nos calcanhares,
seu cabelo ficou mais reluzente e asseado, suas mãos estavam sempre limpas.
Ela não era bela era vulgar, e não podia ser como Estella porém era
agradável, saudável e bem-humorada. Estava conosco há apenas um ano
(lembro-me que ela havia acabado de tirar o luto nessa época) quando percebi
uma noite que seus olhos eram curiosamente pensativos e atentos; olhos muito
bonitos e muito bons.
Isso ocorreu quando levantei meus olhos, interrompendo uma tarefa em que
estava absorto a de copiar trechos de um livro, para me aperfeiçoar de duas
maneiras ao mesmo tempo através de uma espécie de estratagema e vi que
Biddy me observava. Larguei a pena, e Biddy deteve sua agulha sem largar a
costura.
Biddy , disse eu, como é que consegues? Ou eu sou muito burro ou tu és
muito inteligente.
O que é que eu consigo? Não sei, respondeu ela, sorrindo.
Ela administrava toda a nossa vida doméstica, e de um modo maravilhoso;
mas não era a isso que eu me referia, embora isso tornasse ainda mais
surpreendente aquilo a que eu me referia.
Como é que consegues, Biddy , expliquei, aprender tudo que eu aprendo,
e sempre me acompanhar? Eu estava começando a ficar um tanto vaidoso de
meus conhecimentos, pois eu gastava meus guinéus de aniversário e a maior
parte do meu dinheiro miúdo em investimentos tais; embora hoje me pareça
claro que o pouco que eu sabia fora adquirido a um preço extremamente caro.
Eu é que bem podia te perguntar, devolveu Biddy, como é que tu
consegues?
Não; porque quando volto da ferraria à noite, qualquer um pode me ver
estudando. Mas tu nunca estás estudando, Biddy .
Acho que pego como se fosse um resfriado, disse ela, em voz baixa; e
continuou a costurar.
Ainda a pensar nessa ideia, recostei-me em minha cadeira de madeira e
fiquei a olhar para Biddy , costurando com a cabeça inclinada, e comecei a achar
que ela era uma moça extraordinária. Pois, disse a mim mesmo, ela conhecia
igualmente bem os termos de nosso ofício, e os nomes dos diferentes tipos de
trabalho que fazíamos, e nossas diversas ferramentas. Em suma, tudo que eu
sabia, Biddy sabia também. Teoricamente, ela já era uma ferreira tão boa
quanto eu, se não melhor.
Tu és uma dessas pessoas, Biddy , disse eu, que aproveitam ao máximo
cada mudança. Antes de vires para cá, não tinhas nenhuma oportunidade; e vê
como melhoraste de vida!
Biddy olhou-me por um instante, e continuou a costurar. Mas eu fui tua
primeira professora, não é?, disse, enquanto costurava.
Biddy !, exclamei, perplexo. O quê, estás chorando?
Não estou, não, disse ela, levantando a cabeça e rindo. Quem te pôs essa
ideia na cabeça?
O que poderia ter posto essa ideia na cabeça senão o brilho de uma lágrima a
pingar na costura de Biddy ? Permaneci em silêncio, lembrando a vida dura que
ela levara até que a tia-avó do sr. Wopsle conseguiu livrar-se daquele seu
péssimo hábito de viver, do qual algumas pessoas têm tanta necessidade de se
livrar. Relembrei as circunstâncias desanimadoras que a haviam cercado na
lojinha miserável e na escolinha noturna barulhenta e miserável, sempre tendo
de arrastar e amparar aquele miserável fardo de incompetência. Refleti que
mesmo naqueles tempos difíceis deviam estar latentes em Biddy aquelas
qualidades que agora se desenvolviam, pois no meu primeiro momento de
inquietude e descontentamento eu recorrera a ela sem pensar duas vezes. Biddy
continuava a costurar em silêncio, sem chorar mais nem uma lágrima, e
enquanto eu a fitava e pensava, ocorreu-me que talvez não tivesse manifestado
minha gratidão a ela de modo suficiente. Talvez tivesse sido excessivamente
reservado, e devesse tê-la favorecido mais (embora não fosse essa a palavra
exata que usei em minha meditação) com minha confiança.
É verdade, Biddy , concordei, quanto terminei essas considerações, foste
mesmo minha primeira professora, e isso numa época em que jamais
imaginávamos que um dia estaríamos juntos como estamos agora, nesta
cozinha.
Ah, coitada!, replicou Biddy. Era típico de sua generosidade transferir o
comentário para minha irmã, e levantar-se para ocupar-se com ela, para lhe dar
mais conforto. É verdade, que tristeza!
Pois é, arrematei, precisamos conversar um pouco mais, como fazíamos
antigamente. E preciso consultar-te um pouco mais, como eu costumava fazer.
Vamos passear no charco neste domingo, Biddy , e ter uma longa conversa.
Minha irmã agora jamais ficava a sós; mas Joe assumiu de bom grado os
cuidados dela naquela tarde de domingo, e eu e Biddy saímos juntos. Era verão,
e era um dia muito bonito. Depois que deixamos para trás a aldeia, a igreja e o
campo-santo, e nos vimos no charco e começamos a ver as velas dos navios ao
longe, comecei a associar a sra. Havisham e Estella àquela vista, como de
costume. Chegando à beira do rio, sentamo-nos na margem, com a água
chegando até nossos pés, um ruído que apenas realçava o silêncio, e decidi que
era a hora e o lugar para eu me abrir com Biddy .
Biddy , disse eu, após lhe pedir que guardasse segredo, quero ser um
cavalheiro.
Ah, eu também havia de querer, se fosse tu!, ela retrucou. Acho que não
daria certo.
Biddy , insisti, com certa severidade, tenho meus motivos para querer ser
um cavalheiro.
Tu é que sabes, Pip; mas não achas que serias mais feliz sendo quem és?
Biddy , exclamei, impaciente, não sou nem um pouco feliz tal como sou.
Detesto meu ofício e minha vida. Nunca gostei de nenhum dos dois, desde que
me tornei aprendiz. Não seja boba.
Eu fui boba?, disse Biddy, levantando as sobrancelhas um pouco.
Desculpa; foi sem querer. Só quero que te sintas bem, e viva em conforto.
Pois então, quero que entendas de uma vez por todas que nunca vou poder
viver em conforto nunca vou deixar de ser infeliz isso mesmo, Biddy ! se
não conseguir levar uma vida muito diferente dessa que levo agora.
É uma pena!, respondeu Biddy, sacudindo a cabeça com uma expressão
de tristeza.
Ora, eu também havia pensando tantas vezes que era uma pena, que,
naquela curiosa discussão comigo mesmo que eu vivia tendo, senti-me um pouco
inclinado a chorar de aflição e amargura quando Biddy exprimiu aquele
sentimento seu que também era meu. Disse-lhe que ela tinha razão, que eu sabia
que era mesmo lamentável, mas que não havia jeito.
Se pudesse me acomodar, disse eu a Biddy, arrancando a grama a meu
lado tal como uma vez eu arrancara meus sentimentos dos cabelos e os chutara
contra as paredes da cervejaria, se pudesse me acomodar e gostar da ferraria
ao menos um pouco, a metade do que eu gostava quando era pequeno, sei que
seria muito melhor pra mim. Então não faltaria nada para ti, para mim e para
Joe, e talvez eu me tornasse sócio de Joe quando chegasse a hora, e fizesse
companhia a ti, e viéssemos nos sentar bem aqui, à beira do rio, nos domingos de
bom tempo, duas pessoas muito diferentes. Eu seria bom o bastante pra ti; não é,
Biddy ?
Biddy suspirou enquanto olhava para os navios que passavam, e disse, à guisa
de resposta: É, sim; não sou muito exigente. O comentário não era muito
lisonjeiro, mas eu sabia que sua intenção fora boa.
Em vez disso, prossegui, arrancando mais grama e mastigando uma folha
ou duas, vê como estou. Insatisfeito, amargurado e que importância isso
teria, isso de eu ser grosseiro e vulgar, se ninguém nunca me tivesse dito que eu
era!
Biddy virou-se para mim de repente, e olhou-me com mais atenção do que
olhara para os navios até então.
Isso que te disseram não é de todo verdade, e não é muito educado,
comentou ela, voltando a olhar para os navios. Quem disse isso?
Fiquei desconcertado, pois havia puxado o assunto sem me dar conta da
direção que estava tomando. Agora não havia como voltar atrás, porém, e
respondi: A moça bonita da casa da senhora Havisham, ela é a pessoa mais
bonita que já existiu, e eu tenho uma admiração tremenda por ela, e é por causa
dela que quero ser um cavalheiro. Tendo feito essa confissão maluca, pus-me a
jogar no rio a grama que eu arrancara, como se tivesse alguma intenção de ir
atrás dela.
Queres ser cavalheiro pra despeitá-la ou pra conquistá-la?, Biddy
perguntou em voz baixa, após uma pausa.
Não sei, respondi, emburrado.
Porque se é pra despeitá-la, prosseguiu Biddy, a meu ver mas tu és
quem sabe a maneira melhor e mais independente de fazer isso é não dar
importância ao que ela diz. E se é para conquistá-la, mas tu és quem sabe
ela não merece ser conquistada.
Exatamente o que eu próprio já havia pensado, muitas vezes. Exatamente o
que estava bem claro para mim naquele momento. Mas como podia eu, um
rapazinho pobre e deslumbrado que morava numa aldeia, evitar aquela
maravilhosa incoerência em que os homens melhores e mais sábios incidem
todos os dias?
Isso pode ser verdade, disse eu a Biddy, mas o fato é que tenho uma
admiração tremenda por ela.
Em suma, virei-me para o outro lado ao dizer isso, e agarrei meu cabelo de
ambos os lados da cabeça, e puxei-o também. Sabendo o tempo todo que a
loucura de meu coração era de fato loucura e desatino, que eu tinha consciência
de que meu rosto bem merecia que eu o levantasse pelo cabelo e o batesse
contra as pedras do chão, para castigá-lo por pertencer a um idiota.
Biddy era a mais sábia das moças, e não tentou mais argumentar comigo.
Pôs sua mão, que era agradável embora tornada áspera pelo trabalho, nas
minhas, uma depois da outra, e delicadamente tirou-as de meu cabelo. Então
acariciou-me o ombro para me tranquilizar, enquanto eu, com o rosto enterrado
na manga da camisa, chorava um pouco tal como fizera no pátio da
cervejaria e me sentia vagamente convencido de que eu era muito
maltratado, não sei se por alguém, ou se por todo mundo.
Uma coisa me anima, disse Biddy, é que tu te sentiste capaz de confiar
em mim, Pip. E outra coisa também, é claro que sabes que podes ter certeza de
que podes ter confiança em mim e de que jamais vou traí-la. Se a sua primeira
professora (e que pobre professora, pois ela própria precisava aprender tanta
coisa!) fosse sua professora no momento, ela acha que saberia que lição te
haveria de dar. Mas seria uma lição difícil de aprender, e tu já a deixaste para
trás, e agora de nada adiantaria. Assim, com um suspiro suave dirigido a mim,
Biddy pôs-se de pé, e perguntou-me, com uma mudança de tom agradável:
Vamos caminhar mais um pouco, ou voltamos para casa?.
Biddy , exclamei, levantando-me e abraçando-lhe o pescoço, e beijando-a,
vou sempre te contar tudo.
Até te tornares um cavalheiro, respondeu ela.
Sabes que nunca vou ser, e por isso é mesmo pra sempre. Não que eu tenha
alguma ocasião de te dizer mais coisas, pois sabes tudo que eu sei como eu te
disse lá em casa aquela noite.
Ah!, exclamou Biddy, num sussurro, enquanto desviava o olhar para os
navios. E depois repetiu, no mesmo tom agradável de antes: Vamos caminhar
mais um pouco, ou voltamos para casa?.
Respondi que caminharíamos mais um pouco, e foi o que fizemos, e a tarde
de verão foi se transformando numa noite de verão, e uma noite muito bonita.
Comecei a pensar se seria para mim mais natural e saudável, no final das contas,
estar ali naquelas circunstâncias, do que jogando batalha à luz de vela no quarto
dos relógios parados, sendo desprezado por Estella. Pensei que seria muito bom
para mim se eu conseguisse tirá-la da cabeça, juntamente com todas aquelas
outras lembranças e fantasias, e pudesse retomar o trabalho decidido a gostar do
que tinha de fazer, e me aplicar a meu ofício, e aproveitá-lo da melhor maneira
possível. Perguntei a mim mesmo se eu não sabia muito bem que se Estella
estivesse a meu lado naquele momento em vez de Biddy, ela me faria sentir
infeliz. Fui obrigado a reconhecer que sabia disso, sim, e disse a mim mesmo:
Pip, és mesmo um idiota!.
Conversamos bastante durante a caminhada, e tudo que Biddy dizia me
parecia razoável. Ela nunca era desdenhosa, nem caprichosa, nem era Biddy
hoje e outra pessoa amanhã; para ela seria apenas doloroso, e não um prazer, me
fazer sentir dor; ela preferiria sem dúvida ferir a si própria do que a mim. Como
podia ser, então, que eu não gostasse muito mais dela que da outra?
Biddy , disse eu, quando caminhávamos de volta para casa, queria muito
que pudesses dar um jeito em mim.
Eu também queria!, exclamou Biddy .
Se eu pudesse me fazer apaixonar-me por ti tu não te incomodas de me
ouvir falar tão às claras com uma velha amiga?
Ah, não, que nada!, respondeu ela. Não te importes comigo.
Se eu conseguisse isso, seria o melhor pra mim.
Mas nunca vais, não é?, disse Biddy .
A coisa não me parecia tão improvável naquela noite quanto teria parecido
se tivéssemos falado no assunto algumas horas antes. Assim, observei que eu não
tinha tanta certeza disso. Mas Biddy disse que ela, sim, tinha certeza, e afirmou-o
num tom decidido. No fundo do coração, eu achava que ela tinha razão; e, no
entanto, não me agradou nem um pouco ouvi-la fazer tal afirmação de modo tão
categórico.
Quando nos aproximávamos do campo-santo, tínhamos de atravessar uma
barragem, e passar por uma cancela junto a uma eclusa. Apareceu então, saído
da cancela, ou do meio dos juncos, ou da lama (que era tão estagnada quanto
ele), o velho Orlick.
Olá!, rosnou ele. Adonde que vocês dois estão indo?
Onde estaríamos indo, senão para casa? Então, disse ele, me estrepem se
eu não levar vocês em casa!
Este castigo de ser estrepado era uma de suas suposições favoritas. Ele não
atribuía nenhum significado específico à palavra, que eu saiba, porém a utilizava,
tal como seu suposto nome de batismo, para afrontar a humanidade, e exprimir a
ideia de algo terrivelmente danoso. Quando eu era menino, imaginava que, se
Orlick me estrepasse pessoalmente, haveria de fazê-lo com um gancho afiado e
torto. Biddy era totalmente contrária à ideia de ele nos acompanhar, e disse a mim
num cochicho: Não o deixes vir; não gosto dele. Como também eu não gostava
de Orlick, tomei a liberdade de lhe dizer que agradecíamos, mas que não
queríamos ser levados para casa. Ele recebeu essa informação com uma
gargalhada, e deixou-se ficar para trás, mas veio andando atrás de nós, todo
recurvado, a uma pequena distância.
Curioso, querendo saber se Biddy desconfiava de que Orlick tivesse
participado daquela agressão assassina que minha irmã jamais conseguira
explicar, perguntei-lhe por que ela não gostava dele.
Ah!, respondeu ela, olhando de relance para a figura que vinha atrás de
nós, porque eu
acho que ele gosta de mim.
Ele alguma vez te disse que gostava de ti?, perguntei, indignado.
Não, respondeu Biddy, olhando para trás de relance outra vez, nunca me
disse isso; mas fica dançando à minha frente, sempre que consegue atrair meu
olhar.
Por mais estranha e inusitada que fosse essa prova de interesse, não duvidei
que sua interpretação estivesse correta. Fiquei muitíssimo irritado de saber que
Orlick ousava admirá-la; tanto quanto se isso fosse uma agressão dirigida a mim.
Mas pra ti, isso não faz diferença, tu sabes, disse Bid dy , tranquila.
Não, Biddy , não faz diferença pra mim; mas não gosto; não aprovo.
Eu também não, disse Biddy. Se bem que isso também não faz diferença
pra ti.
Certamente, retruquei; mas devo te dizer que faria mau juízo de ti, Biddy ,
se ele dançasse a tua frente com tua aprovação.
Fiquei de olho em Orlick a partir daquela noite, e sempre que as
circunstâncias lhe permitiriam dançar diante de Biddy, colocava-me à frente
dele, para criar um obstáculo para tais demonstrações. Orlick havia criado raízes
na ferraria, por ter minha irmã de repente se interessado por ele; não fosse isso,
eu tentaria fazer com que ele fosse demitido. Orlick compreendia e reciprocava
minhas boas intenções, como pude concluir depois.
E agora, porque minha cabeça ainda não estava suficientemente confusa,
aumentei essa confusão cinquenta vezes mais, passando por fases e temporadas
em que tinha certeza de que Biddy era incomensuravelmente melhor do que
Estella, e que a vida simples e honesta de trabalhador que me cabia por berço
não me dava motivo algum para me envergonhar, porém oferecia-me meios
suficientes de conquistar o amor-próprio e a felicidade. Nesses momentos, eu
concluía de modo decisivo que minha implicância com meu querido Joe e a
ferraria havia passado, e que eu estava caminhando para um dia me tornar sócio
de Joe e fazer companhia a Biddy quando de repente alguma lembrança
acachapante da casa da sra. Havisham desabava em mim, como um projétil
destruidor, e despedaçava meu juízo. Leva-se tempo para catar os pedaços do
juízo; e muitas vezes, antes de eu conseguir juntá-los outra vez, eles eram
espalhados para todos os lados por um único pensamento errante, a ideia de que
talvez, no final das contas, a sra. Havisham viesse a fazer minha fortuna quando
chegasse minha hora.
Se minha aprendizagem tivesse ido até o fim, ela me deixaria ainda no auge
da minha perplexidade, creio eu. Porém ela não chegou a concluir-se, e sim foi
interrompida prematuramente, como passo a relatar.
18
Foi no quarto ano de meu aprendizado com Joe, e foi numa noite de sábado.
Havia um grupo reunido em torno da lareira na Três Barqueiros Alegres, ouvindo
o sr. Wopsle a ler o jornal em voz alta. Nesse grupo estava eu.
Um assassinato muito popular fora cometido, e o sr. Wopsel estava
mergulhado em sangue até as sobrancelhas. Ele deleitava-se com cada adjetivo
horrendo da descrição, e identificava-se com cada testemunha na investigação.
Gemia em voz baixa: É o fim, no papel da vítima, e gritava como um bárbaro:
Vais ter o que mereces, no papel do assassino. Apresentou o testemunho
médico, imitando claramente o clínico local; e com uma voz aguda, trêmulo, deu
o depoimento do velho guardador da cabine da barreira que ouvira os golpes, de
modo tão paralítico que lançou dúvida sobre a competência mental dessa
testemunha. O médico-legista, nas mãos do sr. Wopsle, tornou-se Timão de
Atenas; o oficial de justiça, Coriolano.1 Ele divertia-se à grande, e todos nós nos
divertíamos, e estávamos deliciosamente à vontade. Nesse estado mental
agradável, chegamos ao veredicto: assassinato doloso.
Neste momento, não antes, me dei conta de que havia um cavalheiro
desconhecido debruçado sobre o encosto do banco em frente ao meu, assistindo à
cena. Havia uma expressão de desprezo em seu rosto, e ele mordia o lado de seu
avantajado dedo indicador enquanto observava aquele grupo de rostos. Pois
bem!, disse o cavalheiro para o sr. Wopsle, ao final da leitura. Então o senhor
resolveu tudo e está satisfeito, não é mesmo?
Todos levantaram a vista, surpresos, como se ele fosse o assassino. O
homem dirigiu a todos um olhar frio e sarcástico.
Culpado, é claro?, insistiu. Digam lá. Vamos!
Meu senhor, retrucou o sr. Wopsle, ainda que não tenha a honra de
conhecê-lo, digo, sim: culpado. Em seguida, todos nós criamos coragem de nos
unirmos num murmúrio de aprovação.
Sei que vocês pensam assim, disse o desconhecido; eu já sabia. Eu lhes
disse. Mas agora vou lhes fazer uma pergunta. Vocês sabem, ou não sabem, que
na Inglaterra a lei pressupõe que todo homem é inocente, até que sua culpa seja
provada provada?
Meu senhor, foi dizendo o sr. Wopsle, eu mesmo, na condição de
inglês
Ora!, exclamou o desconhecido, mordendo o dedo para ele. Não se
esquive da minha pergunta. Ou o senhor sabe, ou não sabe. Qual das
alternativas?
Ele estava em pé, com a cabeça inclinada para um lado e o corpo para o
outro, numa postura agressiva e inquisidora, e apontou com o indicador para o sr.
Wopsle como se para marcá-lo antes de morder o dedo outra vez.
Agora!, disse ele. O senhor sabe ou não sabe?
É claro que sei, respondeu o sr. Wopsle.
É claro que sabe. Então por que não disse isso antes? Pois agora vou lhe
fazer outra pergunta, apossando-se do sr. Wopsle como se tivesse direitos sobre
ele. O senhor sabe que nenhuma dessas testemunhas ainda foi submetida a um
interrogatório detalhado?*
O sr. Wopsle começou: Só posso dizer
, quando o desconhecido o
interrompeu.
O quê? O senhor não vai responder à pergunta, sim ou não? Pois vou tentar
outra vez. Apontando para ele outra vez. Ouça-me. O senhor sabe, ou não
sabe, que nenhuma dessas testemunhas ainda foi sujeita a um interrogatório
detalhado? Vamos, só quero uma palavra do senhor. Sim, ou não?
O sr. Wopsle hesitou, e todos nós começamos a formar uma opinião um
tanto desfavorável a seu respeito.
Vamos lá!, disse o desconhecido. Vou ajudá-lo. O senhor não merece ser
ajudado, mas vou ajudá-lo assim mesmo. Olhe para o papel que o senhor tem na
mão. O que é isso?
O que é isso?, repetiu o sr. Wopsle, olhando para o jornal, sem saber o que
dizer.
Seria isso, insistiu o desconhecido no seu tom mais sarcástico e
desconfiado, o papel impresso que o senhor estava lendo ainda há pouco?
Sem dúvida.
Sem dúvida. Agora pegue esse papel, e me diga se nele está escrito com
clareza que o prisioneiro afirmou com todas as letras que seus representantes
legais o instruíram a abster-se de se defender?
Acabei de ler isso, argumentou o sr. Wopsle.
Não vem ao caso o que o senhor acabou de ler; não estou lhe perguntando o
que o senhor acabou de ler. O senhor pode ler o padre-nosso de trás para frente,
se quiser e pode, talvez, ter feito isso ontem. Volte ao jornal. Não, não, não,
meu amigo; não para o alto da coluna; o senhor sabe muito bem que não é aí;
para a parte de baixo, de baixo. (Todos nós começamos a pensar que o sr.
Wopsle era cheio de subterfúgios.) E então? Encontrou?
Cá está, disse o sr. Wopsle.
Agora, percorra com o olho esse trecho, e me diga se aí se diz com clareza
que o prisioneiro afirmou com todas as letras que seus representantes legais o
instruíram a abster-se por completo de se defender? Vamos! Como o senhor
entende isso?
Respondeu o sr. Wopsle: Não são essas as palavras exatas.
Não são as palavras exatas!, repetiu o cavalheiro, cáustico. O teor exato é
esse?
É, respondeu o sr. Wopsle.
É, repetiu o desconhecido, olhando para os demais presentes com a mão
direita estendida em direção à testemunha, Wopsle. E agora eu lhes pergunto o
que me dizem da consciência deste homem, o qual, tendo essa passagem diante
de seus olhos, é capaz de dormir à noite depois de afirmar que um semelhante
seu é culpado, sem tê-lo ouvido?
Todos nós começamos a suspeitar que o sr. Wopsle não era o homem por
quem o tomávamos, e que ele estava começando a ser desmascarado.
E este mesmo homem, lembrem, insistiu o cavalheiro, apontando o dedo
para o sr. Wopsle de modo enfático, este mesmo homem pode ser convocado
para atuar como jurado neste exato julgamento, e, tendo-se comprometido
profundamente, pode voltar ao seio de sua família e dormir à noite, depois de
jurar explicitamente que iria julgar de modo competente e veraz a questão
envolvendo sua majestade, nosso rei e senhor, e o réu presente, e que daria um
veredicto verdadeiro de acordo com as provas apresentadas, com a ajuda de
Deus!
Todos nós estávamos inteiramente convencidos de que o infeliz Wopsle tinha
ido longe demais, e seria melhor interromper aquela trajetória perigosa enquanto
ainda era tempo.
O cavalheiro desconhecido, com um ar de autoridade inquestionável, e com
modos de quem conhecia um segredo a respeito de cada um de nós que seria
nosso fim se ele resolvesse revelá-lo, saiu detrás do banco e veio para o espaço
entre os dois bancos, à frente da lareira, onde permaneceu em pé: com a mão
esquerda no bolso, enquanto mordia o indicador da mão direita.
Com base em informações que recebi, disse ele, olhando para nós, que
tremíamos diante de seu olhar, sou levado a crer que há entre vocês um ferreiro
chamado Joseph ou Joe Gargery . Quem é esse homem?
Sou eu, disse Joe.
O cavalheiro desconhecido fez sinal para que ele se levantasse, e Joe o fez.
O senhor tem um aprendiz, prosseguiu o desconhecido, chamado por
todos de Pip? Ele está aqui?
Estou aqui!, exclamei.
O desconhecido não me reconheceu, mas eu o reconheci: era o cavalheiro
que eu encontrara na escada, na ocasião da minha segunda visita à casa da sra.
Havisham. Eu o reconhecera no momento em que o vi do outro lado do banco,
olhando para nós, e agora que eu estava diante dele, tendo ele a mão em meu
ombro, observei outra vez cada detalhe, a cabeçorra, a pele escura, os olhos
fundos, as sobrancelhas espessas e negras, a enorme corrente de relógio, os
pontos negros grandes da barba e das suíças, até mesmo o cheiro de sabonete
perfumado em sua manzorra.
Gostaria de ter uma conversa em particular com vocês dois, disse ele,
depois de me observar por alguns instantes. Vai levar algum tempo. Talvez seja
melhor irmos até a sua residência. Prefiro não antecipar aqui o que tenho a dizer;
vocês transmitirão a seus amigos depois o quanto quiserem do que lhes direi;
quanto a isso, sou de todo indiferente.
Em meio a um silêncio atônito, nós três saímos da Três Barqueiros, e num
silêncio atônito caminhamos para casa. No caminho, o cavalheiro desconhecido
de vez em quando olhava para mim, e de vez em quando mordia o lado do dedo
indicador. Ao nos aproximarmos de nossa casa, tendo uma vaga ideia de que a
ocasião era importante e cerimoniosa, Joe adiantou-se e abriu a porta da frente.
Nossa reunião realizou-se na sala de visitas de cerimônia, fracamente iluminada
por uma vela.
Começou quando o cavalheiro desconhecido sentou-se à mesa, puxou a vela
para perto de si e consultou algumas anotações em sua caderneta de bolso.
Depois pôs sobre a mesa a caderneta e colocou a vela a seu lado: depois olhou
para Joe e para mim na escuridão, para certificar-se de quem era quem.
Meu nome, disse ele, é Jaggers, e sou um advogado londrino. Sou bem
conhecido. Tenho um negócio pouco habitual a realizar com vocês, e começo
por dizer que não fui eu quem teve a iniciativa. Se tivessem pedido meu conselho,
eu não estaria aqui. Não me pediram, e cá estou eu. Faço o que faço como
representante confidencial de um terceiro. Nada mais, nada menos que isso.
Constatando que não conseguia nos ver muito bem de onde estava, levantouse,
jogou uma perna sobre o encosto de uma cadeira e apoiou-se nela; assim,
tinha um pé no assento da cadeira e o outro no chão.
Pois bem, senhor Joseph Gargery, vim trazer uma oferta para retirar de
suas mãos esse seu jovem aprendiz. O senhor não se importa de cancelar o
contrato de aprendizagem, a pedido dele e para o bem dele? O senhor não pediria
nada em troca?
Deus me livre de pedir alguma coisa pra não atrapalhar a vida do Pip,
disse Joe, com os olhos arregalados.
Que Deus o livre é uma expressão piedosa, mas irrelevante, retrucou o sr.
Jaggers. A pergunta é: o senhor quereria algo? O senhor quer algo?
A resposta, disse Joe, sério, é não.
Pareceu-me que o sr. Jaggers olhou de relance para Joe, como se o
considerasse um tolo por ser tão desinteressado. Mas eu estava demasiadamente
perplexo, dividido entre uma curiosidade e uma surpresa intensas, para ter
certeza disso.
Muito bem, disse o sr. Jaggers. Lembre-se do que o senhor acaba de
afirmar, e não tente voltar atrás depois.
Quem que vai tentar?, retorquiu Joe.
Eu não disse que ninguém ia tentar nada. O senhor tem um cachorro?
Tenho um cachorro, sim.
Pois então não esqueça que a Gabolice é um bom cachorro, mas a
Reticência é melhor ainda.2 Não esqueça, ouviu?, repetiu o sr. Jaggers,
fechando os olhos e acenando com a cabeça para Joe, como se lhe perdoasse
alguma falta. Voltemos a este rapazinho. E a comunicação que lhe trago é que
ele tem grandes esperanças.
Joe e eu ficamos boquiabertos e nos entreolhamos.
Fui instruído a comunicar-lhe, disse o sr. Jaggers, apontando o dedo para
mim, de lado, que ele vai herdar uma bela propriedade. Ademais, o atual dono
da propriedade em questão deseja que ele seja imediatamente retirado de suas
atuais circunstâncias e deste lugar, e passe a ser criado como um cavalheiro
em suma, como um jovem com grandes esperanças.
Meu sonho fora revelado; minha louca fantasia fora ultrapassada pela fria
realidade; a sra. Havisham ia fazer minha fortuna numa escala grandiosa.
Pois bem, senhor Pip, prosseguiu o advogado, o resto do que tenho a dizer
destina-se ao senhor. É preciso dizer-lhe, em primeiro lugar, que a pessoa que
me instruiu lhe faz o pedido de que seu nome continue sempre sendo Pip. Creio
que o senhor não fará objeção a que suas grandes esperanças dependam dessa
condição tão fácil. Mas se há alguma objeção, agora é o momento de levantála.
Meu coração batia tão depressa, e era tão alto o zumbido em meus ouvidos,
que mal consegui gaguejar que não tinha objeção alguma.
Era de se esperar! Em segundo lugar, senhor Pip, o nome de seu benfeitor
generoso permanecerá em segredo absoluto, até que a pessoa em questão
resolva revelá-lo. Fui instruído a lhe dizer que a intenção dessa pessoa é que seu
nome seja revelado em primeira mão oralmente, por mim, para o senhor.
Quando ou onde essa intenção deverá se realizar, não sei dizer; ninguém sabe.
Talvez daqui a anos. Ora, é importante que o senhor compreenda que é
terminantemente proibido fazer qualquer indagação quanto a esse ponto,
qualquer alusão ou referência, por mais remota que seja, a qualquer indivíduo,
quem quer que seja, como sendo a pessoa em questão, em todas as
comunicações que o senhor vier a ter comigo. Se o senhor guarda uma suspeita
em seu coração, mantenha essa suspeita em seu coração. Não vem em absoluto
ao caso quais seriam as razões dessa proibição; podem ser as mais fortes e sérias,
ou podem ser um mero capricho. Não cabe ao senhor investigar essa questão. A
condição foi estabelecida. Que o senhor a aceite, e continue a acatá-la, é a única
outra condição que fui incumbido de lhe transmitir, pela pessoa que me instruiu, e
pela qual não tenho qualquer outra responsabilidade. É dessa pessoa que
decorrem suas esperanças, e o segredo só é conhecido por essa pessoa e por
mim. Mais uma vez, não se trata de uma condição muito difícil de aceitar em
troca de uma mudança de vida tão afortunada; mas se o senhor tiver alguma
objeção, agora é o momento de levantá-la. Fale.
Mais uma vez, gaguejei com dificuldade que não tinha nenhuma objeção.
Era de se esperar! Pois bem, senhor Pip, terminei com as estipulações.
Embora me chamasse de senhor, e já começasse a me adular um pouco, ainda
assim ele não conseguia livrar-se de certo ar de desconfiança intimidadora; e
mesmo agora ele de vez em quando fechava os olhos e apontava para mim
enquanto falava, como se para dar a entender que era sabedor de muitas coisas
que depunham contra mim, e que poderia mencioná-las se bem o entendesse.
Agora passemos a meros detalhes de disposições. É preciso deixar claro que,
embora eu tenha usado o termo esperanças mais de uma vez, não se trata
apenas de esperanças. Já tenho em mãos uma quantia mais que suficiente para
garantir sua instrução e seu sustento. O senhor pode passar a me ter por seu tutor.
Ah!, pois eu estava prestes a agradecer-lhe, apresso-me a lhe dizer que estou
sendo pago por meus serviços, senão não os estaria prestando. Considera-se que o
senhor precisa de uma formação melhor, tendo em vista sua nova situação na
vida, e que o senhor há de compreender a importância e a necessidade de valerse
o quanto antes dessa vantagem.
Observei que eu sempre desejara tal coisa.
Não importa que o senhor sempre a tenha desejado, senhor Pip, retorquiu
ele; atenha-se aos termos acordados. Se o senhor a deseja agora, é o que basta.
Devo entender que sua resposta é que o senhor está disposto a encontrar
imediatamente algum preceptor? É isso?
Gaguejei que era isso, sim.
Muito bem. Pois bem, devo consultar suas inclinações. Não me parece uma
boa ideia, veja lá, mas é o que me cabe fazer. O senhor conhece algum
preceptor que tenha sua preferência?
Eu jamais ouvira falar de outras preceptoras que não Biddy e a tia-avó do sr.
Wopsle, e assim respondi na negativa.
Há um determinado preceptor, de quem tenho algum conhecimento, que a
meu ver talvez seja adequado, disse o sr. Jaggers. Não estou a recomendá-lo,
veja lá, pois nunca recomendo ninguém. O cavalheiro que tenho em mente é um
certo senhor Matthew Pocket.
Ah! Reconheci o nome de imediato. O parente da sra. Havisham. O Matthew
de quem a sra. Camilla e o sr. Camillo haviam falado. O Matthew que deveria
ficar à cabeceira da sra. Havisham, quando ela estivesse morta, com seu vestido
de noiva, estendida na mesa da festa nupcial.
O senhor reconhece o nome?, perguntou o sr. Jaggers, dirigindo-me um
olhar arguto, e depois fechando os olhos enquanto aguardava minha resposta.
Minha resposta foi que eu já ouvira aquele nome, sim.
Ah!, exclamou ele. O senhor já ouviu o nome. Mas a pergunta é: o que o
senhor pensa dele?
Respondi, ou tentei responder, que lhe agradecia muito a recomendação
Não, meu jovem amigo!, ele interrompeu, sacudindo a cabeçorra bem
vagarosamente. Lembre o que eu disse!
Não lembrando, comecei de novo a dizer que lhe agradecia muito a
recomendação
Não, meu jovem amigo, ele interrompeu, sacudindo a cabeça, franzindo a
testa e sorrindo ao mesmo tempo, não, não e não; está muito bem dito, mas
nada disso; o senhor é muito jovem pra fazer isso comigo. Recomendação não é
a palavra, senhor Pip. Tente outra.
Corrigindo-me, disse então que lhe agradecia muito por mencionar o sr.
Matthew Pocket
Melhorou!, exclamou o sr. Jaggers.
E (acrescentei) eu gostaria de experimentar o cavalheiro em questão.
Muito bem. Melhor experimentá-lo na casa dele. Tudo será providenciado,
e o senhor falará primeiro com o filho dele, que está em Londres. Quando é que
o senhor irá a Londres?
Respondi (olhando de relance para Joe, que assistia a tudo, imóvel) que
imaginava poder ir imediatamente.
Antes, disse o sr. Jaggers, o senhor vai precisar de roupas novas, e não
devem ser roupas de trabalho. Digamos dentro de uma semana. O senhor vai
precisar de dinheiro. Posso lhe dar vinte guinéus?
Sacou uma bolsa comprida, com a maior naturalidade, contou o dinheiro na
mesa e depois o empurrou em minha direção. Foi a primeira vez que ele tirou a
perna de cima da cadeira. Ficou escarrapachado sobre a cadeira depois que
empurrou o dinheiro, a balançar a bolsa e encarar Joe.
Bem, Joe Gargery ? Parece aparvalhado?
E estou mesmo!, disse Joe, muito decidido.
Ficou estabelecido que o senhor não queria nada para si, lembra?
Ficou estabricido, disse Joe. E continua estabricido. E assim há de ficar.
Mas, disse o sr. Jaggers, balançando a bolsa, e se eu tivesse sido instruído
a lhe dar um presente, como compensação?
Pra compensar o quê?, perguntou Joe.
A perda dos serviços do senhor Pip.
Joe pousou a mão no meu ombro com um toque feminino. Desde então
tenho pensado nele muitas vezes assim, como o martelo-pilão, que pode esmagar
um homem ou tocar numa casca de ovo, em sua combinação de força com
delicadeza. O Pip, disse Joe, pode levar os serviço dele pra adonde ele quiser,
em busca de honra e fortuna, nem é preciso falar. Mas se o senhor acha que tem
dinheiro nesse mundo
capaz de compensar
a perda de um menininho
que
veio pra ferraria
e o melhor amigo que há!
Ah, meu querido Joe, que eu estava disposto a abandonar tão prontamente
sem sequer agradecer, vejo-te outra vez, com teu braço musculoso de ferreiro
cobrindo os olhos, e teu peito largo arquejando, e tua voz morrendo aos poucos.
Ah, querido, bom, fiel e terno Joe, sinto o tremor amoroso de tua mão em meu
braço, tão solene ainda hoje como se fosse o roçar da asa de um anjo!
Mas na hora dei força a Joe. Estava eu perdido nos labirintos de minhas
fortunas futuras, e não podia reencontrar as veredas que havíamos trilhado
juntos. Implorei-lhe que se sentisse confortado, pois (como ele mesmo dizia)
sempre havíamos sido os melhores amigos, e (como eu dizia) assim seríamos
para sempre. Joe passou o punho livre nos olhos, como se quisesse arrancá-los,
mas não disse mais nada.
O sr. Jaggers assistia à cena como se visse em Joe o bobo da aldeia, e em
mim a pessoa que dele cuidava. Quando terminou, ele disse, sopesando a bolsa
que havia parado de balançar:
Bem, Joe Gargery, aviso-lhe que esta é a sua última oportunidade. Comigo
não há meias medidas. Se quer aceitar o presente que fui encarregado de lhe dar,
diga, e ele será seu. Se, pelo contrário, o senhor quer dizer
Neste ponto, para
grande espanto seu, ele foi interrompido por Joe, que dele se aproximou dando
todas as mostras de estar cheio de terríveis intenções pugilistas.
O que eu quero dizer, exclamou Joe, é que se o senhor entra na minha
casa me provocando e me desafiando, vamos lá pra fora! Quero dizer que se o
senhor é homem, pode vir! Quero dizer que o que eu digo, eu digo mesmo, e é
pra valer, sim senhor!
Afastei Joe, e ele de imediato acalmou-se; limitou-se a me dizer, do modo
mais amistoso e polido, apenas a título de informação dirigida a quem interessar
pudesse, que ele não ia deixar que o provocassem e incitassem em sua própria
casa. O sr. Jaggers havia se levantado quando Joe se abespinhou, e recuara em
direção à porta. Sem manifestar nenhuma inclinação de voltar a entrar, ali
mesmo fez seus comentários finais. Disse então:
Pois bem, senhor Pip, creio que quanto mais cedo o senhor se for embora
daqui já que vai se tornar um cavalheiro melhor. O senhor pode pegar um
carro de aluguel na estação da diligência em Londres, e vir direto até mim.
Compreenda que não manifesto qualquer opinião, contra ou a favor, em relação
à tarefa que me foi imposta. Estou sendo pago para desempenhá-la, e assim o
faço. Compreenda isso, por fim. Compreenda isso!
Ele apontava o dedo para nós dois, e creio que teria continuado a fazê-lo, se
não lhe parecesse que Joe oferecia perigo, e por isso foi-se embora.
Surgiu-me uma ideia na cabeça que me levou a sair correndo atrás do sr.
Jaggers, que já seguia para a Três Barqueiros, onde havia deixado uma
carruagem de aluguel.
Com licença, senhor Jaggers.
Mas sim!, exclamou ele, virando-se para trás. O que foi?
Eu queria me certificar de uma coisa, senhor Jaggers, e respeitar as suas
instruções; por isso achei melhor perguntar. Haveria algum problema se eu me
despedisse de uma pessoa que conheço, daqui, antes de ir embora?
Não, respondeu ele, como se não estivesse me entendendo direito.
Não me refiro a alguém cá na aldeia, mas na cidade?
Não, disse ele. Problema nenhum.
Agradeci e voltei para casa correndo, e lá constatei que Joe já havia
trancado a porta da frente e saído da sala de visita de cerimônia, e estava sentado
junto à lareira da cozinha com uma mão em cada joelho, contemplando
fixamente as brasas ardentes. Também eu sentei-me junto ao fogo e fiquei a
olhar para as brasas, e ninguém disse nada por um bom tempo.
Minha irmã estava em sua poltrona no canto, e Biddy costurava diante da
lareira, e Joe estava ao lado de Biddy, e eu estava ao lado de Joe no canto em
frente ao de minha irmã. Quanto mais eu olhava para as brasas ardentes, mais
difícil me era olhar para Joe; quanto mais se prolongava o silêncio, mais difícil
me era falar.
Por fim, consegui dizer: Joe, contaste à Biddy ?.
Não, Pip, retrucou Joe, ainda olhando para a lareira, e segurando os
joelhos com força, como se tivesse sido informado de que eles pretendiam
escapulir, deixei isso pra ti, Pip.
Eu preferia que tu falasses, Joe.
O Pip é um cavalheiro de fortuna, disse Joe, e que Deus o abençoe!
Biddy largou a costura e olhou para mim. Joe segurava os joelhos e olhava
para mim. Olhei para os dois. Depois de uma pausa, ambos me felicitaram
efusivamente; mas havia um certo toque de tristeza naquelas felicitações que me
incomodou deveras.
Fiz questão de deixar claro para Biddy (e, através dela, para Joe) que era da
maior importância que meus amigos não soubessem nada e não dissessem nada
a respeito do responsável pela minha fortuna. A coisa viria à tona quando fosse a
hora, observei, e nesse ínterim nada deveria ser dito, apenas que eu tinha agora
grandes esperanças, graças a um misterioso protetor. Biddy fez que sim,
pensativa, olhando para a lareira, enquanto retomava o trabalho, e disse que seria
muito sigilosa; e Joe, ainda contendo os joelhos, disse: Isso, e eu também vou ser
muito sizilojo, Pip; em seguida, os dois me felicitaram outra vez, e
manifestaram tanto espanto diante da ideia de que eu agora era um cavalheiro,
que seu espanto não me agradou nem um pouco.
Em seguida, Biddy não mediu esforços para dar a minha irmã alguma ideia
do que havia ocorrido. No meu entender, essas tentativas fracassaram por
completo. Ela riu e balançou a cabeça muitas vezes, e chegou mesmo a repetir,
instigada por Biddy, as palavras Pip e propriedade. Mas creio que nelas
havia tanto sentido quanto num bordão eleitoral, e não posso imaginar um
indicador mais terrível de seu estado mental.
Jamais teria acreditado que tal era possível se não o tivesse vivido, mas, à
medida que Joe e Biddy voltavam a ficar mais alegres e tranquilos, tornei-me
um tanto melancólico. Insatisfeito com minha fortuna, certamente eu não estava;
é possível, porém, que eu estivesse, sem ter plena consciência disso, insatisfeito
comigo mesmo.
Fosse como fosse, permaneci sentado com o cotovelo apoiado no joelho e o
rosto na mão, contemplando o fogo, enquanto os dois falavam sobre minha
partida, e o que fariam sem mim, e coisas assim. E sempre que surpreendia um
deles olhando para mim, ainda que do modo mais simpático (e eles olhavam
para mim a toda hora principalmente Biddy ), eu me sentia ofendido: como se
eles estivessem exprimindo alguma desconfiança em relação a mim. Muito
embora Deus saiba que eles jamais fizeram tal coisa, nem por palavras nem por
sinais.
Nesses momentos eu me levantava, ia até a porta e olhava para a rua, pois a
porta de nossa cozinha dava direto para a noite, e ficava aberta nas noites de
verão para arejar o recinto. Até as estrelas para as quais eu levantava a vista me
pareciam, creio eu, meras estrelas pobres e humildes, por lançarem seu brilho
sobre os objetos rústicos em meio aos quais eu vivera minha vida.
Hoje é sábado, disse eu, quando nos sentamos à mesa para jantar pão com
queijo e cerveja. Mais cinco dias, e então vamos estar na véspera do grande
dia! Eles vão passar depressa.
É, Pip, observou Joe, com uma voz que parecia vazia dentro do caneco de
cerveja. Vai passar depressa.
Muito, muito depressa, disse Biddy .
Estive pensando, Joe, que quando eu for à cidade na segunda-feira, para
mandar fazer roupas novas, é melhor dizer ao alfaiate que vou experimentá-las
lá mesmo, ou então pedir que elas sejam entregues na casa do senhor
Pumblechook. Aqui todo mundo ficaria me olhando, o que seria muito
desagradável.
O senhor e a senhora Hubble também iam gostar de te ver com tua nova
aparência distinta, Pip, disse Joe, laboriosamente cortando seu pão, já com o
queijo, na palma da mão esquerda, e olhando de relance para meu jantar ainda
intacto como se relembrasse o tempo em que comparávamos nossas fatias. E o
Wopsle também. E o pessoal da Três Barqueiros iam ficar sastifeito.
É justamente o que eu não quero, Joe. Eles fariam tamanho escarcéu de
um jeito tão grosseiro e vulgar que eu não ia aguentar a mim mesmo.
Ah, sim, Pip!, respondeu Joe. Se tu não ias aguentar a ti mesmo
Biddy perguntou-me então, enquanto segurava o prato de minha irmã: Já
pensaste em quando vais te apresentar ao senhor Gargery, e à tua irmã, e a
mim? Vais te apresentar a nós, não vais?.
Biddy , retruquei, um tanto ressentido, tu és tão incrivelmente rápida que é
difícil acompanhar-te.
(Ela sempre foi rápida, observou Joe.)
Se tivesses esperado mais um instante, Biddy, me ouvirias dizer que vou
trazer minhas roupas aqui numa trouxa uma noite provavelmente na véspera
da minha partida.
Biddy não disse mais nada. Perdoando-a com generosidade, despedi-me
afetuosamente dela e de Joe, e fui me deitar. Quando entrei em meu quartinho,
sentei-me e olhei por um bom tempo para aquele quartinho estreito e vulgar do
qual em breve eu me afastaria, para ficar muito acima dele, para sempre. Ele
era mobiliado com lembranças frescas e jovens também, e naquele exato
momento me vi no mesmo estado de confusão, dividido entre ele e os quartos
melhores que seriam meus no futuro, tal como me sentira tantas vezes dividido
entre a ferraria e a casa da sra. Havisham, entre Biddy e Estella.
O sol passara todo o dia batendo forte no telhado de meu sótão, e o quarto
estava quente. Abri a janela e fiquei a olhar para fora, quando vi Joe sair com
passos lentos da porta escura lá em baixo, e dar uma ou duas voltas para tomar
ar; e depois vi Biddy sair também, trazendo um cachimbo e fogo para ele. Joe
nunca fumava tão tarde da noite, e tive a impressão de que ele precisava ser
confortado, por algum motivo.
Depois de algum tempo ele parou à porta, imediatamente abaixo de mim,
fumando seu cachimbo, e Biddy ficou a seu lado, falando-lhe em voz baixa, e eu
sabia que eles conversavam sobre mim, pois ouvi meu nome mencionado com
ternura pelos dois, mais de uma vez. Eu não quereria ouvir mais, mesmo se
pudesse escutar o que diziam: assim, afastei-me da janela e sentei-me em minha
única cadeira junto à cama, achando muito triste e estranho que esta primeira
noite de minha vida nova fosse a noite mais solitária que eu jamais vivera.
Olhando em direção à janela aberta, eu via espirais de luz vindas do
cachimbo de Joe a pairar no ar, e imaginei que eram uma espécie de bênção de
Joe não imposta a mim, nem exibida diante de mim, porém espalhando-se
pelo ar que compartilhávamos. Apaguei minha luz e deitei-me; e agora aquela
cama era intranquila, e nunca mais voltei a dormir nela meu velho sono
profundo.
* Submetida a um interrogatório detalhado: no original, cross-examined, isto é,
submetida a um interrogatório pela parte adversa: as testemunhas de acusação
devem ser interrogadas também pelo advogado de defesa, e as testemunhas de
defesa, pelo promotor. (n. t.)
19
A manhã fez uma diferença considerável na minha visão geral da vida,
tornando-a tão mais positiva que nem parecia a mesma de antes. O que mais me
pesava era a consciência de que seis dias ainda me separavam do dia da partida;
pois eu não conseguia me livrar da apreensão de que alguma coisa poderia
acontecer com Londres nesse ínterim tal que, quando eu chegasse lá, a cidade ou
estaria muito deteriorada ou simplesmente teria desaparecido.
Joe e Biddy eram muito carinhosos e agradáveis sempre que eu lhes falava
sobre nossa separação próxima, mas só se referiam a ela quando eu o fazia.
Depois do desjejum, Joe pegou meu contrato de aprendizagem, guardado no
armário na sala de visitas de cerimônia, e o pusemos no fogo, e senti que estava
livre. Com toda a novidade de minha emancipação ardendo em mim, fui à igreja
com Joe, e pensei que talvez o pastor não tivesse lido aquela passagem sobre o
rico e o reino dos céus,1 se ele estivesse sabendo de tudo.
Após almoçarmos cedo, saí para caminhar sozinho, com o objetivo de me
despedir do charco logo de uma vez. Quando passei pela igreja, senti (como
havia sentido durante o culto naquela manhã) uma compaixão sublime pelas
pobres criaturas que estavam fadadas a ir lá, domingo após domingo, durante
todas as suas vidas, para por fim repousarem, obscuras, em meio àqueles
montículos verdes. Prometi a mim mesmo que faria alguma coisa por elas um
dia desses, e esbocei o plano de conceder um almoço composto de carne assada
e pudim de passas, uma garrafa de cerveja e um galão de condescendência a
cada habitante da aldeia.
Se eu pensara muitas vezes antes, com algo próximo à vergonha, em minha
cumplicidade com o fugitivo que eu vira mancando em meio àquelas sepulturas,
que pensamentos teria eu naquele domingo, quando o lugar me fez pensar no
miserável, esfarrapado e tiritando, com seus grilhões e distintivo de forçado! O
que me tranquilizava era que a coisa acontecera muito tempo antes, e que ele
certamente já teria sido degredado anos antes, e que estava morto para mim, e
podia muito bem estar morto de verdade.
Nunca mais aquelas várzeas alagadas, nunca mais os diques e eclusas, nunca
mais aquele gado a passar embora essas coisas parecessem, à sua maneira
tediosa, ostentar um ar mais respeitoso agora, e virar-se para olhar-me, para
contemplar pelo máximo de tempo possível o detentor de tão grandes esperanças
adeus, monótonos conhecidos de minha infância; doravante cabiam-me
Londres e a grandeza: e não a ferraria e vós! Caminhei exultante até a bateria, e,
deitando-me para cogitar se a sra. Havisham me destinava a Estella, adormeci.
Quando acordei, constatei com muita surpresa que Joe estava sentado a meu
lado, fumando seu cachimbo. Ele me saudou com um sorriso alegre quando abri
os olhos, e disse:
Como era a última vez, Pip, resolvi ir atrás.
Pois, Joe, fizeste muito bem.
Obrigado, Pip.
Podes ter certeza, meu querido Joe, prossegui, depois que trocamos um
aperto de mãos, que nunca vou me esquecer de ti.
Não, não, Pip!, disse Joe, num tom tranquilo, disso eu tenho certeza.
Claro, claro, meu velho! Deus te abençoe, disso, depois que entra na cabeça da
gente, não pode haver dúvida, não. Mas levou um tempo pra entrar, porque a
mudança foi tão derrepentemente, não é?
Por algum motivo, não fiquei muito feliz de ver que Joe se sentia tão seguro
em relação a mim. Eu preferiria que ele manifestasse alguma emoção, ou
dissesse: Que bom que dizes isso, Pip, ou algo assim. Assim, eu nada disse a
respeito do primeiro comentário de Joe, limitando-me a observar, sobre o
segundo, que as coisas realmente haviam acontecido de modo repentino, mas
que eu sempre quisera ser um cavalheiro, e muitas vezes me pusera a especular
sobre o que eu faria se de fato fosse um cavalheiro.
Pensaste mesmo?, exclamou Joe. Espantoso!
É uma pena, Joe, comentei, que tu não progrediste um pouco mais,
quando tínhamos nossas lições aqui, não é?
Ah, não sei, não, retrucou ele. Eu sou muito bronco. Só entendo mesmo
do meu ofício. Sempre foi uma pena eu ser tão bronco; mas agora não é mais do
que era um ano atrás não vês?
O que eu queria dizer era que, quando me apoderasse de minha propriedade
e pudesse fazer alguma coisa por Joe, seria muito mais agradável se ele estivesse
mais qualificado para uma ascensão social. Ele não percebeu em absoluto o que
eu queria dizer, porém, tanto assim que achei melhor falar depois com Biddy .
Assim, depois que voltamos para casa e tomamos chá, levei Biddy para
nosso pequeno jardim perto da rua e, depois de dizer em termos gerais, com o
intuito de animá-la, que jamais me esqueceria dela, acrescentei que tinha um
favor a lhe pedir.
E o que te peço, Biddy , prossegui, é que jamais percas uma oportunidade
de ajudar o Joe a progredir um pouquinho.
Ajudá-lo a progredir, como assim?, perguntou Biddy , com um olhar fixo.
Bem! O Joe é uma pessoa adorável eu diria até que é a pessoa mais
adorável que já existiu mas é um tanto atrasado sob certos aspectos. Por
exemplo, Biddy , quanto à sua instrução e suas boas maneiras.
Embora eu estivesse olhando para Biddy enquanto falava, e embora ela
arregalasse os olhos bastante depois que falei, Biddy não olhou para mim.
Ah, as boas maneiras dele! Então elas não servem?, perguntou Biddy,
arrancando uma folha de groselheira-preta.
Minha cara Biddy , elas servem muito bem aqui
Ah! Elas servem muito bem aqui?, interveio Biddy, olhando com atenção
para a folha que segurava.
Ouve-me mas se eu levasse Joe para uma esfera mais elevada, como
espero fazer quando tiver total controle sobre minha propriedade, elas não lhe
fariam justiça.
E tu pensas que ele não sabe disso?, perguntou ela.
Era uma pergunta tão provocadora (pois jamais me ocorrera nem de longe)
que reagi, irritado: Biddy , o que queres dizer?.
Tendo esmigalhado a folha entre os dedos e desde então o cheiro de uma
groselheira-preta sempre evoca para mim aquela tarde no jardinzinho perto da
rua Biddy perguntou: Nunca te ocorreu que ele possa ter orgulho?.
Orgulho?, repeti, com uma ênfase desdenhosa.
Ah! Há muitos tipos de orgulho, disse Biddy, encarando-me e sacudindo a
cabeça; o orgulho não é de apenas um tipo
Sim? Por que paraste?, insisti.
Não é de apenas um tipo, retomou Biddy. Ele pode ser orgulhoso demais
para deixar que o tirem de um lugar que ele tem competência para ocupar, e
ocupar bem e com respeito. Para te dizer a verdade, acho que ele tem orgulho,
sim: ainda que pareça pretensão minha dizer-te isso, pois tu o conheces muito
melhor do que eu.
Ora, Biddy , repliquei, lamento muito ver isso em ti. Não esperava vê-lo.
Tu tens inveja, Biddy , e ressentimento. Estás insatisfeita por ter eu subido na vida,
e não consegues não demonstrá-lo.
Se és capaz de pensar assim, podes dizê-lo, devolveu Biddy. Podes dizêlo.
Podes dizê-lo vez após vez, se és capaz de pensar assim.
Se tu és capaz de ser assim, é o que queres dizer, Biddy , retruquei, num
tom virtuoso e superior; não o atribuas a mim. Lamento muito ver isso, que é
é um lado ruim da natureza humana. Eu realmente pretendia pedir-te que
aproveitasse qualquer oportunidade que tivesses depois de minha partida, de
ajudar meu querido Joe a progredir. Mas, depois disso, não te peço nada.
Lamento muitíssimo ver isso em ti, Biddy , repeti. É um
é um lado ruim da
natureza humana.
Não importa se me condenas ou se me aprovas, retrucou a pobre Biddy,
podes sempre contar comigo, pois vou tentar fazer tudo que posso, sempre. E,
qualquer que seja a opinião que tenhas de mim, isso não vai alterar nada minha
lembrança de ti. Mas um cavalheiro não deve ser injusto, disse Biddy, virando o
rosto. Mais uma vez, repeti com ênfase que aquilo era um lado ruim da natureza
humana (um sentimento que, malgrado a má aplicação no caso, verifiquei
posteriormente ser correto), e me afastei de Biddy enquanto ela voltava para
dentro de casa, e saí pelo portão do jardim e fiquei a caminhar, desanimado, até
a hora do jantar, mais uma vez achando que era muito triste e estranho que
aquela noite, a segunda da minha nova vida, fosse tão solitária e frustrante quanto
a primeira.
A manhã, porém, mais uma vez tornou minha visão mais positiva, e estendi
minha clemência a Biddy, e não tocamos mais no assunto. Vestindo as melhores
roupas que tinha, fui à cidade assim que me pareceu que as lojas já estariam
abertas e apresentei-me ao sr. Trabb, o alfaiate: ele estava tomando seu
desjejum na sala de visita nos fundos de sua loja, e não achou que valia a pena
sair para me atender, preferindo chamar-me para ir até ele.
Sim!, exclamou o sr. Trabb, com uma cordialidade superficial. Como
vai, e como posso ajudá-lo?
O sr. Trabb havia cortado seu pão quente em três colchõezinhos separados, e
estava passando manteiga entre os cobertores, e juntando-os. Era um solteirão
próspero, e a janela aberta de sua sala dava para um jardinzinho e um pomar
prósperos, e havia um próspero cofre de ferro encaixado na parede ao lado da
lareira, e eu não tinha dúvida de que sua prosperidade estava guardada ali dentro,
em sacos.
Senhor Trabb, disse eu, é uma coisa desagradável de se dizer, porque
pode parecer que estou me gabando; mas herdei uma propriedade considerável.
Uma mudança ocorreu no sr. Trabb. Ele esqueceu a manteiga sobre a cama,
levantou-se da cabeceira e limpou os dedos na toalha de mesa, exclamando:
Valha-me Deus!.
Vou ter com meu tutor em Londres, disse eu, tirando do bolso alguns
guinéus, com um gesto displicente, e olhando para eles, e quero umas roupas
boas pra levar nessa viagem. Queria pagar por elas acrescentei, para que ele
não pensasse que eu estava apenas fazendo de conta adiantado.
Meu caro senhor, disse o sr. Trabb, curvando-se respeitosamente, abrindo
os braços e tomando a liberdade de tocar-me nos dois cotovelos, não me
constranja mencionando tal coisa. O senhor me permite que o congratule? O
senhor me faria o obséquio de entrar na minha loja?
O empregado do sr. Trabb era o mais audaz de toda a região. Quando entrei,
ele estivera a varrer a loja, e para tornar mais agradável sua tarefa ele varrerame
também. Continuava varrendo quando voltei à loja com o sr. Trabb, e ele
esbarrou a vassoura em todos os cantos e obstáculos, para deixar claro (foi assim
que entendi) que ele estava à altura de qualquer ferreiro, vivo ou morto.
Para com esse barulho, exclamou o sr. Trabb, com a maior severidade,
senão eu te arranco a cabeça! Faça-me o obséquio de sentar-se, meu senhor.
Isto aqui, disse o sr. Trabb, pegando um corte de tecido e abrindo-o sobre o
balcão, preparando-se para pôr a mão debaixo dele para mostrar o brilho, é
artigo de primeira. Posso recomendá-lo ao senhor, porque realmente é da maior
qualidade. Mas vou lhe mostrar outros também. Pega cá o número quatro!
(Dirigindo-se ao rapaz, e com um olhar de severidade terrível: prevendo o perigo
de que aquele malfeitor roçasse o corte de tecido em mim, ou desse algum outro
sinal de familiaridade.)
O sr. Trabb não tirou o olho severo do rapaz enquanto este não pôs o número
quatro no balcão e se afastou a uma distância prudente. Então lhe ordenou que
trouxesse o número cinco e o número oito. E não me venhas com tretas, disse
o sr. Trabb, senão vais te arrepender, seu sacripantazinho, ah, se não vais.
Em seguida, o sr. Trabb debruçou-se sobre o número quatro, e numa espécie
de confidência respeitosa recomendou-o a mim como um artigo leve para uso no
verão, muito em voga entre os nobres, e que seria uma honra para ele saber que
um distinto conterrâneo (se lhe fosse permitido conceder-me tal título) o havia
usado. Vais me trazer os números cinco e oito, seu tratante, disse o sr. Trabb ao
empregado depois disso, ou vou ter que expulsar-te da loja a pontapés e ir pegálos
eu mesmo?
Escolhi o tecido para um terno, com a ajuda do sr. Trabb, e voltei à sala para
que ele me tomasse as medidas. Pois, embora o sr. Trabb já tivesse minhas
medidas, e antes estivesse perfeitamente satisfeito com elas, ele disse, como se
pedindo desculpas, que elas não servem nas atuais circunstâncias, meu senhor
não servem em absoluto. Assim, o sr. Trabb mediu-me e calculou-me, na
sala, como se eu fosse um terreno e ele, um agrimensor de escol, e o fez com
tamanhos escrúpulos que tive a impressão de que não havia roupa no mundo que
pudesse compensar tanto trabalho. Quando terminou por fim, e ficou acertado
que os artigos seriam enviados à casa do senhor Pumblechook na tarde de quintafeira,
ele disse, com a mão na porta da sala: Eu sei, meu senhor, que não se
pode exigir que os cavalheiros londrinos frequentem lojas das províncias; mas se
o senhor pudesse me prestigiar de vez em quando, na qualidade de conterrâneo,
eu ficaria muito grato. Bom dia, meu senhor, e muito obrigado. Porta!.
A última palavra foi gritada para o empregado, que não atinara em absoluto
com seu significado. Mas vi que ele desabou ao ver seu patrão desfazer-se em
mesuras ao despedir-se de mim, e minha primeira experiência decisiva com o
poder estupendo do dinheiro foi verificar que ele moralmente derrubou o
empregado do sr. Trabb.
Depois desse evento memorável, fui ao chapeleiro, e ao sapateiro, e ao
vendedor de meias, e me senti como o cachorro da velha Hubbard,2 cujo traje
exigia os serviços de tantos artesãos. Fui também ao escritório do serviço de
diligências para reservar um lugar no carro das sete da manhã de sábado. Não
era necessário explicar em todos os lugares que eu havia herdado uma
propriedade considerável; mas sempre que eu mencionava o fato, a atenção do
comerciante em questão deixava de se desviar para a janela da rua e
concentrava-se em mim. Tendo encomendado tudo que queria, dirigi-me à casa
de Pumblechook, e, ao aproximar-me da casa de comércio desse cavalheiro, vio
parado à porta.
Ele me aguardava com muita impaciência. Havia saído cedo em sua
carruagem, fora até a ferraria e ouvira a notícia. Tinha preparado um lanche
para mim na sala da leitura de Barnwell, e também ele deu ordem a seu
empregado que saísse do caminho quando minha sagrada pessoa passou a seu
lado.
Meu caro amigo, disse o sr. Pumblechook, tomando minhas duas mãos,
quando eu, ele e o lanche estávamos a sós, eu te felicito pela sua boa sorte. Bem
merecido, bem merecido!
Isso era relevante, e pareceu-me uma maneira sensata de se exprimir.
E pensar, disse o sr. Pumblechook, depois de fungar em admiração a mim
por alguns momentos, que fui eu o humilde instrumento que levou a isso, é uma
recompensa de que me orgulho.
Implorei ao sr. Pumblechook que se lembrasse de que nada poderia ser dito
ou mesmo insinuado quanto a esse assunto.
Meu querido amigo, disse o sr. Pumblechook, se me permites que o trate
assim
Murmurei: Certamente, e o sr. Pumblechook tomou minhas duas mãos
outra vez, e comunicou um movimento a seu colete, o qual tinha uma aparência
emocional, embora fosse um tanto baixo: Meu querido amigo, podes confiar em
mim que farei o pouco de que sou capaz na tua ausência, lembrando o Joseph
desse fato. O Joseph!, exclamou o sr. Pumblechook, no tom de uma
adjuração passional. O Joseph!! O Joseph!!! Em seguida, sacudiu a cabeça e
deu um tapinha nela, para exprimir a deficiência de Joseph.
Mas, meu querido amigo, disse o sr. Pumblechook, deves estar com
fome, deves estar exausto. Senta-te. Eis um frango que mandei vir do Javali, e
uma língua que mandei vir do Javali, uma ou duas coisinhas que mandei vir do
Javali, que espero tu não desprezes. Mas será que vejo, disse o sr. Pumblechook,
levantando-se um instante depois de ter-se sentado, diante de mim, aquele
mesmo com quem brinquei em sua infância feliz? E posso
posso
?
A esse posso?, cujo sentido era posso apertar-te a mão?, consenti, e ele o
fez com fervor, e depois voltou a sentar-se.
Eis o vinho, disse o sr. Pumblechook. Bebamos, agradecendo à Fortuna, e
que ela sempre escolha seus favoritos com o mesmo critério! E, no entanto, não
posso, disse o sr. Pumblechook, levantando-se outra vez, ver diante de mim
uma pessoa
e do mesmo modo beber a essa pessoa
sem novamente
manifestar
. posso
posso
?
Respondi que ele podia, sim, e ele apertou-me a mão novamente, e esvaziou
seu copo e virou-o de cabeça para baixo. Fiz o mesmo; e se eu próprio me tivesse
virado de cabeça para baixo antes de beber, o vinho não teria ido de modo mais
direto para a minha cabeça.
O sr. Pumblechook me serviu a asa do fígado3 e a melhor fatia da língua
(agora não eram mais aqueles becos sem saída de porco), e para si próprio, em
termos relativos, não pegou quase nada. Ah, frango, frango! Nem imaginavas,
disse o sr. Pumblechook, apostrofando a ave na travessa, quando ainda eras um
pinto, o que o destino te reservava. Nem imaginavas que serviria de alimento, sob
este humilde teto, para alguém que
Chama isto de fraqueza, se quiseres, disse
o sr. Pumblechook, levantando-se mais uma vez, mas posso
posso
?
Já estava se tornando desnecessário responder que ele podia, sim, portanto
ele o fez de imediato. Como que repetiu o gesto tantas vezes sem se ferir com
minha faca, isso não sei.
E tua irmã, prosseguiu, depois de alguns momentos comendo a sério, que
teve a honra de te criar com a mão! É uma tristeza pensar que ela não pode se
dar conta da honra. Posso
Vi que ele ia atacar outra vez, e o detive.
Vamos beber à saúde dela, disse eu.
Ah!, exclamou o sr. Pumblechook, jogando-se para trás em sua cadeira,
flácido de admiração, é assim que se conhece uma pessoa, meu senhor! (Não
sei quem era o senhor em questão, mas certamente eu não era, e não havia uma
terceira pessoa presente.) É assim que se conhece uma mente nobre, meu
senhor! Sempre perdoando, sempre afável. Para uma pessoa comum, disse o
servil Pumblechook, pondo sobre a mesa o copo intacto apressadamente e
levantando-se de novo, pode parecer uma repetição
mas posso
?
Feito isso, voltou a sentar-se e bebeu à saúde de minha irmã. Não devemos
ser cegos, disse o sr. Pumblechook, para o fato de que ela tinha um gênio
difícil, mas podemos crer que as intenções eram boas.
Mais ou menos a essa altura, comecei a observar que ele estava ficando com
o rosto vermelho; quanto a mim, eu me transformara num grande rosto,
encharcado de vinho e ardendo.
Expliquei ao sr. Pumblechook que eu gostaria que minhas roupas novas
fossem entregues em sua casa, e ele entrou em êxtase ao saber que eu lhe
conferia tal distinção. Expliquei-lhe que era porque eu não queria ser observado
na aldeia, e ele cobriu-me de elogios. Não havia outra pessoa, ele deu a entender,
que merecesse minha confiança, e em suma, ele podia? Então perguntou-me
carinhosamente se eu me lembrava de nossa brincadeira infantil de fazer contas,
e do dia em que fôramos juntos ao tribunal para eu me tornar aprendiz, e de
como ele sempre fora meu predileto, meu amigo do peito? Mesmo se eu tivesse
bebido dez vezes a quantidade de vinho que bebera, eu teria consciência de que
ele jamais fora tal coisa para mim, e no fundo do coração repudiaria tal ideia. E,
no entanto, apesar de tudo, lembro que me senti convicto de que eu me enganara
muito a seu respeito, e que ele era um sujeito sensato, prático, de bom coração,
uma flor de pessoa.
Pouco a pouco, ele foi revelando tanta confiança em mim que começou a
pedir meu conselho com relação a seus negócios. Comentou que havia
oportunidade para uma grande consolidação e monopólio no comércio de cereais
e grãos com base em seu estabelecimento, porém ampliado, tal como jamais
ocorrera antes, naquela região e em qualquer outra. A única coisa que faltava
para que fosse conquistada uma grande fortuna, a seu ver, era mais capital.
Eram estas as duas palavrinhas: mais capital. Ora, na opinião dele
(Pumblechook), se entrasse capital naquele negócio, através de um sócio
comanditário, meu senhor o qual não teria nada a fazer senão entrar, ele
próprio ou um seu representante, quando bem entendesse, para examinar os
livros e aparecer duas vezes por ano para embolsar seus lucros, à taxa de
cinquenta por cento na sua opinião, isso poderia interessar a um jovem
cavalheiro que tivesse iniciativa tanto quanto propriedade, seria algo que
mereceria sua atenção. Mas o que pensava eu? Ele tinha grande confiança na
minha opinião, e o que pensava eu? Dei minha opinião. Espere aí! A imensidão
e a originalidade dessa opinião de tal modo o surpreenderam que ele já não me
perguntou se podia trocar um aperto de mãos comigo, porém disse que precisava
fazê-lo e foi o que fez.
Bebemos todo o vinho, e o sr. Pumblechook comprometeu-se vez após vez a
manter Joseph na linha (não sei que linha) e a me prestar serviços constantes e
eficientes (não sei que serviços). Também me revelou, pela primeira vez em
minha vida, e após ter mantido o segredo de maneira extraordinária, que sempre
dissera a meu respeito: Esse menino não é um qualquer, e escrevam o que estou
dizendo, a sorte dele não vai ser a de qualquer um, não. Disse, com um sorriso
lacrimoso, que era curioso pensar nisso agora, e eu concordei com ele. Por fim,
saí ao ar livre, com a vaga percepção de que havia algo de inusitado no
comportamento da luz solar, e verifiquei que havia chegado até a estrada
principal como se dormindo, sem me dar conta do caminho.
Lá, fui despertado pela voz do sr. Pumblechook a me chamar. Estava a uma
boa distância de mim na rua ensolarada, fazendo gestos expressivos para que eu
parasse. Parei, e ele se aproximou, ofegante.
Não, meu caro amigo, disse ele, depois que recuperou o fôlego. Não há
como não fazê-lo. Esta ocasião não vai passar sem essa afabilidade da sua parte.
Posso, como um velho amigo que te quer bem? Posso?
Trocamos um aperto de mãos pela centésima vez, no mínimo, e ele gritou
com um jovem carreteiro para que saísse de minha frente, com a maior
indignação. Em seguida, abençoou-me e ficou a acenar para mim até que eu
dobrasse a curva da estrada; em seguida, entrei num campo e tirei um longo
cochilo à sombra de uma sebe antes de retomar o caminho de casa.
Era pequena a bagagem que eu levaria para Londres, pois poucas de minhas
poucas posses eram adequadas a minha nova condição. Porém comecei a fazer
as malas naquela mesma tarde, e de modo insensato pus na mala coisas que eu
sabia que teriam de ser usadas no dia seguinte, fazendo de conta que não havia
um momento a perder.
Assim passaram-se terça, quarta e quinta-feira; e na manhã de sexta fui à
casa do sr. Pumblechook, para vestir minhas novas roupas e visitar a sra.
Havisham. O sr. Pumblechook cedeu-me seu próprio quarto para que nele eu me
vestisse, e nele havia toalhas limpas a enfeitá-lo, expressamente para aquela
ocasião. Minhas roupas me decepcionaram muito, é claro. É provável que toda
roupa nova, ansiosamente aguardada, desde que foram inventadas as roupas,
sempre tenha ficado aquém das expectativas do dono. Mas depois que vesti meus
trajes novos, após cerca de meia hora fazendo uma infinidade de poses diante do
limitadíssimo espelho do sr. Pumblechook, numa vã tentativa de ver minhas
pernas, eles pareceram me servir melhor. Como era dia de feira numa
cidadezinha a cerca de dez milhas da nossa, o sr. Pumblechook não estava em
casa. Eu não lhe dissera exatamente quando pretendia ir embora, e o mais
provável era que não pudesse trocar um aperto de mãos com ele de novo antes
de partir. Isso era de se esperar, e assim saí com minha roupa nova: morto de
vergonha por ter de passar pelo empregado, e temendo que aquilo me colocasse
numa situação de desvantagem, tal como a roupa de domingo de Joe.
Segui em direção à casa da sra. Havisham por vielas secundárias, da
maneira mais indireta, e toquei a campainha com dificuldade, porque as luvas
deixavam meus dedos rígidos. Sarah Pocket veio abrir o portão, e quase caiu para
trás quando me viu tão mudado; e seu rosto de casca de noz mudou de castanho
para verde e amarelo.
Você?, disse ela. É você, Deus do céu! O que é que você quer?
Vou para Londres, senhora Pocket, respondi, e quero me despedir da
senhora Havisham.
Eu não era esperado, pois ela me deixou trancado no quintal, enquanto ia
perguntar se devia me deixar entrar. Após um intervalo bem curto ela voltou e
veio me conduzir até o andar de cima, olhando espantada para mim o tempo
todo.
A sra. Havisham estava se exercitando na sala da mesa comprida, apoiandose
em sua bengala. A sala estava iluminada tal como antes, e ao ouvir-nos chegar
ela parou e virou-se. Estava justamente ao lado do bolo de casamento
apodrecido.
Fique aí, Sarah, disse ela. Mas sim, Pip?
Vou para Londres amanhã, senhora Havisham, respondi, medindo
escrupulosamente minhas palavras, e imaginei que a senhora não se
incomodaria se eu viesse me despedir.
Estás muito bem, Pip, disse ela, gesticulando com sua bengala a meu
redor, como se ela, a fada madrinha que havia causado a mudança em mim,
estivesse dando os toques finais.
Tive muita sorte desde a última vez que a vi, senhora Havisham,
murmurei. E estou muito grato!
Sei, sei!, disse ela, olhando com prazer para Sarah, que estava
desconcertada e invejosa. Falei com o senhor Jaggers. Já estou sabendo de tudo,
Pip. Então partes amanhã?
Sim, senhora.
E foste adotado por uma pessoa rica?
Sim, senhora.
Não identificada?
Não, senhora.
E o senhor Jaggers é seu tutor?
Sim, senhora.
A sra. Havisham se deliciava com essas perguntas e respostas, tal era o
prazer que lhe dava o desânimo invejoso de Sarah Pocket. Muito bem!, ela
prosseguiu; tens uma carreira promissora pela frente. Sê bom sê merecedor
segue as instruções do senhor Jaggers. Olhou para mim, e olhou para Sarah,
e a expressão do semblante de Sarah arrancou-lhe do rosto atento um sorriso
cruel. Adeus, Pip! Teu nome será sempre Pip, tu sabes.
Eu sei, sim, senhora Havisham.
Adeus, Pip!
Ela estendeu a mão, e ajoelhei-me e levei-a aos lábios. Eu não havia
planejado o modo como me despediria dela; fiz o que me ocorreu naturalmente
na hora. Ela olhou para Sarah Pocket com uma expressão de triunfo, e assim
deixei minha fada madrinha, com as duas mãos apoiadas na bengala, em pé no
meio da sala fracamente iluminada, ao lado do bolo podre oculto em meio às
teias de aranha.
Sarah Pocket conduziu-me escada abaixo, como se eu fosse um fantasma
que fosse necessário levar para fora da casa. Não conseguia acostumar-se com
minha aparência, e estava absolutamente atônita. Despedi-me dela: Adeus,
senhora Pocket; ela, porém, ficou de olhar parado, e parecia não ter consciência
de que eu havia falado. Saindo de lá, voltei para a casa de Pumblechook, despi
minhas roupas novas, fiz com elas uma trouxa e voltei para minha casa usando as
roupas velhas para dizer a verdade bem mais à vontade, muito embora
tivesse que carregar a trouxa.
E agora, aqueles seis dias que deveriam ter-se passado tão devagar, haviam
voado e terminado, e o dia de amanhã me encarava de modo bem mais direto do
que eu podia encará-lo. À medida que as seis noites foram se esvaindo,
reduzindo-se a cinco, a quatro, a três, a dois, eu dava cada vez mais valor à
companhia de Joe e Biddy. Nessa última noite, vesti as roupas novas, para
deliciá-los, e assim fiquei, em todo meu esplendor, até a hora de me deitar.
Nessa ocasião, tivemos um jantar quente, coroado pelo inevitável frango assado,
e o arrematamos com um pouco de ponche. Estávamos todos muito tristes, e não
nos alegrava nem um pouco a obrigação de fingir alegria.
Ficara combinado que eu partiria de nossa aldeia às cinco da manhã, levando
minha maleta de mão, e eu havia combinado com Joe que preferia ir embora
sozinho. Creio e temo que isso se devia à ideia que eu formara do contraste
que haveria entre mim e Joe se fôssemos até a diligência juntos. Eu me
convencera a mim mesmo de que nossa combinação não era conspurcada por
tal cálculo; mas quando subi para meu quartinho nessa última noite, senti-me
obrigado a admitir que talvez o fosse, e senti um impulso de descer a escada e
insistir com Joe para que ele caminhasse comigo na manhã seguinte. Não o fiz.
Durante toda a noite, meu sono espasmódico foi povoado por diligências que
iam para o lugar errado em vez de para Londres, e presos aos tirantes ora eram
cães, ora gatos, ora porcos, ora homens jamais cavalos. Viagens
fantasticamente fracassadas me ocuparam até que o dia nasceu e os pássaros
começaram a cantar. Então me levantei e comecei a me vestir, e sentei-me à
janela para olhar para fora pela última vez, e assim adormeci.
Biddy havia se levantado tão cedo para preparar meu desjejum que, embora
eu não chegasse a dormir por uma hora à janela, senti o cheiro da fumaça da
cozinha quando acordei de súbito com a terrível impressão de que já devia ser o
final da tarde. Mas muito depois disso, e muito depois de ouvir os estalidos das
xícaras de chá e estar perfeitamente pronto, faltava-me a resolução para descer
a escada. E acabei ficando em meu quarto, a destrancar e desafivelar minha
maleta e trancá-la e afivelá-la outra vez, até que Biddy me chamou, dizendo que
eu estava atrasado.
Foi um desjejum apressado, em que não senti o gosto da comida. Levanteime
da mesa, dizendo num tom enérgico, como se só agora me tivesse ocorrido a
ideia: É, acho que preciso ir!. Em seguida, beijei minha irmã, que estava rindo
e balançando a cabeça e tremendo em sua cadeira habitual, e beijei Biddy, e
abracei o pescoço de Joe. Então peguei minha maleta e saí. Vi-os pela última vez
quando ouvi um barulho atrás de mim, e voltando-me para olhar vi Joe jogando
um sapato velho4 em minha direção e Biddy jogando outro sapato velho. Então
parei, para acenar com meu chapéu, e meu querido Joe acenou com o braço
forte levantado, gritando com voz rouca: Hurra!, e Biddy cobriu o rosto com o
avental.
Afastei-me com passos rápidos, pensando que era mais fácil ir embora do
que eu pensara, e refletindo que não seria admissível que jogassem um sapato
velho atrás da diligência, à vista de todo mundo na High-street. Assobiei, como se
partir não fosse nada demais. Mas a aldeia estava muito tranquila e silenciosa, e
as névoas leves estavam subindo solenemente, como se para mostrar-me o
mundo, e eu fora tão inocente e pequeno ali, e tudo que havia além da aldeia era
tão desconhecido e grande, que no instante seguinte, arfando e soluçando forte,
comecei a chorar. Isso se deu junto ao poste indicador ao final da aldeia, e pus a
mão nele, dizendo: Adeus, ó meu querido, querido amigo!.
Deus sabe que não há por que nos envergonharmos de nossas lágrimas
jamais, pois elas são a chuva que cai sobre a poeira da terra que nos cega,
descendo sobre nossos corações endurecidos. Depois de chorar, senti-me melhor
do que estava antes mais triste, mais cônscio de minha própria ingratidão,
mais delicado. Se eu tivesse chorado antes, teria Joe a meu lado naquele
momento.
De tal modo me afetaram aquelas lágrimas, e as que irromperam outra vez
durante aquela caminhada silenciosa, que já na diligência, depois que ela saíra da
aldeia, cheguei a pensar, com uma dor no coração, se não devia saltar quando
parássemos para trocar os cavalos e voltar a pé, para passar mais uma noite em
casa e me despedir melhor no dia seguinte. Chegamos à posta, e eu ainda não me
decidira, e continuava a pensar, para me confortar, que ainda seria
perfeitamente possível saltar e voltar a pé quando parássemos para a segunda
muda de cavalos. E enquanto eu me ocupava com essas deliberações, eu
imaginava uma semelhança exata entre Joe e um homem que eu via na estrada
aproximando-se de nós, e meu coração batia mais forte. Como se fosse possível
ele estar ali!
Mudamos de cavalos outra vez, e mais outra, e agora era tarde demais, e eu
estava longe demais, para voltar atrás, e segui em frente. E todas as névoas
haviam se dissipado solenemente, e o mundo se abria para mim.5
fim da primeira parte
das grandes esperanças de pip
volume ii
1
A viagem da nossa cidadezinha à metrópole levava cerca de cinco horas.
Passava um pouco do meio-dia quando a diligência de quatro cavalos em que eu
ia como passageiro chegou ao trecho de tráfego pesado na vizinhança da Cross
Key s,1 Wood-street, Cheapside, Londres.
Nós, britânicos, naquela época tínhamos certeza de que constituía traição
duvidar que tudo que havia de nosso era sempre o melhor: não fosse por isso,
embora me assustasse a imensidão de Londres, creio que teria me ocorrido uma
impressão vaga de que a cidade era feia, torta, estreita e suja.
O sr. Jaggers me havia enviado seu endereço; era em Little Britain, e ele
acrescentara em seu cartão: logo depois de Smithfield, e perto da estação da
diligência. No entanto, um cocheiro de fiacre, que parecia usar tantos mantos
por cima do sobretudo seboso quantos anos tinha de idade, colocou-me dentro de
sua carruagem e espremeu-me dentro dela com uma escadinha dobrável, que
tinia e estalava, como se fosse levar-me numa viagem de cem quilômetros. Para
subir em sua boleia, a qual, lembro-me bem, era enfeitada com um pano verdeervilha,
velho, reduzido a um farrapo pelas traças, ele levou um tempo
considerável. Era uma carruagem maravilhosa, com seis grandes diademas2
pintados no exterior, e umas coisas esfarrapadas atrás para não sei quantos
lacaios nelas se segurarem, e um rastelo por baixo, para impedir que lacaios
amadores caíssem em tentação.
Mal tive tempo de aproveitar o fiacre e pensar que ele era muito semelhante
a um celeiro de feno, e, no entanto, lembrava também um belchior, e me
perguntar por que motivo as cevadeiras dos cavalos eram guardadas dentro dele,
quando vi que o cocheiro estava começando a descer, como se estivéssemos
prestes a parar. E foi o que de fato aconteceu logo em seguida, numa rua escura,
diante de um prédio de escritórios com a porta aberta, onde havia um letreiro
pintado: sr. jaggers.
Quanto é?, perguntei ao cocheiro.
Respondeu ele: Um xelim a menos que o senhor queira pagar mais.
Naturalmente, retruquei que não queria pagar mais.
Então há de ser um xelim, observou o cocheiro. Não quero meter-me em
confusão. Eu conheço esse aí! Piscou um olho para o nome do sr. Jaggers, e
sacudiu a cabeça.
Tendo ele recebido seu xelim, e tendo depois de algum tempo completado a
ascensão a sua boleia, e ido embora (o que aparentemente lhe proporcionou
alívio), entrei na antessala com minha maleta e perguntei: o sr. Jaggers estava?
Não está, não, respondeu o funcionário. No momento, está no tribunal.
Estou falando com o senhor Pip?
Informei-lhe que ele estava de fato falando com o sr. Pip.
O senhor Jaggers mandou dizer para o senhor esperar no gabinete dele. Não
sabia quanto tempo ia demorar, por estar com um cliente. Mas como o tempo
dele é valioso, não deve demorar mais do que o estritamente necessário.
Com essas palavras, o funcionário abriu uma porta e me conduziu a um
recinto interior. Lá encontramos um cavalheiro caolho, com paletó de belbutina e
calções, o qual enxugou o nariz na manga quando sua leitura do jornal foi
interrompida.
Espere lá fora, Mike, disse o funcionário.
Comecei a dizer que esperava não estar interrompendo quando o
funcionário pôs o cavalheiro para fora com a maior sem-cerimônia, e jogando
seu boné de pele para ele depois que ele saiu, deixou-me a sós.
O gabinete do sr. Jaggers era iluminado apenas por uma claraboia, e era um
lugar muito lúgubre; a claraboia era cheia de remendos excêntricos, lembrando
uma cabeça quebrada, e as casas vizinhas distorcidas pareciam estar se torcendo
para olhar para mim através dela. Vi menos papéis ali do que esperava
encontrar; e havia alguns objetos que eu não esperava encontrar como uma
velha pistola enferrujada, uma espada embainhada, algumas caixas e embrulhos
de aparência estranha e duas máscaras de gesso horrendas numa prateleira, de
rostos inchados de maneira inusitada, e narizes retorcidos. A cadeira de espaldar
alto do sr. Jaggers era de crina, de um negrume mortal, contornada por fileiras
de pregos de latão, como um ataúde; e imaginei-o recostando-se nela, mordendo
o indicador para seus clientes. O cômodo era pequeno, e os clientes pareciam ter
o costume de encostar-se na parede: pois a parede, especialmente no trecho em
frente à cadeira do sr. Jaggers, estava ensebada pelo contato com muitos ombros.
Lembrei, também, que o cavalheiro caolho havia roçado na parede ao sair,
quando inocentemente acabei fazendo com que ele fosse expulso dali.
Sentei-me na cadeira dos clientes, situada em frente à do sr. Jaggers,
fascinado com a atmosfera lúgubre do lugar. Ocorreu-me que o funcionário
tinha, tal como seu patrão, um ar de quem sabe dos podres de todo mundo. Eu
me perguntava quantos outros funcionários não haveria no andar de cima, e se
todos eles também ostentariam o mesmo domínio deletério sobre seus
semelhantes. Eu me perguntava qual seria a história por trás daqueles objetos
aleatórios espalhados pela sala, e como eles haviam chegado ali. Eu me
perguntava se aqueles dois rostos inchados seriam de parentes do sr. Jaggers, e,
se ele tivera o infortúnio de possuir dois parentes de tão má aparência, por que
motivo eles os colocava naquele poleiro elevado, para servir de pouso a baratas e
moscas, em vez de encontrar-lhes um lugar em sua casa. É bem verdade que eu
jamais vivera a experiência de um dia de verão em Londres, e meu ânimo talvez
estivesse oprimido pelo ar quente e viciado, e pela poeira e a terra que
formavam uma camada espessa sobre todos os objetos. Porém fiquei sentado,
pensando e esperando na saleta do sr. Jaggers, até que me dei conta de que não
suportava mais ver as duas máscaras na prateleira acima da cadeira do sr.
Jaggers, e assim levantei-me e saí.
Quando expliquei ao funcionário que ia sair para tomar ar enquanto
esperava, ele me aconselhou a dar a volta na esquina, pois eu me veria em
Smithfield.3 Assim, cheguei a Smithfield; e aquele lugar vergonhoso, todo
coberto de imundície, gordura, sangue e escuma, pareceu grudar-se em mim.
Por isso livrei-me dele o mais depressa que pude entrando numa rua onde vi a
grande cúpula negra da catedral de são Paulo a protuberar por detrás de uma
estrutura de pedra sinistra que um transeunte me disse ser a prisão de Newgate.
Seguindo ao longo do muro da prisão, observei que a pista estava coberta de
palha para atenuar o barulho dos veículos que passavam; e com base nesse fato,
e na quantidade de pessoas que estavam paradas ali, com um hálito pesado de
cerveja e aguardente, inferi que havia julgamentos em curso.
Enquanto eu olhava a meu redor, um agente da justiça extremamente sujo e
parcialmente bêbado perguntou-me se eu gostaria de entrar e assistir a algum
julgamento: informando-me que por meia coroa ele poderia indicar-me um
lugar na primeira fila, do qual eu teria uma visão desimpedida do presidente do
Supremo Tribunal, de peruca e beca mencionando essa personagem
tremenda como se fosse um boneco de cera, e depois de algum tempo
oferecendo-o pelo preço reduzido de dezoito pence. Como declinei a oferta
alegando um compromisso, ele teve a bondade de levar-me a um pátio e
mostrar-me o lugar onde ficava a forca, e também o lugar onde as pessoas eram
publicamente açoitadas, e em seguida levou-me à porta dos devedores, da qual
saíam os réus para serem enforcados: atiçando meu interesse por aquela porta
horrenda ao dar a entender que quatro deles sairiam dali dois dias depois às
oito da manhã, para serem mortos um depois do outro. Isso era horrível e me
proporcionou uma péssima imagem de Londres: ainda mais porque o
proprietário do presidente do Supremo Tribunal trajava (desde o chapéu até as
botas, passando pelo lenço) roupas mofadas que claramente não lhe pertenciam
originalmente, e que ele, disso parecia não haver dúvida, comprara barato do
verdugo. Sob tais circunstâncias, pareceu-me que um xelim era um bom preço
para me ver livre dele.
Passei no escritório para perguntar se o sr. Jaggers já havia chegado, fui
informado de que ele ainda tardava, e voltei a sair. Dessa vez, dei uma volta por
Little Britain e entrei na Bartholomew Close; e então me dei conta de que havia
outras pessoas além de mim aguardando o sr. Jaggers. Dois homens com um ar
de segredo faziam hora na Bartholomew Close, a encaixar os pés nas rachaduras
da calçada, pensativos, enquanto conversavam, e um deles disse ao outro, quando
passaram por mim pela primeira vez, que Jaggers faria a coisa se fosse possível
fazê-la. Havia um grupo de três homens e duas mulheres parados numa
esquina, e uma das mulheres chorava com o rosto enfiado no xale sujo, enquanto
a outra a confortava dizendo, enquanto cobria os ombros com o seu próprio xale:
O Jaggers está trabalhando pra ele, Melia, o que mais que você podia querer?.
Um judeuzinho de olhos vermelhos entrou na Close enquanto eu estava por lá,
acompanhado de um segundo judeu que o primeiro despachou em alguma
missão; e depois que o outro partiu, fiquei a observar o judeuzinho, que era de
temperamento muito nervoso, a dançar uma espécie de giga de ansiedade sob
um lampião, acompanhando seus próprios movimentos, numa espécie de frenesi,
com as palavras: Ah, Jaggers, Jaggers! perto dó senhór, ós outrros não valem
nada, eu querro é Jaggers!. Esses testemunhos da popularidade de meu tutor me
impressionaram profundamente, e minha admiração e meu espanto
aumentaram ainda mais.
Por fim, enquanto eu olhava pelo portão de ferro da Bartholomew Close para
Little Britain, vi o sr. Jaggers atravessando a rua, vindo em minha direção. Todos
os outros que estavam à espera o viram também ao mesmo tempo, e uma
tremenda multidão correu em seu encalço. O sr. Jaggers, pondo uma das mãos
em meu ombro e caminhando comigo a seu lado sem me dizer nada, dirigia-se a
seus seguidores.
Primeiro, dirigu-se aos dois homens com ar de segredo.
A vocês, não tenho nada a dizer, disse o sr. Jaggers, apontando para eles
com seu dedo. Não quero saber mais do que já sei. Quanto ao resultado, é uma
questão de sorte. Eu lhes disse desde o começo que só dependia da sorte. Vocês
pagaram o Wemmick?
Juntamos o dinheiro hoje, senhor, disse um dos homens, submisso,
enquanto o outro examinava o rosto do sr. Jaggers.
Não estou lhe perguntando quando vocês juntaram o dinheiro, ou onde, ou
mesmo se conseguiram juntá-lo. O dinheiro está com o Wemmick?
Sim, senhor, disseram os dois homens juntos.
Muito bem; então podem ir embora. Não, não quero ouvir nada!, disse o
sr. Jaggers, fazendo sinal para que os dois ficassem para trás. Se me disserem
uma só palavra, eu largo o caso.
Nós pensamos, senhor Jaggers
, um dos homens começou a dizer,
tirando o chapéu.
Foi justamente o que eu disse para vocês não fazerem, interrompeu o sr.
Jaggers. Vocês pensaram! Eu é que penso por vocês, e basta. Se eu precisar de
vocês, sei onde encontrá-los; não quero que vocês me procurem. Não quero
ouvir mais nada. Nem uma palavra.
Os dois homens entreolharam-se enquanto o sr. Jaggers fez sinal para que
eles recuassem outra vez, e humildemente eles ficaram para trás, e não disseram
mais nada.
E agora vocês!, disse o sr. Jaggers, parando de súbito e virando-se para as
duas mulheres de xale, das quais os três homens haviam se afastado, submissos.
Ah! É você, Amelia?
Sou eu, sim, senhor Jaggers.
E você está lembrada, retorquiu o sr. Jaggers, de que se não fosse eu
você não estaria aqui e não poderia estar aqui?
Ah, sim, senhor!, exclamaram as duas mulheres juntas. Que Deus
abençoe o senhor, a gente sabemo disso muito bem!
Então, perguntou o sr. Jaggers, por que é que vocês estão aqui?
O meu Bill, senhor!, implorou a mulher que chorava.
Pois escute o que vou lhe dizer!, exclamou o sr. Jaggers. De uma vez por
todas. Se você não sabe que o seu Bill está em boas mãos, eu sei. E se você vier
aqui me incomodar com histórias do seu Bill, eu faço de você e do seu Bill um
exemplo, e largo mão do caso. Você pagou o Wemmick?
Paguei, sim, senhor! Direitinho.
Muito bem. Então você já fez tudo que tinha que fazer. Se me disser mais
uma palavra uma única palavra o Wemmick lhe devolve o seu dinheiro.
Essa terrível ameaça fez com que as duas mulheres ficassem para trás na
mesma hora. Agora só restava o judeu nervoso, que já levara aos lábios a fralda
do casaco do sr. Jaggers várias vezes.
Não conheço este homem!, disse o sr. Jaggers, no mesmo tom devastador.
O que quer este sujeito?
Meu carro senhor Jaggers. O irmom de Abrraham Lazarrus!
Quem é ele?, perguntou o sr. Jaggers. Largue o meu casaco.
O peticionário, beijando de novo a bainha do casaco antes de soltá-lo,
respondeu: Abrraham Lazarrus, suspéito.
Você chegou muito tarde, disse o sr. Jaggers. Já estou indo.
Déus do céu, senhór Jaggers!, exclamou o homenzinho nervoso,
empalidecendo, nom me diga que o senhór está contrra Abrraham Lazarrus!
Estou, disse o sr. Jaggers, e não se fala mais nisso. Saia da minha frente.
Senhór Jaggers! Méio momento apenas! Meu prrimo foi ter com o senhor
Vemmick nésse instante, parra lhe oferrecer quaisquer condiçõs. Senhór Jaggers!
Um oitavo de um momento! Se o senhór se dignar a ser comprrado pela outrra
parte a um prrésso maior, qualquer que séja! dinheirra nom é prroblema!
Senhór Jaggers! Senhór
Meu tutor livrou-se de seu suplicante com suprema indiferença, e deixou-o
dançando na calçada como se o chão estivesse em brasa. Sem outras
interrupções, chegamos à antessala, onde encontramos o funcionário e o homem
com paletó de belbutina e boné de pele.
Este é o Mike, disse o funcionário, levantando-se de seu banco e
aproximando-se do sr. Jaggers, num tom confidencial.
Ah!, exclamou o sr. Jaggers, virando-se para o homem, o qual puxava um
cacho de cabelo caído no meio da testa, como o Touro na história do Tordo,
puxando a corda do sino;4 o homem vem hoje à tarde. E então?
Bom, siô Jaggers, respondeu Mike, com a voz de quem sofre de um
resfriado constante, deu um mucado de trabalho, mas acabei achando um que
deve servir.
Ele está disposto a jurar o quê?
Bom, siô Jaggers, disse Mike, dessa vez enxugando o nariz no boné, de
modo geral, ele pode jurar quarquer coisa.
O sr. Jaggers de repente ficou indignadíssimo. Olhe, eu já lhe avisei uma
vez, disse ele, apontando o dedo para o cliente apavorado, que se você voltasse
a falar desse jeito aqui, eu faria de você um exemplo. Seu patife infernal, como
é que você ousa dizer isso a mim?
O cliente parecia assustado, mas também perplexo, como se não entendesse
o que havia feito de errado.
Bestalhão!, disse o funcionário em voz baixa, cutucando-o com o cotovelo.
Palerma! Precisa dizer isso assim na cara?
Volto a lhe perguntar, seu basbaque, disse meu tutor, muito severo, de
novo, e pela última vez: esse homem que você trouxe aqui está disposto a jurar o
quê? Mike olhou fixamente para meu tutor, como se tentasse aprender uma lição a
partir de seu rosto, e lentamente respondeu: Ou atestar a reputação dele, ou
então falar que ficou junto com ele o tempo todo na noite em questão.
Agora, tenha cuidado. Qual é a condição social desse homem?
Mike olhou para o boné, e olhou para o chão, e olhou para o teto, e olhou para
o funcionário, e olhou até para mim, antes de começar a responder, nervoso: A
gente vestiu ele de
, quando então meu tutor explodiu:
O quê? Você insiste, é?
(Bestalhão!, acrescentou o funcionário novamente, com outra cutucada.)
Depois de olhar para todos os lados, impotente, Mike animou-se e
recomeçou:
Ele está vestido que nem um pasteleiro de respeito. Uma espécie de
confeiteiro.
Está aqui?, perguntou meu tutor.
Eu deixei ele, disse Mike, sentado num degrau ali na esquina.
Faça-o passar por aquela janela, para que eu o veja.
A janela indicada era a do escritório. Nós três fomos para perto dela, por trás
da corrediça de metal, e logo em seguida vimos o cliente passar, como por
acaso, com um indivíduo alto, com cara de assassino, trajando um paletó curto
de linho branco com um chapéu de papel. Esse confeiteiro inocente não estava
de modo algum sóbrio, e tinha um olho roxo em recuperação, já ficando
esverdeado, o qual estava pintado.
Diga-lhe que leve embora essa testemunha imediatamente, disse meu
tutor ao funcionário, e pergunte a ele que ideia foi essa de me trazer um sujeito
assim.
Em seguida, meu tutor levou-me a seu gabinete, e enquanto almoçava, em
pé, com uma caixa de sanduíche e um frasco de bolso de xerez (ele parecia
ameaçar o próprio sanduíche que comia), informou-se a respeito dos
preparativos que fizera para mim. Eu deveria ir para o Barnards Inn5 e
procurar os aposentos do jovem sr. Pocket, onde uma cama fora instalada para
mim; eu ficaria com o jovem sr. Pocket até segunda-feira; na segunda-feira eu
iria com ele visitar seu pai, para ver se eu gostava de lá. Além disso, meu tutor
me disse qual seria minha mesada era uma quantia muito generosa abriu
uma gaveta e entregou-me alguns cartões de visitas de certos comerciantes com
os quais eu deveria obter toda espécie de roupas, e quaisquer outras coisas que eu
desejasse. O senhor vai verificar que seu crédito é bom, senhor Pip, disse meu
tutor, cujo frasco de xerez trescalava como se fosse um barril inteiro, quando ele
rapidamente tomou mais um gole, mas dessa maneira poderei verificar suas
contas, e cortar suas asas se começar a gastar mais do que pode. É claro que de
algum modo o senhor há de acabar fazendo o que não deve, mas disso não tenho
culpa.
Depois que ponderei um pouco essas palavras animadoras, perguntei ao sr.
Jaggers se eu podia mandar vir um fiacre. Ele respondeu que não valia a pena,
pois eu estava bem perto do lugar aonde ia; Wemmick caminharia comigo até lá,
se eu o desejasse.
Foi então que compreendi que Wemmick era o funcionário que ficava na
antessala. Outro funcionário foi chamado do andar de cima para substituí-lo na
sua ausência, e saí com ele para a rua, depois de trocar um aperto de mãos com
meu tutor. Encontramos mais um grupo de pessoas esperando lá fora, mas
Wemmick passou por elas dizendo-lhes num tom tranquilo, porém decisivo: Eu
lhes garanto que é perda de tempo; ele não tem nada a dizer a nenhum de
vocês; logo as deixamos para trás, e seguimos caminhando lado a lado.
2
Voltando a vista para o sr. Wemmick enquanto caminhávamos, para ver como
ele era à luz do dia, observei que era um homem seco, de baixa estatura, com o
rosto quadrado e impassível, cuja expressão parecia ter sido entalhada de modo
imperfeito com um cinzel cego. Nele havia algumas marcas que poderiam ser
covinhas, se o material fosse mais macio e o instrumento mais afiado, mas,
sendo ele tal como era, não passavam de mossas. O cinzel fizera três ou quatro
dessas tentativas de enfeitar-lhe o rosto acima do nariz, mas desistira sem se
esforçar no sentido de aplainar a superfície. Concluí que devia ser solteiro, pois
sua camisa estava puída, e que parecia ter sofrido muitas perdas, pois usava no
mínimo quatro anéis de luto,1 além de um broche que representava uma senhora
e um salgueiro-chorão diante de um túmulo em que havia uma urna. Notei
também que havia anéis e selos pendendo da corrente de seu relógio, como se
ele arcasse com o fardo de lembranças de amigos falecidos. Tinha olhos que
brilhavam pequenos, penetrantes e negros e lábios finos, largos e
mosqueados; e teria, eu calculava, de quarenta a cinquenta anos.
Então o senhor nunca esteve em Londres antes?, perguntou-me o sr.
Wemmick.
Não, respondi.
Também eu já fui novo aqui, disse o sr. Wemmick. Engraçado pensar
isso agora!
Agora o senhor conhece bem a cidade?
Ah, conheço, sim, respondeu. Conheço bem suas manhas.
É um lugar muito pecaminoso?, perguntei, mais para dizer alguma coisa
do que para pedir uma informação.
Pode-se ser enganado, roubado e assassinado em Londres. Mas há muitas
pessoas em qualquer lugar dispostas a isso.
Se houver animosidade entre a vítima e o agressor, comentei, para
suavizar um pouco sua observação.
Ah! Não estou falando em animosidade, retrucou o sr. Wemmick; não se
trata disso. Eles fazem essas coisas para levar alguma vantagem.
Pior ainda.
O senhor acha?, indagou o sr. Wemmick. Dá no mesmo, mais ou menos,
a meu ver.
Ele usava o chapéu no cocuruto, e olhava bem para a frente: caminhava de
modo absorto, como se não houvesse nada nas ruas que merecesse sua atenção.
Sua boca assemelhava-se a uma caixa de correio, tanto assim que seu sorriso
parecia mecânico. Foi só quando chegamos ao alto de Holborn Hill que percebi
que era apenas uma semelhança mecânica, pois ele não estava sorrindo em
absoluto.
Sabe onde mora o senhor Matthew Pocket?, perguntei.
Sei, respondeu, indicando com a cabeça a direção. Em Hammersmith, a
oeste de Londres.
É longe?
Bem
uns oito quilômetros.
O senhor o conhece?
Mas o senhor parece um promotor num tribunal!, exclamou o sr.
Wemmick, olhando-me com um ar de aprovação. Conheço, sim. E como!
Havia um tom de tolerância ou crítica em suas palavras que me desanimou
bastante; e eu continuava a olhar de lado para aquele rosto inflexível, à procura
de algum toque mais esperançoso, quando ele disse que havíamos chegado a
Barnards Inn. Meu desânimo não foi aliviado por tal informação, pois eu
imaginava que o estabelecimento em questão fosse um hotel administrado por
um sr. Barnard, em comparação com o qual o Javali Azul de nossa aldeia não
passaria de um botequim. Verifiquei, no entanto, que o tal Barnard não passava
de um espírito desencarnado, ou uma ficção, e seu hotel era na verdade um
miserável amontoado de prédios reles espremidos numa esquina fétida, para
servirem como um clube para gatos.
Entramos nesse refúgio por um postigo, e fomos vomitados por um corredor
inicial numa pracinha melancólica que me pareceu um cemitério plano.
Pareceu-me que lá estavam as árvores mais desoladoras, e os pardais mais
desoladores, e os gatos mais desoladores, e as casas mais desoladoras (cerca de
meia dúzia delas) que eu jamais vira. Pareceu-me que as janelas dos cômodos
em que eram divididas essas casas estavam nos mais variados estados de
corrediças e cortinas esfarrapadas, vasos de plantas aleijados, vidros rachados,
abandono empoeirado e arremedo de conserto; e Aluga-se Aluga-se Aluga-se
encaravam meu olhar das salas vazias, como se a elas jamais viesse nenhum
novo infeliz, e a vingança da alma de Barnard estivesse cumprindo-se pouco a
pouco pelo gradual suicídio dos atuais ocupantes e seu enterro profano sob o
cascalho do chão. Uma manhã bafienta de fuligem e fumaça vestia essa
melancólica criação de Barnard, espargindo cinzas em sua cabeça, e ela
penitenciava-se e humilhava-se na condição de um mero buraco cheio de poeira.
Até aí me levava minha visão; enquanto isso, o caruncho, o mofo e todas as
podridões silenciosas que apodrecem num telhado e num porão abandonados
podridão de ratazana e camundongo e barata e das estrebarias vizinhas, ainda por
cima apelavam sutilmente para meu olfato, gemendo: Experimente a
Mistura de Barnard.
Tão imperfeita foi essa realização da primeira das minhas grandes
esperanças que olhei com desânimo para o sr. Wemmick. Ah!, exclamou ele,
compreendendo mal minha reação; o silêncio o faz pensar no campo. A mim
também.
Ele levou-me até uma esquina e fez-me subir um lanço de escada cujos
degraus me pareciam estar lentamente se dissolvendo em serragem, de modo
que um belo dia os moradores dos andares de cima abririam a porta e se veriam
impossibilitados de descer chegando a um conjunto de aposentos no andar
mais alto. sr. pocket, jr., estava pintado na porta, e havia na caixa de
correspondência uma etiqueta: Volto logo.
Ele não imaginava que o senhor viria tão cedo, explicou o sr. Wemmick.
Não precisa mais de mim?
Não, obrigado, respondi.
Como eu cuido do dinheiro, observou o sr. Wemmick, é bem provável
que nos encontremos com frequência. Bom dia.
Bom dia.
Estendi minha mão, e o sr. Wemmick de início pareceu pensar que eu queria
algo. Então olhou-me e, corrigindo-se, disse:
Ah, sim! Claro. O senhor tem o hábito de apertar a mão?
Fiquei um tanto confuso, pensando que devia estar fora de moda em
Londres, mas respondi que sim.
Pois eu livrei-me dele!, disse o sr. Wemmick. Só nas despedidas. Mas,
sim, muito prazer em conhecê-lo. Bom dia!
Depois que trocamos um aperto de mãos e ele partiu, abri a janela da escada
e quase fiquei sem a cabeça, pois a corda estava tão podre que o caixilho
despencou como numa guilhotina. Por sorte, caiu tão depressa que eu ainda não
tivera tempo de pôr a cabeça para fora. Depois de escapar por um triz, contenteime
com uma vista bem enevoada do Inn pela vidraça imunda, olhando para fora
com tristeza e dizendo a mim mesmo que, sem dúvida, Londres era
superestimada.
Para o sr. Pocket, Jr., o significado de já não era o mesmo que tinha a
palavra para mim, pois eu estava ficando enlouquecido de tanto olhar pela janela
por meia hora, tendo escrito meu nome com o dedo várias vezes na poeira de
todas as vidraças que nela havia, quando ouvi passos subindo a escada. Pouco a
pouco foram surgindo diante de mim o chapéu, a cabeça, o lenço de pescoço, o
colete, as calças e as botas de um homem que teria mais ou menos a mesma
condição social que eu. Levava um saco de papel debaixo de cada braço e um
pequeno cesto de morangos numa das mãos, e estava ofegante.
Senhor Pip?, ele perguntou.
Senhor Pocket?, perguntei eu.
Ah, Deus!, exclamou. Lamento muitíssimo; mas sabendo que viria uma
diligência da sua região ao meio-dia, imaginei que o senhor viesse nela. Na
verdade, eu estava justamente fazendo algo pelo senhor não que isso seja uma
desculpa pois achei que, como o senhor é do interior, talvez fosse de seu
agrado comer umas frutas após o almoço, e fui até o mercado de Covent Garden
para comprar frutas frescas.
Por um certo motivo, tive a impressão de que meus olhos iam saltar das
órbitas. Agradeci sua intenção de modo incoerente, e comecei a pensar que
estava sonhando.
Ah, Deus!, exclamou o sr. Pocket, Jr. Esta porta prende sempre!
Como estava rapidamente transformando em geleia as frutas que levava ao
debater-se com a porta tendo os sacos de papel debaixo dos braços, pedi-lhe que
me permitisse segurá-los. Ele entregou-me os sacos com um sorriso simpático, e
atacou a porta como se ela fosse uma fera selvagem. Ela cedeu de modo tão
súbito, por fim, que ele caiu para trás em cima de mim, e eu caí para trás sobre a
porta em frente, e nós dois rimos. Porém, eu continuava tendo a impressão de
que meus olhos iam saltar das órbitas, e de que aquilo devia ser um sonho.
Entre, por obséquio, disse o sr. Pocket, Jr. Se me permite, vou à frente. As
instalações aqui são um tanto austeras, mas espero que o senhor fique
razoavelmente confortável até segunda-feira. Meu pai julgou que seria mais
agradável para o senhor esperar até amanhã comigo do que com ele, e talvez
quisesse dar uma volta por Londres. Certamente terei muito prazer em lhe
mostrar a cidade. Quanto à nossa mesa, o senhor verá que não é muito mal
servida, pois somos abastecidos pelo café daqui,2 e (é preciso deixar isto claro) a
conta vai para o senhor, pois são essas as ordens do sr. Jaggers. Quanto aos nossos
aposentos, não são de modo algum esplêndidos, porque sou eu que me sustento, e
meu pai não tem nada para me dar, e mesmo se tivesse eu não aceitaria. Esta é a
nossa sala de estar as cadeiras e mesa e tapete e tudo mais, como o senhor vê,
são coisas que estavam sobrando lá em casa. Não me elogie a toalha de mesa, os
talheres e os galheteiros, pois pertencem ao café. Este é meu quartinho; um tanto
bolorento, porque o Barnards é mesmo bolorento. Este é o seu quarto; os móveis
foram alugados para a ocasião, mas espero que sirvam; se quiser alguma coisa, é
só me pedir. Os aposentos são retirados, e vamos ficar juntos aqui só nós dois,
mas não vamos brigar, creio eu. Mas, ah, Deus, o senhor está esse tempo todo
segurando as frutas. Por favor, deixe-me ficar com esses sacos. Peço
desculpas.
Enquanto eu, parado em frente ao sr. Pocket, Jr., lhe entregava os sacos,
primeiro um, depois o outro, vi surgir em seus olhos a expressão de espanto que
eu sabia estar nos meus, e ele disse, recuando:
Que Deus me guarde, o senhor é o garoto intruso!
E o senhor, disse eu, é o jovem cavalheiro pálido!
3
O jovem cavalheiro pálido e eu ficamos a contemplar um ao outro no Barnards
Inn, até que nós dois caímos na gargalhada. Mas como pode ser o senhor!,
exclamou ele. Como pode ser o senhor!, devolvi. E então voltamos a
contemplar um ao outro, e rimos outra vez. Bom!, disse o jovem cavalheiro
pálido, estendendo-me a mão, bem-humorado, está tudo acabado, espero, e
será magnanimidade de sua parte me perdoar por ter lhe dado tamanha surra.
Com base nessa fala, concluí que o sr. Herbert Pocket (pois Herbert era o
nome do jovem cavalheiro pálido) continuava confundindo sua intenção com sua
execução. Porém dei-lhe uma resposta modesta, e trocamos um caloroso aperto
de mãos.
Naquela ocasião, o senhor ainda não tinha tido seu golpe de sorte?,
perguntou Herbert Pocket.
Não, respondi.
Não, ele concordou; ouvi dizer que a coisa é muito recente. Eu mesmo,
naquela época, bem que estava querendo um golpe de sorte assim.
É mesmo?
É, sim. A senhora Havisham chamou-me à sua casa, para ver se ela se
interessaria por mim. Mas não conseguiu ou, seja como for, o fato é que não
se interessou.
Por delicadeza, observei que isso me surpreendia.
Mau gosto, disse Herbert, rindo, mas é fato. É verdade, ela me convocou
a título de experiência, e se eu tivesse sido aprovado, imagino que teria sido
favorecido; talvez tivesse virado como-se-diz da Estella.
O quê?, perguntei, subitamente sério.
Ele estava dispondo as frutas em pratos enquanto conversávamos, e foi por
estar com a atenção dividida que a palavra lhe faltou. Noivo, explicou, ainda
ocupado com as frutas. Comprometido. Prometido. Ou lá o que seja. Qualquer
uma dessas palavras.
Como foi que o senhor suportou a decepção?, indaguei.
Ora!, exclamou. Não foi nenhuma grande decepção. Ela é uma
megera.
A senhora Havisham?, arrisquei.
Também ela, sim, mas eu me referia à Estella. Essa moça é dura,
orgulhosa, caprichosa até não poder mais, e foi criada pela senhora Havisham
para se vingar de todo o sexo masculino.
Qual o parentesco dela com a senhora Havisham?
Nenhum, ele respondeu. Foi só adotada por ela.
Mas por que se vingar de todo o sexo masculino? Que vingança é essa?
O quê, senhor Pip!, exclamou. O senhor não sabe?
Não, respondi.
Ah, Deus! É uma história e tanto, e vou guardá-la para o almoço. E agora
vou tomar a liberdade de lhe fazer uma pergunta. Como é que o senhor foi parar
lá, naquele dia?
Respondi sua pergunta, e ele prestou atenção até eu terminar a narrativa;
depois caiu na gargalhada outra vez, e me perguntou se eu tinha ficado doído
depois. Não lhe perguntei como ele ficara, pois minha convicção quanto a esse
ponto era absoluta.
O senhor Jaggers é seu tutor, imagino?, ele prosseguiu.
É.
O senhor sabe que ele é o advogado da senhora Havisham e o encarregado
de seus negócios, e que é a única pessoa em quem ela confia?
Isso estava me levando (senti) para um terreno perigoso. Respondi, com um
constrangimento que não fiz nenhuma tentativa de disfarçar, que tinha visto o sr.
Jaggers na casa da sra. Havisham no exato dia de nossa luta, mas só essa vez, e
que eu imaginava que ele não se lembrasse de me ter visto lá.
O senhor Jaggers chegou a sugerir que meu pai fosse seu tutor, e foi falar
com ele para fazer a proposta. É claro que o conhecia através da senhora
Havisham. Meu pai é primo dela; mas não tem contato com ela, pois não tem
vocação para cortesão e se recusa a lhe fazer agrados.
Herbert Pocket tinha um jeito franco e espontâneo que era muito cativante.
Eu nunca conhecera, e nunca mais conheci, alguém que manifestasse de modo
mais enfático, no olhar e no tom de voz, uma incapacidade inata de fazer alguma
coisa secreta ou mesquinha. Havia algo de maravilhosamente esperançoso em
sua expressão, e algo que ao mesmo tempo me sussurrava que ele jamais teria
muito sucesso nem muito dinheiro. Não sei como me veio essa ideia. Ela se
apossou de mim naquela primeira ocasião, antes mesmo de nos sentarmos para
almoçar, mas não sei dizer de que modo isso se deu.
Ele continuava a ser um jovem cavalheiro pálido, e exibia certo langor de
derrota em meio a sua animação e sua vivacidade que não parecia indicar uma
força natural. Seu rosto não era belo, mas era melhor do que isso: extremamente
simpático e alegre. Seu corpo era um pouco desajeitado, tal como no tempo em
que meus punhos tomaram tamanhas liberdades com ele, mas sua aparência
indicava que haveria de permanecer sempre leve e jovem. Se o produto da
alfaiataria provinciana do sr. Trabb ficaria melhor nele que em mim é uma
questão em aberto; mas sei que ele fazia muito melhor figura com suas roupas
um tanto surradas do que eu com meu traje novo.
Por ser ele tão comunicativo, parecia-me que qualquer reserva da minha
parte seria uma má retribuição, pouco adequada à nossa juventude. Assim,
contei-lhe minha pequena história, enfatizando que não tinha permissão de fazer
indagações a respeito da identidade de meu benfeitor. Disse-lhe também que
fora criado por um ferreiro no interior, e que nada entendia de boas maneiras, e
que seria muita bondade de sua parte orientar-me sempre que me visse em
estado de perplexidade ou fazendo a coisa errada.
Com prazer, disse ele, se bem que me arrisco a profetizar que não vai
precisar quase nunca da minha orientação. Creio que vamos estar juntos boa
parte do tempo, e não quero que haja nenhum constrangimento desnecessário
entre nós. Pode me fazer o obséquio de me chamar a partir de agora pelo meu
nome de batismo, Herbert?
Agradeci e concordei. Em troca, informei-lhe que o meu era Philip.
Não gosto de Philip, disse ele, sorrindo, pois me lembra o menino
moralista da cartilha,1 que de tão preguiçoso caiu no lago, ou que de tão gordo
não enxergava porque a gordura cobria seus olhos, ou que de tão avarento
trancou seu bolo no armário até que os ratos o comeram, ou que de tão decidido
a pegar um ninho de passarinho acabou sendo comido pelos ursos que estavam
ali por perto só para isso. Vou lhe dizer o que me agradaria. Somos tão
harmoniosos, e você já foi ferreiro você se incomodaria?
Nada que você proponha há de me incomodar, respondi, mas não
entendi.
Você se incomodaria se eu o apelidasse de Handel? Há uma música
encantadora de Handel chamada O ferreiro harmonioso.2
Isso me agradaria muito.
Então, meu caro Handel, disse ele, virando-se enquanto a porta se abria,
eis o almoço, e peço-lhe que fique à cabeceira, já que é você quem paga a
conta.
Não aceitei a proposta de modo algum, e assim ele se instalou à cabeceira, e
eu fiquei de frente para ele. Foi um almoço agradável a mim, na época,
pareceu-me um banquete digno do prefeito de Londres e tinha por atrativo
adicional ser consumido naquelas circunstâncias de independência, sem
nenhuma pessoa velha por perto, e Londres se espraiando à nossa volta. Além
disso, o efeito era acentuado por certa atmosfera cigana que caracterizava nosso
banquete; pois, ainda que houvesse sobre a mesa, como diria o sr. Pumblechook,
tudo do bom e do melhor os itens todos sendo provenientes do café local , a
região circunjacente da nossa sala era de caráter relativamente árido e
improvisado: isso impunha ao garçom os hábitos nômades de pôr as tampas das
travessas no chão (onde ele tropeçava nelas), a manteiga derretida3 na poltrona,
o pão na estante de livros, o queijo no balde de carvão e o frango cozido na
minha cama, no quarto ao lado onde encontrei boa parte da manteiga com
salsa em estado de coagulação quando fui me deitar à noite. Tudo isso tornava o
festim uma delícia, e quando o garçom não estava presente para me observar,
meu prazer era absoluto.
O almoço já estava em andamento quando lembrei Herbert de sua promessa
de me falar sobre a sra. Havisham.
É verdade, respondeu ele. Vou cumpri-la agora mesmo. Antes de iniciar
a história, Handel, devo lhe dizer que em Londres não é comum levar a faca à
boca para evitar acidentes e que embora o garfo seja usado com esse fim,
ele só é enfiado na boca até onde é necessário fazê-lo. Nada de importante,
apenas não custa fazer como fazem as outras pessoas. Além disso, segura-se a
colher não com a mão por baixo, mas por cima. Isso tem duas vantagens. Chegase
com mais facilidade à boca (que, afinal, é o objetivo), e a posição do cotovelo
direito não faz pensar que se está a abrir ostras.
Herbert ofereceu essas sugestões simpáticas de modo tão animado que nós
dois rimos, e eu quase não corei.
Bem, prosseguiu, vamos à senhora Havisham. A senhora Havisham, é
preciso dizer, foi uma criança estragada. A mãe morreu-lhe quando ela ainda
era bebê, e o pai não lhe negava nada. Ele era um cavalheiro do interior, lá da
sua região, e era dono de uma cervejaria. Não entendo por que motivo é tão
admirável ser cervejeiro; mas é inquestionável que, embora seja impossível ser
cavalheiro e ser padeiro, pode-se ser a fina flor do cavalheirismo e ser
cervejeiro. É coisa que se vê todos os dias.
Mas um cavalheiro não pode ter um botequim, não é?, perguntei.
De modo algum, retrucou Herbert; mas um botequim pode ter um
cavalheiro. Pois bem! O senhor Havisham era muito rico e muito orgulhoso. E a
filha dele também.
Ela era filha única?, arrisquei.
Espere um pouco; eu chego lá. Não, não era filha única; tinha um meioirmão.
O pai dela casou-se de novo em segredo4 com a cozinheira, creio eu.
Mas ele não era orgulhoso?, indaguei.
Meu bom Handel, orgulhoso ele era. Casou-se com a segunda esposa em
segredo por ser orgulhoso, e depois de algum tempo ela também morreu. Com a
esposa morta, creio que só então contou à filha o que havia feito, e a partir daí o
filho entrou para a família, indo morar na casa que você conheceu. Quando ficou
rapaz, tornou-se licencioso, extravagante, desobediente um péssimo filho. Por
fim o pai o deserdou; porém amoleceu quando estava a ponto de morrer, e
legou-lhe uma fortuna razoável, ainda que muito menor que a que ficou com a
senhora Havisham. Tome mais um copo de vinho, e não me leve a mal se eu lhe
disser que na sociedade não é necessário ser tão consciencioso ao esvaziar o copo
a ponto de virá-lo de cabeça para baixo, com a borda encostada no nariz.
Eu vinha fazendo isso mesmo, por estar excessivamente atento à sua
narrativa. Agradeci e pedi desculpas. Ele disse: Não há por que se desculpar, e
prosseguiu.
A senhora Havisham agora era uma herdeira, e pode-se imaginar que todos
a consideravam um excelente partido. O meio-irmão tinha bastante dinheiro
outra vez, mas logo se endividou e gastou a torto e a direito em suas loucuras, e
voltou à penúria. Havia mais diferenças agora entre ele e ela do que antes entre
ele e o pai, e acredita-se que ele nutrisse um rancor profundo e mortal contra a
irmã, julgando que ela influenciara a raiva do pai. Agora vem a parte cruel da
história a qual interrompo, meu caro Handel, apenas para comentar que o
guardanapo não cabe dentro do copo.
Por que motivo eu estava tentando enfiar meu guardanapo no meu copo, não
faço a menor ideia. Só sei que dei por mim, com uma perseverança digna de
uma causa bem melhor, fazendo as tentativas mais extenuantes de comprimi-lo
dentro de tais limites. Mais uma vez, agradeci e pedi desculpas, e mais uma vez
ele retrucou, da maneira mais alegre: Não há do que se desculpar, em
absoluto!. E retomou a narrativa.
Eis que então entrou em cena digamos, no hipódromo, ou nos bailes
públicos, ou onde você quiser um certo homem, que fez a corte da senhora
Havisham. Nunca conheci esse homem, pois isso foi há vinte e cinco anos
(quando nem eu nem você ainda éramos nascidos, Handel), mas ouvi meu pai
dizer que era um exibido, o tipo de homem adequado para esse tipo de coisa. Mas
era impossível tomá-lo, salvo por ignorância ou preconceito, por um cavalheiro,
isso meu pai afirma com veemência; pois ele tem por princípio que nenhum
homem que não seja um cavalheiro de verdade no âmago jamais foi, desde que
o mundo é mundo, um cavalheiro de verdade na aparência. Segundo ele, não há
verniz que esconda os veios da madeira; e quanto mais se enverniza a madeira,
mais os veios se manifestam. Pois bem! Esse homem assediou a senhora
Havisham com insistência, afirmando sua devoção a ela. Creio que ela não
demonstrara muita suscetibilidade até então; porém, toda a suscetibilidade que
possuía veio à tona nesse momento, e ela apaixonou-se perdidamente pelo tal.
Sem dúvida, ela o idolatrava. De modo tão sistemático esse homem exerceu seu
afeto sobre a senhora Havisham que dela obteve quantias vultosas, e convenceua
a comprar de seu irmão sua participação na cervejaria (que o pai, num
momento de fraqueza, legara ao filho) por um preço altíssimo, argumentando
que depois de casados ele exigia a posse e controle completos da empresa. O seu
tutor, Handel, nessa época não era um dos consultores da senhora Havisham, e
ela era tão orgulhosa, e estava tão apaixonada, que não ouvia conselhos de
ninguém. Seus parentes eram pobres e traiçoeiros, com exceção de meu pai;
pobre ele era, mas não era nem bajulador nem invejoso. Sendo o único parente
independente da senhora Havisham, ele a alertou, dizendo-lhe que estava fazendo
coisas demais por esse homem, e entregando-se sem reservas ao poder dele. Na
primeira oportunidade, ela expulsou meu pai de sua casa, num acesso de raiva,
na presença do tal homem, e meu pai nunca mais a viu.
Lembrei-me de tê-la ouvido dizer: O Matthew há de vir me ver no final,
quando eu estiver estendida nessa mesa, morta; e perguntei a Herbert se seu pai
continuava tão inflexível em relação a ela.
Não se trata disso, ele respondeu. A questão é que ela o acusou, na
presença do noivo, de estar decepcionado em sua tentativa de bajulá-la para ser
favorecido por ela. Assim, se meu pai voltasse a procurá-la agora, a acusação
pareceria verdadeira até mesmo para ele até mesmo para ela. Mas
voltemos ao homem e terminemos com ele. A data do casamento foi marcada, o
vestido de noiva foi comprado, a viagem nupcial foi planejada, foram
despachados os convites para a festa. Chegou o dia, mas o noivo não chegou. Ele
escreveu uma carta para ela
A qual ela recebeu, interrompi, quando estava se vestindo para a
cerimônia? Às vinte para as nove?
Na exata hora, concordou Herbert, em que depois ela parou todos os
relógios. O que havia nessa carta, além do cancelamento cruel do casamento,
não posso lhe dizer, porque não sei. Depois que se recuperou de uma doença
grave que então lhe acometeu, ela deixou que toda a propriedade caísse aos
pedaços, tal como você a viu, e desde então nunca mais viu a luz do dia.
Isso é tudo?, perguntei, depois de pensar um pouco.
É tudo que sei; e na verdade o que sei foi obtido aos pedaços, pois meu pai
sempre evita o assunto; e a senhora Havisham, mesmo quando me convidou para
ficar lá, só me contou o que era absolutamente necessário que eu soubesse.
Porém esqueci uma coisa. Especula-se que o homem que traiu a confiança da
senhora Havisham estava agindo em conluio com o meio-irmão dela, que foi
tudo uma conspiração montada pelos dois, e que eles dividiram os lucros.
Não entendo por que ele não se casou com ela e ficou com toda a
propriedade, argumentei.
Talvez ele já fosse casado, e a crueldade da mortificação fosse parte da
trama do meio-irmão dela, disse Herbert. Mas, veja lá, isso eu não sei se é
mesmo verdade.
Que fim levaram os dois homens?, perguntei, depois de pensar um pouco,
como antes.
Mergulharam ainda mais fundo na vergonha e na degradação se tal
coisa é possível e na ruína.
Ainda estão vivos?
Não sei.
Você disse ainda há pouco que a Estella não era parenta da senhora
Havisham, porém foi adotada por ela. Adotada quando?
Herbert deu de ombros. Desde que ouço falar na senhora Havisham que a
Estella está lá. Não sei mais nada. E agora, Handel, disse ele, como pondo
pontofinal na história, agora está tudo claro entre nós. Tudo que sei sobre a
senhora Havisham você também sabe.
E tudo que eu sei, retorqui, você também sabe.
É o que acredito. De modo que não pode haver competição nem
perplexidade entre nós. E quanto à condição de que depende a sua subida na vida
isto é, a de que você não deve fazer indagações nem conversar sobre a
identidade do seu benfeitor pode estar certo de que ela jamais será violada,
nem de longe, por mim, nem por ninguém ligado a mim.
De fato, Herbert disse isso com tamanha delicadeza que senti que o assunto
estava encerrado, ainda que eu viesse a viver na casa de seu pai por anos e anos.
Entretanto, ele falou num tom que me fez pensar que para ele estava tão claro
quanto estava para mim que minha benfeitora era a sra. Havisham.
Não me ocorrera antes que ele havia abordado aquele assunto com o
objetivo de remover qualquer obstáculo entre nós; mas nos sentimos tão mais
leves e descontraídos depois dessa conversa que nesse momento me dei conta do
fato. Ficamos muito alegres e sociáveis, e eu lhe perguntei, durante a conversa, o
que ele era na vida. Respondeu-me Herbert: Capitalista segurador de
navios. Creio que ele me viu olhando à minha volta em busca de alguma coisa
associada a navios ou ao capital, pois acrescentou: Na City.
Eu tinha uma concepção grandiosa da riqueza e importância dos seguradores
de navios que trabalhavam na City de Londres, e comecei a pensar, com espanto,
que havia derrubado um jovem segurador, arroxeado seu olho empreendedor e
feito um corte em sua cabeça responsável. Porém, mais uma vez, para meu
alívio, veio-me aquela estranha impressão de que Herbert Pocket jamais teria
muito sucesso nem muito dinheiro.
Não vou me contentar apenas com aplicar meu capital em seguros de
navios. Vou comprar umas boas ações de seguro de vida, e diversificar-me nessa
direção. Quero também mexer um pouco com mineração. Nenhuma dessas
coisas vai me impedir de fretar alguns milhares de toneladas por minha conta.
Creio que vou comerciar, disse ele, recostando-se na cadeira, com as Índias
Orientais sedas, xales, especiarias, corantes, drogas e madeiras de lei. É um
comércio interessante.
E os lucros são grandes?, perguntei.
Imensos!, respondeu.
Oscilei mais uma vez, e comecei a pensar que as esperanças dele eram
maiores que as minhas.
Creio que vou comerciar também, disse ele, enfiando os polegares nos
bolsos do colete, com as Índias Ocidentais açúcar, fumo e rum. E também
com o Ceilão, especialmente presas de elefantes.
Vai precisar de muitos navios, comentei.
Uma frota perfeita, disse ele.
Muito impressionado com a magnificência dessas transações, perguntei-lhe
onde comerciavam no momento os navios de que ele fazia o seguro.
Ainda não entrei no ramo de seguros, respondeu ele. Ainda estou olhando
à minha volta.
De algum modo, isso me pareceu mais condizente com o Barnards Inn.
Exclamei (num tom de convicção): Ah-ah!.
É. Estou num escritório de contabilidade, e estou olhando à minha volta.
Um escritório de contabilidade dá lucro?, perguntei.
Para
você se refere ao rapaz que trabalha nele?, Herbert indagou, em
resposta.
É, para você.
Ora, n-não: não para mim. Disse isso com o ar de quem pensa com
cuidado e faz uma afirmação equilibrada. Não diretamente. Quer dizer, não me
paga nada, e eu tenho que
me sustentar.
Pelo visto, a coisa não era lá muito lucrativa, e sacudi a cabeça como para
dizer que seria difícil acumular muito capital com tal fonte de renda.
Mas a vantagem, disse Herbert Pocket, é que posso olhar à minha volta.
Isso é que é fundamental. Você está num escritório de contabilidade, você sabe,
e olha à sua volta.
Parecia-me uma implicação curiosa de sua afirmação que não estando num
escritório de contabilidade, você sabe, você não podia olhar à sua volta; mas em
silêncio submeti-me à sua experiência.
Então chega uma hora, disse Herbert, em que você vê a sua
oportunidade. E você entra, e aproveita, e faz o seu capital, e pronto! Uma vez
obtido o capital, não há mais nada a fazer senão empregá-lo.
Isso era muito semelhante a sua maneira de agir durante o embate no
jardim; muito semelhante. Também seu modo de enfrentar a pobreza
correspondia com precisão ao modo como ele enfrentara aquela derrota.
Parecia-me que ele suportava todos os golpes e estocadas agora com o mesmo
ar que suportara os meus. Estava claro que ele só tinha à sua volta as
necessidades mais básicas, pois tudo mais em que eu reparara ou havia sido
encomendado do café por minha conta ou então vinha de algum outro lugar.
No entanto, embora já tendo feito sua fortuna mentalmente, ele era tão
despretensioso a respeito dela que eu sentia gratidão por ele não ser orgulhoso.
Era um acréscimo agradável a seu jeito naturalmente agradável, e nos
entendemos às mil maravilhas. À noite fomos caminhar nas ruas, e pagamos
meia-entrada no teatro;5 no dia seguinte fomos ao culto na abadia de
Westminster, e à tarde passeamos nos parques; e eu me perguntava quem
haveria de ferrar todos aqueles cavalos, e desejava que fosse Joe.
Numa computação moderada, já se haviam passado muitos meses, naquele
domingo, desde o dia em que me despedi de Joe e Biddy. O espaço que me
separava deles fazia parte desse distanciamento, e nosso charco parecia
remotíssimo. Que eu pudesse ter ido à nossa velha igreja com minhas velhas
roupas de domingo, naquele domingo último de todos, parecia uma combinação
de impossibilidades, geográficas e sociais, solares e lunares. No entanto, nas ruas
de Londres, tão apinhadas de gente e tão fortemente iluminadas no lusco-fusco
do entardecer, havia sinais deprimentes de reproche por ter eu me afastado de tal
modo de nossa pobre velha cozinha; e no silêncio da madrugada, os passos de
algum pretenso porteiro a zanzar pelo Barnards Inn, supostamente montando
guarda, ecoavam vazios no meu coração.
Na manhã de segunda-feira, às quinze para as nove, Herbert foi ao escritório
de contabilidade para apresentar-se e para olhar à sua volta também, imagino
e acompanhei-o. Ele deveria sair dentro de uma ou duas horas para ir comigo
a Hammersmith, e fiquei de esperá-lo. Parecia-me que os ovos de que nasciam
os jovens seguradores eram incubados na poeira e no calor, tal como os ovos dos
avestruzes, a julgar pelos lugares onde esses futuros gigantes iam trabalhar nas
manhãs de segunda. Tampouco o escritório de contabilidade onde Herbert
trabalhava me parecia de modo algum um bom observatório, pois ficava nos
fundos de um segundo andar num pátio, encardido sob todos os aspectos, e dava
vista para os fundos de outro segundo andar, e não para a rua.
Esperei até meia-hora e fui até a Bolsa,6 e vi homens cobertos de poeira
sentados debaixo dos cartazes sobre navios, homens que julguei serem grandes
comerciantes, embora não entendesse por que todos pareciam estar
desanimados. Quando Herbert chegou, fomos almoçar numa casa célebre que
na época me inspirava veneração, mas que agora considero ter sido a mais
abjeta superstição da Europa, e onde não tive como não reparar, mesmo naquele
momento, que havia muito mais molho nas toalhas e nas facas e nas roupas dos
garçons do que nos bifes. Feita esta refeição a um preço módico (levando-se em
conta a sujeira, a qual não foi cobrada), voltamos para o Barnards Inn, onde
peguei minha maleta, e em seguida tomamos a diligência para Hammersmith.
Chegamos às duas ou três da tarde e caminhamos um trecho bem pequeno até a
casa do sr. Pocket. Levantando a aldraba de um portão, entramos num
jardinzinho com vista para o rio, onde os filhos do sr. Pocket estavam a brincar. E
a menos que eu esteja enganado a respeito de algo que nada tem a ver com
meus interesses e minhas preocupações, os meninos e meninas do sr. e da sra.
Pocket não estavam crescendo nem sendo criados, e sim caindo de um lado para
o outro.
A sra. Pocket estava sentada numa cadeira no jardim à sombra de uma
árvore, lendo, com as pernas apoiadas em outra cadeira; e as duas amas da sra.
Pocket olhavam à sua volta enquanto as crianças brincavam. Mamãe, disse
Herbert, este rapaz é o senhor Pip. Ao ouvir isso, a sra. Pocket recebeu-me
com um ar de dignidade simpática.
Alick e Jane, gritou uma das amas para duas das crianças, se vocês se
jogar nesses arbusto vocês vai cair no rio e se afogar, e aí o que é que o pai de
vocês vai dizer!
Ao mesmo tempo, essa ama pegou no chão o lenço da sra. Pocket, dizendo:
Ora, se não é a sexta vez que a senhora deixou ele cair!. Ao ouvir isso, a sra.
Pocket riu e disse: Obrigada, Flopson, e reinstalando-se numa única cadeira
retomou a leitura. Seu rosto assumiu de imediato uma expressão concentrada e
atenta, como se estivesse lendo há uma semana, mas antes de ter tido tempo de
ler meia dúzia de linhas fixou os olhos em mim, dizendo: E sua mamãe está
bem, eu espero?. Essa pergunta inesperada me colocou numa dificuldade
tamanha que comecei a dizer, do modo mais absurdo, que se tal pessoa existisse
ela sem dúvida estaria muito bem e agradeceria e mandaria seus cumprimentos,
quando então a ama veio em meu socorro.
Ora!, ela exclamou, pegando o lenço, se não é a sétima vez! Mas o que a
senhora está fazendo hoje! A sra. Pocket recebeu sua propriedade, de início
com um ar de surpresa indizível, como se nunca a tivesse visto antes, e disse:
Obrigada, Flopson, e esqueceu-se de mim, e continuou a ler.
Observei, agora que tinha tempo de contá-los, que havia nada menos que seis
Pocketzinhos no jardim, caindo de diversas maneiras. Pouco depois de minha
chegada, um sétimo se fez ouvir, como se nas regiões aéreas, chorando
melancolicamente.
Ora se não é o bebê!, exclamou Flopson, parecendo surpreender-se com
essa descoberta. Vá logo, Millers.
Millers, a outra ama, foi para dentro de casa, e pouco a pouco o choro da
criança foi diminuindo e cessou, como se fosse um pequeno ventríloquo cuja
boca tivesse sido tapada. Enquanto isso, a sra. Pocket lia, e eu estava curioso para
saber que livro seria aquele.
Esperávamos, creio eu, que o sr. Pocket saísse para ter conosco; fosse como
fosse, ficamos à espera, e assim tive oportunidade de observar um notável
fenômeno familiar: cada vez que alguma das crianças se aproximava da sra.
Pocket no meio de seus folguedos, elas quase sempre davam um jeito de
tropeçar e cair por cima dela o que sempre causava grande espanto
momentâneo na mãe, e uma tristeza um pouco mais duradoura nas crianças. Eu
não conseguia entender essa circunstância surpreendente, e não podia deixar de
me entregar a especulações a seu respeito, até que por fim Millers desceu com o
bebê, que foi entregue a Flopson, a qual Flopson foi entregá-lo à sra. Pocket,
quando também ela quase caiu de cabeça em cima da sra. Pocket, com bebê e
tudo, sendo salva por Herbert e por mim.
Deus me acuda, Flopson!, disse a sra. Pocket, desviando a vista do livro por
um momento, todo mundo está caindo!
Deus acuda a senhora, sim!, retrucou Flopson, com o rosto muito
vermelho. O que é que a senhora tem aí?
O que eu tenho, Flopson?, indagou a sra. Pocket.
Ora, se não é o seu escabelo!, exclamou Flopson. E se a senhora deixa
ele aí debaixo das suas saia, como é que a gente pode não cair! Tome! A senhora
fique com o bebê, e me dê o seu livro.
A sra. Pocket fez o que a outra disse, e sem muito jeito balançou a criança no
colo um pouco, enquanto as outras brincavam ao redor dela. Isso durou apenas
alguns instantes, pois logo a sra. Pocket deu ordens sumárias de que todos fossem
levados para dentro de casa para uma soneca. Assim fiz minha segunda
descoberta nessa primeira ocasião, que o método de criação adotado com os
Pocketzinhos era ora cair, ora ficarem deitados.
Nessas circunstâncias, depois que Flopson e Millers levaram as crianças para
dentro de casa, como um pequeno rebanho de carneiros, e o sr. Pocket dela saiu
para me receber, não me surpreendeu muito verificar que o sr. Pocket era um
cavalheiro com uma expressão um tanto perplexa no rosto, e com os cabelos
muito grisalhos despenteados, como se ele não conseguisse organizar coisa
alguma.
4
O sr. Pocket disse que era um prazer me ver, e que esperava que eu não
lamentasse vê-lo. Pois na verdade, acrescentou, com o sorriso do filho, não
sou uma pessoa assustadora. Era um homem de aparência jovem, apesar de
suas perplexidades e de seu cabelo muito grisalho, e seu jeito parecia muito
natural. Uso a palavra natural no sentido de não ter qualquer afetação; havia
algo de cômico em seu ar de preocupação, que pareceria de fato ridículo se ele
próprio não tivesse consciência de que estava às raias do ridículo. Depois de falar
comigo um pouco, dirigiu-se à sra. Pocket, com uma contração um tanto ansiosa
das sobrancelhas, que eram negras e belas: Belinda, espero que você tenha dado
as boas-vindas ao senhor Pip. E ela levantou a vista do livro e respondeu: Dei.
Em seguida, sorriu para mim com um ar distraído, e perguntou-me se eu gostava
do sabor de água de flor de laranjeira. Como a pergunta não tinha nenhuma
relação, próxima ou remota, com nenhuma afirmação anterior ou posterior,
concluo que foi feita, tal como suas intervenções anteriores, por pura
condescendência social.
Algumas horas depois, fiquei sabendo, e devo dizê-lo logo de uma vez, que a
sra. Pocket era filha única de certo cavaleiro que morrera de forma muito
acidental, e que havia convencido a si próprio de que seu falecido pai só não foi
feito baronete por causa da oposição cerrada de uma pessoa movida por razões
inteiramente pessoais já não sei que pessoa, se é que algum dia soube o rei,
o primeiro-ministro, o lorde chanceler, o arcebispo de Cantuária, alguém e
vivia grudado nos nobres deste mundo com base nesse fato totalmente hipotético.
Creio que ele fora feito cavaleiro por atacar a gramática inglesa com a ponta de
sua pena, num discurso desesperado traçado em pergaminho, por ocasião do
lançamento da pedra fundamental de sei lá qual prédio, e por entregar a alguma
personagem real ou a colher de pedreiro ou a argamassa. Fosse como fosse, ele
havia criado a sra. Pocket desde o berço como alguém que, no curso natural dos
coisas, haveria de desposar um nobre, e que devia ser protegida da aquisição de
conhecimentos domésticos plebeus. Foi tão bem-sucedido em tal propósito esse
pai judicioso que ela se tornou uma criatura altamente ornamental, porém de
todo incapaz e inútil. Tendo seu caráter se estabelecido desse modo feliz, ainda na
flor da juventude ela conheceu o sr. Pocket, o qual também estava na flor da
juventude e ainda não decidira se haveria de sentar-se na almofada de lã ou de
proteger a cabeça com uma mitra.1 Como fazer uma ou outra coisa era mera
questão de tempo, ele e a sra. Pocket haviam agarrado o Tempo pelo topete 2 (e,
a julgar pelo comprimento, o Tempo devia estar precisando de um barbeiro), e
se casaram sem o conhecimento do pai judicioso. Este, não possuindo nada que
pudesse legar ou negar ao casal senão sua bênção, generosamente conferiu-a aos
dois após um curto conflito, e informou o sr. Pocket de que sua esposa era um
tesouro digno de um príncipe. Desde então, o sr. Pocket investiu seu tesouro de
príncipe nas atividades mundanas, o que não lhe parecia ter rendido lucros muito
vultosos. Mesmo assim, a sra. Pocket era alvo de uma curiosa mistura de piedade
e respeito, por não ter-se casado com um nobre, enquanto o sr. Pocket era alvo
de uma curiosa mistura de reproche e perdão, por não ter jamais se tornado
nobre.
O sr. Pocket levou-me para dentro da casa e mostrou-me o meu quarto, o
qual era agradável e mobiliado de tal modo que eu podia utilizá-lo
confortavelmente também como minha sala particular. Em seguida, bateu às
portas de dois outros quartos semelhantes e apresentou-me a seus ocupantes,
Drummle e Startop. Drummle, um jovem com cara de velho e uma arquitetura
de uma ordem pesada, estava assobiando. Startop, mais jovem em idade e em
aparência, estava lendo e segurando a cabeça, como se julgasse correr o perigo
de fazê-la explodir com uma carga de conhecimento excessivamente forte.
Tanto o sr. Pocket quanto sua esposa tinham um ar tão óbvio de estarem nas
mãos de alguma outra pessoa que eu me perguntava quem seria o verdadeiro
proprietário da casa que lhes permitia morar ali, até que descobri que esse poder
desconhecido pertencia aos criados. Era uma maneira tranquila de viver, talvez,
no sentido de evitar problemas; porém parecia ser cara, pois os criados julgavam
ter a obrigação de ser exigentes quanto à comida e à bebida, e de receber muitas
visitas no andar de baixo. Concediam uma mesa bem farta ao sr. Pocket e sua
esposa, e, no entanto, eu tinha sempre a impressão de que a melhor parte da casa
para se hospedar seria a cozinha desde que o hóspede fosse capaz de se
defender, pois, antes mesmo de eu completar uma semana na casa, uma senhora
vizinha conhecida da família mandou um bilhete dizendo que tinha visto Millers
dando um tapa no bebê. Isso causou grande sofrimento à sra. Pocket, que se
debulhou em lágrimas ao receber o bilhete, dizendo que era extraordinário como
os vizinhos se metiam na vida alheia.
Aos poucos fiquei sabendo, principalmente a partir de Herbert, que o sr.
Pocket estudara em Harrow* e Cambridge, onde obtivera distinção; mas que, ao
ter a felicidade de desposar a sra. Pocket ainda muito jovem, sua carreira foi
prejudicada e ele assumiu a ocupação de explicador. Tendo dado lustre a um
certo número de alunos de pouco brilho sendo notável o fato de que seus pais,
quando eram pessoas influentes, sempre prometiam ajudá-lo, mas sempre se
esqueciam de cumprir o prometido depois que terminavam as explicações ,
ele se cansou desse trabalho mal pago e veio para Londres. Ali, pouco a pouco
frustrado em suas esperanças mais elevadas, estudava com alguns que não
tiveram oportunidades ou que as desperdiçaram, preparava vários outros para
ocasiões especiais, e utilizava seus talentos nas tarefas de compilação e correção
literária, e com base nesses recursos, além de uma renda pessoal muito modesta,
conseguia ainda manter a casa que conheci.
O sr. Pocket e sua esposa tinham uma lambe-botas por vizinha, viúva de
natureza tão solidária que concordava com todos, abençoava a todos e dispensava
sorrisos e lágrimas a todos, conforme as circunstâncias. Seu nome era sra. Coiler,
e eu tive a honra de descer com ela para a sala de jantar no dia em que me
instalei na casa. Ao descer a escada, ela me deu a entender que era terrível para
a querida sra. Pocket que o querido sr. Pocket se visse obrigado a receber
cavalheiros para estudar como ele. O comentário não se estendia a mim, ela me
disse numa explosão de amor e confiança (naquele momento, eu a conhecia há
menos de cinco minutos); se todos fossem como eu, aí seria muito diferente.
Mas a querida senhora Pocket, disse a sra. Coiler, depois de sua primeira
decepção (não que o querido senhor Pocket tivesse alguma culpa), exige tanto
luxo e elegância
Sim, senhora, disse eu, para detê-la, pois temia que ela começasse a
chorar.
E ela tem um temperamento tão aristocrático
Sim, senhora, repeti, com o mesmo objetivo de antes.
que é muito difícil, prosseguiu a sra. Coiler, fazer com que o querido
senhor Pocket dedique tempo e atenção a qualquer outra coisa que não seja a
querida senhora Pocket.
Não pude evitar o pensamento de que talvez fosse ainda mais difícil se o
açougueiro dedicasse menos tempo e atenção à querida sra. Pocket; porém não
disse nada; a necessidade de vigiar minhas boas maneiras discretamente já me
ocupava o bastante.
Fiquei sabendo, através da conversa entre a sra. Pocket e Drummle enquanto
eu prestava atenção no garfo, na faca, na colher, nos copos e nos outros
instrumentos de autodestruição, que Drummle, cujo nome de batismo era
Bentley, na verdade vinha logo depois do herdeiro de um título de baronete na
linha de sucessão. Também fiquei sabendo que o livro que eu vira a sra. Pocket
lendo no jardim dizia respeito a títulos de nobreza, e que ela sabia a data exata
em que seu avô teria entrado no livro, se tal houvesse de fato acontecido.
Drummle não dizia muita coisa, mas lá à sua maneira limitada (ele parecia um
sujeito rabugento) falava como um dos eleitos, e reconhecia a sra. Pocket como
mulher e como irmã. Ninguém, além deles dois e da sra. Coiler, a vizinha lambebotas,
manifestava qualquer interesse nessa parte da conversa, a qual parecia
constranger Herbert; entretanto, a conversa prometia estender-se por algum
tempo quando entrou o pajem anunciando um problema doméstico. O que
acontecera fora que a cozinheira havia perdido a carne. Para meu indizível
espanto, vi pela primeira vez o sr. Pocket aliviar sua tensão através de um
comportamento que me pareceu absolutamente insólito, mas que não causou
impressão em mais ninguém, e com o qual terminei por me acostumar tal como
os outros. Ele largou o trinchante e o garfo pois estava trinchando naquele
momento , pôs as duas mãos nos cabelos despenteados e pareceu fazer uma
tentativa extraordinária de levantar a si próprio pelos cabelos. Feito isso, e não
tendo conseguido levantar-se nem um pouco, continuou em silêncio a fazer o que
estava fazendo antes.
Nesse ponto a sra. Coiler mudou de assunto e começou a bajular-me. Por
alguns momentos aquilo me agradou, mas a bajulação era tão gritante que o
prazer logo passou. Ela possuía um jeito serpenteante de se aproximar de mim
quando afetava um interesse profundo pelos amigos e lugares que eu deixara
para trás, um jeito positivamente ofídico; e quando ela vez por outra dava o bote
em Startop (que lhe dizia muito pouco) ou Drummle (que dizia menos ainda), eu
sentia certa inveja dos dois por estarem do outro lado da mesa.
Depois do jantar, as crianças foram trazidas para a sala, e a sra. Coiler fez
comentários elogiosos sobre seus olhos, narizes e pernas uma maneira sagaz
de lhes estimular a inteligência. Eram quatro meninas e dois meninos, além do
bebê que poderia ser uma coisa ou outra, e do sucessor do bebê, que ainda não
era nem uma coisa nem outra. Foram trazidas por Flopson e Millers, tal como se
as duas fossem oficiais subalternos incumbidos de recrutar crianças em algum
lugar que tivessem acabado de alistar aquelas: enquanto isso, a sra. Pocket
contemplava os futuros nobres que elas deveriam ser, com um ar de quem tinha
a impressão de que já tivera o prazer de inspecioná-las antes, mas não sabia
muito bem o que pensava delas.
Vamos! A senhora me passe o garfo e fique com o bebê, disse Flopson.
Não segura assim não, senão a cabeça dele vai ficar debaixo da mesa.
Devidamente alertada, a sra. Pocket pegou a criança do jeito errado, ficando
a sua camisa debaixo da mesa; fato esse que foi anunciado a todos os presentes
por uma concussão prodigiosa.
Meu Deus, meu Deus! Me devolve ele, disse Flopson; vem cá, Jane, vem
dançar pro bebê!
Uma das meninas, uma coisinha pequena que parecia ter prematuramente
assumido uma parcela de responsabilidade sobre as outras, e que estava a meu
lado, começou a dançar para o bebê, aproximando-se e afastando-se dele até
que o pequenino parou de chorar e riu. Então todas as crianças riram, e o sr.
Pocket (que nesse ínterim havia tentado levantar a si próprio pelos cabelos duas
vezes) riu, e todos nós rimos e ficamos alegres.
Flopson, dobrando o bebê em todas as articulações como se ele fosse uma
boneca alemã,3 colocou-o são e salvo no colo da sra. Pocket e deu-lhe para
brincar o quebra-nozes, ao mesmo tempo recomendando à sra. Pocket que
ficasse atenta para o fato de que as pontas desse instrumento não fariam bem se
entrassem em choque com os olhos da criança, e advertindo severamente a
pequena Jane para que ficasse atenta pelo mesmo motivo. Em seguida, as duas
amas saíram da sala, e tiveram um entrevero animado com um pajem dissipado
que havia servido o jantar e que havia claramente perdido metade dos seus
botões na mesa de jogo.
Fiquei muito preocupado quando a sra. Pocket entrou numa discussão com
Drummle a respeito de dois títulos de baronete, enquanto comia uma laranja
fatiada embebida em açúcar e vinho e esquecendo-se por completo do bebê que
tinha no colo, o qual fazia as coisas mais apavorantes com o quebra-nozes. Por
fim, a pequena Jane, percebendo que o cérebro do bebê corria risco,
discretamente saiu de seu lugar e por meio de artifícios sutis afastou a arma
perigosa. A sra. Pocket, terminando de comer a laranja mais ou menos nesse
momento e não aprovando o que Jane fizera, disse a ela:
Menina levada, onde já se viu? Vai sentar-te agora mesmo!
Mamãessinha, ceceou a garota, o bebê ia furar os olinhos dele.
Onde já se viu, dizer-me uma coisa dessas?, retorquiu a sra. Pocket. Vai
sentar-te na tua cadeira agora mesmo!
A dignidade da sra. Pocket era tão esmagadora que fiquei intimidado, como
se eu próprio tivesse feito alguma coisa para feri-la.
Belinda, protestou o sr. Pocket, da outra extremidade da mesa, você não
está sendo nada razoável. A Jane só interferiu para proteger o bebê.
Não permito que ninguém interfira, disse a sra. Pocket. Fico admirada,
Matthew, de você me expor à afronta da interferência.
Meu Deus!, exclamou o sr. Pocket, numa explosão de desespero desolado.
Então vamos deixar que um quebra-nozes leve uma criança para o túmulo sem
que ninguém faça nada?
Não permito que Jane interfira comigo, disse a sra. Pocket, dirigindo um
olhar majestoso à pequena transgressora inocente. Então eu não tenho
consciência da posição ocupada pelo meu pobre avô? Ora, a Jane, imagine!
O sr. Pocket enfiou as mãos nos cabelos novamente, e dessa vez conseguiu
de fato levantar-se alguns centímetros da cadeira. Ouçam só!, bradou ele,
impotente, para os elementos. Então temos que deixar um bebê ser assassinado
por um quebra-nozes, por conta da posição ocupada por um pobre avô! Em
seguida, voltou a sentar-se e calou-se.
Todos nós ficamos a olhar para a toalha, constrangidos, enquanto essas coisas
se passavam. Seguiu-se uma pausa, durante a qual o bebê honesto e irreprimível
dirigiu uma série de saltos e gritos à pequena Jane, a qual parecia ser o único
membro da família (sem contar a criadagem) com o qual ele parecia estar de
fato familiarizado.
Senhor Drummle, disse a sra. Pocket, por favor, chame Flopson com a
campainha. Jane, menina desobediente, já para a cama. Vem cá, meu bebê
querido, vem com a mamãe!
O bebê, cuja honra era sem jaça, protestou com toda a sua força. Ele
dobrou-se para o lado errado sobre o braço da sra. Pocket, exibindo aos presentes
um par de sapatinhos de tricô e tornozelos com covinhas em vez do rosto suave, e
foi levado da sala em estado de rebelião completa. E acabou conseguindo o que
queria, pois alguns minutos depois vi pela janela que a pequena Jane estava
cuidando dele.
Por acaso as outras cinco crianças foram deixadas à mesa, porque Flopson
foi ocupar-se com um assunto pessoal e não havia mais ninguém tomando conta
delas. Foi assim que verifiquei de que modo elas se relacionavam com o sr.
Pocket, o que pode ser exemplificado pelo que se segue. O sr. Pocket, com a
perplexidade normal de seu rosto acentuada e os cabelos despenteados,
contemplou-as por alguns minutos, como se não entendesse por que motivo elas
estavam morando e comendo naquela casa, em vez de terem sido instaladas pela
natureza na casa de outro alguém. Então, de um modo distante, como se fosse
um missionário, dirigiu-lhes algumas perguntas por exemplo, por que o
pequeno Joe tinha um furo em seu babado; o menino respondeu que a Flopson,
papai, ia remendá-lo assim que tivesse tempo e por que a pequena Fanny
estava com aquele panarício; a menina respondeu que a Millers, papai, ia colocar
um cataplasma nela quando se lembrasse. Por fim, ele derreteu-se em ternuras
paternas e deu um xelim a cada uma, dizendo-lhes que saíssem e fossem brincar;
enquanto elas saíam, após uma única tentativa muito enfática de se levantar pelos
cabelos ele deixou de lado aquela questão insolúvel.
À tarde, fomos remar no rio. Como Drummle e Startop tinham, cada, um
barco, resolvi pegar um para mim e passar os dois para trás. Eu era muito bom
na maioria dos exercícios a que se dedicam os meninos do interior, mas, cônscio
de que me faltava a elegância de estilo necessária no Tâmisa para não falar
de outras águas , resolvi me colocar na condição de discípulo do vencedor de
uma competição de barcas que fazia ponto na nossa casa. Essa autoridade prática
me confundiu muito ao dizer que eu tinha braço de ferreiro. Se ele soubesse que
seu elogio por um triz não o faria perder o aluno, creio que ele não teria dito tal
coisa.
Foi servida uma ceia quando voltamos para casa à noite, e imagino que todos
nós teríamos nos divertido se não fosse por um episódio doméstico um tanto
desagradável. O sr. Pocket estava alegre quando uma empregada entrou e disse:
Com licença, eu queria falar com o senhor.
Falar com o seu patrão?, exclamou a sra. Pocket, cuja dignidade mais uma
vez foi ferida. Onde já se viu uma coisa dessas? Vá falar com a Flopson. Ou
então comigo numa outra hora.
Com licença, madame, insistiu a empregada, eu queria falar agora, e
falar com o patrão.
Nesse ponto, o sr. Pocket saiu da sala, e ficamos sem saber o que fazer até
ele voltar.
Essa é demais, Belinda!, disse o sr. Pocket, voltando com um rosto que
exprimia dor e desespero. A cozinheira está estatelada no chão da cozinha,
totalmente bêbada, com um embrulho grande de manteiga fresca na despensa,
pronta para ser vendida como gordura!
A sra. Pocket imediatamente demonstrou muitas emoções amigáveis,
dizendo: Isso é coisa dessa peste da Sophia!.
Como assim, Belinda?, perguntou o sr. Pocket.
Foi a Sophia que lhe disse isso, replicou a sra. Pocket. Então eu não vi
com meus próprios olhos, e não ouvi com meus próprios ouvidos, a Sophia entrar
na sala agora mesmo e pedir para falar com você?
Mas ela não me levou lá embaixo, Belinda, devolveu o sr. Pocket, e me
mostrou a mulher, e o embrulho também?
E você defende essa bisca, Matthew, disse a sra. Pocket, que está fazendo
intrigas?
O sr. Pocket emitiu um gemido de desânimo.
Então eu, a neta de meu avô, não conto nada nesta casa?, disse a sra.
Pocket. Além disso, a cozinheira sempre foi uma mulher muito boa e respeitosa,
e me disse da maneira mais natural, quando veio procurar emprego, que sentia
que eu nascera para ser duquesa.
Havia um sofá ao lado do sr. Pocket, e ele caiu sobre esse móvel na posição
do Gladiador Moribundo.4 Ainda nessa atitude, ele disse, com uma voz
cavernosa: Boa noite, senhor Pip, quando então julguei aconselhável despedirme
dele e ir me deitar.
* Harrow: uma das mais exclusivas escolas para meninos da elite britânica. (n. t.)
5
Depois de dois ou três dias, quando eu já estava instalado em meu quarto, tinha
ido e voltado de Londres algumas vezes e havia encomendado tudo que eu queria
de meus abastecedores, tive uma longa conversa com o sr. Pocket. Ele sabia
mais a respeito da carreira que eu pretendia seguir do que eu mesmo sabia, pois
observou que o sr. Jaggers lhe dissera que eu não estava preparado para
nenhuma profissão liberal, e minha formação deveria ser suficiente para meu
destino desde que eu conseguisse me manter em pé de igualdade com a média
dos jovens mais prósperos. Concordei, é claro, pois não sabia de nada em sentido
contrário.
Ele aconselhou-me a frequentar certos lugares em Londres, para adquirir
alguns rudimentos que me eram necessários, e a atribuir-lhe as funções de
explicador e diretor de todos os meus estudos. Imaginava que eu, se recebesse
uma orientação inteligente, não teria motivos para desanimar, e em pouco tempo
não precisaria da ajuda de nenhuma outra pessoa que não ele. Dizendo essas
coisas e muitas outras semelhantes, colocava-se numa relação confidencial
comigo de um modo admirável; e devo dizer de saída que ele foi de tal modo
zeloso e honrado quanto a cumprir seus compromissos comigo, que me tornou
zeloso e honrado em retribuição. Se ele se mostrasse indiferente como professor,
eu teria agido de igual modo como aluno; ele não me deu tal desculpa, e um fez
justiça ao outro. Tampouco jamais percebi nada de ridículo nele nada que não
fosse sério, honesto e bom em sua relação de professor comigo.
Tendo estabelecido esses pontos, e tendo eu começado a trabalhar a sério,
ocorreu-me que, se pudesse manter meu quarto no Barnards Inn, minha vida
seria agradavelmente variável, e minhas boas maneiras só teriam a ganhar por
efeito da convivência com Herbert. O sr. Pocket não fez nenhuma objeção a isso,
porém insistiu que antes de tomar qualquer decisão eu deveria consultar meu
tutor. Imaginei que essa delicadeza fosse motivada pela ideia de que o plano
proporcionaria alguma economia a Herbert, e assim fui a Little England
comunicar meu desejo ao sr. Jaggers.
Se me fosse possível comprar a mobília que está alugada para mim, disse
eu, e mais uma ou duas coisas pequenas, eu me sentiria perfeitamente em casa
aqui.
Pois compre!, disse o sr. Jaggers, com um riso seco. Eu lhe disse que o
senhor ia se dar bem. Quanto o senhor quer?
Respondi que não sabia quanto.
Ora!, redarguiu o sr. Jaggers. Quanto? Cinquenta libras?
Ah, não, bem menos que isso.
Cinco libras?, perguntou ele.
Foi uma queda tão grande que respondi, constrangido: Ah! Mais do que
isso.
Mais do que isso, não é?, repetiu o sr. Jaggers, à minha espreita, com as
mãos nos bolsos, a cabeça inclinada para um lado e os olhos fixos na parede atrás
de mim. Mais quanto?
É tão difícil especificar uma quantia, disse eu, hesitando.
Ora!, disse o sr. Jaggers. Vamos chegar a ela. Cinco vezes dois; isso é
bastante? Cinco vezes três; isso é bastante? Quatro vezes cinco; isso é bastante?
Respondi que daria folgadamente.
Quatro vezes cinco dá folgadamente, não é?, repetiu o sr. Jaggers,
franzindo o sobrolho. Então, quanto o senhor calcula que seja quatro vezes
cinco?
Quanto eu calculo?
Ah!, exclamou o sr. Jaggers. Quanto?
O senhor diria que são vinte libras, respondi, sorrindo.
Não importa o que eu diria, meu amigo, observou o sr. Jaggers, com um
meneio de cabeça astuto. Quero saber o que você diria.
Vinte libras, é claro.
Wemmick!, chamou o sr. Jaggers, abrindo a porta de seu gabinete. Anote
o pedido do senhor Pip, e pague-lhe vinte libras.
Essa maneira tão enfática de fazer negócios causou-me uma impressão
enfática, e não muito agradável. O sr. Jaggers jamais ria; porém, usava botas
compridas, lustradas, que rangiam, e ao mudar de posição, com a cabeçorra
virada para baixo e as sobrancelhas franzidas, aguardando uma resposta, por
vezes fazia as botas rangerem, como se elas estivessem rindo de um modo seco e
desconfiado. Como Wemmick também estava saindo no momento, e era uma
pessoa direta e conversadora, comentei com ele que não conseguia entender o
jeito do sr. Jaggers.
Diga-lhe isso, que ele vai tomá-lo como um elogio, disse-me Wemmick;
ele não quer que o senhor o entenda. Ah!, exclamou, pois fiz uma expressão de
surpresa. Não é nada pessoal; é profissional: só isso.
Wemmick estava à sua mesa, almoçando e mastigando ruidosamente
um biscoito seco e duro, pedaços do qual ele de vez em quando punha na nesga
da boca, como se os pusesse numa caixa de correio.
Ele sempre me dá a impressão, disse Wemmick, de estar montando uma
armadilha e ficar olhando para ela. De repente pleque! você está preso!
Sem comentar que as armadilhas não faziam parte das amenidades da vida,
observei que imaginava que ele fosse muito astuto.
Quando a gente ainda está aqui, disse Wemmick, ele já está lá na
Austrália. Com a pena apontava para o chão do escritório, exprimindo que a
Austrália, para os fins daquela sua imagem, era o ponto simetricamente oposto
do globo. Se houvesse algum lugar mais longe, acrescentou Wemmick,
levando a pena ao papel, ele estaria lá.
Nesse caso, disse eu, imaginava que ele teria uma firma muito
próspera, e Wemmick concordou: Mui-tí-ssi-mo!. Em seguida, perguntei
quantos funcionários ele tinha.
Não temos muitos, porque só existe um Jaggers, e as pessoas não o querem
de segunda mão. O senhor gostaria de vê-los? O senhor é um de nós, por assim
dizer.
Aceitei a oferta. Depois que o sr. Wemmick terminou de pôr o biscoito no
correio, e me deu o dinheiro que estava guardado numa caixa dentro do cofre,
cuja chave ele escondia em algum lugar nas suas costas, retirando-a do colarinho
do casaco como se fosse um rabicho de ferro, subimos para o segundo andar. O
prédio era escuro e maltratado, e os ombros sebosos que haviam deixado suas
marcas no gabinete do sr. Jaggers pareciam subir e descer a escada há muitos
anos. Na sala da frente, um funcionário cuja aparência sugeria algo
intermediário entre um taberneiro e um apanhador de ratos um homem
grande, pálido e inchado estava muito envolvido com pessoas maltrapilhas as
quais tratava sem nenhuma cerimônia, tal como todos tratavam as pessoas que
contribuíam para os cofres do sr. Jaggers. Recolhendo provas, disse o sr.
Wemmick, depois que saímos, para o Bailey. 1 Na sala em cima dela, um
funcionariozinho que parecia um terrier flácido de cabelos longos (pelo visto, não
fora tosado quando filhote) estava igualmente envolvido com um homem de vista
fraca, que me foi apresentado pelo sr. Wemmick como o dono de uma fundição
que sempre mantinha a caldeira acesa, e que fundiria qualquer coisa que eu
quisesse e que suava muito, como se estivesse praticando seu ofício em si
próprio. Numa sala de fundos, um homem de ombros altos com uma flanela suja
amarrada em torno do rosto nevrálgico, trajando roupas negras velhas que
pareciam ter sido enceradas, debruçava-se sobre sua mesa, passando a limpo as
anotações dos dois outros cavalheiros, para serem usadas pelo sr. Jaggers.
A isso se resumia o escritório. Quando descemos a escada, Wemmick levoume
até o gabinete de meu tutor, dizendo: Este o senhor já conhece.
Por favor, perguntei, quando minha vista novamente se fixou nas duas
detestáveis máscaras de rostos careteiros, quem são aqueles dois?
Esses aí?, respondeu Wemmick, subindo numa cadeira e soprando a poeira
daquelas cabeças horrorosas antes de pegá-las. Esses dois são célebres. São dois
famosos clientes nossos, que nos deram muito crédito. Este cidadão (ora, deves
ter descido lá de cima no meio da noite para ficares bisbilhotando o tinteiro,
senão não estarias com essa mancha na sobrancelha, seu malandro!) matou o
patrão, e levando-se em conta que ele não entendia nada de provas, até que não
planejou a coisa mal.
É uma cópia fiel?, perguntei, recuando da carantonha enquanto Wemmick
cuspia na sobrancelha e a esfregava com a manga.
Cópia fiel? Não é cópia, é o próprio. A máscara foi feita em Newgate, logo
depois que o desceram da forca.2 Tu gostavas muito de mim, não era, Tinhoso?,
disse Wemmick. Em seguida, explicou esse apelido afetuoso, levando a mão ao
broche que representava a dama e o salgueiro-chorão diante do túmulo com uma
urna, e dizendo: Mandou fazer pra mim!.
A dama é alguma pessoa em particular?, indaguei.
Não, respondeu Wemmick. Só uma presa dele. (Bem que tu gostavas
desse tipo de presa, não é?) Não; não havia nenhuma dama na história, senhor
Pip; ou por outra, havia uma só e não era desse tipo de dama esguia e
refinada, e essa eu garanto que nunca havia de ir visitar a urna dele a menos
que na urna houvesse alguma coisa de beber. Como sua atenção fora atraída
para o broche, Wemmick largou a máscara e lustrou o broche com o lenço.
Aquela outra criatura teve o mesmo fim?, perguntei. Porque tem o
mesmo ar.
O senhor tem razão, disse Wemmick, é o ar autêntico. Parece que uma
das narinas enganchou num anzol. É verdade, esse teve o mesmo fim; o que cá
por estas bandas é o fim natural, eu lhe digo. Este janota forjava testamentos, e
quem sabe aproveitava e matava o testador também. Mas tu eras um cavalheiro
de verdade (o sr. Wemmick estava mais uma vez apostrofando), e dizias que
sabias escrever grego. Grandessíssimo parlapatão! Mas que mentiroso tu eras.
Nunca conheci alguém tão mentiroso assim! Antes de recolocar seu falecido
amigo na prateleira, Wemmick tocou o maior de seus anéis de luto, dizendo:
Mandou comprar pra mim, na véspera.
Enquanto punha a segunda máscara na prateleira e descia da cadeira,
ocorreu-me que todas as suas joias teriam origem semelhante. Como não
demonstrava reticência em relação a esse tema, tomei a liberdade de lhe fazer
essa pergunta enquanto ele batia a poeira das mãos.
Ah, sim, respondeu ele, são todos presentes desse mesmo tipo. Um leva
ao outro, o senhor entende; é assim que são as coisas. Eu sempre aceito. São
curiosidades. E são valores. Podem não valer muito, mas sempre valem alguma
coisa, e são portáteis. Não são grande coisa pra uma pessoa como o senhor, com
um futuro brilhante, mas pra mim, minha estrela-guia sempre foi esta: Acumule
valores portáteis.
Quando elogiei esse pensamento, ele prosseguiu, dizendo, num tom
simpático:
O dia em que o senhor não tiver nada melhor pra fazer, podia me visitar lá
em Walworth, que posso oferecer-lhe uma cama, e pra mim seria uma honra.
Não tenho muita coisa pra lhe mostrar, mas uma ou duas curiosidades que tenho
talvez o interessem; e gosto do meu jardinzinho, com um pavilhão.
Respondi que seria para mim um prazer aceitar sua hospitalidade.
Obrigado, disse ele; então vamos considerar que a coisa é certa, quando
for conveniente para o senhor. Já jantou com o senhor Jaggers?
Ainda não.
Bem, disse Wemmick, ele há de lhe servir vinho, e vinho do bom. Eu vou
lhe servir ponche, um ponche nada mau. E agora vou lhe dizer uma coisa.
Quando for jantar com o senhor Jaggers, observe a empregada dele.
Vou ver alguma coisa de muito incomum?
Bem, disse Wemmick, o senhor vai ver uma fera selvagem domada.
Nada de muito incomum, o senhor dirá. E eu lhe respondo: depende do grau de
ferocidade original da fera, e do grau de domesticação. Sua opinião dos poderes
do senhor Jaggers será reforçada. Preste bem atenção.
Afirmei que o faria, com todo o interesse e toda a curiosidade que essa
preparação despertara em mim. Enquanto eu me despedia, ele me perguntou se
eu gostaria de dedicar cinco minutos à observação do sr. Jaggers em ação.
Por mais de um motivo, sendo um dos mais importantes o fato de eu não
entender muito bem que espécie de ação o sr. Jaggers estaria praticando,
respondi na afirmativa. Mergulhamos na City, e subimos à tona num juizado de
causas criminais apinhado de gente, onde um parente de sangue (no sentido
criminoso da palavra) do falecido que gostava de broches sofisticados estava
diante do tribunal, mastigando alguma coisa, visivelmente contrafeito; enquanto
meu tutor interrogava uma mulher não sei se testemunha sua ou se da outra
parte infundindo nela, e nos magistrados, e em todos os outros presentes, um
medo terrível. Se alguém, fosse quem fosse, pronunciasse uma palavra que lhe
causasse desagrado, na mesma hora ele solicitava que ela fosse registrada. Se
alguém não admitia algo, ele dizia: Ainda vou arrancá-lo do senhor!. E se
alguém admitia algo, ele dizia: Agora o peguei!. Os magistrados tremiam cada
vez que ele mordia o dedo. Os ladrões e os perseguidores de ladrões, fascinados e
temerosos, atentavam para cada palavra sua, e encolhiam-se quando um fio de
suas sobrancelhas apontava na direção deles. De que lado ele estava, não
consegui descobrir, pois parecia impor a mesma opressão a todo o tribunal; só sei
que, quando saí de cena na ponta dos pés, ele não estava do lado da magistratura,
pois as pernas do velho cavalheiro que presidia a sessão estavam tremendo
convulsivamente debaixo da mesa, por estar o sr. Jaggers denunciando sua
conduta na condição de representante da lei e da justiça britânicas naquele
tribunal naquele dia.
6
Bentley Drummle, sujeito tão rabugento que encarava um livro como se o autor
o houvesse ofendido, encarava os conhecidos de modo igualmente desagradável.
Pesado em matéria de corpo, movimentos e entendimento na tez preguiçosa
do rosto, e na língua grande e desajeitada que parecia vagar em sua boca tal
como ele próprio vagava pela sala era ocioso, orgulhoso, avarento, reservado
e desconfiado. Vinha de uma família rica de Somersetshire, a qual acalentara
aquele composto de qualidades até fazer a descoberta de que ele se transformara
num adulto e num idiota. Assim, Bentley Drummle veio ficar com o sr. Pocket
quando já tinha uma cabeça mais de altura que aquele cavalheiro, e uma cabeça
doze vezes mais dura do que as cabeças da maioria dos cavalheiros.
Startop fora estragado por uma mãe fraca e mantido em casa quando
deveria estar na escola, porém tinha por ela uma devoção desmedida. Suas
feições eram de uma delicadeza feminina, e eram como você pode ver,
embora nunca a tenha visto, disse-me Herbert exatamente iguais às da mãe.
Era natural que eu simpatizasse com ele mais do que com Drummle, e que,
mesmo nas primeiras tardes em que saímos de barco, eu e ele voltássemos para
casa com nossos barcos lado a lado, conversando, enquanto Bentley Drummle
vinha em nossa cola, sozinho, à sombra dos barrancos elevados e em meio aos
juncos. Ele sempre se aproximava da costa vagarosamente, como uma criatura
anfíbia sem jeito; e sempre me lembro dele vindo atrás de nós na escuridão ou
pelo remanso, enquanto nossos dois barcos rasgavam o poente ou o luar no meio
do rio.
Herbert era meu companheiro íntimo e amigo. Dei-lhe de presente metade
de meu barco em sociedade, e assim com frequência ele vinha a Hammersmith;
sendo inquilino de metade de seus aposentos, eu ia muito a Londres.
Costumávamos caminhar de um dos lugares ao outro a qualquer hora do dia ou
da noite. Tenho um certo afeto pela estrada ainda hoje (embora a estrada não
seja mais tão agradável quanto era naquele tempo), um afeto que se formou na
juventude, época impressionável, de pouca experiência e muita esperança.
Quando eu já estava vivendo um ou dois meses com a família do sr. Pocket,
o sr. Camillo e a sra. Camilla apareceram. Georgiana, a qual eu vira na casa da
sra. Havisham na mesma ocasião, também veio. Era uma prima uma
solteirona dispéptica, que chamava sua rigidez de religião, e seu fígado de amor.
Essas pessoas me odiavam com o ódio da cupidez e da decepção. Como era de
se esperar, bajulavam-me agora que eu estava próspero da maneira mais vil.
Em relação ao sr. Pocket, uma criança grande incapaz de reconhecer seus
próprios interesses, eles demonstravam a tolerância complacente que eu já os
ouvira manifestar. Quanto à sra. Pocket, desprezavam-na; porém admitiam que a
pobre criatura sofrera uma terrível decepção em sua vida, pois tal admissão
refletia uma luz pálida sobre eles.
Tal foi o meio em que me instalei, e onde passei a cuidar da minha própria
educação. Não demorei para adquirir hábitos caros, e comecei a gastar quantias
que, em poucos meses, me pareceriam fabulosas; mal ou bem, no entanto,
apeguei-me a meus livros. Nisso não havia nenhum mérito, apenas bom senso
suficiente para perceber minhas deficiências. Com a ajuda do sr. Pocket e de
Herbert, fiz progressos rápidos; e, sempre com um ou o outro a meu lado para
me dar a mãozinha de que eu necessitava e tirar os obstáculos da minha frente,
eu teria que ser um idiota tão completo quanto Drummle para fazer menos do
que fiz.
Eu não via o sr. Wemmick há algumas semanas quando me ocorreu a ideia
de escrever-lhe um bilhete propondo acompanhá-lo até sua casa numa
determinada tarde. Respondeu-me ele que seria um grande prazer, e que me
esperaria no escritório às seis horas. Para lá fui, e lá o encontrei, jogando para
trás das costas a chave do cofre enquanto o relógio dava as horas.
O senhor estava pensando em ir a pé até Walworth?, perguntou-me.
Certamente, respondi, se o senhor aprovar a ideia.
Com entusiasmo, foi o que ele me disse, pois passei o dia inteiro com as
pernas debaixo da escrivaninha, e esticá-las me fará bem. Vou lhe dizer o que
tenho para a ceia, senhor Pip. Tenho carne cozida preparada em casa e um
frango assado frio esse foi comprado. Creio que está macio, pois o dono da
loja foi jurado num dos nossos casos recentes, e não lhe demos muito trabalho.
Lembrei o ocorrido a ele quando comprei um frango, dizendo: Melhor escolher
um que seja bom, meu velho, porque, se quiséssemos obrigá-lo a ficar no
tribunal mais um ou dois dias, poderíamos fazê-lo com facilidade. Ele
respondeu: Vou lhe dar de presente o melhor frango da loja. Aceitei, é claro.
Pois é um valor e é portátil. O senhor não tem nada contra um pai idoso, eu
espero?
Realmente, pensei que continuasse falando sobre o frango, até que ele
acrescentou: Pois tenho um pai idoso morando comigo. Dei a resposta que a
polidez requeria.
Então o senhor ainda não jantou com o senhor Jaggers?, ele insistiu,
enquanto caminhávamos.
Ainda não.
Ele me disse isso hoje à tarde, quando soube que o senhor viria encontrar-se
comigo. Imagino que ele lhe fará um convite amanhã. Vai convidar os seus
amigos, também. São três, não é?
Embora não fosse meu costume incluir Drummle entre meus amigos mais
próximos, respondi que sim.
Pois bem, ele vai convidar todo o bando, uma palavra que não me pareceu
um elogio, e o que ele der a vocês será de qualidade. Não espere variedade, e
sim excelência. E há mais uma coisa engraçada a respeito da casa dele,
continuou Wemmick, após uma pausa breve, como se desse prosseguimento ao
comentário a respeito da empregada; ele nunca deixa que tranquem nenhuma
porta ou janela à noite.
E nunca é roubado?
Justamente!, retrucou Wemmick. Ele diz, e o diz em público: Quero ver
quem é homem capaz de roubar a minha casa. Por tudo que é mais sagrado, já o
ouvi dizer isso umas cem vezes, e dizer isso a mais de um gatuno aqui no
escritório. Você sabe onde eu moro; lá não há tranca em lugar algum; por que
não arrisca alguma coisa comigo? Venha; então não posso tentá-lo? Nenhum
deles, meu senhor, tem coragem de arriscar, de jeito nenhum.
Eles têm tanto medo dele assim?, perguntei.
Medo dele, disse Wemmick. Ora se eles têm medo dele! E além de
desafiá-los, ele também é muito esperto. Nada de prata, meu senhor. Não há
talher lá que não seja de metal Britânia.1
Assim, eles não ganhariam muito, observei, mesmo se
Ah! Mas ele ganharia muito, interrompeu Wemmick, e eles sabem disso.
Ele ganharia a vida deles, de dezenas deles. Quantos quisesse ganhar. E é
impossível saber o que ele não seria capaz de obter, se realmente resolvesse
obtê-lo.
Eu estava começando a meditar sobre a grandeza de meu tutor quando
Wemmick comentou:
Quanto à ausência de prata, e isso é apenas a esperteza natural dele, você
sabe. É tão profunda quanto deve ser. Olhe para a corrente do relógio dele. A
corrente é de verdade.
É bem pesada, comentei.
Pesada?, repetiu Wemmick. E como! E o relógio dele é de ouro, um
relógio de repetição,2 e vale cem libras, cem libras por baixo. Senhor Pip, deve
haver uns setecentos ladrões nesta cidade que sabem muito bem desse relógio;
não há entre eles um homem, mulher ou criança que não seja capaz de
identificar o menor elo daquela corrente, e que não a deixaria cair no chão como
se estivesse em brasa, se alguém o levar a pegá-la, por meio de algum embuste.
De início com essa conversa, e depois com assuntos mais gerais, o sr.
Wemmick e eu matávamos o tempo enquanto caminhávamos, até que ele me
deu a entender que havíamos chegado ao bairro de Walworth.
Parecia ser um emaranhado de becos, valas e jardins pequenos, dando-lhe
um aspecto de recolhimento um tanto monótono. A casa de Wemmick era uma
casinha de madeira cercada de canteiros de jardim, e seu telhado era recortado
e pintado como se fosse uma bateria de artilharia.
Eu mesmo que fiz, disse Wemmick. Ficou bonito, não é?
Desmanchei-me em elogios. Creio que era a menor casa que eu jamais vira;
com as mais estranhas janelas góticas (em sua maioria esmagadora, imitação de
gótico) e uma porta também gótica, tão pequena que era quase impossível passar
por ela.
Esse mastro de bandeira é de verdade, está vendo?, disse Wemmick. E
aos domingos eu hasteio uma bandeira de verdade. Olha aqui. Depois que
atravesso essa ponte, eu a recolho veja e assim fico isolado.
A ponte era uma tábua, e ela cruzava uma vala de pouco mais de um metro
de largura e pouco mais de meio metro de profundidade. Mas era muito
agradável ver com que orgulho ele levantava a prancha e a prendia; sorrindo
enquanto o fazia, com um prazer real, e não apenas de modo mecânico.
Às nove horas da noite, todas as noites, hora de Greenwich,3 disse
Wemmick, a arma dispara. Lá está ela, está vendo? E quando o senhor ouvi-la
disparando, creio que vai dizer que é mesmo Poderosa.
A peça de artilharia a que ele se referia estava montada num outro forte,
construído com treliças. Protegia-a das intempéries uma engenhosa geringonça
de lona que lembrava um guarda-chuva.
Então, nos fundos, disse Wemmick, onde ninguém vê, pra que a ideia de
uma fortificação não seja comprometida pois pra mim é uma questão de
princípios, se a pessoa tem uma ideia, há que pô-la em prática e levá-la adiante
, não sei se o senhor é da mesma opinião
Respondi que era, sem dúvida.
Nos fundos, tem um porco, e galinhas e coelhos; então, eu mesmo faço
uma estufa fria,4 o senhor sabe, e planto pepinos; e no jantar o senhor vai me
dizer o que acha da minha salada. Assim, disse Wemmick, sorrindo de novo,
porém sério ao mesmo tempo, sacudindo a cabeça, se o senhor imaginar essa
casinha sitiada, em matéria de provisões ela conseguiria se sustentar por um bom
tempo.
Em seguida, conduziu-me a um pavilhão a pouco mais de dez metros dali,
mas ao qual se chegava por um caminho tão engenhosamente tortuoso que se
levava um tempo considerável para atingir o destino; e nesse refúgio nossos
copos já estavam preparados. O ponche esfriava num laguinho ornamental, à
margem do qual se elevava o pavilhão. Esse espelho dágua (com uma ilha no
meio que poderia servir de salada para nosso jantar) era de forma circular, e
Wemmick construíra uma fonte nele, a qual, quando se fazia funcionar um
pequeno moinho e se desarrolhava um cano, esguichava água suficiente para
molhar as costas da mão.
Sou meu próprio engenheiro, carpinteiro, encanador e jardineiro, meu
próprio pau pra toda a obra, disse Wemmick, quando o elogiei. Bom, isso é
uma coisa boa, o senhor sabe. Serve para afastar as teias de aranha de Newgate,
e agrada o idoso. O senhor não se incomodaria se eu o apresentasse de imediato
ao idoso, não é? Não seria um constrangimento para o senhor?
Manifestei a disposição que de fato sentia, e entramos no castelo. Lá dentro
encontramos, sentado ao lado da lareira, um homem muito velho com um
casaco de flanela: limpo, alegre, bem instalado e bem cuidado, porém
completamente surdo.
Bem, pai idoso, disse Wemmick, apertando-lhe a mão de modo cordial e
jocoso. Como vai o senhor?
Bem, John; bem!, respondeu o velho.
Este aqui é o senhor Pip, pai idoso, disse Wemmick, e é uma pena o
senhor não poder ouvir o nome dele. Acene bastante com a cabeça para ele,
senhor Pip; é disso que ele gosta. Pode acenar bastante, se o senhor não se
incomoda, como quem pisca o olho!
Uma beleza, esta casa do meu filho, meu senhor, disse o velho, enquanto
eu balançava a cabeça com toda força. É um lugar muito agradável, meu
senhor. Este lugar e as coisas tão bonitas construídas nele deviam ser mantidas
pela nação, depois que meu filho se for, para o desfrute da população.
O senhor está feliz como o filho do padre, não é, idoso?, disse Wemmick,
contemplando o velho, com um toque real de suavidade em seu rosto duro; vou
acenar para o senhor, acenando com a cabeça de modo tremendamente
enfático, e mais uma vez, repetindo o gesto com uma ênfase maior ainda; o
senhor gosta, não gosta? Se não estiver cansado, senhor Pip embora eu saiba
que é cansativo para os desconhecidos podia acenar mais uma vez? O senhor
não imagina o quanto ele gosta.
Acenei para ele mais algumas vezes, e o velho ficou felicíssimo. Deixamo-lo
levantando-se para dar comida às galinhas, e fomos tomar nosso ponche no
pavilhão; lá Wemmick me disse, enquanto fumava seu cachimbo, que levara
muitos anos para conseguir fazer com que sua propriedade atingisse seu atual
estado de perfeição.
A propriedade é sua, senhor Wemmick?
É, sim, respondeu Wemmick. Consegui adquiri-la, pouco a pouco. É
propriedade alodial, ora se não é!
Não diga! Espero que o senhor Jaggers a admire!
Nunca a viu, respondeu Wemmick. Nunca ouviu falar nela. Nunca viu o
idoso. Nunca ouviu falar nele. Não; o escritório é uma coisa, e a vida privada é
outra. Quando vou pro escritório, deixo o castelo pra trás, e quando venho pro
castelo, deixo o escritório pra trás. Se não for desagradável pro senhor, peço-lhe
que faça o mesmo. Não gostaria que isso aqui fosse mencionado em caráter
profissional.
Naturalmente, percebi que minha boa-fé estava envolvida na observância
desse pedido. Como o ponche era muito gostoso, ficamos a beber e conversar até
quase as nove horas. Quase na hora da salva, disse então Wemmick, largando
o cachimbo. É a delícia do idoso.
Voltando para dentro do castelo, encontramos o idoso aquecendo o atiçador
da lareira, os olhos cheios de expectativa, como preparativo para o desempenho
dessa grande cerimônia diária. Wemmick ficou com o relógio na mão, até
chegar o momento em que ele retirava o atiçador em brasa da mão do idoso e ia
para a bateria. Ele o pegou e saiu, e pouco depois a Poderosa disparou, com uma
explosão que fez a caixinha frágil daquela casinha estremecer como se ela fosse
cair aos pedaços, e fez tinirem todos os copos e xícaras que havia dentro dela. Ao
ouvir o som, o idoso o qual, creio-o eu, teria sido lançado de sua poltrona se
não estivesse agarrado a ela gritou, exultante: Ela disparou! Eu ouvi!,
enquanto eu acenava para ele até, sem exagero, não conseguir enxergá-lo mais.
No intervalo entre essa hora e o jantar, Wemmick exibiu-me sua coleção de
curiosidades. Em sua maioria, as peças eram de natureza criminosa; lá estavam
a caneta com que fora perpetrada uma célebre falsificação, uma ou duas
navalhas de distinção, vários cachos de cabelo e várias confissões manuscritas
compostas após a condenação às quais o sr. Wemmick atribuía valor em
particular por serem, para citar suas exatas palavras, todas elas mentirosas, meu
senhor. Estavam dispostas, de modo atraente, em meio a diversos pequenos
espécimes de porcelana e vidro, vários objetos engenhosos feitos pelo
proprietário do museu e alguns calcadores de fumo5 entalhados pelo idoso. Todas
essas peças ficavam em exposição naquele cômodo do castelo a que eu fora
conduzido ao entrar nele, e que funcionava não apenas como sala de estar geral
mas também como cozinha, a julgar pela presença de uma caçarola junto à
lareira, e um anel de latão acima do fogo feito para nele pendurar-se um espeto
giratório.6
Uma menina bem asseada punha a mesa; era ela quem cuidava do idoso
durante o dia. Depois que ela estendeu a toalha de mesa, a ponte foi baixada para
a menina ir embora, e ela se foi. O jantar foi excelente; e embora o castelo fosse
muito sujeito ao caruncho, o que lhe dava um gosto de noz estragada, e embora o
porco pudesse estar mais distante da sala, fiquei muito satisfeito com a refeição.
Também não me desagradou meu quartinho no torreão, se bem que era tão fino
o teto que me separava do mastro da bandeira que me dava a impressão de ser
eu obrigado a equilibrá-lo na minha testa a noite toda.
Wemmick levantou-se muito cedo, e creio tê-lo ouvido limpando minhas
botas. Depois disso, foi cuidar do jardim, e de minha janela gótica vi que ele
fingia atribuir tarefas ao idoso, acenando para ele com extrema dedicação.
Nosso desjejum foi tão bom quanto a ceia, e às oito e meia em ponto partimos
para Little Britain. Enquanto caminhávamos, pouco a pouco Wemmick foi
ficando mais seco e mais duro, e sua boca voltou a ficar tensa, reduzindo-se à
condição de fenda de caixa de correio. Por fim, quando chegamos a seu
escritório e ele tirou a chave do colarinho do casaco, Wemmick parecia não ter
qualquer consciência de sua propriedade em Walworth, como se o castelo, e a
ponte levadiça, e o pavilhão, e o lago, e a fonte, e o idoso, tivessem todos sido
lançados ao espaço pelo último tiro da Poderosa.
7
Tal como fora previsto por Wemmick, logo tive oportunidade de comparar a
moradia de meu tutor com a de seu guarda-livros e empregado. Meu tutor estava
em seu gabinete, lavando as mãos com seu sabonete perfumado, quando entrei
no escritório vindo de Walworth; ele chamou-me e dirigiu a mim e a meus
amigos o convite que Wemmick já me havia preparado para receber. Nada de
cerimônias, estipulou ele, e nada de traje a rigor, e pode ser amanhã.
Perguntei-lhe aonde deveríamos ir (pois eu não fazia ideia de onde ele morava),
e creio que foi sua relutância em geral a atender qualquer pedido que o levou a
responder: Venham aqui, que eu os levo para casa comigo. Aproveito esta
oportunidade para comentar que ele se lavava de seus clientes como se fosse um
cirurgião ou um dentista. Tinha em seu gabinete um armário adaptado para esse
fim, que cheirava a sabonete perfumado como se fosse uma perfumaria. Nele
havia uma toalha rolante de tamanho extraordinário adaptada do lado de dentro
da porta, e ele lavava as mãos e as enxugava e secava nessa toalha, sempre que
vinha do tribunal de causas criminais ou despachava um cliente em seu gabinete.
Quando eu e meus amigos chegamos a seu gabinete às seis da tarde do dia
seguinte, ele parecia estar envolvido num caso mais tenebroso do que de
costume, pois o encontramos com a cabeça enfiada nesse armário, lavando não
apenas as mãos mas também o rosto, e gargarejando. Mesmo depois de fazer
tudo isso, e dar uma volta completa na toalha rolante, tirou do bolso um canivete
e raspou debaixo das unhas os últimos vestígios do caso antes de vestir o paletó.
Lá fora havia pessoas à espreita como sempre, quando saímos para a rua,
pessoas que estavam claramente ansiosas para falar com ele; mas havia algo de
tão conclusivo no halo de sabonete perfumado em torno de sua presença que elas
desistiram de abordá-lo naquele dia. Enquanto caminhávamos em direção ao
oeste, ele foi reconhecido várias vezes por rostos na multidão, e sempre que isso
acontecia ele falava mais alto comigo; mas jamais reconhecia ninguém, nem
dava atenção a ninguém que o reconhecesse.
Levou-nos à Gerrard-street, no Soho, até uma casa no lado sul da rua. Uma
casa um tanto imponente, porém muito precisada de uma demão de tinta, e com
janelas sujas. Ele tirou do bolso a chave e abriu a porta, e todos nós entramos
num saguão de pedra, nu, escuro e pouco utilizado. Daí subimos uma escada
parda escura e chegamos a uma série de três aposentos pardos e escuros no
andar de cima. Nas almofadas das portas havia grinaldas entalhadas na madeira,
e quando ele se colocou entre elas dando-nos as boas-vindas, pensei na espécie
de laços em que aquelas formas me faziam pensar.
O jantar foi servido no melhor desses aposentos; o segundo era o quarto de
vestir; o terceiro, o quarto de dormir. Ele nos disse que alugava a casa toda, mas
quase nunca usava os outros cômodos que não estávamos vendo. A mesa era
farta não havia prata, é claro e ao lado de sua cadeira ficava um aparador
móvel avantajado, com uma variedade de garrafas e quatro pratos de frutas para
a sobremesa. Percebi que, durante toda a refeição, ele mantinha tudo à mão, e
distribuía tudo ele próprio.
Havia uma estante no recinto; vi, pelas lombadas, que eram obras sobre
direito probatório, direito penal, biografias de criminosos, processos, leis e coisas
semelhantes. Os móveis eram todos muito sólidos e bons, tal como a corrente de
seu relógio. Tinham, porém, um aspecto oficial, e não havia nada à vista que
fosse puramente ornamental. Num canto havia uma mesinha cheia de papéis
com um abajur: pelo visto, ele parecia trazer o escritório para casa também sob
esse aspecto, e dedicar-se ao trabalho à noite.
Como até então mal vira meus três companheiros pois eu e ele viéramos
caminhando lado a lado o sr. Jaggers plantou-se no tapete diante da lareira,
depois de tocar o sino, e ficou a perscrutá-los atentamente. Para minha surpresa,
demonstrou de imediato estar interessado principalmente, se não exclusivamente,
em Drummle.
Pip, disse ele, pondo a manzorra no meu ombro e levando-me até a
janela. Não sei distinguir um do outro. Quem é o Aranha?
Aranha?, indaguei.
O sujeito de pele manchada, grandalhão, fechado.
É Bentley Drummle, respondi; o de rosto delicado é Startop.
Sem dar a menor importância ao de rosto delicado, ele me disse: Então o
nome dele é Bentley Drummle? Gostei da cara do sujeito.
E pôs-se na mesma hora a conversar com Drummle; não se incomodou nem
um pouco com o jeito do outro de responder de modo pesado e lacônico, porém
esse fato parecia estimulá-lo a arrancar palavras dele. Eu estava a olhar para os
dois quando se colocou entre mim e eles a empregada, pondo sobre a mesa a
primeira travessa.
Era uma mulher de cerca de quarenta anos, pareceu-me mas é possível
que eu a tenha tomado por mais jovem do que era. Um tanto alta, um corpo
esguio e ágil, extremamente pálida, com olhos grandes de cor desmaiada, e uma
abundância de cabelos lisos. Não sei dizer se alguma doença do coração fazia
com que seus lábios ficassem entreabertos como se ela estivesse ofegante, e
emprestava a seu rosto uma curiosa expressão de alarme e agitação; mas sei que
eu já assistira a Macbeth no teatro, uma ou duas noites antes, e que seu rosto me
parecia distorcido pelo fogo no ar, tal como os rostos que eu vira elevando-se do
caldeirão das bruxas.1
Ela pôs sobre a mesa a travessa, tocou meu tutor de leve no braço com o
dedo para avisá-lo de que o jantar estava servido e desapareceu. Sentamo-nos
em torno da mesa redonda, e meu tutor fez Drummle instalar-se num de seus
lados, colocando Startop do outro lado. A empregada pusera sobre a mesa um
peixe finíssimo, em seguida foi-nos servido um carneiro de igual qualidade, e por
fim uma ave de igual qualidade. Os molhos, os vinhos, todos os acessórios de que
necessitávamos, tudo do bom e do melhor, eram distribuídos por nosso anfitrião,
que os retirava da despensa móvel a seu lado; e quando completavam o circuito
da mesa, ele os recolocava no lugar. Do mesmo modo, entregava-nos pratos e
talheres limpos para cada prato, e jogava os usados em duas cestas que ficavam
ao lado de sua cadeira, no chão. Não apareceu nenhum outro criado além da
empregada. Ela trazia cada prato; e eu sempre via em seu rosto um rosto saído
do caldeirão. Anos depois, obtive uma imagem terrível daquela mulher, fazendo
com que um rosto cuja única semelhança com o dela era a longa cabeleira lisa
passasse por trás de um recipiente com álcool em chamas numa sala escura.
Tendo sido levado a prestar atenção na empregada, tanto por sua própria
aparência surpreendente quanto pela recomendação de Wemmick, observei que
sempre que estava na sala ela mantinha os olhos atentos voltados para meu tutor,
e que retirava as mãos de qualquer travessa que punha diante dele, hesitante,
como se temesse que ele a chamasse de volta, e quisesse que ele lhe dirigisse a
palavra quando ela estava presente, se tivesse algo a dizer. Imaginei perceber
que ele tinha consciência desse fato, e que fazia questão de mantê-la sempre em
suspense.
O jantar foi alegre, e, embora meu tutor parecesse acompanhar os assuntos
que surgiam em vez de propô-los, eu sabia que ele estava arrancando de nós as
nossas maiores fraquezas. Quanto a mim, dei-me conta de estar manifestando
minha tendência a fazer gastos excessivos, e a tratar Herbert com
condescendência, e a gabar-me de meu futuro promissor, antes mesmo de me
dar conta de que tinha aberto os lábios. O mesmo se deu com cada um de nós,
mas principalmente com Drummle: ele foi levado a manifestar sua tendência a
fechar-se de modo ressentido e suspeito diante dos outros antes mesmo que a
travessa do peixe fosse retirada da mesa.
Não foi nesse momento, e sim quando já estávamos no queijo, que a
conversa recaiu sobre nossos feitos aquáticos, e que Drummle foi ridicularizado
por vir remando atrás de nós daquele seu jeito lerdo e anfíbio. Ao ouvir isso,
Drummle disse a nosso anfitrião que preferia o quarto à nossa companhia, e que
como remador ele era um mestre em relação a nós, e que em matéria de força
ele podia jogar-nos para o alto como se fôssemos palha. De algum modo
invisível, meu tutor conseguiu levá-lo quase à ferocidade a partir dessa
insignificância; e Drummle chegou a desnudar o braço e contraí-lo para exibir os
músculos, e todos nós começamos a fazer o mesmo do modo mais ridículo.
Ora, a essa altura a empregada estava tirando a mesa; meu tutor, sem dar
atenção a ela, com o rosto virado para o outro lado, estava encostado em sua
cadeira, mordendo o lado do dedo indicador e demonstrando um interesse por
Drummle que, para mim, parecia quase inexplicável. De súbito, pousou a
manzorra sobre a mão da empregada como se fosse uma armadilha, no
momento em que a mulher tinha a mão aberta sobre a mesa. Fez isso de modo
tão súbito e engenhoso que todos nós interrompemos nossa tola exibição.
Já que o assunto é força, disse o sr. Jaggers, vou mostrar a vocês o que é
um punho. Molly , mostra a eles o teu punho.
A mão da empregada estava presa sobre a mesa, porém ela já havia
colocado a outra atrás da cintura. Patrão, disse ela, em voz baixa, com os olhos
fixos nele, atentos, implorando. Não!
Vou mostrar a vocês o que é um punho, repetiu o sr. Jaggers, com uma
determinação irremovível. Molly , mostra a eles o teu punho.
Patrão, ela murmurou outra vez. Por favor!
Molly , disse o sr. Jaggers, sem olhar para ela, porém fixando a vista de
modo obstinado no lado oposto da sala, mostra a eles os teus dois punhos.
Mostra. Vamos!
Ele tirou sua mão de cima da dela, e virou-lhe o punho para cima sobre a
mesa. A empregada tirou a outra mão de trás das costas e exibiu ambas lado a
lado. A segunda mão estava muito desfigurada cheia de sulcos e cicatrizes
profundas de um lado ao outro. Ao exibir as duas mãos, ela desviou o olhar do sr.
Jaggers e voltou-o, atenta, para cada um de nós, um por um.
São mãos poderosas, disse o sr. Jaggers, percorrendo friamente os tendões
com o dedo. Pouquíssimos homens têm punhos fortes como os dessa mulher. É
notável a força preensil dessas mãos. Já tive oportunidade de examinar muitas
mãos; mas nunca vi tão fortes quanto estas, nem em homens, nem em
mulheres.
Enquanto o sr. Jaggers dizia essas palavras num tom crítico e tranquilo, a
empregada continuava a olhar para cada um de nós sucessivamente. Tão logo
seu patrão se calou, ela voltou a olhar para ele. Está bem, Molly , disse o sr.
Jaggers, com um ligeiro aceno de cabeça; já foste admirada; podes ir. Ela
retirou as mãos da mesa e saiu da sala, e o sr. Jaggers, pegando na despensa
móvel as garrafas, encheu sua taça e passou o vinho.
Às nove e meia, senhores, disse ele, temos que nos recolher. Por favor,
aproveitem da melhor maneira seu tempo. Foi uma satisfação vê-los a todos.
Senhor Drummle, a sua saúde.
Se seu objetivo ao destacar Drummle fora atiçá-lo ainda mais, seu sucesso
foi absoluto. Com um mau humor triunfal, Drummle manifestou sua má opinião
de todos nós, tornando-se cada vez mais ofensivo, até ficar realmente intolerável.
Em cada uma das etapas desse processo, o sr. Jaggers o observava com o
mesmo interesse estranho. Era como se Drummle desse mais sabor ao vinho do
sr. Jaggers.
Com nossa indiscrição juvenil, creio que bebemos demais, e sei que falamos
demais. Ficamos particularmente indignados quando Drummle fez um
comentário grosseiro a respeito do modo como desperdiçávamos nosso dinheiro.
Isso me levou a observar, com mais zelo do que discrição, que era ingratidão de
sua parte dizer tal coisa, pois Startop lhe havia emprestado dinheiro na minha
presença cerca de uma semana antes.
Ora, retorquiu Drummle, ele vai ser pago.
Não estou dizendo o contrário, disse eu, mas esse fato talvez devesse
fazê-lo não nos criticar por gastarmos tanto dinheiro, eu diria.
O senhor diria!, exclamou Drummle. Ah, meu Deus!
Eu diria, prossegui, com intenção de ser muito severo, que o senhor não
emprestaria dinheiro a nenhum de nós, se lhe pedíssemos.
Tem razão, disse Drummle. Eu não emprestaria a vocês nem seis pence.
Eu não emprestaria seis pence a ninguém.
Nesse caso, me parece um tanto mesquinho pedir dinheiro emprestado, eu
diria.
O senhor diria, repetiu Drummle. Ah, meu Deus!
Isso era tão irritante ainda mais porque eu sentia que não conseguia nada
contra sua obtusidade carrancuda que prossegui, ignorando as tentativas de
Herbert no sentido de me conter:
Ora, senhor Drummle, já que estamos falando sobre isso, vou lhe dizer o
que se passou entre Herbert e mim, quando o senhor pegou aquele dinheiro
emprestado.
Eu não quero saber o que se passou entre Herbert e o senhor, rosnou
Drummle. E creio que acrescentou, num rosnado mais baixo, que nós dois
podíamos ir para o inferno.
Mas vou lhe dizer assim mesmo, insisti, querendo ou não. Dissemos, no
momento em que o senhor punha o dinheiro no bolso, muito satisfeito por tê-lo
conseguido, que o senhor parecia achar muita graça de ver que nós éramos
fracos o bastante para lhe fazer o empréstimo.
Drummle riu abertamente, e ficou rindo de nós, com as mãos nos bolsos e os
ombros redondos levantados: deixando bem claro que aquilo era verdade e que
ele nos desprezava a todos, por sermos um bando de idiotas.
Neste ponto Startop passou a dirigir-se a ele, ainda que de modo mais
delicado que eu, exortando-o a ser um pouco mais agradável. Sendo Startop um
rapaz animado e inteligente, e sendo Drummle exatamente o contrário, este
sempre guardava ressentimentos em relação àquele, vendo no outro uma afronta
pessoal dirigida a ele. Assim, deu-lhe uma resposta grosseira e estúpida, e Startop
tentou desviar o assunto dizendo algum gracejo que nos fez a todos rir. Encarando
esse pequeno sucesso como a maior afronta de todas, Drummle, sem qualquer
ameaça ou aviso, tirou as mãos dos bolsos, abaixou os ombros arredondados,
solou uma imprecação, pegou um copo grande e o teria jogado na cabeça de seu
adversário se nosso anfitrião com muita destreza não o tivesse agarrado num
momento em que ele o levantou com tal fim.
Senhores, disse o sr. Jaggers, pondo sobre a mesa o copo com um gesto
decidido e consultando o relógio de ouro, pendurado em sua corrente pesada,
lamento muitíssimo informar-lhes que são nove e meia.
Diante dessas palavras, todos nos levantamos para ir embora. Antes de
chegarmos à porta da rua, Startop já estava chamando Drummle meu velho,
como se nada houvesse acontecido. Mas meu velho não apenas não respondeu
como também se recusou a caminhar até Hammersmith pela mesma calçada
que ele; assim, Herbert e eu, que íamos ficar na cidade, vimos os dois
caminhando pela rua cada um de um lado; Startop à frente, e Drummle a uma
certa distância atrás, pelas sombras das casas, tal como fazia em seu barco.
Como a porta ainda não estava fechada, resolvi deixar Herbert a minha
espera por um momento e subi correndo para falar com meu tutor. Encontrei-o
em seu quarto de vestir, cercado por sua provisão de botas, já lavando suas mãos
de nós.
Disse-lhe que havia voltado para dizer que lamentava muito o incidente tão
desagradável que ocorrera, e que eu esperava que ele não pusesse a culpa em
mim.
Ora!, exclamou ele, jogando água no rosto e falando por entre as gotas
dágua, não foi nada, Pip. Mas gostei do tal do Aranha.
Havia se virado para mim e sacudia a cabeça, e bufava, enquanto se
enxugava.
Agrada-me que o senhor tenha gostado dele, retruquei; mas eu não
gosto.
Não, não, disse meu tutor; é bom não se envolver muito com ele.
Mantenha distância dele se puder. Mas eu gosto do sujeito, Pip; esse é um tipo
verdadeiro. Ora, se eu fosse vidente
Olhando por detrás da toalha, fixou meu olhar.
Mas não sou vidente, prosseguiu, afundando a cabeça na toalha e
enxugando as duas orelhas. Você sabe o que eu sou, não sabe? Boa noite, Pip.
Boa noite, senhor Jaggers.
Cerca de um mês depois desse incidente, expirou o prazo de residência do
Aranha com o sr. Pocket, e para grande alívio de todos na casa, menos da sra.
Pocket, ele voltou para a toca de sua família.
8
Meu caro sr. Pip:
Escrevo a pedido do sr. Gargery , para informá-lo de que ele vai amanhã
a Londres na companhia do sr. Wopsle, e gostaria de ter permissão de visitar
o senhor. Ele chegaria ao Barnards Hotel na manhã de terça às nove horas,
e pede que avise se essa hora não lhe for propícia. Sua pobre irmã está do
mesmo jeito que estava quando o senhor partiu. Falamos a seu respeito na
cozinha todas as noites, e queremos muito saber o que o senhor anda dizendo
e fazendo. Se eu estiver tomando uma liberdade excessiva, peço desculpas
em nome dos dias pobres de outrora. É tudo, caro sr. Pip, de
Sua criada obrigada, com afeto,
biddy .
P. S. Ele me pede com insistência que eu escreva grandes patuscadas.
Diz ele que o senhor há de compreender. Espero que para o senhor seja um
prazer vê-lo, e tenho certeza de que será, muito embora o senhor agora seja
um cavalheiro, pois seu coração sempre foi bom e ele é um homem muito
muito honrado. Li para ele toda essa carta, omitindo apenas essa última
frase, e ele insiste comigo que eu escreva de novo grandes patuscadas.
Essa carta me foi entregue pelo correio na manhã de segunda-feira, e assim
o encontro seria no dia seguinte. Deixem-me confessar exatamente com que
sentimentos eu aguardava a chegada de Joe.
Não com prazer, embora tantos vínculos me unissem a ele; não; com muita
perturbação, certa mortificação e uma intensa sensação de incongruência. Se eu
pudesse mantê-lo afastado pagando determinada quantia, certamente o teria
feito. O que mais me tranquilizava era saber que ele viria ao Barnards Inn, e não
a Hammersmith, e, por conseguinte, não teria contato com Bentley Drummle.
Não me incomodava que ele fosse visto por Herbert ou por seu pai, duas pessoas
que tinham meu respeito, porém desagradava-me muito a ideia de ele ser visto
por Drummle, que eu desdenhava. Assim é que, no decorrer de nossas vidas,
nossas maiores fraquezas e mesquinharias costumam ser motivadas pelas
pessoas que mais desprezamos.
Eu havia adquirido o hábito de viver reformando meus aposentos das
maneiras mais desnecessárias e impróprias, e muito me custavam esses embates
com o Barnards Inn. A essa altura, os aposentos já estavam muito diferentes do
que eram quando lá fui morar, e eu tinha a honra de ocupar algumas páginas de
destaque nos livros de um estofador da vizinhança. Nos últimos tempos, havia até
mesmo passado a empregar um rapaz de botas1 botas de cano alto de
quem se podia dizer que eu havia me tornado escravo. Pois, tendo criado o
monstro2 (a partir do refugo da família de minha lavadeira) e tendo-o vestido
com um paletó azul, um colete amarelo-canário, um lenço branco no pescoço,
calças creme e as botas já mencionadas, eu era obrigado a providenciar-lhe
alguma coisa para fazer e muita coisa para comer; e com essas duas horrendas
exigências ele atormentava minha vida.
Esse fantasma vingador recebeu ordem de apresentar-se para o trabalho às
oito da manhã de terça-feira no hall de entrada (um quadrado com sessenta
centímetros de lado, conforme a conta da lona3 para o soalho), e Herbert sugeriu
alguns itens para o desjejum que imaginava haveriam de agradar a Joe. Embora
eu me sentisse sinceramente agradecido por ele demonstrar tanto interesse e
consideração, uma estranha suspeita semi-induzida me levava a pensar que, se
Joe tivesse vindo visitar a ele, Herbert não seria tão expedito.
Entretanto, vim à cidade na noite de segunda a fim de me preparar para Joe,
e levantei-me cedo na manhã seguinte, e dei a aparência mais esplêndida
possível à sala de estar e à mesa de desjejum. Infelizmente, era uma manhã de
garoa, e nem mesmo um anjo teria conseguido ocultar o fato de que o Barnard
estava chorando lágrimas de fuligem do lado de fora da janela, como se fosse
um limpa-chaminés gigantesco, porém fraco.
À medida que se aproximava a hora, eu tinha vontade de fugir, porém o
vingador, obedecendo às ordens recebidas, estava no hall, e depois de algum
tempo ouvi Joe subindo a escada. Sabia que era ele, por seu jeito desajeitado de
subir as escadas suas botas de domingo eram sempre grandes demais para ele
e pelo tempo que levou para ler os nomes nos outros andares no decorrer de
sua ascensão. Quando por fim parou diante da porta, ouvi seu dedo a percorrer as
letras pintadas de meu nome, e depois ouvi claramente sua respiração no buraco
da fechadura. Finalmente, deu uma única batida fraca na porta, e Pepper era
esse o nome comprometedor* do rapaz vingador anunciou: O senhor
Gargery !. Pareceu-me que ele jamais ia terminar de limpar os pés no capacho,
e que seria necessário ir até lá para arrastá-lo para dentro, mas por fim ele
entrou.
Joe, como estás, Joe?
Pip, como está, Pip?
Com seu rosto bom e honesto brilhando, e o chapéu posto no chão entre nós,
tomou minhas duas mãos e ficou a sacudi-las para cima e para baixo, como se
eu fosse um novo modelo de bomba recém-patenteado.
É um prazer ver-te, Joe. Dá-me teu chapéu.
Mas Joe, pegando-o cuidadosamente com as duas mãos, como se fosse um
ninho cheio de ovos de pássaros, recusou-se a separar-se daquela sua
propriedade, e continuou em pé, falando por cima do chapéu de modo muito
desconfortável.
O cujo está tão crescido, disse Joe, e tão engordado, e cavalheirado, Joe
pensou um pouco antes de encontrar a palavra, que certamente há de ser uma
honra para o seu rei e o seu país.
E tu, Joe, estás muitíssimo bem.
Graças a Deus, disse Joe, não sou mais pior que ninguém. E a sua irmã,
ela não está mais pior do que já estava. E a Biddy, essa continua muito boa e
prestativa. E os amigo, nenhum não foi pra trás nem foi pra frente, não. Tirando
o Wopsle; esse aí piorou.
Todo esse tempo (enquanto as duas mãos continuavam segurando
cuidadosamente o ninho de passarinho), os olhos de Joe davam voltas e mais
voltas pela sala, e voltas e mais voltas pelo padrão de florzinha do meu roupão.
Piorou, Joe?
Ah, piorou, sim, disse Joe baixando a voz, largou da Igreja e deu de ser
ator. Pela cuja ideia de ser ator é que veio a Londres conjuntamente comigo. E
ele pediu, disse Joe, colocando o ninho debaixo do braço esquerdo por um
momento e procurando um ovo dentro dele com a mão direita, se não te for
incômodo, pra mim entregar isso.
Peguei o que Joe me deu, e verifiquei que era o programa amassado de um
pequeno teatro metropolitano, anunciando a primeira aparição, naquela exata
semana, do célebre amador provinciano de renome rosciano, cujo
incomparável desempenho nas mais elevadas passagens trágicas do nosso bardo
nacional4 recentemente causou tamanha sensação nos círculos dramáticos
locais.
E foste assistir o desempenho dele, Joe?, perguntei.
Fui, sim, respondeu Joe, com ênfase e solenidade.
E foi mesmo uma grande sensação?
Ora, disse Joe, até que jogaram umas casca de laranja.5 Inda mais na
hora que ele vê o fantasma. Se bem que eu pergunto se é coisa que se faça com
um homem de bom coração ficar se metendo entre ele e o fantasma, com
amém! Está certo que ele teve lá os seus pobrema e já foi da Igreja, disse Joe,
abaixando a voz e adotando um tom argumentativo e solidário, mas nem por
isso se pode fazer uma coisa dessa numa hora dessa. Quer dizer, se nem o
fantasma do pai dele pode falar com ele, então quem é que pode, o senhor não
acha? E o pior é que a roupa de luto dele é tão pequena que o peso das penas
pretas faz ela cair a toda hora, mesmo ele puxando pra cima o tempo todo.
Uma expressão de quem estava vendo um fantasma, surgida no rosto de Joe,
me informou que Herbert havia entrado no recinto. Assim, apresentei Joe a
Herbert, o qual lhe estendeu a mão, mas Joe recuou, agarrando-se a seu ninho de
passarinho.
Seu criado, senhor, disse Joe, o cujo eu espero que o senhor e o Pip
nesse momento, viu o vingador, que estava colocando torradas sobre a mesa, e
de tal modo manifestou a intenção de incorporar aquele jovem cavalheiro à
família que o fuzilei com o olhar, confundindo-o ainda mais quer dizer, os
dois cavalheiros presentes os cujos eu espero que esse lugar fechado não faz
mal pra saúde dos senhores? Porque essa estalage pode até ser muito boa, de
acordo com as opiniães londrinas, disse Joe, em tom confidencial, o que pode
até ser verdade; mas eu por mim é que não ia guardar nem o meu porco aqui
dentro se eu quisesse que ele ficasse bem gordinho e saudave e com um gosto
bem suave.
Tendo dado esse depoimento lisonjeiro com referência aos méritos de nossa
moradia, e tendo demonstrado sua tendência a me chamar de senhor, Joe, sendo
convidado a sentar-se à mesa, correu os olhos por toda a sala procurando um
lugar adequado em que deixar seu chapéu como se fossem muito poucas as
substâncias existentes na natureza que lhe podiam servir de local de repouso e,
por fim, colocou-o no canto mais distante do console da lareira, de onde ele
passou a cair de quando em quando.
O senhor toma chá ou café, senhor Gargery ?, perguntou Herbert, que
sempre presidia os desjejuns.
Obrigado, senhor, respondeu Joe, rígido dos pés à cabeça, eu tomo o que
o senhor mais preferir.
Que tal café?
Obrigado, senhor, disse Joe, claramente desanimado com essa
perspectiva, já que o senhor tem a bondade de escolher o café, não vou
contrariar suas opiniães. Mas o senhor não acha que esquenta um de pouco
demais?
Então chá, disse Herbert, servindo.
Nesse momento o chapéu de Joe caiu do console, e ele levantou-se da
cadeira num salto e recolocou-o exatamente no mesmo lugar. Como se a boa
educação exigisse que ele voltasse a cair em breve.
Quando o senhor chegou à cidade, senhor Gargery ?
Foi ontem à tarde?, disse Joe, após tossir atrás da mão, como se já tivesse
tido tempo de pegar coqueluche desde sua chegada. Não, não foi não. Foi, sim.
Foi. Foi ontem à tarde (com um ar que combinava sabedoria, alívio e absoluta
imparcialidade).
O senhor já viu alguma coisa de Londres?
Ah, vi, sim, senhor, disse Joe, Eu e o Wopsle fumo direto ver a Casa da
Graxa.6 Mas a gente achamos que era muito diferente da figura que aparece
naqueles cartaz vermelho que eles põe nas porta das loja; ou seja, acrescentou
Joe, didático, na figura é muito mais arquitequitequitônico.
Creio mesmo que Joe teria prolongado a palavra (o que aliás evoca em
minha mente muito bem algumas obras de arquitetura que conheço) até
transformá-la num verdadeiro estribilho, se sua atenção não tivesse sido
providencialmente atraída pelo chapéu, que estava quase caindo. De fato, essa
peça de vestuário exigia sua atenção constante, e uma presteza de olho e mão
não inferior à do jogador de críquete. Seu desempenho era extraordinário, e sua
destreza era imensa; ora corria e pegava o chapéu com jeito no chão; ora
limitava-se a pegá-lo em pleno ar no momento da queda, socando-o e
acariciando-o em vários pontos da sala, esfregando-o em diversos trechos do
papel de parede, até sentir que podia deixá-lo de lado sem perigo; por fim,
deixou-o cair na tigela de restos de chá, onde tomei a liberdade de pegá-lo.
Quanto ao colarinho da camisa e ao colarinho do casaco de Joe, eles
provocavam muita perplexidade eram ambos mistérios insolúveis. O que
levaria um homem a arranhar-se a tal ponto, para que pudesse considerar-se
bem vestido? Por que motivo ele julgaria necessário purificar-se pelo sofrimento
vestindo aqueles trajes de domingo? Além disso, Joe mergulhava em
inescrutáveis períodos de meditação, o garfo pousado a meio caminho entre o
prato e a boca; seus olhos se voltavam para as direções mais estranhas; ele era
acometido de notáveis acessos de tosse; por ficar muito afastado da mesa,
deixava cair mais comida do que conseguia levar a boca, e depois fingia que não
havia deixado cair nada; assim, fiquei profundamente animado quando Herbert
se despediu e foi para o trabalho.
Eu não tinha nem bom senso nem bons sentimentos o bastante para saber que
tudo aquilo era culpa minha, que se eu tivesse ficado mais à vontade com Joe,
Joe teria ficado mais à vontade comigo. Ele me inspirava impaciência e
irritação; e assim estava eu quando ele despejou brasas sobre minha cabeça.
Agora que nós dois estamos a sós, senhor
, começou Joe.
Joe, interrompi, implicante, que história é essa de me chamar de
senhor?
Joe olhou-me por um breve instante com algo que parecia um tímido
lampejo de recriminação. Por mais absurdo que fosse o lenço em torno de seu
pescoço, tanto quanto seus colarinhos, percebi que havia uma espécie de
dignidade em seu olhar.
Agora que nós dois estamos a sós, retomou Joe, e não tendo eu intenção
nem capacidade de ficar muito mais tempo, assim vou concluir ou pelo
menos começar dizendo o que foi que me fez ter esta honra. Pois, disse Joe,
com sua velha expressão de explicação lúcida, se meu único desejo não fosse
lhe ser útil, eu não teria tido a honra de repartilhar uma refeição na companhia
de dois cavalheiro.
Para não ter que ver aquele olhar outra vez, não me opus àquele tom de voz.
Pois bem, senhor, prosseguiu Joe, assim é que foi. Estava eu na Três
Barqueiros uma noite dessas, Pip sempre que ele se tornava afetuoso,
chamava-me Pip, e sempre que recaía na polidez, chamava-me senhor
quando chegou na carruage dele o Pumblechook. O cujo, disse Joe, tomando
uma direção diferente, tem vez que me deixa meio que aperreado, espalhando
pra tudo que é lado que ele foi grande amigo seu quando menino e que lhe tinha
por companheiro de brincadeira.
Bobagem. Tu é que eras meu companheiro, Joe.
O qual eu sempre achei que foi, Pip, disse Joe, com um movimento brusco
de cabeça, se bem que isso agora pouco importa, senhor. Pois bem, Pip; esse
mesmo cujo, com aquele jeito dele de fanfarrão, vem me procurar na Três
Barqueiros (um cachimbo e um caneco de cerveja é muita coisa na vida de um
trabalhador, senhor, sem excesso), e ele vira e diz assim: Joseph, a senhora
Havisham quer falar contigo.
A senhora Havisham, Joe?
Ela quer, foi o que disse o Pumblechook, falar contigo. E Joe ficou
olhando para o teto, revirando os olhos.
E aí, Joe? Continua, por favor.
No dia seguinte, senhor, olhando-me como se eu estivesse a uma grande
distância dele, depois de me lavar fui ter com a senhora A.
Senhora A., Joe? A senhora Havisham?
Foi como eu disse, senhor, respondeu Joe, com um ar de formalidade
legal, como se estivesse fazendo seu testamento. A senhora A., ou senhora
Havisham. A qual então falou como se segue: Senhor Gargery. O senhor
mantém correspondência com o senhor Pip?. Tendo recibo carta sua, eu pude
com veracidade dizer: Sim (quando eu me desposei com a senhora sua irmã, eu
disse sim; e quando eu respondi a sua amiga, Pip, eu disse sim). Nesse caso,
disse ela, peço que o senhor diga a ele que a Estella está de volta e gostaria de
vê-lo.
Senti que meu rosto pegava fogo enquanto eu olhava para Joe. Espero que
uma das causas desse fenômeno tenha sido minha consciência de que, se eu
soubesse qual o objetivo da visita de Joe, eu teria sido mais receptivo.
A Biddy , prosseguiu Joe, quando eu cheguei em casa e pedi que ela
escrevesse uma mensagem para si, ela meio que relutou. A Biddy falou assim:
Sei que ele vai gostar muito de ver-te em pessoa, é feriado, queres vê-lo, então
vai!. Falei e disse, senhor, concluiu Joe, levantando-se de sua cadeira, e, Pip,
espero que tu progredas e prospires a uma altitude cada vez maior.
Mas não estás indo embora agora, Joe?
Estou sim, respondeu Joe.
Mas voltas para o almoço, Joe?
Volto não, respondeu Joe.
Nossos olhares encontraram-se, e o senhor esvaiu-se daquele coração viril
no momento em que ele me estendeu a mão.
Pip, meu querido, a vida é feita de muitas separação soldada uma na outra,
por assim dizer, e um homem é ferreiro, o outro é funileiro, o outro é ourive, o
outro é caldeireiro. As separação ocorre sempre, e o jeito é enfrentar elas. Se
alguém tem culpa do que houve hoje, fui eu. Eu e tu não é pra se encontrar em
Londres; nem em nenhum outro lugar que não seja em particular, entre amigos.
Não é que eu seje orgulhoso, mas é que eu quero ficar bem, e nunca mais vais
me ver com uma roupa assim. Eu não fico bem com essa roupa. Não fico bem
fora da ferraria, da cozinha, nem longe do chaco. Não hás de pôr defeito em
mim se pensares em mim com minha roupa de ferreiro, com um martelo na
mão, ou até um cachimbo. Não hás de pôr defeito em mim, no caso de quereres
me visitar, quando puseres a cabeça na janela da ferraria e vires Joe, o ferreiro,
lá na bigorna de sempre, com o velho avental queimado, fazendo seu trabalho de
sempre. Eu sou muito bronco, mas acho que consegui dizer alguma coisa direito
finalmente. E assim, que deus te abençoe, meu querido Pip, meu velho
companheiro, deus te abençoe!
Eu não estava enganado quando imaginei haver uma dignidade simples nele.
Seu traje não era nenhum obstáculo para o sentido dessas palavras, como
também não haveria de ser para ele nas portas do Céu. Joe tocou-me de leve na
testa e saiu. Assim que consegui recuperar-me o bastante, saí às pressas atrás
dele e procurei-o nas ruas vizinhas, porém Joe já se fora.
* O nome comprometedor: A palavra pepper significa pimenta. (n. t.)
9
Estava claro que eu teria de ir à nossa cidadezinha no dia seguinte, e ainda sob o
primeiro impacto de meu arrependimento estava igualmente claro que eu teria
de ficar na casa de Joe. Porém, depois que reservei meu lugar ao lado do
cocheiro na diligência do dia seguinte e fui à casa do sr. Pocket e de lá voltei, não
estava mais de modo algum seguro a respeito do segundo ponto, e comecei a
inventar razões e desculpas para me hospedar no Javali Azul. Eu daria trabalho a
Joe se ficasse em sua casa; eu não era esperado por lá; e minha cama não estaria
pronta; eu estaria muito longe da sra. Havisham, e ela era exigente e talvez não
gostasse. Todos os outros trapaceiros do mundo não são nada em comparação
com aquele que frauda a si próprio, e foi desse modo que enganei a mim
mesmo. Sem dúvida, é uma coisa curiosa. Que eu inocentemente aceitasse uma
moeda forjada por alguém é até razoável; mas que eu, com conhecimento de
causa, desse valor à moeda falsa por mim mesmo fabricada! Um estranho
prestativo, com a desculpa de estar dobrando de modo compacto as minhas
cédulas por uma questão de segurança, fica com as cédulas e me entrega cascas
de nozes; mas em matéria de prestidigitação, como comparar o que ele faz com
o que eu faço, a dobrar eu mesmo as cascas de nozes e embolsá-las como
dinheiro!
Tendo decidido que ficaria no Javali Azul, fui tomado por uma terrível
indecisão quanto a levar ou não o vingador. Seduzia-me a imagem daquele
mercenário dispendioso a arejar suas botas em público no pátio do Javali Azul;
pensava com seriedade em levá-lo, com ar displicente, à oficina do alfaiate, para
confundir a atitude desrespeitosa do empregado de Trabb. Por outro lado, o
empregado de Trabb poderia insinuar-se na sua intimidade e dizer-lhe coisas; ou
então, afoito e desesperado como era, como bem eu sabia, seria capaz de apupálo
na High-street. Minha protetora, além disso, poderia ouvir falar dele e não
aprovar. Assim, pensando bem, decidi não levar o vingador.
Eu havia reservado um lugar na diligência da tarde, e como já estávamos no
inverno eu só chegaria duas ou três horas depois do anoitecer. Partiríamos da
Cross Key s às duas da tarde. Cheguei ao terminal um quarto de hora antes,
acompanhado pelo vingador se faz sentido usar essa expressão para me
referir a alguém que só me servia quando não havia outro jeito.
Naquela época, era comum transportar forçados até o estaleiro por
diligência. Como eu já ouvira dizer várias vezes que eles viajavam do lado de
fora, e mais de uma vez vira na estrada suas pernas, presas por grilhões,
pendendo do alto da carruagem, não me surpreendi quando Herbert,
encontrando-se comigo no terminal, disse-me que dois forçados viajariam
comigo. Porém eu tinha um motivo, já antigo, para hesitar toda vez que ouvia a
palavra forçado.
Você não se incomoda com eles, Handel?, disse Herbert.
Absolutamente!
Eu tinha a impressão de que você não gostava deles.
Não diria que gosto, como imagino que você também não goste. Mas não
me incomodo, não.
Olhe! Lá estão eles, disse Herbert, saindo do bar. Que cena mais
degradante e vil!
Imagino que haviam bebido junto com o guarda que vinha com eles, pois os
três saíram enxugando os lábios nas costas da mão. Os dois prisioneiros estavam
presos um ao outro por algemas, e levavam ferros nas pernas grilhões de um
tipo que eu conhecia bem. Usavam o traje que eu também conhecia bem. O
guarda estava munido de um par de pistolas, e tinha também um porrete grosso
debaixo do braço; mas mantinha boas relações com os prisioneiros, e parado ao
lado deles contemplava a preparação dos cavalos, com um ar que dava a
impressão de que os forçados eram uma exposição interessante que ainda não
fora inaugurada, da qual ele era o curador. Um dos homens era mais alto e
robusto que o outro, e parecia ter recebido, como era de se esperar, segundo a
lógica misteriosa do mundo dos prisioneiros e dos homens livres, roupas pequenas
demais para ele. Seus braços e pernas pareciam grandes almofadas de alfinetes,
e seu traje o disfarçava de modo absurdo; mas reconheci seu olho semicerrado
de imediato. Lá estava o homem que eu vira sentado no banco da Três
Barqueiros Alegres numa noite de sábado, e que me atingira com uma arma
invisível!
Não foi difícil perceber que, até então, ele não me reconhecera; era como se
jamais me tivesse visto na vida. Olhou para mim de relance, avaliou com o olhar
a corrente de meu relógio; então cuspiu e disse alguma coisa ao outro forçado, e
os dois riram e viraram-se, com um estalido metálico das algemas que os uniam,
e passaram a olhar para outra coisa. Os números avantajados escritos em suas
costas, como se eles fossem portas de casas; sua aparência exterior esquálida e
grosseira, como se fossem animais inferiores; suas pernas presas com grilhões,
timidamente enfeitados com lenços; e o modo como todas as pessoas os olhavam
e mantinham-se afastadas deles tudo isso resultava (como dissera Herbert)
num espetáculo muito desagradável e degradante.
Mas isso não era o pior. Fomos informados de que toda a parte de trás da
diligência seria ocupada por uma família que estava se mudando de Londres, e
que não restavam outros lugares para os dois prisioneiros que não no banco da
frente, atrás do cocheiro. Ao ouvir isso, um cavalheiro colérico, que havia
reservado o quarto lugar naquele banco, teve um violento acesso de raiva, e disse
que era uma infração contratual obrigá-lo a viajar com aquela companhia
infame, que era venenoso e pernicioso e infame e vergonhoso e não sei que
mais. A essa altura a carruagem estava pronta e o cocheiro estava impaciente, e
os prisioneiros haviam se aproximado juntamente com o guarda e mais
aquele curioso odor de cataplasma de pão, baeta, estopa e pó de pedra1 que
sempre acompanha a presença de forçados.
Não se apoquente tanto assim, senhor, pediu o guarda, dirigindo-se ao
passageiro irritado. Eu fico sentado junto ao senhor. Eles ficam do outro lado.
Eles não vão incomodá-lo, senhor. Faça de conta que eles não estão lá.
E não ponha a culpa em mim, rosnou o forçado que eu havia reconhecido.
Eu é que não quero ir. Por mim, eu ficava aqui mesmo. Se alguém quiser, pode
ir no meu lugar.
Ou no meu, disse o outro, ríspido. Se dependesse da minha vontade, eu
não ia incomodar ninguém. Então os dois riram, e começaram a quebrar nozes
e cuspir as cascas. Creio que era o que eu mesmo teria feito, se me visse no
lugar deles, sendo alvo de tanto desprezo.
Por fim, decidiu-se que não havia nada a fazer a respeito do cavalheiro
irritado, o qual teria de ir com seus companheiros indesejáveis ou então desistir
da viagem. Assim, ele assumiu seu lugar, ainda reclamando, e o guarda instalouse
a seu lado, enquanto os forçados se acomodaram como puderam; aquele que
eu havia reconhecido sentou-se atrás de mim, de modo que eu sentia sua
respiração nos meus cabelos.
Até logo, Handel!, gritou Herbert quando partimos. Pensei que era uma
sorte ele resolver me chamar de outra coisa que não Pip.
É impossível exprimir a intensidade com que eu sentia a respiração do
presidiário, não apenas na minha nuca, mas ao longo de toda a minha espinha
dorsal. Era como ser tocado na medula por alguma substância pungente e ácida,
algo que me fazia trincar os dentes. Ele parecia respirar mais do que os outros
homens, e de modo mais ruidoso; e eu me dava conta de que estava levantando
um dos ombros, para afastar-me dele.
Era um dia pavoroso, e os dois xingavam o frio. A temperatura nos tornou a
todos letárgicos em pouco tempo, e quando estávamos na metade do caminho,
cochilávamos, tiritávamos e permanecíamos calados. Quanto a mim, adormeci
pensando se deveria devolver as duas libras daquela criatura antes de perdê-la de
vista, e como poderia fazer tal coisa da melhor maneira. Quando eu estava me
inclinando para a frente, como se fosse me banhar em meio aos cavalos, acordei
assustado e recomecei a pensar na questão.
Mas devo ter dormido mais do que imaginava, pois, ainda que não pudesse
reconhecer nada na escuridão, nem à luz incerta de nossos lampiões, senti a
presença dos charcos no vento frio e úmido que soprava sobre nós. Encolhidos
para a frente a fim de aquecer-se e usar-me como proteção contra o vento, os
forçados estavam mais próximos de mim do que antes. As primeiras palavras
que os ouvi trocar quando recuperei a consciência eram as mesmas que
ocupavam meus pensamentos: Duas nota de uma libra.
Como que ele arranjou?, disse o prisioneiro que eu nunca vira antes.
Como é que eu vou saber?, retrucou o outro. Guardava escondido em
algum lugar, sei lá. Algum amigo que deu para ele, imagino.
Que falta, disse o outro, xingando o frio, isso me faz agora.
Dinheiro ou amigo?
Dinheiro. As duas nota de uma libra. Eu vendia todos os amigos que eu já
tive por uma libra, e ia achar que fiz um ótimo negócio. E aí? Aí ele falou o quê?
Aí ele falou, prosseguiu o presidiário que eu reconhecera, a coisa toda
aconteceu em meio minuto, atrás de uma pilha de lenha no estaleiro Você vai
ser solto? Eu ia ser solto, sim. Eu prometia que ia procurar o garoto que deu
comida a ele e guardou o segredo dele, e dar as duas nota de uma libra pra ele?
Eu falei que prometia, sim. E foi o que eu fiz.
Uma besta é o que você é, rosnou o outro. Se fosse eu, gastava tudo em
comida e bebida. Esse sujeito devia ser muito bobo. Entonce ele não sabia nada
sobre você?
Coisa nenhuma. De um outro bando e de um outro navio. Foi a julgamento
de novo porque fugiu da prisão, e aí pegou perpétua.
E essa vez palavra de honra! foi a única que você cumpriu pena aqui
nessas bandas?
A única vez.
E o que é que você acha daqui?
Lugar horroroso. Lama, nevoeiro, pântano e trabalho; trabalho, pântano,
nevoeiro e lama.
Os dois reclamaram do lugar num linguajar muito pesado, e de tanto rosnar
acabaram se calando, não tendo mais nada a dizer.
Tendo ouvido esse diálogo, eu certamente teria saltado da diligência e
procurado a solidão e a escuridão da estrada, se não estivesse certo de que o
homem não tinha nenhuma suspeita a respeito da minha identidade. De fato, eu
estava não apenas tão modificado pela passagem natural do tempo, mas também
vestido de modo tão diferente e em circunstâncias tão diversas que era muito
improvável que ele me reconhecesse se ninguém o ajudasse a tal. Mesmo assim,
a coincidência de nos encontrarmos na diligência era estranha o bastante para
me inspirar o medo de que alguma outra coincidência a qualquer momento
associasse minha pessoa a meu nome, e ele escutasse. Por esse motivo, resolvi
saltar assim que chegássemos à cidade, para que ele não pudesse ouvir nada. Foi
o que fiz, com sucesso. Minha pequena valise estava no bagageiro sob meus pés;
bastava abrir uma portinhola para pegá-la; joguei-a na rua, saltei em seguida e
assim me vi junto ao primeiro lampião nas primeiras pedras do calçamento da
cidade. Quanto aos prisioneiros, eles seguiram viagem, e eu sabia em que lugar
que eles seriam transportados para o rio. Na minha imaginação, vi o navio com
sua tripulação de presidiários à espera deles na escada coberta de limo mais
uma vez ouvi o grito Força, vocês aí!, como uma ordem dada a um cão
mais uma vez vi a arca de Noé perversa sobre as águas negras.
Eu não seria capaz de dizer o que me inspirava medo, pois era um
sentimento totalmente indefinido e vago, porém um medo imenso pairava sobre
mim. Enquanto caminhava em direção ao hotel, sentia que um pavor muito
maior do que a mera expectativa de um reconhecimento doloroso ou
desagradável me fazia tremer. Estou certo de que esse medo não tinha nenhuma
forma distinta, e que era o redespertar, por alguns minutos, dos terrores da
infância.
A sala do café do Javali Azul estava vazia, e eu já havia não apenas feito o
pedido do meu jantar como também começado a comer quando o garçom me
reconheceu. Depois de pedir desculpas pelo lapso de memória, perguntou-me se
deveria mandar o criado chamar o sr. Pumblechook.
Não, respondi, de modo algum.
O garçom (fora ele quem viera transmitir a queixa dos comerciantes no dia
em que me fiz aprendiz) pareceu surpreso, e na primeira oportunidade pôs um
exemplar velho e sujo de um jornal local tão perto de mim que o peguei e li o
seguinte parágrafo:
Nossos leitores ficarão sabendo, não sem algum interesse, a respeito da
recém-ocorrida e romântica virada ocorrida na vida de um jovem artífice
de ferro da nossa vizinhança (um excelente tema, diga-se de passagem, para
a pena mágica desse nosso conterrâneo que ainda não é universalmente
reconhecido, tooby , o poeta de nossas colunas!) que o primeiro protetor,
companheiro e amigo do jovem em questão foi um indivíduo muito
respeitado, de algum modo associado ao comércio de cereais e sementes,
cujo estabelecimento comercial, muitíssimo conveniente e amplo, situa-se
num raio de cem quilômetros da High-street. Não é de todo indiferente a
nossos sentimentos pessoais o fato de ser ele o Mentor do nosso jovem
Telêmaco, pois é bom saber que nossa cidadezinha produziu o fundador da
fortuna desse jovem. Será que o cenho franzido do sábio local ou o olho
reluzente da beldade local se pergunta a quem pertence tal fortuna? Cremos
que Quentin Matsy s era o ferreiro de Antuérpia. verb. sap.2
Tenho uma convicção, fundada em larga experiência, de que, se em meus
tempos de prosperidade eu tivesse ido ao Polo Norte, lá teria encontrado alguém,
fosse um esquimó nômade ou um civilizado, o qual me teria dito que
Pumblechook fora meu primeiro protetor e o fundador de minha fortuna.
10
De manhã cedo me levantei e saí. Ainda não era hora de ir à casa da sra.
Havisham, portanto fiquei a perambular pelo campo no lado da cidade onde
ficava a casa dela que não era o lado da casa de Joe; eu poderia ir lá no dia
seguinte pensando na minha protetora e pintando imagens magníficas dos
planos que ela teria para mim.
Ela havia adotado Estella, praticamente havia adotado a mim, e sua intenção
não poderia ser senão a de nos unir. Caberia a mim, segundo seus planos,
reformar a casa desolada, deixar o sol entrar nos cômodos escuros, dar corda nos
relógios, acender o fogo nas lareiras frias, limpar as teias de aranha e exterminar
os insetos em suma, realizar todos os feitos brilhantes de um jovem cavaleiro
andante e desposar a princesa. Eu havia parado para ver a casa ao passar por ela;
e suas paredes de tijolos vermelhos ressequidos, janelas fechadas e hera verde
espessa enredando até mesmo as chaminés com seus ramos e tendões, como se
fossem braços velhos e musculosos, compunham um mistério rico e atraente, do
qual eu era o protagonista. Estella era a inspiração, o âmago de tudo, é claro.
Porém, embora ela se houvesse apossado de mim de modo tão poderoso,
embora minha fantasia e minha esperança estivessem de tal modo investidas
nela, embora ela houvesse exercido uma influência imensa sobre minha vida e
meu caráter quando menino, nem mesmo naquela manhã romântica eu lhe
concedia outros atributos que não os que ela de fato possuía. Menciono isso aqui
com um objetivo específico, pois é a pista por meio da qual é necessário me
seguir em meu pobre labirinto. De acordo com minha experiência, o conceito
convencional de apaixonado não pode ser sempre verdadeiro. A verdade pura e
simples é que, ao amar Estella com um amor viril, eu a amava simplesmente por
achá-la irresistível. De uma vez por todas; eu tinha a dolorosa consciência, muitas
vezes, ainda que nem sempre, de que eu a amava apesar da razão, apesar das
probabilidades, apesar da minha paz, apesar das minhas esperanças, apesar da
minha felicidade, apesar de tudo aquilo que me desanimava. De uma vez por
todas; eu não a amava menos por saber o que sabia, e o que eu sabia não tinha o
menor efeito no sentido de me desestimular; era tal como se eu estivesse
absolutamente convicto de que ela era a própria encarnação da perfeição
humana.
Programei minha caminhada de tal modo que chegasse ao portão da casa na
hora costumeira. Tendo tocado a campainha com mão trêmula, dei as costas
para o portão, tentando conter a respiração ofegante e impedir que o coração
batesse forte demais. Ouvi abrir-se a porta lateral, e ouvi passos atravessando o
pátio; mas fingi que nada ouvia, mesmo quando o portão se abriu, rangendo nos
gonzos enferrujados.
Quando alguém tocou meu ombro, assustei-me e virei-me. Então assusteime
com muito mais naturalidade, ao ver diante de mim um homem com um
sóbrio traje cinzento. A última pessoa que eu imaginava encontrar fazendo as
vezes de porteiro da casa da sra. Havisham.
Orlick!
Ah, patrãozinho, há coisas que mudaram ainda mais que o senhor. Mas
entre, entre. É contra minhas ordens manter o portão aberto.
Entrei e ele fechou o portão, trancou-o e pegou a chave. Pois é!, disse ele,
virando-se para mim, depois de dar alguns passos à minha frente em direção à
casa. Agora estou aqui!
Como é que você veio para cá?
Vim pra cá, ele retorquiu, a pé. Meu baú foi trazido num carrinho de
mão.
Você veio para ficar?
O senhor acha que eu vim pra não ficar, patrãozinho?
Eu não o via com bons olhos. Fiquei a pensar nas suas palavras enquanto ele
levantava lentamente o olhar pesado do chão, subindo minhas pernas e braços,
até pousar em meu rosto.
Então você largou a ferraria?, perguntei.
Isso aqui tem cara de ferraria?, respondeu Orlick, olhando à sua volta com
ar de indignação. Tem?
Perguntei-lhe há quanto tempo ele saíra da ferraria de Gargery .
Aqui um dia é tão igual ao outro, ele respondeu, que só sei fazendo as
contas. Mas vim pra cá um tempo despois que o senhor foi embora.
Isso até eu sabia, Orlick.
Ah!, ele respondeu, seco. Mas pra saber isso tem que ter estudo.
A essa altura já havíamos chegado a casa, onde verifiquei que o quarto dele
ficava logo depois da porta lateral, com uma pequena janela que dava para o
pátio. Era um cômodo reduzido, semelhante ao que costuma ser reservado aos
porteiros em Paris. Havia na parede algumas chaves penduradas, e a elas Orlick
acrescentou a do portão; sua cama, coberta por uma colcha de retalhos, ficava
num pequeno nicho interior. Havia ali um ar de confinamento, desmazelo e sono,
como se o lugar fosse uma gaiola para um arganaz humano: e ele, um vulto
escuro e pesado num canto à sombra junto à janela, parecia o exato arganaz
humano para quem aquele quarto fora preparado e era isso mesmo que ele
era.
Nunca vi esse quarto, comentei; mas antigamente não havia porteiro
nesta casa.
Não, ele respondeu; foi só quando se espalhou a notícia que aqui não tinha
proteção nenhuma, e começaram a achar que era perigoso, com esse tanto de
forçado solto por aí. E então me recomendaram pro cargo como o tipo do
homem que devolve aquilo que recebe, e eu aceitei. É mais fácil que mexer com
fole e martelo. Está carregada.
Meu olhar fora atraído por uma arma com coronha de latão, junto ao
console da chaminé, e o olhar de Orlick seguira o meu.
Mas sim, disse eu, não querendo prolongar aquela conversa, não devo ir
logo falar com a senhora Havisham?
Macacos me mordam se eu sei!, ele retorquiu, primeiro espreguiçando-se
e depois sacudindo-se; minhas ordens só vai até aqui, patrãozinho. Eu dou uma
martelada nesse sino aqui, e o senhor vai andando pelo corredor até encontrar
alguém.
Estão à minha espera, imagino?
Macacos me mordam e remordam se eu sei!, respondeu.
Diante dessa resposta, entrei no longo corredor que eu pisara pela primeira
vez com minhas botas grosseiras, e ele fez o sino soar. Ao final do corredor,
enquanto o sino ainda reverberava, vi Sarah Pocket, a qual parecia ter adquirido
em caráter permanente um tom verde e amarelo, de inveja de mim.
Ah!, ela exclamou. É o senhor, senhor Pip?
Sou eu, sim, senhora Pocket. Tenho o prazer de lhe dizer que o senhor
Pocket e sua família vão bem de saúde.
E criaram juízo?, indagou Sarah, sacudindo a cabeça com desânimo; o
importante era eles terem juízo, mais que saúde. Ah, Matthew, Matthew! O
senhor conhece o caminho, não é?
Mais ou menos, pois subira aquela escada no escuro, muitas vezes. Subi-a
agora, com botas mais leves que as de outrora, e bati à maneira de sempre à
porta da sra. Havisham. É a batida do Pip, ouvi-a dizer imediatamente; entra,
Pip.
Ela estava sentada na sua cadeira ao lado da velha mesa, com o velho
vestido, as duas mãos cruzadas sobre a bengala, o queixo apoiado nelas, os olhos
voltados para o fogo. Sentada a seu lado, segurando o sapato branco que nunca
fora usado, e olhando para ele com a cabeça baixa, estava uma mulher elegante
que eu jamais vira.
Entra, Pip, a sra. Havisham continuava murmurando, sem olhar para os
lados nem levantar a vista. Entra, Pip, como vais, Pip? Então beijas minha mão
como se eu fosse uma rainha, hein? E então?
De repente, ela levantou a vista para mim, movendo apenas os olhos, e
repetiu, num tom brincalhão implacável:
E então?
Eu soube, senhora Havisham, disse eu, um tanto perdido, que a senhora
teve a bondade de me pedir para vir, e assim vim imediatamente.
E então?
A mulher que eu nunca vira antes levantou os olhos e fitou-me com malícia,
e então vi que aqueles olhos eram os olhos de Estella. Mas ela estava tão mudada,
tão mais bonita, tão mais feminina, estava tão diferente sob todos os aspectos
dignos de admiração, que eu parecia não ter mudado nada. Imaginei, olhando
para ela, que regredia, impotente, à condição de garoto grosseiro e vulgar de
outrora. Ah, a sensação de distância e disparidade que me dominou, e o ar de
inacessibilidade que ela assumiu!
Estella me estendeu a mão. Gaguejei que era um prazer voltar a vê-la, e que
há muito, muito tempo eu aguardava aquele momento.
Achas que ela está muito mudada, Pip?, perguntou a sra. Havisham, com
seu olhar ávido, e bateu com a bengala numa cadeira que estava entre elas,
como sinal para que eu me sentasse ali.
Quando entrei, senhora Havisham, pensei que não havia nada de Estella no
rosto nem no corpo; mas agora, curiosamente, tudo parece formar a mesma
O quê? Você ia dizer a mesma Estella de antigamente?, interrompeu a sra.
Havisham. Ela era orgulhosa e desdenhosa, e tu querias fugir dela. Não
lembras?
Respondi, confuso, que aquilo fora muitos anos antes, e que na época eu era
ignorante, e coisas semelhantes. Estella sorriu, com perfeita tranquilidade, e disse
que eu sem dúvida tinha razão, ela fora muito desagradável.
Ele está mudado?, a sra. Havisham perguntou a ela.
E muito, disse Estella, olhando para mim.
Menos grosseiro e vulgar?, perguntou a sra. Havisham, brincando com o
cabelo de Estella.
Estella riu, e olhou para o sapato que tinha na mão, e riu novamente, e olhou
para mim, e largou o sapato. Ela continuava a tratar-me como um menino,
porém me instigava.
Ali, naquele quarto de sonho, em meio às estranhas influências de outrora
que tanto me haviam afetado, fiquei sabendo que ela acabava de voltar da
França, e que estava indo para Londres. Orgulhosa e caprichosa como sempre,
havia submetido essas qualidades a sua beleza de tal modo que era impossível e
antinatural ou assim me parecia separá-las de sua beleza. Em verdade, era
impossível dissociar sua presença de todos aqueles miseráveis anseios por
dinheiro e refinamento que haviam perturbado minha meninice de todas
aquelas aspirações desregradas que me fizeram pela primeira vez ter vergonha
de minha casa e de Joe de todas aquelas visões que faziam o rosto dela surgir
da fornalha, brotar do ferro malhado na bigorna, aparecer na escuridão da noite
à janela de madeira da ferraria para desvanecer-se em seguida. Em suma, erame
impossível separá-las, no passado ou no presente, do que de mais íntimo
havia na minha vida.
Ficou combinado que eu ficaria lá o resto do dia, e voltaria para o hotel à
noite, e no dia seguinte iria para Londres. Depois de conversarmos por algum
tempo, a sra. Havisham mandou-nos sair para caminhar no jardim abandonado;
quando voltássemos para dentro de casa, disse ela, eu a levaria a passear em sua
cadeira como antigamente.
Assim, eu e Estella fomos para o jardim pelo portão através do qual eu havia
saído para encontrar-me com o jovem cavalheiro pálido, o atual Herbert; eu,
tremendo por dentro e adorando a barra do vestido dela; ela, perfeitamente
tranquila e claramente não adorando a barra de minha calça. Quando nos
aproximamos do lugar do encontro, ela parou e disse:
Eu devia ser uma criaturinha muito estranha, para esconder-me e assistir
àquela luta naquele dia: mas foi o que fiz, e me diverti muito.
Tu me recompensaste muito.
É mesmo?, ela replicou, como se falasse por falar. Lembro que sentia
muita aversão pelo teu adversário, pois não gostei que o trouxessem aqui para
maçar-me com sua companhia.
Eu e ele agora somos amicíssimos, disse eu.
É mesmo? Mas creio que me lembro que estudaste com o pai dele, não
foi?
Foi, sim.
Reconheci esse fato com alguma relutância, porque parecia me tornar
infantil, e ela já me tratava como se eu fosse um menino.
Depois que a tua vida mudou, mudaste de amigos, disse Estella.
Naturalmente, concordei.
E é claro, ela acrescentou, num tom altivo, que as companhias que te
eram apropriadas não seriam nem um pouco apropriadas agora.
Na minha consciência, duvido muito que eu ainda tivesse alguma intenção de
ir visitar Joe; mas se eu a tinha, essa observação teve o efeito de dissipá-la.
Nem imaginavas que terias essa boa sorte, naquele tempo?, perguntou
Estella, com um gesto leve na mão que indicava o tempo da luta.
De modo algum.
O ar de completude e superioridade com que ela caminhava a meu lado, e o
ar de imaturidade e a submissão com que eu caminhava ao lado dela formavam
um contraste que eu sentia de modo intenso. Isso me haveria incomodado mais
do que de fato me incomodou se eu não julgasse que era eu mesmo que o
provocava, por me sentir escolhido para ela e atribuído a ela.
O jardim estava tão tomado pelo mato que não era fácil caminhar por ele, e
depois de darmos duas ou três voltas voltamos para o pátio da cervejaria. Mostrei
a ela com precisão o lugar onde eu a vira caminhando sobre os barris, naquele
primeiro dia, e ela disse, olhando na direção por mim indicada de modo frio e
descuidado: É mesmo?. Apontei para o lugar por onde ela saíra da casa
trazendo-me carne e bebida, e ela disse: Não me lembro. Não te lembras que
me fizeste chorar?, perguntei. Não, ela respondeu, e sacudiu a cabeça
enquanto olhava à sua volta. Sou capaz de jurar que o fato de que ela não
lembrava e não se importava nem um pouco com isso me fez chorar novamente,
por dentro e não há pranto mais doloroso que esse.
É importante que saibas, disse Estella, com o tom de condescendência de
uma mulher brilhante e bela, que não tenho coração se é que isso tem
alguma coisa a ver com a minha memória.
De algum modo tartamudeei que eu tomava a liberdade de discordar dessa
afirmação. Que eu sabia que não era assim. Que era impossível tanta beleza não
ter coração.
Ah! Eu tenho um coração para levar uma punhalada ou um tiro, disso não
tenho dúvida, disse Estella, e é claro que se ele parasse de bater eu deixaria de
existir. Mas tu sabes o que quero dizer. Não tenho nada de suave ali, não
piedade sentimento essas bobagens.
O que foi que surgiu na minha mente quando ela se deteve e ficou olhando
para mim com atenção? Alguma coisa que eu vira na sra. Havisham? Não. Em
alguns olhares e gestos dela, havia algo de semelhante à sra. Havisham, a espécie
de semelhança que muitas vezes observamos nas crianças, adquirida de adultos
com que elas tiveram muito contato e com quem viveram em isolamento, e que,
quando a infância fica para trás, produz uma notável semelhança de expressão
ocasional entre rostos os quais, sob outros aspectos, são bem diferentes. E, no
entanto, eu não conseguia associar aquilo que eu percebera à sra. Havisham.
Olhei mais uma vez, e embora ela continuasse olhando para mim, a impressão
havia desaparecido.
O que seria?
Estou falando sério, disse Estella, não exatamente franzindo a testa (pois
sua fronte estava lisa), porém com uma sombra no rosto; se calhar de nos
encontrarmos com certa frequência, é bom que entendas isso de uma vez por
todas. Não!, fazendo com que eu me calasse quando abri os lábios. Minha
ternura não está voltada em nenhuma outra direção. Nunca tive tal coisa.
No instante seguinte, vimo-nos dentro da cervejaria há tanto tempo em
desuso, e ela apontou para a galeria elevada de onde eu a vira saindo naquele
primeiro dia, e disse-me que se lembrava de que estivera ali, e que me vira cá
embaixo, assustado. Enquanto meu olhar seguia sua mão alva, mais uma vez
aquela vaga impressão se apossou de mim. Meu estremecimento involuntário fez
com que ela pousasse a mão em meu braço. No mesmo instante, o fantasma
desapareceu mais uma vez.
O que seria?
O que houve?, indagou Estella. Estás com medo de novo?
Eu estaria, se acreditasse no que disseste ainda pouco, respondi, para
desviar o assunto.
Então não acreditas? Muito bem. O fato é que foste avisado. A senhora
Havisham vai querer que cumpras tua antiga função agora, embora a meu ver
isso devesse ser deixado de lado, juntamente com outras velharias. Vamos dar
mais uma volta no jardim e depois entrar em casa. Venha! Hoje não vais chorar
por causa da minha crueldade; hoje serás meu pajem, e me darás teu ombro.
Seu vestido elegante antes estava se arrastando no chão. Agora ela levantouo
com uma das mãos, e com a outra tocou de leve meu ombro enquanto
caminhávamos. Demos mais duas ou três voltas no jardim destruído, e para mim
ele estava em flor. Se o mato verde e amarelo que crescia nas fendas do velho
muro fossem as flores mais preciosas que jamais se abriram, elas não seriam
mais preciosas na minha memória.
Não havia discrepância em anos entre nós, que a distanciasse muito de mim;
éramos quase da mesma idade, embora, é claro, ela parecesse ser mais velha do
que eu; porém o ar de inacessibilidade que sua beleza e seus modos lhe atribuíam
atormentava-me no meio de meu enlevo, e no auge de minha confiança senti
que nossa protetora nos havia escolhido um para o outro. Infeliz rapaz!
Por fim voltamos para dentro da casa, e lá ouvi, surpreso, que meu tutor
tinha vindo de Londres para discutir assuntos de negócios com a sra. Havisham, e
voltaria para o jantar. Os velhos ramos hibernais dos candelabros da sala onde
ficava a mesa cheia de podridão haviam sido acendidos enquanto estávamos no
jardim, e a sra. Havisham estava em sua cadeira esperando por mim.
Foi como se eu empurrasse a cadeira de volta para o passado, quando demos
início ao velho circuito lento em torno das cinzas da festa de casamento. Porém
Estella, naquela sala fúnebre, com aquela figura saída do túmulo inclinada na
cadeira olhando-a fixamente, parecia mais luminosa e bela do que antes, e o
encantamento que exercia sobre mim ficou ainda mais forte.
O tempo passou tão depressa que já se aproximava a hora do jantar1 da sra.
Havisham, que jantava cedo, e Estella foi preparar-se. Havíamos parado perto
do centro da mesa comprida, e a sra. Havisham, com um de seus braços
mirrados estendidos para fora da cadeira, pousou o punho cerrado sobre a toalha
de mesa amarelada. Enquanto Estella olhava para trás antes de sair da sala, a sra.
Havisham beijou a sua mão em direção a ela, com uma intensidade ávida que, à
sua maneira, era verdadeiramente terrível.
Então, depois que Estella saiu e nós dois ficamos a sós, ela virou-se para mim
e disse, num sussurro:
Ela é bonita, graciosa, alta? Tu a admiras?
Todos que a veem a admiram, senhora Havisham.
Ela pôs o braço em torno de meu pescoço e aproximou minha cabeça da
dela, sem se levantar da cadeira. Ama-a, ama-a, ama-a! Como ela te trata?
Antes que eu pudesse responder (se pudesse responder uma pergunta tão
difícil), ela repetiu: Ama-a, ama-a, ama-a! Se ela te aceitar, ama-a. Se ela te
magoar, ama-a. Se ela despedaçar teu coração e à medida que ele ficar mais
velho e mais forte, há de se despedaçar mais a fundo ama-a, ama-a, amaa!.
Eu jamais vira uma avidez tão passional quanto a que ela exprimiu ao
pronunciar essas palavras. Sentia os músculos do braço fino em torno do meu
pescoço incharem com a veemência que a possuía.
Ouve-me, Pip! Eu adotei-a para ela ser amada. Criei-a e eduquei-a para
ser amada. Fiz com que se tornasse o que ela é hoje para ser amada. Ama-a!
Ela repetia aquela palavra muitas vezes, e não podia haver dúvida que era
isso mesmo que ela queria dizer; mas se a palavra tão repetida fosse em vez de
amor desespero vingança morte cruel não poderia ter soado mais
sinistra, como uma maldição, em seus lábios.
Vou dizer-te, ela prosseguiu, com o mesmo sussurro rápido e passional, o
que é o verdadeiro amor. É devoção cega, é humilhar-se sem questionar nada,
submeter-se por completo, confiar e crer contra ti próprio e contra todo o mundo,
é entregar todo o teu coração e tua alma a quem te golpeia tal como eu fiz!
Quando ela disse essas palavras, e soltou um grito enlouquecido, segurei-a
pela cintura. Pois ela se levantara da cadeira, com aquele vestido que era mais
uma mortalha, e pôs-se a golpear o ar como se quisesse jogar-se contra a parede
e matar-se.
Tudo isso se passou em uns poucos segundos. Quando a fiz sentar-se outra
vez em sua cadeira, senti um perfume que conhecia bem, e ao virar-me deparei
com meu tutor, ali mesmo na sala.
Ele sempre levava no bolso (ainda não mencionei esse fato, creio) um lenço
de seda fina e proporções impressionantes, que lhe era muito útil em sua
profissão. Já o vi encher de terror um cliente ou uma testemunha desdobrando
cerimoniosamente esse lenço como se estivesse prestes a assoar o nariz, e então
fazendo uma pausa, como se soubesse que não teria tempo de assoá-lo antes que
o cliente ou a testemunha se entregasse, de tal modo que a pessoa em questão
imediatamente se entregava, inevitavelmente. Quando o vi ali na sala, ele
segurava aquele lenço expressivo com as duas mãos, e olhava para nós. Ao
encontrar meu olhar, disse com naturalidade, fazendo uma pausa momentânea e
silenciosa em sua atitude: Deveras? Curioso!, e em seguida utilizou seu lenço
para sua finalidade apropriada de modo extraordinariamente eficaz.
A sra. Havisham o vira no mesmo momento que eu, e (como todo mundo)
tinha medo dele. Fez uma tentativa heroica de recuperar o autocontrole e
comentou, gaguejando, que ele fora pontual como sempre.
Pontual como sempre, ele repetiu, aproximando-se de nós. (Como vai,
Pip? Quer que eu empurre um pouco, senhora Havisham? Uma volta completa?)
Quer dizer que você está aqui, Pip?
Eu lhe disse quando havia chegado, e que a sra. Havisham manifestara a
vontade de que eu viesse ver Estella. Ao ouvir isso, ele exclamou: Ah! Uma
jovem de qualidade!. Em seguida, começou a empurrar a cadeira da sra.
Havisham com uma de suas manzorras, ficando com a outra no bolso da calça,
como se o bolso estivesse cheio de segredos.
Mas sim, Pip! Quantas vezes você já viu a senhorita Estella antes?,
perguntou-me ele, quando parou.
Quantas vezes?
Ah! Quantas vezes. Dez mil vezes?
Ah, não! Muito menos, certamente.
Duas vezes?
Jaggers, interrompeu a sra. Havisham, para grande alívio meu, deixe em
paz o meu Pip, e vá jantar com ele.
Ele obedeceu, e juntos descemos, tateando, a escada escura. Enquanto ainda
estávamos a caminho daqueles aposentos que ficavam do outro lado do pátio de
fundos, ele me perguntou quantas vezes eu já vira a sra. Havisham comer e
beber; como sempre, ofereceu-me as opções de cem vezes e uma só vez.
Pensei e respondi: Nunca.
E nunca vai ver, Pip, ele retorquiu, com um sorriso carrancudo. Ela
jamais permitiu que ninguém a visse fazendo tais coisas, desde que começou a
levar a vida que leva agora. À noite fica a andar pela casa, e é então que come o
que encontra.
Por favor, repliquei, posso fazer uma pergunta?
Pode, respondeu, e posso me recusar a responder. Faça a sua pergunta.
O sobrenome de Estella. É Havisham ou
?, eu não tinha nada mais a
acrescentar.
Ou o quê?, ele perguntou.
É Havisham?
É Havisham.
A essa altura, já estávamos chegando à mesa de jantar, onde ela e Sarah
Pocket nos aguardavam. O sr. Jaggers ficou na cabeceira, Estella sentou-se à sua
frente e eu fiquei em frente à minha amiga verde e amarela. Comemos muito
bem, e fomos servidos por uma criada que eu jamais vira em todas as minhas
andanças pela casa, mas que podia muito bem ter vivido naquela casa misteriosa
desde sempre. Depois do jantar, uma garrafa de finíssimo vinho do Porto
envelhecido foi colocada diante de meu tutor (sem dúvida, ele conhecia bem
aquele vinho), e as duas senhoras se levantaram da mesa.
Reticência tão determinada quanto a do sr. Jaggers naquela casa jamais vi
em nenhum lugar, nem sequer nele. Ele controlava até mesmo o olhar, e
praticamente não pôs os olhos no rosto de Estella uma única vez durante o jantar.
Quando ela se dirigia a ele, o sr. Jaggers escutava, e depois de algum tempo
respondia, mas jamais a olhava, até onde eu o percebesse. Por outro lado, Estella
olhava-o repetidamente, com interesse e curiosidade, se não desconfiança, mas o
rosto dele jamais traiu a menor consciência do fato. Durante todo o jantar ele se
divertiu fazendo Sarah Pocket ficar ainda mais verde e mais amarela, com
referências a minhas perspectivas, dirigindo-se a mim; porém nisso, também, ele
não demonstrava nenhuma consciência, e até mesmo dava a impressão de que
arrancava e era o que de fato fazia, embora eu não saiba dizer como essas
referências de minha própria boca inocente.
E quando eu e ele ficamos a sós, o sr. Jaggers permaneceu com um tal ar de
estar guardando para si informações que possuía, que quase não conseguia me
conter. Ele era capaz de interrogar até o vinho que tomava, não havendo nada
mais apropriado à sua frente. Segurava a taça diante da vela, saboreava o vinho
do Porto, deixava que ele resvalasse sobre a língua, engolia-o, olhava para a taça
mais uma vez, cheirava o vinho, provava-o, bebia-o, voltava a encher a taça e
mais uma vez interrogava-a, até que fiquei tão nervoso quanto ficaria se soubesse
que o vinho estava lhe falando mal de mim. Três ou quatro vezes senti uma
vontade débil de puxar assunto; mas sempre que ele percebia que eu ia lhe
perguntar alguma coisa, olhava para mim com a taça na mão, fazendo o vinho
resvalar sobre a língua, como se para que eu entendesse que não adiantava, pois
ele não ia responder-me nada.
Creio que a sra. Pocket tinha consciência de que a minha presença era capaz
de fazê-la correr o risco de enlouquecer, talvez a ponto de arrancar a touca a
qual era horrenda, mais parecendo um esfregão de musselina e jogar seus
cabelos no chão pois aqueles cabelos certamente não haviam crescido na
cabeça dela. Ela não apareceu quando, mais tarde, subimos para o quarto da sra.
Havisham, e ficamos os quatro a jogar uíste. Nesse ínterim, a sra. Havisham, a
seu modo extravagante, havia colocado algumas das joias mais belas que tinha
em sua penteadeira no cabelo de Estella, em seu colo e seus braços; e percebi
que até mesmo meu tutor olhava para ela por baixo de suas sobrancelhas
espessas e as arqueava um pouco, quando a beleza da jovem estava à sua frente,
com aqueles toques magníficos de brilho e cor.
A respeito do modo e do grau como ele tomou nossos trunfos e terminou
com cartas de baixo valor, diante das quais a glória de nossos reis e damas foi
fragorosamente derrotada, nada direi, tal como nada direi a respeito da sensação
que tive ao me dar conta de que ele nos encarava como se fôssemos três
enigmas muito óbvios que ele já havia resolvido há muito tempo. O que me
causava sofrimento era a incompatibilidade entre a presença fria de meu tutor e
meus sentimentos em relação a Estella. Não por eu saber que não suportaria
falar-lhe a respeito de Estella, por saber que não suportaria ouvi-lo fazer suas
botas ranger para ela, por saber que não suportaria vê-lo lavar as mãos após o
contato com ela; era por estar minha admiração a um metro de distância dele
por estarem meus sentimentos no mesmo lugar que ele era isso que me
torturava.
Jogamos até as nove horas, e então foi combinado que quando Estella fosse a
Londres eu seria avisado, e viria recebê-la quando chegasse sua diligência; em
seguida, despedi-me dela, e toquei-a, e afastei-me dela.
Meu tutor, no Javali, estava hospedado no quarto ao lado do meu. Até altas
horas da madrugada, as palavras da sra. Havisham Ama-a, ama-a, ama-a!
soavam nos meus ouvidos. Adaptei-as para minha própria repetição, e disse a
meu travesseiro Amo-a, amo-a, amo-a! centenas de vezes. E um
frêmito de gratidão apossou-se de mim, por ela me ser destinada, a mim que
fora outrora aprendiz de ferreiro. E pensei que se ela, como eu temia, ainda não
se sentisse nem um pouco grata por eu lhe ser destinado, então quando é que
começaria a se interessar por mim? Quando eu haveria de despertar aquele
coração que agora estava mudo e adormecido?
Ai de mim! Tais emoções me pareciam grandes e elevadas. Mas nunca me
ocorreu que fosse pequena e baixa minha atitude de afastar-me de Joe, porque
eu sabia que ela haveria de desprezá-lo. Apenas um dia antes Joe fizera lágrimas
brotar em meus olhos; elas haviam secado logo que Deus me perdoe
haviam secado logo.
11
Depois de pensar bem na questão enquanto me vestia no Javali Azul, na manhã
seguinte, resolvi dizer a meu tutor que, na minha opinião, Orlick não era a pessoa
indicada para ocupar um cargo de confiança na casa da sra. Havisham. Ora, é
claro que ele não é a pessoa indicada, Pip, respondeu meu tutor, que já tinha
opinião formada sobre o assunto, porque a pessoa que preenche um cargo de
confiança nunca é a pessoa indicada. Ele parecia bastante animado pela
constatação de que aquele cargo em particular não era uma exceção à regra
sobre pessoas apropriadas, e ficou a escutar-me com uma expressão satisfeita
enquanto eu lhe dizia o que sabia a respeito de Orlick. Muito bem, Pip,
observou ele quando concluí; vou lá pagar nosso amigo e despachá-lo. Um
tanto preocupado com essa ação sumária, argumentei que seria bom esperar um
pouco, e até mesmo dei a entender que nosso amigo talvez criasse dificuldades.
Ah, não há perigo, disse meu tutor, indicando sua carteira com absoluta
confiança; eu gostaria de vê-lo discutir o assunto comigo.
Como íamos voltar juntos para Londres na diligência do meio-dia, e como fiz
meu desjejum com tanto pavor de Pumblechook que mal conseguia segurar a
xícara, isso me deu uma oportunidade de dizer que gostaria de fazer uma
caminhada, que eu iria seguindo pela estrada de Londres enquanto o sr. Jaggers
realizava sua tarefa, e de pedir-lhe que avisasse o cocheiro que eu tomaria meu
lugar quando a diligência me alcançasse. Assim, pude fugir do Javali Azul
imediatamente após o desjejum. Dando uma volta de cerca de três quilômetros
pelo campo aberto, passando por trás da loja de Pumblechook, retomei a Highstreet
um pouco à frente daquele lugar perigoso, e senti-me relativamente a
salvo.
Era interessante ver-me de volta na minha velha aldeia silenciosa, e não era
desagradável de vez em quando ser reconhecido de súbito e tornar-me alvo de
olhares atentos. Um ou dois comerciantes chegaram mesmo a sair correndo de
suas lojas e caminhar pouco à minha frente, para depois dar meia-volta e passar
por mim frente a frente ocasiões nas quais não sei dizer quem era o pior
fingidor, eu ou os comerciantes; eles fingindo que não estavam fazendo o que
estavam fazendo, e eu fingindo que não os via a fazê-lo. Fosse como fosse, o fato
é que eu era uma pessoa distinta, e isso não me desagradava em absoluto, até que
o destino pôs no meu caminho aquele patife indomável, o empregado de Trabb.
Lançando um olhar à minha frente num determinado ponto da minha
trajetória, vi o empregado de Trabb se aproximando, debatendo-se com uma
sacola azul vazia. Imaginando que contemplá-lo com ar sereno e indiferente
seria o mais adequado, e a atitude que melhor poderia deter seus propósitos
malignos, segui em frente com tal expressão no rosto, e já estava me felicitando
pelo meu sucesso quando de repente os joelhos do empregado de Trabb
começaram a entrechocar-se, seu cabelo levantou-se, seu boné caiu, ele
começou a estremecer violentamente da cabeça aos pés e saiu para o meio da
rua, cambaleando e gritando para o populacho: Me segurem! Estou
apavorado!, fingindo estar num paroxismo de terror e contrição causado pela
dignidade da minha pessoa. Quando passei por ele, o empregado de Trabb batia o
queixo ruidosamente, e em seguida, com todos os sinais de extrema humilhação,
prostrou-se no chão.
Isso era difícil de suportar, mas ainda não era nada. Eu não havia avançado
mais do que cem metros quando, para meu indizível terror, minha surpresa e
indignação, mais uma vez vi o empregado de Trabb se aproximando. Ele
dobrava uma esquina estreita. A sacola azul estava jogada sobre o ombro, os
olhos brilhavam de industriosidade honesta, o passo rápido indicava a
determinação alegre de chegar logo ao local de trabalho. Com espanto, percebeu
minha presença, e teve outro ataque semelhante ao anterior; mas dessa vez o
movimento foi rotativo, e ele ficou a girar em torno de mim, cambaleando, os
joelhos ainda mais trêmulos, com as mãos levantadas, como se implorando
piedade. Seus sofrimentos foram saudados do modo mais efusivo por um grupo
de espectadores, e senti-me completamente perplexo.
Eu não havia chegado ainda sequer até os correios quando mais uma vez vi o
empregado de Trabb sair de uma transversal. Agora ele estava de todo mudado.
Levava a sacola azul como eu levava meu sobretudo e caminhava pela calçada
em direção a mim pelo outro lado da rua, acompanhado por um grupo de jovens
amigos deliciados para os quais de vez em quando ele exclamava, gesticulando:
Não conheço ocês não!. Não tenho palavras para exprimir a indignação e a
mortificação que o empregado de Trabb me proporcionou quando, passando a
meu lado, levantou o colarinho da camisa, retorceu os cabelos, pôs uma mão na
cintura e, com um sorriso afetadíssimo, sacudindo os cotovelos e o corpo, rosnou
para seus acompanhantes: Não conheço ocês, não conheço ocês, juro por
Deus que não conheço ocês!. A vergonha que senti quando logo em seguida ele
se pôs a cacarejar, correndo atrás de mim na ponte como se fosse um galo
extremamente aborrecido, que me conhecera no tempo em que eu era ferreiro,
foi o ultraje final que marcou minha saída da cidade, sendo, por assim dizer,
expulso por ela para o campo aberto.
Mas a menos que eu matasse o empregado de Trabb naquela ocasião,
realmente não sei até hoje o que eu poderia ter feito senão suportar tudo.
Atracar-me com ele na rua, ou arrancar dele qualquer recompensa menor do
que seu sangue vital, teria sido inútil e degradante. Além disso, ele era um rapaz
que ninguém conseguia machucar; uma serpente invulnerável e arisca que,
quando encurralada, escapulia por entre as pernas do agressor, gritando com
escárnio. Contudo, no dia seguinte escrevi para o sr. Trabb, dizendo que
doravante o sr. Pip não poderia mais usar os serviços de alguém que,
desprezando os melhores interesses da sociedade, empregava um rapaz que
despertava asco em todas as pessoas respeitáveis.
A diligência, com o sr. Jaggers dentro, chegou no tempo devido, e retomei
meu assento junto ao cocheiro, e cheguei a Londres a salvo mas não são, pois
meu coração estava destruído. Tão logo cheguei, como forma de penitência
mandei entregar um bacalhau e um barril de ostras na casa de Joe (por não ter
ido lá pessoalmente) e em seguida fui para o Barnards Inn.
Encontrei Herbert comendo frios, e ele me recebeu efusivamente. Tendo
despachado o vingador para comprar mais comida no café, senti-me impelido a
me abrir naquela mesma noite com meu amigo e companheiro. Como seria
impossível fazer confidências com o vingador no corredor, o qual haveria de
funcionar como antessala para o buraco da fechadura, mandei-o ir ao teatro.
Não poderia haver melhor prova da severidade da minha escravidão em relação
àquele capataz do que as medidas degradantes a que eu era reduzido. Meu
desespero era tal que por vezes eu o fazia ir até a esquina do Hy de Park para
saber que horas eram.1
Terminado o jantar, estávamos sentados com os pés no guarda-fogo quando
eu disse a Herbert: Meu caro Herbert, tenho uma confissão a te fazer, muito em
particular.
Meu caro Handel, ele respondeu, ouvirei tua confidência com estima e
respeito.
Diz respeito a mim, Herbert, prossegui, e a outra pessoa.
Herbert cruzou as pernas, olhou para o fogo com a cabeça inclinada para um
lado e, tendo esperado algum tempo em vão, virou-se para mim, por eu
permanecer calado.
Herbert, disse eu, pondo a mão em seu joelho. Eu amo eu adoro
Estella.
Em vez de ficar estarrecido, ele respondeu num tom perfeitamente natural:
Certo. E então?.
E então, Herbert? É tudo que me dizes? E então?
Então, o que é que vais fazer?, perguntou Herbert. Porque isso eu já
sabia.
Como assim, já sabias?, indaguei.
Como assim, Handel? Ora, através de ti.
Eu nunca te disse isso.
Nunca me disseste! Tu nunca me dizes quando cortas o cabelo, mas eu
tenho olhos para ver. Tu sempre a adoraste, desde que o conheço. Trouxeste tua
adoração junto com a tua valise para cá. Nunca me disseste! Ora, não fazes
outra coisa senão dizê-lo o dia inteiro. Quando me contaste a tua história, dissesteme
com todas as letras que começaste a adorá-la a primeira vez em que a viste,
quando ainda eras bem menino.
Está bem, concordei, embora isso para mim fosse algo de novo e não
muito agradável, nunca deixei de adorá-la. E ela voltou, uma criatura belíssima
e elegantíssima. E estive com ela ontem. E se antes já a adorava, agora eu a
adoro em dobro.
Sorte tua então, Handel, disse Herbert, teres sido escolhido para ela e
atribuído a ela. Sem pisarmos em território proibido, podemos dizer que não há
dúvida quanto a esse fato. E já fazes alguma ideia do que Estella pensa a respeito
de ser adorada?
Sacudi a cabeça, melancólico. Ah! Ela está a milhares de quilômetros de
mim.
Paciência, meu caro Handel: dá tempo ao tempo, dá tempo ao tempo. Mas
tens mais alguma coisa a dizer?
Tenho vergonha de dizê-lo, respondi, e, no entanto, dizer não é pior do
que pensar. Dizes que sou um sujeito de sorte. É claro que sou. Ainda ontem eu
era aprendiz de ferreiro; e agora sou
sou o quê?
Um bom sujeito, se queres uma expressão adequada, completou Herbert,
sorrindo e pondo sua mão sobre a minha, um bom sujeito, impetuoso e
hesitante, ousado e tímido, ativo e sonhador, uma mistura curiosa.
Parei por um momento para pensar se realmente existia tal mistura no meu
caráter. De modo geral, eu não concordava com aquela análise, mas concluí que
não valia a pena discutir o assunto.
Quando pergunto o que sou hoje, Herbert, prossegui, estou te transmitindo
o que se passa pela minha cabeça. Tu me dizes que tenho sorte. Sei que não fiz
nada para subir na vida, e que apenas o fado me elevou; é isso que é ter sorte. E
no entanto, quando penso em Estella
(E quando é que não pensas nela?, comentou Herbert, olhando para o fogo;
um comentário que me pareceu bondoso e solidário.)
Então, meu caro Herbert, eu não saberia exprimir o quanto me sinto
dependente e inseguro, e exposto a centenas de eventualidades. Para evitar o
território proibido, como fizeste ainda há pouco, posso dizer que é da constância
de uma pessoa (a qual não identifico) que dependem todas as minhas esperanças.
E na melhor das hipóteses, como é indefinido e frustrante, saber apenas de modo
tão vago quais elas são! Ao dizer isso, aliviei-me de um fardo que carregava em
minha mente mais ou menos desde sempre, mas em particular desde a véspera.
Ora, Handel, respondeu Herbert, com seu jeito alegre e esperançoso, a
meu ver, no desânimo causado pelos sentimentos mais tenros, estamos
examinando com uma lupa os dentes do cavalo dado. Do mesmo modo, creio
que, ao nos determos nesse exame, deixamos de lado uma das melhores
qualidades do animal. Não me disseste que o teu tutor, o senhor Jaggers, desde o
início deixou claro que o que tens não são apenas esperanças? E mesmo que ele
não tivesse dito isso o que é uma concessão muito grande acreditarias que,
de todas as pessoas que há em Londres, o senhor Jaggers haveria de manter
contigo as relações que mantém se não tivesse certeza de onde está pisando?
Respondi que não podia negar que isso era uma qualidade. Disse isso
(pessoas costumam fazê-lo em casos assim) como quem faz uma concessão
relutante à verdade e à justiça como se quisesse negá-lo!
Eu diria que é sem dúvida uma qualidade, prosseguiu Herbert, e diria
também que seria difícil imaginar uma qualidade maior. No mais, tens que
esperar o tempo que teu tutor achar necessário, tal como ele tem de esperar o
tempo que o cliente dele achar necessário. Quando menos esperares, já estarás
completando vinte e um anos, e então quem sabe não ficarás sabendo um pouco
mais. Seja lá como for, mais dia, menos dia isso vai acontecer.
Mas tu tens mesmo um ânimo otimista!, exclamei, com gratidão.
Tenho que ter otimismo, disse Herbert, pois não tenho muito mais do que
isso. Preciso reconhecer, aliás, que o bom senso do meu comentário vem não de
mim, e sim de meu pai. A única observação que eu o ouvi fazer a respeito do teu
caso foi esta: A coisa está decidida, senão o senhor Jaggers não estaria
envolvido. E agora, antes que eu diga mais alguma outra coisa a respeito de meu
pai, ou do filho de meu pai, fazendo uma confidência para corresponder à tua,
vou dizer uma coisa que vai me tornar profundamente desagradável para ti por
um momento realmente repulsivo.
Não vais conseguir, disse eu.
Ah, mas vou, sim!, ele insistiu. Um, dois, três, e lá vou eu. Handel, meu
caro embora seu tom fosse alegre, ele estava falando muito a sério estou
pensando, desde que começamos esta conversa com os pés apoiados no guardafogo,
que Estella certamente não pode ser uma condição da tua herança, se ela
nunca foi mencionada pelo teu tutor. É verdade, quanto ao que me disseste, que
ele jamais se referiu a ela, de modo direto ou indireto, em nenhuma ocasião?
Jamais deu a entender, por exemplo, que o teu protetor talvez tivesse algum plano
com relação ao teu casamento?
Jamais.
Ora, Handel, eu não sou homem de dizer, como disse a raposa, que as uvas
estão azedas, palavra de honra! Como não estás comprometido com Estella, não
podes desligar-te dela? Eu avisei que seria desagradável.
Virei a cabeça para o lado, pois, num assomo súbito, como os velhos ventos
que vinham do mar e varriam o charco, um sentimento como aquele que havia
me dominado no dia em que fui embora da ferraria, quando a névoa se elevava
solene, quando pus a mão no poste indicador no final da aldeia, dominou meu
coração outra vez. Fez-se o silêncio entre nós por algum tempo.
Sim; porém, meu caro Handel, prosseguiu Herbert, como se tivéssemos
dito algo e não permanecido calados, o fato de que a coisa tem raízes tão
profundas no peito de um rapaz que a natureza e as circunstâncias tornaram tão
romântico, torna-a muito séria. Pensa no modo como ela foi criada, e pensa na
senhora Havisham. Pensa no que ela é, ela própria (agora estou sendo repulsivo,
e você me abomina). Isso pode terminar em muito sofrimento.
Eu sei, Herbert, respondi, ainda virado para o outro lado, mas não posso
fazer nada.
Não podes desligar-te?
Não. É impossível!
Não podes tentar, Handel?
Não. É impossível!
Pois bem!, exclamou Herbert, levantando-se e sacudindo-se com energia,
como se estivesse acordando, e atiçando o fogo. Agora vou tentar voltar a ser
agradável!
Assim, ficou a andar pelo recinto, sacudindo as cortinas, recolocando as
cadeiras em seus lugares, arrumando nas prateleiras os livros e outras coisas que
estavam espalhadas; olhou para o corredor, examinou a caixa de
correspondência, fechou a porta e voltou para sua cadeira junto à lareira: e
sentou-se, segurando a perna esquerda com os dois braços.
Eu ia dizer uma ou duas coisas, Handel, sobre o meu pai e o filho de meu
pai. Acho que o filho de meu pai nem precisa dizer que a casa de meu pai não
prima pelas contas em ordem.
Nunca falta nada, Herbert, disse eu, para fazer algum comentário
animador.
Ah, é verdade! É o que diz o lixeiro, creio eu, com muita ênfase, e também
a loja de artigos para navios da rua de trás. Falando sério, Handel, pois o assunto
é sério, tu sabes como é, tão bem quanto eu. Creio houve uma época em que
meu pai não havia entregado os pontos; mas se houve, ela já passou. Posso te
perguntar se já tiveste oportunidade de observar, lá na tua terra, que os filhos de
casais não muito bem casados são sempre os que têm mais pressa de casar?
A pergunta era tão singular que a respondi com outra pergunta: Isso é
verdade?.
Não sei, respondeu Herbert. É isso que quero saber. Porque certamente é
o que acontece conosco. Minha pobre irmã, Charlotte, que vinha logo antes de
mim e morreu quando ainda nem tinha catorze anos, é um exemplo claro. A
pequena Jane é outro. Ela tem tanta vontade de se casar que quem vê até
imagina que ela passou toda a sua breve existência na constante contemplação da
felicidade conjugal. A pequena Alick já combinou que vai casar-se com um
rapaz adequado de Kew. Aliás, acho que todos nós já estamos noivos, menos o
bebê.
Quer dizer que você está noivo?, perguntei.
Estou, sim, Herbert respondeu; mas é segredo.
Prometi-lhe que guardaria o segredo, e implorei para que me desse mais
detalhes. Ele falara de modo tão sensato e sentido a respeito da minha fraqueza
que eu queria saber alguma coisa sobre a sua força.
Posso perguntar o nome?, indaguei.
O nome é Clara, disse Herbert.
Mora em Londres?
Mora. Talvez eu deva dizer, respondeu Herbert, que curiosamente ficara
cabisbaixo e humilde desde que havíamos entrado naquele assunto interessante,
que ela está muito abaixo das exigências absurdas de minha mãe a respeito de
famílias. O pai dela trabalhava na área de abastecimento de navios de
passageiros. Creio que era uma espécie de tesoureiro.
E agora ele é o quê?, perguntei.
Um inválido, Herbert.
Ele vive
?
No andar de cima, respondeu Herbert. Não fora esse, em absoluto, o
sentido da minha pergunta, e sim seu meio de vida. Nunca vi o pai, pois ele não
sai do quarto dele lá em cima, desde que conheci a Clara. Mas eu o ouço
constantemente. Ele cria os maiores tumultos grita, e bate no chão com algum
instrumento assustador. Olhando para mim e depois rindo-se gostosamente,
Herbert por algum tempo recuperou seu jeito animado costumeiro.
Não pretendes jamais vê-lo?, perguntei.
Claro, estou sempre achando que vou vê-lo, respondeu Herbert, porque
cada vez que o ouço tenho a impressão de que ele vai desabar do andar de cima,
por um buraco no teto. Mas não sei quanto tempo ainda os caibros vão aguentar.
Depois de rir-se gostosamente mais uma vez, tornou a ficar humilde, e disseme
que, assim que começasse a acumular algum capital, tinha intenção de
desposar essa moça. Acrescentou, como se fosse uma proposição de veracidade
óbvia, e desanimadora: Mas não se pode casar, tu sabes, enquanto ainda se está
olhando à volta.
Enquanto contemplávamos o fogo, e eu pensava o quanto era difícil
acumular capital às vezes, pus as mãos nos bolsos, e um pedaço de papel que
havia num deles atraiu minha atenção; desdobrei-o e vi que era um programa do
espetáculo teatral que me fora entregue por Joe, a apresentação do célebre
amador provinciano de renome rosciano. E olha só, acrescentei em voz alta,
é hoje!
Desse modo, mudamos de assunto na mesma hora, e decidimos
apressadamente ir assistir à peça. Assim, depois que me comprometi a confortar
e ajudar Herbert em suas questões amorosas por todos os meios práticos e
impraticáveis, e depois que Herbert me disse que sua noiva já me conhecia por
minha reputação e que eu seria apresentado a ela, e depois que trocamos um
aperto de mãos caloroso, selando nossa confiança mútua, sopramos as velas,
apagamos o fogo da lareira, trancamos a porta e saímos em busca do sr. Wopsle
e da Dinamarca.2
12
Quando chegamos à Dinamarca, encontramos o rei e a rainha instalados em
duas poltronas colocadas sobre uma mesa de cozinha, cercados por sua corte.
Toda a nobreza do país estava presente; ela consistia num rapaz jovem que
calçava botas de camurça herdadas de algum ancestral gigantesco, um
venerável par do reino de cara suja que parecia ter-se destacado do populacho a
uma altura avançada da vida, e a cavalaria dinamarquesa com um pente no
cabelo e meias de seda branca, tendo todo o conjunto uma aparência bem
feminina. Meu talentoso conterrâneo guardava certa distância dos outros,
melancólico, de braços cruzados, e desejei que seus cachos e sua testa fossem
um pouco mais verossímeis.
Uma série de pequenas circunstâncias curiosas veio à tona enquanto a ação
se desenrolava. Ao que parecia, o falecido rei do país não apenas sofria de uma
tosse insistente no momento de sua morte, como também a havia levado para o
túmulo, de onde ela emergira com ele. O fantasma real levava também um
manuscrito espectral enrolado em seu porrete, e parecia consultá-lo, com um ar
de ansiedade e uma tendência a perder o lugar da leitura que pareciam indicar
um estado de mortalidade. Creio que foi isso que levou a galeria do teatro a
aconselhar o espectro: Vira a página! uma recomendação que ele recebeu
muito mal. Observava-se também que essa majestosa aparição, embora sempre
aparecesse dando a impressão de que estivera fora há muito tempo e caminhara
uma distância imensa, na verdade vinha de uma parede bem perto dali. Por esse
motivo, os terrores dessa criatura eram recebidos com gargalhadas irreverentes.
A rainha da Dinamarca, uma senhora de carnes muito abundantes, tinha igual
abundância de adereços de latão; seu queixo estava unido ao diadema por uma
faixa larga feita desse metal (como se ela estivesse acometida de uma dor de
dentes suntuosa), uma faixa semelhante lhe cingia a cintura e duas outras lhe
adornavam os braços, o que levou o público a caracterizá-la abertamente como
a latoeira. O rapaz nobre das botas ancestrais era incoerente; encarnava quase
simultaneamente um marujo, um ator itinerante, um coveiro, um sacerdote e
uma personagem da maior importância num duelo de esgrima na corte, cujo
olho clínico e perícia profissional fundamentavam avaliações precisas de cada
golpe. Esse fato gradualmente teve o efeito de granjear-lhe antipatia, a qual
culminou no momento em que ele foi visto em trajes clericais, recusando-se a
ministrar um serviço fúnebre numa indignação geral, que assumiu a forma de
uma saraivada de nozes. Por fim, Ofélia sofria de uma loucura musical de tal
lerdeza que quando ela por fim conseguiu retirar sua estola de musselina branca,
dobrá-la e enterrá-la, um homem mal-humorado que já estava há algum tempo
refrescando o nariz impaciente encostando-o à barra de ferro que circundava a
galeria, rosnou: Agora que puseram o bebê na cama, vamos jantar!. Um
comentário, no mínimo, impertinente.
Todos esses incidentes acumularam-se sobre meu infeliz conterrâneo, com
efeito hilariante. Sempre que aquele príncipe indeciso era obrigado a fazer uma
pergunta ou exprimir uma dúvida, o público o ajudava. Assim, por exemplo,
diante da questão de ser ou não mais nobre na mente sofrer, alguns gritaram que
sim, outros que não, e ainda outros, indecisos, sugeriram: Tira na cara ou
coroa!, o que deu origem a um acalorado debate. Quando ele perguntou o que
fazia uma criatura como ele a rastejar entre a terra e os céus, a plateia reagiu
com gritos animados de Isso mesmo!. Quando ele apareceu com a meia fora
do lugar (o que foi representado, como manda a tradição, por uma dobra muito
cuidadosa no alto da meia, que sempre me parece ter sido feita com um ferro de
passar), entreouviu-se uma conversa na galeria a respeito da palidez de sua
perna, que possivelmente teria sido causada pelo susto levado diante do fantasma.
Quando o príncipe pegou uma flauta doce muito semelhante a uma pequena
flauta negra que fora recentemente tocada na orquestra e entregue pela porta
houve um clamor unânime, pedindo que ele tocasse a canção patriótica Rule,
Britannia. Quando ele aconselhou o ator a não gesticular de modo exagerado, o
homem mal-humorado interveio: Segue tu mesmo esse conselho; és muito pior
do que ele!. E lamento acrescentar que gargalhadas gostosas saudaram o sr.
Wopsle em cada uma dessas ocasiões.
Porém ele enfrentou suas piores provações no cemitério, o qual parecia uma
floresta primeva, equipada com uma espécie de pequena lavanderia eclesiástica
de um lado e uma barreira de pedágio do outro. Quando surgiu o sr. Wopsle, com
uma capa negra abrangente, junto à barreira, o coveiro foi devidamente alertado
por uma voz simpática: Cuidado! Lá vem o agente funerário, para ver se estás
trabalhando direitinho!. Creio que todos sabem num país civilizado que não seria
possível o sr. Wopsle manusear um crânio, após filosofar a respeito dele, sem
depois limpar os dedos num lenço branco retirado do bolso; mas até mesmo esse
gesto inocente e indispensável evocou um comentário: Garçom!. A chegada
do corpo a ser enterrado (numa caixa preta vazia cuja tampa caiu no chão) foi o
sinal para uma manifestação de júbilo geral, o qual se intensificou ainda mais
quando foi verificada, entre os homens que carregavam o esquife, a presença de
um indivíduo cuja identificação causou indignação. Esse júbilo acompanhou o sr.
Wopsle durante todo o decorrer de sua luta com Laertes à beira da orquestra e da
sepultura, e prosseguiu até que ele derrubou o rei da mesa de cozinha e foi
morrendo aos poucos, dos calcanhares para cima.
Nós dois havíamos esboçado frágeis tentativas de aplaudir o sr. Wopsle no
início, todavia era inútil insistir. Assim, assistimos ao espetáculo sentindo muita
pena dele, porém ao mesmo tempo rindo sem parar. Embora tentasse me conter,
ri o tempo todo, pois era tudo muito engraçado; e, no entanto, tinha a impressão
latente de que havia algo de realmente belo na elocução do sr. Wopsle não se
tratava de nostalgia, creio eu, e sim do fato de ele falar de modo muito arrastado,
muito lúgubre, subindo e descendo, como homem algum, em quaisquer
circunstâncias de vida ou morte, jamais se manifestaria a respeito de qualquer
assunto. Depois que terminou a tragédia, e que ele foi chamado ao palco e
recebeu vaias, dirigi-me a Herbert: Vamos embora logo, para não haver perigo
de nos encontrarmos com ele.
Descemos a escada com toda a velocidade, mas não corremos o bastante.
Parado à porta, um judeu com sobrancelhas anormalmente acentuadas olhoume
nos olhos e disse, quando nos aproximamos dele:
Senhor Pip e amigo?
Confessamos nossas identidades de sr. Pip e amigo.
O senhor Waldengarver, apresentou-se o homem, gostaria de ter a
honra.
Waldengarver?, repeti quando então Herbert murmurou em meu
ouvido: Deve ser Wopsle.
Ah!, exclamei. Sim. Devemos segui-lo?
É logo ali, por favor. Quando estávamos num beco transversal, ele virouse
e perguntou: O que o senhor achou da aparência dele? Fui eu que o vesti.
Eu não sabia o que dizer; a aparência dele evocara um enterro, com o
acréscimo de um enorme sol ou estrela da Dinamarca pendurado em seu
pescoço por uma fita azul, o que lhe dera a aparência de alguém que era
segurado por um extraordinário corpo de bombeiros.1 Porém respondi que o
achei muito bem.
Quando ele chegou na cova, disse nosso guia, ele mostrou a capa muito
bem. Mas, depois, vendo lá dos bastidores, achei que quando ele viu o fantasma
no quarto da rainha, ele podia ter mostrado melhor as meias.
Concordei, com modéstia, e todos nós entramos por uma porta de vaivém
pequena e suja e entramos numa espécie de caixote quente. Dentro dele, o sr.
Wopsle estava tirando suas roupas dinamarquesas, e ali havia apenas o espaço
necessário para que olhássemos para ele um por cima dos ombros do outro, mas
só se mantivéssemos aberta a porta, ou tampa, daquele caixote.
Senhores, disse o sr. Wopsle, estou orgulhoso por vê-los. Espero, senhor
Pip, que me desculpe por tê-los chamado. Tenho a felicidade de o haver
conhecido outrora, e essa tragédia sempre foi admirada pelos nobres e
prósperos.
Enquanto isso, o sr. Waldengarver, suando profusamente, tentava livrar-se de
seus negros trajes principescos.
Puxe a meia pra baixo, senhor Waldengarver, disse o proprietário das
roupas em questão, senão vai rasgar. Se rasgar é trinta e cinco xelins. Nem
mesmo Shakespeare teve uma meia melhor que essa. Fique sentado aí que eu
mesmo tiro.
Dizendo isso, ajoelhou-se e começou a esfolar sua vítima; a qual, no
momento em que foi retirada a primeira meia, só não caiu para trás com cadeira
e tudo porque não havia espaço para tal.
Até aquele momento, eu estava temendo a hora de fazer algum comentário
a respeito do espetáculo. Mas o sr. Waldengarver nos dirigiu um olhar
complacente e perguntou:
Senhores, o que acharam da peça, vista lá da frente?
Herbert respondeu, atrás de mim (e me cutucando ao mesmo tempo):
Excelente. Assim, repeti: Excelente.
E o que acharam da minha leitura do personagem, senhores?, perguntou o
sr. Waldengarver num tom quase, ainda que não completamente, superior.
Herbert respondeu, atrás de mim (mais uma vez me cutucando):
Abrangente e concreta. Assim, respondi, como se eu tivesse tido a ideia, e me
visse obrigado a insistir nela: Abrangente e concreta.
Agrada-me contar com a sua aprovação, senhores, disse o sr.
Waldengarver, com um ar de dignidade, embora estivesse sendo empurrado
contra a parede no momento, segurando-se no assento da cadeira.
Mas vou lhe dizer uma coisa, senhor Waldengarver, interveio o homem
ajoelhado, sobre essa sua leitura que eu não gostei. Escute só! E se alguém não
concordar, paciência; é o que eu acho. O senhor não lê o Hamlet direito quando
mostra as pernas de perfil. O último Hamlet que vesti fez o mesmo erro no
ensaio, aí eu pus um pedaço de lacre vermelho grande em cada canela dele, e aí
naquele ensaio (que era o último) fui lá pra plateia, junto da orquestra, e toda vez
que ele ficava de perfil eu gritava: Não estou vendo os lacres, não!. E de noite a
leitura dele foi muito boa.
O sr. Waldengarver sorriu para mim, como quem diz: Um fiel servidor
eu perdoo sua tolice; em seguida, disse em voz alta: Minha leitura é um tanto
clássica e filosófica demais para eles aqui, mas eles vão entender, vão entender.
Herbert e eu dissemos juntos: Ah, sem dúvida, eles iriam entender.
Os senhores observaram, comentou o sr. Waldengarver, que havia um
homem na galeria tentando achincalhar o culto quer dizer, o espetáculo?
Respondemos, cínicos, que tínhamos a vaga impressão de ter percebido tal
coisa. Acrescentei: Ele estava bêbado, certamente.
Ah, não, senhor, corrigiu o sr. Wopsle, não estava bêbado, não. O patrão
dele não deixa. O patrão dele não deixaria que ele ficasse bêbado.
O senhor conhece o patrão dele?
O sr. Wopsle fechou os olhos e voltou a abri-los, realizando ambas as
cerimônias muito lentamente. Os senhores devem ter constatado, se me
permitem o galicismo, disse ele, a presença de um idiota ignorante, de voz
áspera e expressão vil e maligna, que interpretou se é possível usar o termo
em tal contexto o papel de Cláudio, rei da Dinamarca. Este é o patrão dele,
senhores. Esta é a profissão dele!
Sem saber bem se deveria sentir mais pena do sr. Wopsle se ele estivesse
desesperado, eu sentia tanta pena dele naquela situação que aproveitei o
momento em que ele nos deu as costas para colocar os suspensórios o que nos
obrigou a sair pela porta afora para perguntar a Herbert se ele achava que
devíamos convidá-lo para jantar conosco em nossa casa. Herbert respondeu que
seria uma cortesia fazê-lo; assim, convidei-o, e ele acompanhou-nos até o
Barnards Inn, agasalhado até os olhos, e esforçamo-nos ao máximo para
agradar-lhe, e ele ficou conosco até as duas da madrugada, analisando seu
sucesso e expondo seus planos. Já não me lembro bem dos detalhes, mas de
modo geral ele ia começar reavivando a arte dramática e terminar esmagandoa,
pois que sua morte a deixaria inteiramente desprovida de qualquer
oportunidade e esperança.
Profundamente infeliz, deitei-me, e profundamente infeliz pensei em Estella,
e profundamente infeliz sonhei que todas as minhas esperanças haviam sido
canceladas, e que eu seria obrigado a desposar a Clara de Herbert, ou então a
representar o papel de Hamlet, sendo o fantasma encarnado pela sra. Havisham,
diante de uma plateia de vinte mil pessoas, sem saber de cor nem vinte palavras
do texto.
13
Um dia, estando eu ocupado com meus livros e com o sr. Pocket, recebi um
bilhete entregue pelo correio, e só de olhar para o envelope fiquei profundamente
perturbado, pois, embora jamais tivesse visto a letra com que ele estava
endereçado, adivinhei a quem ela pertencia. Não havia no bilhete nenhuma
introdução, como Caro sr. Pip , ou Caro Pip, ou Caro Senhor, ou Caro Alguma
Coisa, porém seu teor era o seguinte:
Chego a Londres depois de amanhã na diligência do meio-dia. Ficou
combinado que você me receberia, não? Seja como for, é essa a impressão
da sra. Havisham, e escrevo em obediência a ela. A sra. Havisham mandalhe
saudações.
Com estima, Estella.
Se houvesse tempo, provavelmente eu teria encomendado vários trajes para
essa ocasião; mas como não havia, era necessário contentar-me com as roupas
que tinha. Meu apetite desapareceu no mesmo instante, e não tive mais paz de
espírito até que chegou o dia. Não que a chegada do dia me trouxesse a paz; na
verdade, fiquei pior do que nunca, e comecei a rondar o escritório das diligências
na Wood-street, Cheapside, antes mesmo que a carruagem partisse do Javali
Azul na nossa aldeia. Muito embora soubesse que isto não era necessário, mesmo
assim eu sentia que não devia afastar-me do escritório das diligências por mais
de cinco minutos; e nesse estado irracional havia gasto a primeira meia hora de
uma espera de quatro ou cinco horas quando Wemmick deu comigo.
Ora, ora, senhor Pip, disse ele, como está? Jamais imaginei que o senhor
frequentasse este lugar.
Expliquei que estava esperando alguém que chegaria na diligência, e
perguntei-lhe como estavam o castelo e o idoso.
Os dois vão muito bem, obrigado, disse Wemmick, especialmente o
idoso. Está em plena forma. Vai completar oitenta e dois anos. Estou pensando
em disparar oitenta e dois tiros, se a vizinhança não reclamar, e se aquele canhão
aguentar tanta pressão. Mas isso não é conversa que se tenha em Londres. Aonde
o senhor acha que eu estou indo?
Ao escritório?, indaguei, pois ele se encaminhava nessa direção.
Bem ao lado dele, respondeu sr. Jaggers. Estou indo a Newgate. Estamos
no momento cuidando de um caso que envolve um pacote de um banqueiro, e fui
dar uma olhada no local, e agora preciso conversar um pouco com nosso
cliente.
O seu cliente cometeu o roubo?, perguntei.
Deus me livre, não, respondeu Wemmick, muito seco. Mas está sendo
acusado do roubo. Como podia ser eu ou o senhor. Qualquer um de nós pode ser
acusado, o senhor sabe.
Só que nem eu nem o senhor fomos acusados, observei.
Isso mesmo!, exclamou Wemmick, pondo o indicador no peito. O senhor
é muito esperto, senhor Pip! Gostaria de ir até Newgate? Tem algum tempo
sobrando?
Eu tinha tanto tempo que a proposta me causou alívio, muito embora fosse
incompatível com meu desejo latente de ficar de olho no escritório das
diligências. Murmurei que ia indagar se teria tempo bastante para ir com ele,
entrei no escritório e obtive do funcionário, com muita precisão e muito
autocontrole da parte dele, um esclarecimento a respeito da primeira hora em
que poderia chegar a diligência coisa que eu já sabia tão bem quanto ele.
Então fui ter outra vez com o sr. Wemmick, e fingindo que consultava meu
relógio e me surpreendia com a informação que me fora fornecida, aceitei seu
convite.
Chegamos a Newgate em poucos minutos, passando pela guarita onde
algemas pendiam das paredes nuas em meio aos regulamentos da instituição, e
chegamos ao interior da cadeia. Naquele tempo, as cadeias eram muito
negligenciadas, e o período de reação exagerada diante dos malfeitos das
autoridades e que é sempre sua punição mais pesada e mais prolongada
ainda estava distante. Assim, as acomodações e a alimentação dos presidiários
não eram melhores que as dos soldados (para não falar nos indigentes), e eles
raramente ateavam fogo a suas prisões com o objetivo desculpável de melhorar
o sabor de sua sopa.1 Era hora de visitação quando Wemmick me levou lá; e um
empregado de taverna estava entregando cerveja; e os prisioneiros, atrás das
grades no pátio, estavam comprando cerveja e conversando com os amigos; era
uma cena sórdida, feia, caótica e deprimente.
Ocorreu-me que Wemmick caminhava em meio aos prisioneiros tal como
um jardineiro entre suas plantas. Essa ideia surgiu em minha cabeça quando o vi
observando um broto que havia surgido durante a noite e dizendo: O quê?
Capitão Tom? Você por aqui? Ora, essa!, e também: Aquele ali atrás da
cisterna é o Black Bill? Porque não procurei você nos últimos dois meses? E como
está você?. Também quando parava junto às grades e escutava cochichos
ansiosos sempre um de cada vez Wemmick, com sua caixa de correio em
estado de imobilidade, olhava para eles enquanto os ouvia como se estivesse
observando o progresso que haviam feito desde a última observação,
preparando-se para aparecer em plena floração no tribunal.
Ele era muito popular, e reparei que era responsável pelo departamento
familiar dos negócios do sr. Jaggers, se bem que algo da eminência do sr. Jaggers
também pairava em torno dele, impedindo uma aproximação além de certos
limites. Seu reconhecimento pessoal de cada cliente sucessivo manifestava-se
através de um aceno de cabeça e do gesto de ajeitar o chapéu na cabeça com as
duas mãos; em seguida, estreitava a caixa postal e punha as mãos nos bolsos. Em
um ou dois casos, surgiu uma dificuldade a respeito de um acréscimo nos
honorários, e então o sr. Wemmick, recuando ao máximo do dinheiro insuficiente
oferecido, dizia: Não adianta, meu rapaz. Sou apenas um subordinado. Não
posso aceitar. Não adianta insistir com um subordinado. Se você não consegue
cobrir a quantia, meu rapaz, é melhor dirigir-se diretamente a um advogado; há
muitos advogados, você sabe, e o que não interessa a um pode interessar a outro;
é essa a recomendação que lhe posso dar, falando na posição de subordinado.
Não adianta tentar medidas inúteis. Pra quê? Mas sim, quem é o próximo?.
Assim, fomos caminhando pela estufa de Wemmick, até que ele se virou
para mim e disse: Observe o homem a quem vou apertar a mão agora. Eu
haveria de observá-lo mesmo sem essa preparação, pois até aquele momento ele
não apertara a mão de ninguém.
Quase imediatamente depois que ele Wemmick, um homem corpulento,
empertigado (o qual vejo agora, no momento em que escrevo), trajando uma
sobrecasaca verde-oliva bem gasta, com uma palidez estranha sobrepondo-se à
tez rubicunda, e olhos que ficavam a rodar quando ele tentava fixá-los,
aproximou-se de um canto das grades e levou a mão ao chapéu cuja
superfície era ensebada e gordurenta, como caldo de carne frio numa
continência militar meio a sério, meio de brincadeira.
Coronel, salve!, saudou-o Wemmick. Como vai?
Vou bem, senhor Wemmick.
Tudo que podia ser feito foi feito, mas as provas eram fortes demais pra
nós, coronel.
Eram fortes demais, sim, senhor mas eu não me importo.
Não, não, disse Wemmick, imperturbável, o senhor não se importa. Em
seguida, virando-se para mim: Serviu a sua majestade, este homem. Foi
soldado, serviu e pagou pra ter baixa.
Eu disse: É mesmo?, e os olhos do homem viraram-se para mim, e depois
olharam por cima de minha cabeça, depois a meu redor, e por fim ele passou a
mão pelos lábios e riu.
Acho que vou sair daqui na segunda-feira, senhor, disse ele a Wemmick.
Talvez, meu amigo, mas não há como saber.
Agradeço a oportunidade de me despedir do senhor, disse o homem, e
estendeu a mão por entre as grades.
Obrigado, disse Wemmick, apertando-lhe a mão. O mesmo da minha
parte, coronel.
Se o que eu tinha comigo quando fui preso fosse de verdade, senhor
Wemmick, disse o homem, sem querer soltar a mão do outro, eu haveria de
lhe pedir o favor de usar mais um anel em reconhecimento a seu esforço.
Aceito a intenção como se fosse o ato, disse Wemmick. A propósito, o
senhor era um grande criador de pombos. O homem olhou para o céu. Soube
que o senhor tinha uma raça notável de pombos volteadores.2 Será que podia
falar com um amigo seu para me trazer um casal, se não for precisar mais
deles?
Vou atendê-lo, senhor Wemmick.
Muito bem, disse Wemmick, eles vão ser bem cuidados. Boa tarde,
coronel. Adeus! Trocaram outro aperto de mãos, e enquanto nos afastávamos
Wemmick me disse: Um moedeiro, um artesão excelente. O relatório do juiz3
sai hoje, e é certo que ele seja executado na segunda-feira. Seja como for, como
o senhor sabe, dois pombos não deixam de ser valores portáteis. Tendo dito isso,
olhou para trás e acenou com a cabeça para aquela planta morta, e olhou à sua
volta enquanto saía do pátio, como se pensasse qual o vaso que ficaria melhor no
lugar daquele.
Ao sairmos da prisão através da guarita, observei que a grande importância
de meu tutor era reconhecida pelos carcereiros, tanto quanto por aqueles que eles
mantinham presos. Diga lá, senhor Wemmick, perguntou o carcereiro que nos
manteve entre os dois portões reforçados e encimados por espigões, e que
cuidadosamente trancou um antes de destrancar o outro, o que o senhor Jaggers
vai fazer com aquele assassinato à beira-rio? Vai fazer virar um homicídio
culposo, ou o quê?
Por que você mesmo não pergunta a ele?, devolveu Wemmick.
Até parece!, disse o carcereiro.
Com eles tem que ser assim, senhor Pip, comentou Wemmick, virando-se
para mim com sua caixa de correio alongada. Eles perguntam qualquer coisa a
mim, o subordinado; mas nunca fazem pergunta nenhuma a meu patrão.
Esse jovem cavalheiro é um dos aprendizes lá da sua firma?, perguntou o
carcereiro, com um sorriso irônico provocado pelo gracejo do sr. Wemmick.
Está vendo? Lá vai ele outra vez!, exclamou Wemmick. Eu não disse?
Fazendo a segunda pergunta pro subordinado quando a primeira ainda está no ar!
Pois bem, e se o senhor Pip for um deles?
Ora, nesse caso, disse o carcereiro, sorrindo outra vez, ele sabe como é o
senhor Jaggers.
Aah!, exclamou Wemmick, batendo de repente no carcereiro de
brincadeira, você é tão burro quanto essa porta quando se trata do meu patrão,
você sabe que é. Abra esse portão para nós, sua raposa velha, se não eu faço o
homem processá-lo por cárcere privado.
O carcereiro riu, e desejou-nos bom-dia, e ficou rindo de nós por cima dos
espigões do portão enquanto descíamos a escada em direção à rua.
Olhe, senhor Pip, disse Wemmick ao pé de meu ouvido num tom sério,
enquanto segurava meu braço para falar de modo mais confidencial; o senhor
Jaggers faz muito bem de se manter tão altivo. Ele é sempre muito altivo. Sua
altivez constante é coerente com suas imensas capacidades. O tal do coronel não
ousaria se despedir dele, tal como esse carcereiro não ousaria perguntar a ele
quais as suas intenções em relação a um caso. Então, entre a altitude dele e essas
pessoas, ele coloca o subordinado está entendendo? e desse modo controlaos
por completo, corpo e alma.
Fiquei muito impressionado, e não pela primeira vez, com a sutileza de meu
tutor. Para ser franco, desejei com todas as minhas forças, e não pela primeira
vez, que meu tutor fosse um homem de menos capacidade.
Eu e o sr. Wemmick nos despedimos no escritório na Little Britain, onde
havia o contingente de sempre de suplicantes do sr. Jaggers perambulando na
rua, e retomei minha vigília nas imediações do escritório das diligências, tendo
ainda três horas para esperar. Consumi todo esse tempo pensando como era
estranho que eu estivesse sempre envolvido por essa nódoa de prisão e crime;
que, na minha infância, nos nossos charcos solitários numa noite de inverno, eu a
houvesse encontrado pela primeira vez; que ela tivesse reaparecido em duas
ocasiões, começando como uma nódoa desbotada, mas não desaparecida; que,
desta nova maneira, ela impregnasse minha fortuna e minha ascensão. Enquanto
minha mente estava ocupada com tais ideias, pensei na bela e jovem Estella,
orgulhosa e refinada, vindo em direção a mim, e pensei com horror profundo no
contraste entre a cadeia e ela. Lamentei que Wemmick se tivesse encontrado
comigo, e que eu houvesse aceito seu convite de me juntar a ele, para que,
justamente nesse dia, de todos os dias do ano, eu não tivesse o ar de Newgate no
meu hálito e nas minhas roupas. Bati os pés no chão, enquanto andava de um lado
para o outro, para me livrar da poeira da prisão, e sacudi minhas roupas com o
mesmo objetivo, tal como esvaziei o ar de meus pulmões. Tão contaminado eu
me sentia, pensando em quem estava vindo ter comigo, que a diligência acabou
chegando depressa, tanto assim que eu ainda não estava livre da consciência
maculada da estufa do sr. Wemmick quando vi o rosto de Estella à janela da
carruagem, e sua mão acenando para mim.
O que seria, então, a sombra sem nome que mais uma vez, naquele
momento, passou por mim?
14
Com seu vestido de viagem forrado de pele, a beleza delicada de Estella parecia
maior até do que me parecera antes, mesmo vista pelos meus olhos. Suas
maneiras para comigo eram mais sedutoras do que nunca, e julguei ver nessa
mudança o dedo da sra. Havisham. Estávamos parados no pátio da estalagem, e
ela indicou para mim sua bagagem, e depois que todas as peças foram recolhidas
me dei conta pois até então me havia esquecido de tudo que não fosse ela
de que nada sabia a respeito de seu destino.
Vou para Richmond, ela me informou. O que nos disseram é que existem
duas Richmonds, uma em Surrey e outra em Yorkshire, e que a minha é a de
Surrey. São doze quilômetros até lá. Devo alugar uma carruagem, e tu deves
levar-me. Eis aqui minha carteira, e deves pagar os custos com o dinheiro que
está dentro dela. Ah, tens de aceitar o dinheiro! Não temos escolha, eu e tu,
porém temos de seguir nossas instruções. Não temos liberdade de fazer nossas
próprias escolhas, eu e tu.
Enquanto olhava para mim ao me entregar a carteira, eu desejava que
houvesse um sentido oculto em suas palavras. Ela as pronunciara num tom
depreciativo, mas não com desprazer.
Temos que mandar vir uma carruagem, Estella. Queres descansar aqui um
pouco?
Sim, devo descansar um pouco, e devo tomar chá e tu deves tomar conta de
mim.
Ela tomou meu braço, como se aquilo tivesse de ser feito, e chamei um
garçom, que estava olhando para a carruagem como se nunca tivesse visto tal
coisa na vida, para lhe pedir que nos levasse a uma sala de espera particular. Ao
ouvir isso, ele sacou um guardanapo, como se fosse uma pista mágica sem a qual
ele não poderia encontrar o caminho do andar de cima, e levou-nos até o buraco
negro do estabelecimento: lá havia um espelho que diminuía as imagens (um
artigo um tanto supérfluo, levando-se em conta as proporções do buraco), uma
galheta contendo molho de anchova e um par de tamancos que alguém deixara
ali. Quando reclamei da escolha do lugar, ele nos levou a outro cômodo onde
havia uma mesa de jantar com trinta lugares, e na grelha via-se uma folha
queimada arrancada de um caderno sob uma pilha de pó de carvão. Após
contemplar aquele fogo morto e sacudir a cabeça, ele anotou meu pedido, o qual,
sendo apenas um chá para a senhora, o fez sair da sala em estado de profunda
depressão.
Julguei, e julgo até agora, que o ar daquele recinto, com sua combinação
intensa de cheiro de cavalariça com cheiro de sopa, poderia levar à conclusão de
que o departamento de carruagens não gozava de boa situação, e que o
proprietário estava cozinhando os cavalos para servi-los aos fregueses. No
entanto, aquela sala era tudo para mim, porque Estella estava dentro dela. Pensei
que, em sua companhia, eu teria sido feliz lá para sempre. (Observe-se que
naquele momento eu não estava de modo algum feliz, e tinha perfeita
consciência do fato.)
Aonde vais, em Richmond?, perguntei a Estella.
Vou morar, respondeu ela, pagando uma pequena fortuna, com uma
senhora de lá que tem o poder ou, ao menos, é o que ela diz de me levar a
lugares, me apresentar a pessoas e apresentar pessoas a mim.
Imagino que vás gostar de tanta variedade e admiração, não é?
Imagino que sim.
Ela respondeu com tamanha indiferença que me levou a dizer: Tu falas
sobre ti própria como se falasses de outra pessoa.
Onde ficaste sabendo como é que eu falo de outras pessoas? Ora, ora,
disse Estella, com um sorriso delicioso, não hás de querer que eu vá à escola
contigo; falo do jeito que falo. E como estás te saindo com o senhor Pocket?
É muito agradável morar lá; quer dizer
Eu tinha a impressão de que
estava perdendo uma oportunidade.
Quer dizer?, repetiu Estella.
Tão agradável quanto é possível ser para mim um lugar longe de ti.
Menino bobo, disse Estella, com perfeito autocontrole, como podes dizer
tamanha bobagem? Teu amigo, o senhor Matthew, creio eu, é superior ao resto
da família?
Muito superior. Seu único inimigo
Não diga que é ele mesmo, interrompeu Estella, pois detesto esse tipo de
homem. Mas ele realmente é uma pessoa desinteressada, muito acima de
ciúmes e despeitos mesquinhos, pelo que ouvi dizer, não é?
Tenho todos os motivos para dizer que sim.
Mas não tens todos os motivos para dizer o mesmo do resto da família,
disse Estella, com uma expressão ao mesmo tempo séria e provocadora, pois os
outros vivem fazendo à senhora Havisham insinuações e relatos desabonadores a
teu respeito. Eles te observam, mentem sobre ti, escrevem cartas sobre ti
(algumas delas anônimas), e tu és o tormento e a ocupação da vida deles. Nem
imaginas o ódio que essas pessoas têm de você.
Elas não me prejudicam, espero?, perguntei.
Em vez de me responder, Estella caiu na gargalhada. Achei essa reação
muito estranha, e fiquei a olhar para ela na mais completa perplexidade. Quando
ela terminou e não fora um riso lânguido, e sim uma gargalhada comentei,
da maneira tímida que eu adotava com ela:
Espero poder presumir que não acharias graça se eles me prejudicassem
de fato.
Não, não, podes ter certeza disso, disse Estella. Estejas certo de que estou
rindo porque eles não conseguem. Ah, essas pessoas que vivem em torno da
senhora Havisham, os suplícios que elas sofrem! Ela riu outra vez, e mesmo
agora, depois de me ter explicado a razão, seu riso continuava sendo muito
estranho para mim, pois eu não duvidava que fosse autêntico, e, no entanto, me
parecia excessivo. Parecia-me que deveria haver alguma coisa ali que eu não
sabia; ela leu meus pensamentos e respondeu a eles.
Não é fácil nem mesmo para ti, disse Estella, saber a satisfação que me
dá ver aquelas pessoas frustradas, nem como é agradável ver o quanto elas são
ridículas quando são ridicularizadas. Porque não foste criado naquela casa desde
pequeno: eu fui. Tu não tiveste de desenvolver as tuas defesas enfrentando as
intrigas delas contra ti, oprimido e indefeso, disfarçadas de manifestações de
carinho e de tudo o que há de suave e terno: eu tive. Tu não foste obrigado a
amadurecer arregalando cada vez mais teus olhos de criança diante de uma
impostora a calcular o estoque de paz de espírito que acumulava para quando ela
acordasse no meio da noite: eu fui.
Agora Estella não estava rindo, nem estava evocando aquelas lembranças de
nenhum lugar superficial. Apesar de todas as minhas esperanças, certamente não
era eu quem estava provocando aquela expressão no rosto dela.
Posso dizer-te duas coisas, ela prosseguiu. Em primeiro lugar, apesar do
provérbio de que água mole em pedra dura tanto bate até que fura, podes ter
certeza de que essas pessoas jamais nem mesmo se dispusessem de cem anos
vão conseguir abalar a opinião que a senhora Havisham tem a teu respeito,
em relação a qualquer aspecto, pequeno ou grande. Em segundo lugar, sou grata
a ti por tê-las mantido tão ocupadas com suas maldades em vão, e estendo-te a
minha mão por isso.
Ela o fez de modo jocoso pois o estado de espírito sombrio fora
momentâneo e eu tomei-lhe a mão e levei-a aos lábios. Menino ridículo,
disse Estella. Será que não aprendes? Ou beijas minha mão com o mesmo
espírito com que uma vez eu te deixei me beijar o rosto?
Que espírito?, perguntei.
Deixe-me pensar um momento. Um espírito de desprezo pelos bajuladores
e intrigantes.
Se eu disser que sim, posso beijar teu rosto de novo?
Devia ter perguntado antes de pegar na minha mão. Mas pode, sim, se
quiser.
Abaixei-me, e seu rosto tranquilo parecia uma estátua. Agora, disse
Estella, afastando-se de mim no momento em que toquei seu rosto, tens que
arranjar um chá para mim, e depois levar-me para Richmond.
Quando a ouvi reassumir aquele tom, como se nossa associação nos fosse
imposta à força e não passássemos de fantoches, doeu-me o coração; mas tudo
que se passava entre nós me fazia doer o coração. Qualquer que fosse o tom que
ela adotasse comigo, eu não podia confiar nele, nem nutrir quaisquer esperanças;
e, no entanto, eu seguia em frente, mesmo sem confiança, mesmo sem
esperança. Por que repeti-lo mil vezes? Era sempre assim.
Toquei a campainha e pedi chá, e o garçom, reaparecendo com sua pista
mágica, começou a trazer, paulatinamente, cerca de cinquenta utensílios
associados àquela bebida; mas quanto ao chá propriamente dito, nada. Uma
bandeja, xícaras, pires, pratos, facas e garfos (inclusive facas de cortar carne),
colheres (variadas), saleiros, um humilde bolinho cuidadosamente confinado sob
uma forte tampa de ferro, Moisés em meio aos juncos representado por um
pedacinho de manteiga mole no meio de uma abundância de salsa,1 um pão
pálido com uma peruca empoada, duas impressões das barras da lareira da
cozinha feitas em pedaços triangulares de pão, e por fim uma chaleira do
tamanho de uma urna mortuária, carregando a qual o garçom entrou
cambaleante, a exprimir no rosto esforço e sofrimento. Depois de uma longa
ausência a essa altura dos acontecimentos, ele por fim voltou, trazendo um
escrínio de aparência preciosa, contendo alguns gravetos. Mergulhei esses
gravetos em água quente, e de todos esses aparatos extraí uma xícara de não sei
o quê, para Estella.
Tendo sido paga a conta, e lembrado o garçom, sem esquecer o
palafreneiro, e levando também em conta a camareira em suma, tendo
subornado todo o estabelecimento, suscitando em todos sentimentos de desprezo e
animosidade, e deixando bem mais leve a carteira de Estella tomamos nossa
diligência e partimos. Ao entrar em Cheapside e subir pela Newgate-street, logo
passamos pelas muralhas que tanto me envergonhavam.
Que lugar é esse?, Estella perguntou-me.
Tolamente, fingi não reconhecê-lo de início, e em seguida disse a ela o que
era. Estella olhou, recolheu a cabeça e murmurou: Desgraçados!. Eu não teria
sido capaz de confessar que estivera lá naquela tarde por nada neste mundo.
O senhor Jaggers, observei, para associar o local a outra pessoa, tem a
reputação de conhecer melhor os segredos desse lugar lúgubre do que qualquer
homem em Londres.
Ele conhece os segredos de todos os lugares, creio eu, disse Estella, em voz
baixa.
Costumas vê-lo com frequência, imagino?
Costumo vê-lo com intervalos irregulares, desde que me tenho por gente.
Mas não o conheço melhor agora do que no tempo em que ainda não havia
aprendido a falar direito. Que experiência tens dele? Estás fazendo progressos
com ele?
Desde que me acostumei com seu jeito desconfiado, respondi, tenho me
saído muito bem.
Tornaram-se íntimos?
Já jantei na casa dele.
Imagino, disse Estella, recuando, que seja um lugar curioso.
É um lugar curioso.
Eu devia ter o cuidado de não falar sobre meu tutor tão abertamente, nem
mesmo com ela; mas teria prosseguido e relatado o jantar na Gerrard-street se
nesse momento não tivéssemos passado por uma súbita explosão de luz de gás.
Tudo parecia estar iluminado e vivo, enquanto durou, com aquela sensação
inexplicável que eu já tivera antes; e quando passamos do lugar, fiquei por alguns
momentos tão aturdido como se um relâmpago tivesse caído em mim.
Assim, passamos a falar sobre outros assuntos, principalmente nosso meio de
transporte e as regiões de Londres pelas quais passávamos, e coisas assim. A
metrópole era quase uma novidade para ela, Estella me revelou, pois jamais
havia saído do bairro da sra. Havisham até o dia em que foi para a França, e
apenas passara por Londres na ida e na volta. Perguntei-lhe se meu tutor cuidara
dela enquanto ela estivera lá. Ao ouvir isso, exclamou enfática: Deus me
livre!, e nada mais disse.
Era-me impossível não reparar que ela fazia questão de me atrair, que se
fazia sedutora, e que me teria conquistado mesmo se essa tarefa exigisse algum
esforço. No entanto, isso não me tornava mais feliz, pois mesmo se ela não
tivesse assumido aquele tom de que estávamos apenas cumprindo ordens de
terceiros, eu teria sentido que ela tinha meu coração na mão por puro cálculo,
não porque ele lhe proporcionasse algum sentimento terno, e sim para esmagá-lo
e jogá-lo fora.
Quando passamos por Hammersmith, indiquei-lhe onde morava o sr.
Matthew Pocket, e disse-lhe que não era longe de Richmond e que eu esperava
vê-la de vez em quando.
Ah, sim, deves me visitar; deves vir sempre que julgar apropriado; deves
ser mencionado para a família; aliás, já estás sendo mencionado.
Perguntei se a família de que ela ia fazer parte era grande.
Não; são apenas duas pessoas, mãe e filha. A mãe é uma dama com certa
projeção, creio eu, mas com alguma necessidade de aumentar sua renda.
Causa-me espanto que a senhora Havisham seja capaz de separar-se de ti
outra vez tão cedo.
Isso faz parte dos planos dela para mim, Pip, disse Estella, com um
suspiro, como se estivesse cansada; tenho de escrever-lhe constantemente e
visitá-la regularmente, e mantê-la informada sobre meus sucessos meus e das
joias pois agora quase todas elas são minhas.
Era a primeira vez que ela me chamava pelo nome. É claro que ela o fizera
de propósito, e sabia o valor que eu daria ao fato.
Chegamos a Richmond depressa demais, e nosso destino lá era uma casa
junto ao parque, uma casa velha e sóbria, onde saias-balões e perucas empoadas
e moscas de enfeite outrora desfilaram muitas vezes. Algumas árvores
venerandas à frente da casa ainda estavam podadas em formas tão rígidas e
artificiais quanto as saias-balões e perucas; mas seus lugares marcados na grande
procissão dos mortos não estavam distantes, e elas em breve iriam ocupá-los e
mergulhar no silêncio, como todos os outros.
Uma campainha com uma voz antiga a qual, imagino, no passado muitas
vezes dissera à casa: Eis as anquinhas verdes,2 eis a espada com punho de
brilhantes, eis os sapatos de saltos vermelhos e a gravata azul soou
circunspecta ao luar, e duas criadas cor de cereja vieram correndo receber
Estella. Logo a porta da frente absorveu sua bagagem, ela me deu a mão e um
sorriso e disse boa-noite, e foi igualmente absorvida. Ainda fiquei parado olhando
para a casa, pensando como eu seria feliz se vivesse lá com ela, sabendo que
jamais era feliz com ela, porém sofreria sempre.
Entrei na carruagem para ser levado de volta a Hammersmith, entrei com
uma dor no coração e saí com uma dor no coração maior ainda. Chegando à
porta da nossa casa, deparei com a pequena Jane Pocket, voltando de um passeio
com um pequeno grupo, acompanhada de seu namoradinho; e invejei seu
namoradinho, embora ele tivesse de obedecer a Flopson.
O sr. Pocket não estava em casa; havia saído para dar uma conferência, pois
ele falava muito bem sobre economia doméstica, e seus tratados a respeito dos
cuidados com os filhos e os criados eram conhecidos como os melhores sobre
tais temas. Porém a sra. Pocket estava em casa, e via-se em apuros por estar o
bebê a brincar com uma caixa de agulhas, para que não desse trabalho durante a
inexplicável ausência de Millers (que fora visitar um parente membro da
infantaria). E havia desaparecido um número de agulhas que não podiam ser
muito saudáveis para uma criança de tão tenra idade, nem se aplicadas
externamente nem se ingeridas como tônico.
Como o sr. Pocket era tão justamente reconhecido por dar conselhos práticos
excelentes, por ter uma visão tão clara e sensata das coisas e uma mente tão
judiciosa, cheguei a pensar, tamanha era a dor em meu coração, em implorarlhe
para que ouvisse minhas confidências. Porém, quando levantei a vista e
percebi que a sra. Pocket estava lendo seu livro sobre a nobreza depois de
recomendar a cama como um santo remédio para o bebê, pensei: Bem
não,
melhor não.
15
À medida que me acostumava com minhas esperanças, eu começara a
perceber, pouco a pouco, o efeito delas sobre mim mesmo e os que me
cercavam. Quanto à sua influência sobre o meu próprio caráter, ocultava-a de
mim mesmo tanto quanto possível, mas sabia muito bem que não era de todo
boa. Eu vivia num estado de mal-estar crônico com relação a meu
comportamento para com Joe. Minha consciência não estava de modo algum
tranquila quanto a Biddy . Quando acordava no meio da noite tal como Camilla
punha-me a pensar, com uma espécie de desânimo, que eu seria mais feliz e
uma pessoa melhor se nunca tivesse visto o rosto da sra. Havisham, e se houvesse
chegado à idade adulta contente por ser sócio de Joe na velha e honesta ferraria.
Muitas vezes, à noite, quando ficava sozinho olhando para o fogo, ocorria-me o
pensamento de que, no final das contas, não havia fogo igual ao da ferraria e ao
da cozinha da nossa casa.
No entanto, era tão impossível separar Estella de toda a minha inquietude e
desconforto mental que eu mergulhava num estado de confusão quando pensava
nos limites de minha própria responsabilidade por esse estado de espírito. Isto é,
supondo-se que minhas esperanças não existissem, e mesmo assim me
preocupasse com Estella, não me era possível convencer-me de que eu me sairia
muito melhor. Ora, quanto à influência da minha situação sobre os outros, eu não
tinha essa espécie de dificuldade, e, portanto, percebia ainda que, talvez, de
modo não muito claro que ela não era boa para ninguém, e acima de tudo,
não era boa para Herbert. Meus hábitos perdulários levavam sua natureza dócil a
incorrer em gastos acima de suas possibilidades, corrompiam a simplicidade de
sua vida e perturbavam sua paz de espírito com ansiedades e arrependimentos.
Eu não tinha qualquer remorso por ter levado, sem intenção de fazê-lo, os outros
ramos da família Pocket a recorrerem àquelas tristes artes que praticavam:
porque essa mesquinhez era sua tendência natural, e teria sido provocada por
qualquer outra pessoa, se não fosse eu. Mas o caso de Herbert era muito
diferente, e muitas vezes o remorso me pungia ao pensar que lhe fizera mal
atulhando seus aposentos quase nus com móveis estofados incoerentes, e
colocando o vingador, com seu traje cor de canário, à sua disposição.
Assim, agora, como método infalível de fazer com que as pequenas
preocupações se tornassem grandes, comecei a contrair uma quantidade de
dívidas. Naturalmente, bastava que eu começasse para que Herbert me seguisse,
e foi o que de fato logo aconteceu. Por sugestão de Startop, candidatamo-nos a
um clube chamado Tentilhões do Arvoredo, uma instituição cujos objetivos
jamais entendi, a menos que fosse apenas realizar uma dispendiosa reunião dos
membros uma vez a cada quinzena, brigar uns com os outros tanto quanto
possível após o jantar, e fazer com que seis garçons se embriagassem na escada.
Só sei que esses gratificantes fins sociais eram atingidos tão invariavelmente que
eu e Herbert não víamos outro sentido que não esse no primeiro brinde
permanente da sociedade, o qual era o seguinte: Senhores, que a atual
promoção de bons sentimentos sempre predomine entre os Tentilhões do
Arvoredo.
Os Tentilhões gastavam dinheiro de modo imprudente (o hotel em que
jantávamos ficava em Covent-garden), e o primeiro Tentilhão que vi quando tive
a honra de entrar para o Arvoredo foi Bentley Drummle, o qual no momento
estava rodando pela cidade num cabriolé de sua propriedade, causando grandes
danos aos postes nas esquinas. De vez em quando ele se projetava de seu veículo,
de cabeça, caindo por cima da lona; e numa ocasião vi-o entregar sua própria
pessoa à porta do Arvoredo dessa maneira não intencional como se ele fosse
uma porção de carvão. Mas estou me adiantando um pouco, pois eu ainda não
era um Tentilhão, nem podia ser, de acordo com as sagradas leis da sociedade,
enquanto não atingisse a maioridade.
Com a confiança que tinha em meus próprios recursos, de bom grado teria
assumido as despesas de Herbert; porém, Herbert era orgulhoso, e eu não
conseguia fazer uma tal proposta a ele. Assim, ele acumulava problemas em
todas as direções, e continuava a olhar à sua volta. Quando aos poucos fomos
adquirindo o hábito de sair e receber até tarde, percebi que ele olhava à sua volta
com desânimo na hora do desjejum; que começava a fazê-lo com mais
esperança por volta do meio-dia; que desanimava quando vinha para o jantar;
que parecia entrever o Capital ao longe com bastante clareza, depois do jantar;
que praticamente conseguia obter o tal Capital em torno da meia-noite; e que
mais ou menos às duas da madrugada voltava a ficar de tal modo desanimado
que chegava a falar em comprar uma espingarda e ir para a América, com a
intenção geral de obrigar os búfalos a lhe proporcionarem uma fortuna.
Eu costumava passar cerca de metade da semana em Hammersmith, e
quando lá estava fazia visitas recorrentes a Richmond: sobre isso, falarei mais
adiante. Herbert vinha muito a Hammersmith quando eu estava lá, e creio que
nessas oportunidades seu pai de vez em quando tinha alguma consciência de que
a oportunidade que ele vivia procurando ainda não surgira. Mas na confusão
geral da família, a confusão específica de seu filho era algo que haveria de se
resolver de alguma maneira. Nesse ínterim, o sr. Pocket ficava cada vez mais
grisalho, e tentava com cada vez mais frequência arrancar-se a si próprio de suas
perplexidades puxando-se pelos cabelos. Enquanto isso, a sra. Pocket fazia sua
família tropeçar em seu escabelo, lia seu livro sobre títulos de nobreza, perdia seu
lenço, falava-nos sobre seu avô e ensinava os jovens a desabrochar, mandandoos
para a cama assim que eles atraíam sua atenção.1
Como estou agora tecendo generalizações em torno de um período de minha
vida com o objetivo de limpar o caminho à minha frente, nada melhor do que
completar a descrição de nossos hábitos costumeiros no Barnards Inn.
Gastávamos o máximo de dinheiro possível, obtendo o mínimo que as
pessoas nos quisessem dar em troca. Estávamos o tempo todo mais ou menos
infelizes, e a maioria de nossos conhecidos se encontrava no mesmo estado.
Entre nós, mantínhamos a alegre ficção de que nos divertíamos, ocultando o
esqueleto da verdade de que jamais o fazíamos. Por tudo que sei, nosso caso era,
sob todos os aspectos, bastante comum.
Todos os dias de manhã, com um ar sempre renovado, Herbert ia à City para
olhar à sua volta. Muitas vezes eu o visitava numa saleta de fundos escura, onde
ele se ocupava com um tinteiro, um cabide de chapéus, um depósito de carvão,
uma caixa de barbante, um almanaque, uma escrivaninha e um banco, e uma
régua; e não me lembro de vê-lo fazer outra coisa que não olhar à sua volta. Se
todos nós fizéssemos o que pretendíamos fazer com tanto afinco quanto Herbert o
fazia, viveríamos talvez numa república das virtudes. Ele não tinha outra
ocupação, coitado, senão, a uma certa hora da tarde, ir ao Lloy ds para
cumprir a cerimônia de ver seu patrão, imagino. Nunca fez qualquer outra coisa
relacionada com o Lloy ds, que eu saiba, senão voltar de lá. Quando concluía que
seu caso estava mais sério do que de costume, e que realmente precisava de uma
oportunidade, ia à Bolsa numa hora de intensa atividade, e lá ficava a entrar e
sair, dançando uma espécie de quadrilha melancólica em meio aos magnatas
reunidos. Pois a meu ver, disse Herbert a mim, vindo almoçar em casa numa
dessas ocasiões especiais, a verdade, Handel, é que a oportunidade não vem até
nós, e sim nós é que temos que ir até ela e foi o que fiz.
Se tivéssemos menos amizade um pelo outro, creio que sentiríamos um ódio
mútuo regularmente, todas as manhãs. Eu detestava meus aposentos de tal modo
que nem posso exprimi-lo, durante esse período de arrependimento, e não
suportava sequer olhar para a libré do vingador, a qual tinha uma aparência mais
cara e menos lucrativa nesse momento do que em qualquer outra das vinte e
quatro horas do dia. À medida que nos endividávamos mais e mais, o desjejum
se tornava uma formalidade cada vez mais vazia, e numa ocasião em que essa
refeição foi ameaçada (via correio) por um processo legal, de certo modo
relacionado, como diria o jornalzinho de minha terra, à aquisição de joias,
cheguei mesmo a agarrar o vingador pelo colarinho azul, levantá-lo do chão a
sacudi-lo de modo que ele ficou realmente no ar, como um Cupido de botas
por ter ele presumido que nós queríamos pães.
Em certas ocasiões na verdade, ocasiões incertas, pois dependiam de
nosso humor eu dizia a Herbert, como se fosse uma descoberta notável:
Meu caro Herbert, vamos mal.
Meu caro Handel, retrucava Herbert, com toda sinceridade, hás de me
acreditar se eu te disser que, por uma estranha coincidência, eu ia dizer
exatamente isso.
Nesse caso, Herbert, respondia eu, vamos examinar a nossa situação.
Sempre nos dava uma satisfação profunda marcar uma reunião com esse
objetivo. Sempre me parecia que era assim que se fazia, era assim que se
enfrentava o problema, atacando o inimigo pela jugular. E sei que Herbert
pensava o mesmo.
Pedíamos alguma coisa especial para o jantar, juntamente com uma garrafa
de algo fora do comum, a fim de fortalecer nossas mentes para a ocasião, e para
que ficássemos à altura do que nos era exigido. Findo o jantar, pegávamos um
maço de canetas, uma quantidade generosa de tinta e um bom provimento de
papel almaço e mata-borrão. Pois havia algo de muito tranquilizador na
abundância de material de papelaria.
Então eu pegava uma folha de papel e escrevia, no alto, com uma letra
caprichada: Memorando das dívidas de Pip, acrescentando Barnards Inn e a
data, com todo o cuidado. Herbert também pegava uma folha de papel e, com
uma formalidade semelhante, nela escrevia: Memorando das dívidas de
Herbert.
Em seguida, cada um de nós consultava uma pilha confusa de papéis a seu
lado, papéis que haviam sido jogados em gavetas, enfiados em buracos nos
bolsos, parcialmente queimados ao acender velas, grudados durante semanas no
espelho, e danificados de outras maneiras. O som de nossas penas riscando o
papel nos animava sobremaneira, tanto assim que por vezes era difícil, para
mim, traçar uma distinção entre essa tarefa edificante e o ato em si de pagar a
dívida. Consideradas como ações meritórias, as duas coisas pareciam mais ou
menos iguais.
Depois de escrever alguma coisa, eu perguntava a Herbert como ele estava
se saindo. Na maioria das vezes Herbert estava coçando a cabeça
melancolicamente ao ver as cifras que se acumulavam.
Estão aumentando, Handel, dizia Herbert; palavra de honra que estão
aumentando.
Seja firme, Herbert, eu respondia, manejando minha caneta com muito
afinco. Encare a coisa de frente. Examine os seus problemas. Olhe para eles
com firmeza que eles baixam os olhos.
É a minha intenção, Handel, só que eles me olham e quem baixa os olhos
sou eu.
Porém minha determinação surtia efeito, e Herbert retomava o trabalho.
Depois de um tempo ele desistia outra vez, argumentando que lhe faltava a conta
de Cobb, ou de Lobb, ou de Nobb, conforme o caso.
Então, Herbert, faça uma estimativa, uma estimativa com números
redondos, e anote o valor.
Mas como você é cheio de recursos!, replicava meu amigo, com
admiração. Realmente, você tem muito talento para os negócios.
Eu também pensava que tinha. Nessas ocasiões, eu fortalecia em mim
mesmo minha reputação de homem de negócios ágil, decidido, enérgico,
direto, sereno. Uma vez listadas todas as minhas responsabilidades, eu
comparava cada uma delas com a respectiva conta e fazia uma marca a seu
lado. O sentimento de autoaprovação que me proporcionava o gesto de assinalar
cada item da lista era uma sensação realmente voluptuosa. Quando não restava
mais item algum, eu dobrava todas as minhas contas de modo uniforme,
identificava cada uma delas resumidamente no verso e prendia-as todas num
maço simétrico. Depois fazia o mesmo para Herbert (o qual observava, modesto,
que não tinha o meu gênio para questões administrativas), julgando ter
esclarecido sua situação financeira para ele.
Minhas práticas de contabilidade possuíam outra característica positiva, que
eu denominava deixar uma margem. Por exemplo: digamos que as dívidas de
Herbert totalizassem cento e sessenta e quatro libras, quatro xelins e dois pence.
Eu dizia então: Deixe uma margem e anote duzentos. Ou então se a minha
fosse quatro vezes maior, eu deixava uma margem, e anotava setecentos. A
prática de deixar uma margem me parecia uma excelente ideia, mas hoje,
olhando para trás, sou levado a reconhecer que era um dispositivo um tanto
dispendioso. Pois sempre incorríamos em novas dívidas imediatamente, de modo
a alcançar a tal margem, e às vezes, movidos pela sensação de liberdade e
solvência, rapidamente nos aproximávamos de uma nova margem.
Entretanto, havia uma tranquilidade, um repouso, uma pausa virtuosa, após
esses exames de nossa situação, e consequentemente eu ficava por algum tempo
com uma excelente opinião a respeito de mim mesmo. Apaziguado por meus
esforços, por meu método e pelos elogios de Herbert, eu contemplava meu maço
simétrico e o dele lado a lado em meio ao material de papelaria e sentia-me uma
espécie de banco, e não uma pessoa física.
Nessas ocasiões solenes, fechávamos a porta da rua para que não fôssemos
interrompidos. Eu estava num desses estados de serenidade uma noite quando
ouvimos uma carta sendo colocada na fenda da referida porta, e caindo no chão.
É para você, Handel, disse Herbert, saindo e voltando com a carta na mão, e
espero que não seja nenhum problema. Esse comentário era uma alusão ao
pesado lacre preto e à borda negra do envelope.
A carta era assinada por trabb & cia., e ela dizia apenas que eu, estimado
senhor, estava sendo notificado de que a sra. J. Gargery havia falecido na última
segunda-feira, às dezoito horas e vinte minutos, e que minha presença era
solicitada para o enterro na próxima segunda-feira, às quinze horas.
16
Era a primeira vez que uma sepultura se abria na estrada da minha vida, e o
rombo que ela formou na superfície lisa era extraordinário. A imagem de minha
irmã sentada em sua cadeira junto à lareira da cozinha me perseguia dia e noite.
A possibilidade de que aquele lugar não fosse ocupado por ela era algo que
minha mente parecia incapaz de compreender; e muito embora minha irmã
quase nunca figurasse em meus pensamentos ultimamente, passei agora a ter a
estranha impressão de que ela vinha em minha direção da rua, ou que estava
prestes a bater à minha porta. Também nos meus aposentos, com os quais ela
jamais tivera qualquer associação, havia ao mesmo tempo o vazio da morte e a
constante insinuação do som de sua voz ou de seu rosto ou de seu vulto, como se
ela ainda estivesse viva e houvesse frequentado aquele lugar com regularidade.
Qualquer que fosse minha situação na vida, dificilmente eu poderia
relembrar minha irmã com muita ternura. Mas creio que há um choque de
arrependimento que pode existir sem haver muita ternura. Sob sua influência (e
talvez para compensar a ausência de sentimentos mais ternos) fui tomado por
uma violenta indignação voltada para o agressor que lhe causara tanto
sofrimento; e parecia-me que, se houvesse provas suficientes, para vingar-me eu
seria capaz de perseguir Orlick, ou quem quer que fosse, até as últimas
consequências.
Depois de escrever para Joe, para lhe oferecer minhas condolências e
garantir que eu estaria presente ao funeral, passei os dias que se seguiram no
curioso estado mental que esbocei acima. Fui para minha cidadezinha de manhã
bem cedo, e saltei em frente ao Javali Azul com bastante tempo para ir a pé até a
ferraria.
Era verão outra vez, o tempo estava bom, e enquanto caminhava, o tempo
em que eu era uma criaturinha indefesa, e minha irmã não me poupava, voltoume
à lembrança com muita nitidez. Porém voltou-me num tom mais suave, tanto
assim que até mesmo o impacto do pau-de-cócega parecia atenuado. Pois agora,
até o cheiro de feijão e o de trevo diziam a meu coração que algum dia seria
bom para minha memória que outros, ao caminhar no sol, também tivessem
pensamentos suaves quando se lembrassem de mim.
Por fim vi a casa, e vi que trabb & cia. haviam realizado uma verdadeira
execução funerária nela.1 Duas pessoas extraordinariamente ridículas, cada uma
delas exibindo de modo ostensivo uma muleta envolta em bandagens pretas
como se esse instrumento pudesse proporcionar conforto a alguém estavam
posicionadas à porta da frente; uma delas, reconheci, era um postilhão que fora
despedido do Javali Azul por ter jogado um jovem casal dentro de um buraco na
manhã após a noite de núpcias, porque, por estar embriagado, conduziu um
cavalo abraçando-lhe o pescoço com os dois braços. Todas as crianças da aldeia,
e a maior parte das mulheres, estavam admirando esses guardiões de negro e as
janelas fechadas da casa e da ferraria; e quando me aproximei, um dos dois
guardiões (o postilhão) bateu à porta dando a entender que, de tão exaurido de
dor, eu não tinha forças suficientes para bater à porta.
Outro guardião de preto (um carpinteiro, que uma vez comera dois gansos
inteiros para ganhar uma aposta) abriu a porta e me levou para a melhor sala.
Ali, o sr. Trabb havia se sentado à melhor mesa, tendo-a alongado com todas as
suas tábuas de extensão, e estava realizando uma espécie de bazar negro, com o
auxílio de uma quantidade de alfinetes negros. No momento em que cheguei, ele
havia terminado de envolver o chapéu de alguém em panos negros, como se
fosse um bebê africano; assim, estendeu a mão para que eu lhe desse o meu.
Porém, sem compreender o sentido do gesto, e sentindo-me confuso naquela
situação, tomei sua mão e apertei-a com todas as mostras de profundo afeto.
Meu querido Joe, coitado, emaranhado numa pequena capa preta presa num
grande laço debaixo do queixo, estava isolado das outras pessoas, na outra
extremidade da sala; sem dúvida, fora posto ali, na condição de pessoa central do
velório, por Trabb. Quando me abaixei e lhe disse: Meu caro Joe, como estás?,
ele respondeu: Pip, meu velho, tu conhecias ela no tempo que ela era uma bela
de uma
, segurou minha mão e nada mais disse.
Biddy, muito asseada e discreta com seu vestido preto, andava
silenciosamente de um lado para outro, muito prestativa. Depois de falar com
Biddy, julgando que não era hora de conversas, fui sentar-me ao lado de Joe, e
comecei a pensar em que cômodo da casa o corpo minha irmã estaria. O
ar da sala recendia a bolo, e resolvi procurar a mesa do lanche; só consegui
enxergá-la depois que minha vista se acostumou com a escuridão, e então vi que
sobre a mesa havia um bolo de frutas fatiado, e também laranjas cortadas em
pedaços, e sanduíches, e biscoitos, e duas garrafas ornamentais que eu conhecia
muito bem como enfeites, mas que nunca vira serem usadas em toda a minha
vida, uma com vinho do Porto e a outra com xerez. Diante da mesa, percebi a
presença do servil Pumblechook envolto numa capa negra e metros e metros de
fita de chapéu, ora devorando comida, ora fazendo gestos obsequiosos numa
tentativa de atrair minha atenção. No momento em que logrou seu intento,
aproximou-se de mim (com um bafo de xerez e bolo) e disse, em voz baixa:
Posso, meu caro senhor?, e fez o que queria fazer. Então vi o sr. e a sra.
Hubble, a qual estava num digno paroxismo de mudez num canto. Estávamos nos
preparando para acompanhar o féretro, e estávamos todos sendo devidamente
empacotados (por Trabb) em grupos ridículos.
Quer dizer, Pip, Joe cochichou para mim enquanto estávamos sendo
formados, no dizer do sr. Trabb, na sala de visitas, dois a dois e a coisa
parecia uma horrenda preparação para uma dança macabra quer dizer,
sabe, eu preferia bem mais levar ela pra igreja, com mais três ou quatro gente
amiga que viesse de vontade própia, mas diz que a vizinhança não ia achar
direito, que era falta de respeito.
Lenços a postos, todo mundo!, exclamou o sr. Trabb neste momento, com
uma voz compungida e eficiente. Lenços a postos! Estamos prontos!
Assim, todos nós levamos nossos lenços ao rosto, como se estivéssemos com
um sangramento no nariz, e saímos da casa aos pares: eu e Joe, Biddy e
Pumblechook, o sr. e a sra. Hubble. Os restos mortais da minha pobre irmã
haviam sido carregados pela porta da cozinha, e como a cerimônia da funerária
exigia que os seis homens carregando o caixão ficassem sufocados e cegos sob
um horrível dossel de veludo preto com borda branca, a coisa toda mais parecia
um monstro cego com doze pernas humanas, arrastando-se confusamente sob a
liderança de dois amestradores o postilhão e seu camarada.
A vizinhança, porém, aprovou enfaticamente esse cerimonial, e fomos muito
admirados enquanto percorremos a aldeia; os membros mais jovens e vigorosos
da comunidade saíam correndo à nossa frente de vez em quando, pondo-se à
nossa espera para nos interceptar em lugares estratégicos. Nessas ocasiões, os
mais exuberantes entre eles gritavam, excitados, quando nos viam emergir em
alguma esquina: Lá vêm eles!, Olha eles aí!, e só faltava nos aplaudirem.
No decorrer desse percurso, muito me incomodou o abjeto Publechook, o qual,
estando atrás de mim, ficou o tempo todo ajeitando a fita do meu chapéu
sacudida pelo vento e alisando meu manto. Meus pensamentos eram também
desviados pelo orgulho excessivo do sr. e da sra. Hubble, os quais exibiam uma
arrogância e uma vanglória extraordinárias por estarem participando de um
cortejo tão distinto.
E agora a extensão do charco se apresentava a nossos olhos, com as velas
dos navios no rio destacando-se ao longe; e entramos no campo-santo, até chegar
às sepulturas de meus pais desconhecidos, Philip Pirrip, paroquiano, e também
Georgiana, esposa do acima. E ali minha irmã foi enterrada silenciosamente
enquanto as cotovias cantavam no alto do céu, e a brisa a recobria de belas
sombras de nuvens e árvores.
A respeito do comportamento do mundano Pumblechook durante esses
procedimentos, direi apenas que todo ele era dirigido a minha pessoa; e que até
mesmo quando foram lidas as nobres passagens que lembram à humanidade que
ela nada traz ao mundo2 e nada tira dele, e foge como uma sombra e não
permanece, eu o ouvi resmungar que havia exceções, no caso de um jovem
cavalheiro que inesperadamente herda uma extensa propriedade. Quando
voltamos, ele teve a desfaçatez de me dizer que lamentava não ter minha irmã
sabido que eu a honrara tanto, e deu a entender que ela julgaria que sua morte
teria sido um preço razoável para conquistar tal honra. Depois disso, bebeu todo o
resto do xerez, e o sr. Hubble bebeu o vinho do Porto, e os dois ficaram a
conversar (coisa que já tive oportunidade de verificar ser costumeira em tais
ocasiões) como se não pertencessem à mesma espécie que a falecida, e fossem
sabidamente imortais. Por fim, ele foi-se embora com o sr. e a sra. Hubble
para fazer uma noitada, sem dúvida, e contar a todos os fregueses da Barqueiros
Alegres que fora ele o fundador da minha fortuna e meu primeiro benfeitor.
Depois que todos se foram, e que Trabb e seus homens mas não seu
criado: procurei por ele haviam enfiado seus apetrechos em sacos e ido
embora também, a atmosfera da casa ficou mais agradável. Pouco depois, eu,
Biddy e Joe jantamos frios; mas comemos na melhor sala, e não na velha
cozinha, e Joe foi tão cuidadoso ao manusear os talheres e o saleiro e tudo o mais
que nos sentimos muito constrangidos. Mas após o jantar, quando o convenci a
pitar seu cachimbo, e fui com ele até a ferraria, e nos sentamos lado a lado na
grande pedra que ficava do lado de fora, começamos a nos entender melhor.
Notei que depois do funeral Joe mudara de roupa, adotando uma indumentária
intermediária entre o traje de domingo e a roupa de trabalho: e assim vestido
meu querido amigo parecia mais natural, parecia o homem que de fato era.
Ele ficou muito satisfeito quando lhe perguntei se podia dormir no meu velho
quartinho, e eu também fiquei, pois sentia que realizara um grande feito ao fazer
esse pedido. Quando as sombras da noite começaram a descer, aproveitei a
oportunidade para ir ao jardim com Biddy para conversar um pouco.
Biddy , eu disse, acho que tu poderias me ter escrito contando essas coisas
tristes.
É mesmo, senhor Pip?, ela replicou. Eu teria escrito se soubesse disso.
Não pense que estou sendo cruel, Biddy, se eu disser que acho que devias
saber disso.
É mesmo, senhor Pip?
Ela era tão discreta e tinha um jeito tão educado, bondoso e agradável que a
ideia de fazê-la chorar outra vez não me animava. Depois de olhar um pouco
para ela, caminhando a meu lado de olhos baixados, resolvi não insistir mais
naquele ponto.
Acho que agora vai ser difícil para ti continuar aqui, não é, minha cara
Biddy ?
Ah! Não posso ficar, senhor Pip, disse Biddy, num tom de lamento, porém
mesmo assim marcado por uma discreta convicção. Estive conversando com a
senhora Hubble, e vou visitá-la amanhã. Espero que eu e ela, juntas, possamos
tomar conta do senhor Gargery , até ele tomar prumo.
Como é que vais viver, Biddy ? Se precisares de di
Como é que vou viver?, ela repetiu, enfática, com um toque de vermelho
momentâneo no rosto. Vou lhe dizer, senhor Pip. Vou tentar conseguir a vaga de
professora na nova escola que estão quase terminando de construir aqui. Todos os
vizinhos vão me dar boas recomendações, e espero conseguir ser trabalhadeira e
paciente, e ensinar a mim mesma ao mesmo tempo que ensino aos outros. O
senhor sabe, prosseguiu Biddy, com um sorriso, levantando os olhos e olhando
para mim, as escolas novas não são como as antigas, mas de lá para cá aprendi
muita coisa com o senhor, e tenho tido tempo depois disso para melhorar ainda
mais.
Acho que tu haverias de melhorar, Biddy , em quaisquer circunstâncias.
Ah! Menos o lado ruim da minha natureza, murmurou ela.
Era menos uma queixa do que uma espécie de pensamento em voz alta
irreprimível. Bem! Achei melhor não insistir naquele ponto também. Assim,
caminhei mais um pouco com Biddy, olhando em silêncio para seus olhos
voltados para baixo.
Ainda não sei nada a respeito dos detalhes da morte de minha irmã, Biddy .
Há muito pouco a dizer, coitada. Ela andava numa de suas fases ruins
embora nos últimos tempos estivesse melhorando e não piorando há quatro
dias, quando melhorou à tarde, na hora do chá, e disse de maneira muito clara:
Joe. Como ela não dizia uma palavra há muito tempo, saí correndo e fui chamar
o senhor Gargery lá na ferraria. Ela fez sinal para mim que queria que ele se
sentasse perto dela, e queria que eu pusesse os braços dela em torno do pescoço
dele. Foi o que fiz, e ela pousou a cabeça no ombro dele e ficou muito contente. E
assim, pouco depois voltou a dizer Joe, e uma vez Perdão, e uma vez Pip. E
nunca mais levantou a cabeça, e uma hora depois nós a deitamos na cama,
porque vimos que havia falecido.
Biddy chorou; o jardim cada vez mais escuro, e a rua, e as estrelas que
surgiam no céu, turvaram-se na minha vista.
Nada foi descoberto, Biddy ?
Nada.
Sabes que fim levou Orlick?
A julgar pela cor das roupas dele, deve estar trabalhando na pedreira.
Então tu o tens visto? Por que estás olhando para aquela árvore escura na
rua?
Eu o vi ali, na noite em que ela morreu.
E não foi a última vez, não, certo?
Não; eu o vi ali, enquanto estávamos caminhando aqui não adianta,
disse Biddy, pondo a mão no meu braço, pois eu estava prestes a sair correndo,
eu não iria enganá-lo; ele ficou ali menos de um minuto, e já foi embora.
Fiquei extremamente indignado de saber que ela continuava sendo
perseguida por aquele sujeito, e senti um ódio inveterado dele. Foi o que disse a
Biddy, e disse também que seria capaz de gastar o dinheiro que fosse preciso e
empenhar todos os esforços necessários para expulsá-lo da região. Pouco a
pouco ela foi me fazendo falar de maneira mais equilibrada, e disse-me que Joe
gostava muito de mim, que Joe jamais se queixava de nada ela não disse: de
mim, pois eu sabia o que ela queria dizer porém cumpria as suas obrigações,
com mão forte, boca calada e coração terno.
Realmente, qualquer elogio que se faça a ele é pouco, concordei; e,
Biddy, precisamos falar muito sobre essas coisas, pois é claro que agora vou vir
aqui sempre. Não vou deixar o pobre Joe sozinho.
Biddy não disse palavra.
Biddy , não estás me ouvindo?
Estou, senhor Pip.
E essa história de me chamar de senhor isso me parece de mau gosto,
Biddy o que queres dizer com isso?
O que eu quero dizer?, indagou Biddy , tímida.
Biddy , insisti, num tom vigoroso e virtuoso, peço que me digas o que
queres dizer com isso!
Com isso?, repetiu Biddy .
Ora, não fiques repetindo, retorqui. Tu não fazias isso, Biddy .
Não fazia isso!, disse Biddy . Ah, senhor Pip! Não fazia!
Bem! pensei. Também não insistiria naquele ponto. Depois de mais uma
volta silenciosa no jardim, voltei à questão inicial.
Biddy , disse eu, comentei ainda há pouco que viria aqui sempre, para ver
o Joe, e tu recebeste meu comentário com um silêncio pronunciado. Faze-me o
favor, Biddy , de me dizer por quê.
Então é mesmo certo que o senhor virá vê-lo sempre?, perguntou Biddy,
parando na estreita alameda do jardim e olhando para mim à luz das estrelas
com seus olhos límpidos e honestos.
Ah, meu Deus!, exclamei, como se desistisse de Biddy em desespero.
Isso é mesmo um lado muito mau da natureza humana! Não me diga mais
nada, por favor, Biddy . Estou muito chocado.
Por esse motivo razoável, mantive distância de Biddy durante a ceia, e
quando subi para meu velho quartinho, despedi-me dela da maneira mais formal
que me pareceu, no meu íntimo ressentido, compatível com a ida ao cemitério e
o evento do dia. Durante toda a noite, sempre que me sentia inquieto, o que
ocorria a cada quarto de hora, eu pensava na maldade, no insulto, na injustiça do
que Biddy fizera comigo.
No dia seguinte, de manhã cedo, eu haveria de partir. E de manhã cedo, saí
de casa, e fiquei olhando para dentro sem ser visto, por uma das janelas de
madeira da ferraria. Assim me detive por alguns minutos, olhando para Joe, já
imerso no trabalho, com um tal brilho de saúde e força no rosto que era como se
o sol brilhante que a vida lhe reservava o estivesse iluminando.
Adeus, querido Joe! Não não limpe a mão, pelo amor de Deus, quero-a
tal como está, enegrecida! Vou voltar em breve, e vou voltar sempre.
Venha logo, senhor, disse Joe, e venha sempre, Pip!
Biddy estava esperando por mim à porta da cozinha, com um caneco de leite
fresco e um pedaço de pão. Biddy , eu disse, quando lhe dei a mão na
despedida, não estou zangado, mas estou magoado.
Não, não fique magoado, ela implorou, patética; eu é que devo ficar
magoada, se tiver sido pouco generosa.
Mais uma vez, a névoa começava a dissipar-se quando eu me afastava da
casa. Se ela me revelasse, como imagino ter feito, que eu não voltaria, e que
Biddy tinha toda a razão, tudo que posso dizer é que também a névoa tinha toda a
razão.
17
Herbert e eu íamos de mal a pior, aumentando nossas dívidas, examinando nossa
situação, deixando margens e realizando transações exemplares da mesma
espécie; e o tempo passava, fosse como fosse, como sói acontecer; e tornei-me
maior de idade cumprindo a previsão de Herbert, segundo a qual eu atingia a
maioridade antes de me dar conta do fato.
O próprio Herbert já se havia tornado maior de idade, oito meses antes de
mim. Como no seu caso a maioridade não implicava o recebimento de nenhuma
herança, o acontecimento não causou nenhuma sensação profunda no Barnards
Inn. Porém estávamos aguardando com muitas especulações e previsões a
chegada de meus vinte e um anos, pois nós dois imaginávamos que meu tutor
certamente não poderia deixar de fazer algum pronunciamento definitivo em tal
ocasião.
Eu fizera questão de deixar claro, em Little Britain, qual a data de meu
aniversário. Na véspera, recebi um comunicado oficial de Wemmick,
informando-me que o sr. Jaggers gostaria que eu o visitasse às dezessete horas
desse dia auspicioso. Isso nos convenceu de que algo de grandioso haveria de
acontecer, e assim eu estava numa agitação incomum quando fui ao escritório de
meu tutor, um modelo de pontualidade.
Na antessala, Wemmick deu-me parabéns, e por acaso esfregou no nariz um
pedaço de papel dobrado cuja aparência me agradou. Entretanto, ele nada disse
a respeito do papel e com um gesto convidou-me a entrar na sala de meu tutor.
Era novembro, e o sr. Jaggers estava em pé diante da lareira, as costas apoiadas
no console, as mãos embaixo das abas do paletó.
Bem, Pip, disse ele, hoje tenho de chamá-lo de senhor Pip. Parabéns,
senhor Pip.
Trocamos um aperto de mão os apertos de mão do meu tutor eram
notavelmente breves e agradeci.
Sente-se, senhor Pip, disse meu tutor.
Depois que me sentei, tendo ele permanecido em pé, a cabeça abaixada em
direção às botas, senti-me numa posição de desvantagem, lembrando-me do dia
em que fui colocado em cima de uma lápide. As duas máscaras de gesso
horrendas estavam numa prateleira perto dele, e a expressão naqueles rostos
parecia indicar que eles estavam tentando, de modo idiota e apoplético,
acompanhar a conversa.
Meu jovem amigo, começou meu tutor como se eu fosse uma testemunha
num julgamento, preciso lhe dizer algumas coisas.
Sim, senhor.
Na sua avaliação, disse o sr. Jaggers, curvando-se para a frente e mirando
o chão, e depois jogando a cabeça para trás e contemplando o teto, na sua
avaliação, quanto totalizam suas despesas costumeiras?
Quanto totalizam?
Quanto, repetiu o sr. Jaggers, ainda olhando para o teto, totalizam suas
despesas? Em seguida, correu os olhos por toda a sala e fez uma pausa com o
lenço na mão, a meio caminho do nariz.
Eu havia examinado minha situação tantas vezes que já não tinha a menor
ideia de qual ela era exatamente. Com relutância, confessei-me de todo incapaz
de responder à pergunta. Minha resposta pareceu agradar ao sr. Jaggers, que
retrucou: Tal como eu pensava!, e assoou o nariz com um ar de satisfação.
Bem, eu lhe fiz uma pergunta, meu amigo, disse o sr. Jaggers. E você,
tem alguma pergunta a me fazer?
É claro que para mim seria um alívio lhe fazer algumas perguntas, mas
lembro que o senhor me fez uma proibição.
Faça uma pergunta, insistiu o sr. Jaggers.
Hoje vou ser informado da identidade de meu benfeitor?
Não. Faça outra.
Essa revelação me será feita em breve?
Vamos adiar essa por um momento, respondeu meu tutor, e faça outra.
Olhei à minha volta, mas concluí que não havia como evitar esta indagação:
Eu
vou
receber alguma coisa, senhor?. Ao ouvir isso, o sr. Jaggers
exclamou, triunfante: Era o que eu pensava!, e mandou Wemmick trazer
aquele papel. Wemmick veio, entregou-o e saiu.
Bem, Pip, disse o sr. Jaggers, por favor, preste atenção. Você tem vindo
aqui realizar saques com frequência; seu nome aparece muitas vezes no livro de
registro de Wemmick; mas está endividado, não é mesmo?
Infelizmente, tenho que responder na afirmativa, senhor.
Você sabe que tem que responder na afirmativa, não é?, insistiu o sr.
Jaggers.
Sim, senhor.
Não vou lhe perguntar quanto você deve, porque você não sabe; e se
soubesse, não me diria; diria menos. Sim, isso mesmo, meu amigo, exclamou o
sr. Jaggers, de dedo em riste para me deter, quando fiz menção de protestar. É
bem provável que você pense que não faria isso, mas faria, sim. Você há de me
desculpar, mas eu entendo melhor dessas coisas. Pois bem, pegue esse pedaço de
papel. Muito bem. Agora desdobre-o e diga-me o que é.
É um cheque, respondi, no valor de quinhentas libras.
É um cheque, repetiu o sr. Jaggers, no valor de quinhentas libras. É uma
quantia bem polpuda, a meu ver. Você concorda?
E como poderia não concordar?
Ah! Mas responda à pergunta, insistiu o sr. Jaggers.
Sem dúvida.
Para você, trata-se sem dúvida de uma quantia polpuda. Pois essa quantia
polpuda, Pip, é sua. É um presente de aniversário, por conta das suas esperanças.
E esta é a quantia anual, e só esta, que você terá para gastar, até que o seu
benfeitor se manifeste. Ou seja, doravante você vai cuidar de seu dinheiro
pessoalmente, e vai receber de Wemmick cento e vinte cinco libras por
trimestre, até que tenha contato direto com a fonte, e não apenas o agente. Como
já lhe disse, sou apenas o agente. Cumpro minhas ordens, e sou pago para fazêlo.
A meu ver, essas ordens não são razoáveis, mas não estou sendo pago para
dar minha opinião a esse respeito.
Comecei a manifestar minha gratidão a meu benfeitor, pela sua grande
generosidade, quando o sr. Jaggers me deteve. Não estou sendo pago, Pip,
disse ele, frio, para transmitir suas palavras a outrem; em seguida recolheu as
abas do paletó, como para encerrar o assunto, e ficou a encarar as botas de
cenho franzido, como se suspeitasse que elas estavam tramando contra ele.
Após uma pausa, insisti:
Ainda há pouco, senhor Jaggers, fiz uma pergunta que o senhor me pediu
que adiasse por um momento. Espero não estar fazendo nada de errado ao
repeti-la.
Que pergunta?
Eu deveria ter previsto que ele jamais me ajudaria, porém não esperava ter
de formular a pergunta outra vez, como se fosse uma novidade. É provável,
comecei, após hesitar, que meu benfeitor, a fonte que o senhor mencionou
ainda há pouco, em breve
, e nesse ponto me detive, por delicadeza.
Em breve o quê?, indagou o sr. Jaggers. Isso não é uma pergunta, ainda.
Em breve virá a Londres, prossegui, após buscar uma formulação exata,
ou me mandará ir a algum lugar?
Veja bem, respondeu o sr. Jaggers, fixando em mim pela primeira vez
seus olhos escuros e fundos, voltemos àquela primeira noite em que nos
encontramos na sua aldeia. O que foi que eu lhe disse nessa ocasião, Pip?
O senhor me disse que talvez essa pessoa só aparecesse depois de vários
anos.
Exatamente, replicou o sr. Jaggers; essa é a minha resposta.
Enquanto nos encarávamos frontalmente, senti que minha respiração estava
ofegante, por efeito de minha forte vontade de arrancar alguma coisa dele. E,
sentindo que estava ofegante, e sentindo que ele o estava percebendo, dei-me
conta de que era menos provável do que nunca que eu conseguisse arrancar
alguma coisa dele.
O senhor acha que ainda vai levar alguns anos, senhor Jagger?
O sr. Jaggers fez que não com a cabeça não respondendo à pergunta na
negativa, e sim negando a própria possibilidade de que fosse me dar uma
resposta e as duas horrendas carantonhas deformadas de gesso olharam para
mim, quando meus olhos subiram até elas, tal como se sua atenção suspensa
tivesse chegado a um momento de crise, e elas estivessem prestes a espirrar.
Ora!, exclamou o sr. Jaggers, aquecendo as coxas com as costas da mão,
que estavam aquecidas, vou ser direto com você, meu amigo Pip. Essa pergunta
não deve ser feita. Você vai me compreender melhor se eu lhe disser que ela
pode ter o efeito de comprometer a minha situação. Ora! Vou um pouco mais
longe; vou me abrir um pouco mais com você.
Abaixou-se tanto, para encarar as botas de cenho franzido, que durante essa
pausa pôde coçar as panturrilhas.
Quando essa pessoa se revelar, disse o sr. Jaggers, empertigando-se, você
e essa pessoa vão acertar suas contas. Quando essa pessoa se revelar, minha
participação nesse caso vai encerrar-se. Quando essa pessoa se revelar, não
precisarei saber nada a respeito de nada. É tudo que eu tenho a dizer.
Entreolhamo-nos até que desviei a vista, e fiquei a olhar para o chão,
pensativo. Com base nessa última fala, concluí que a sra. Havisham, por algum
motivo ou sem motivo algum, não havia revelado a ele que me destinara a
Estella; que esse fato o incomodava, e o tornava ciumento; ou então que ele
realmente não aprovava tal plano, e fazia questão de não ter nenhum
envolvimento com ele. Quando voltei a levantar a vista, verifiquei que esse
tempo todo ele estivera a me dirigir seu olhar arguto, e que continuava a fazê-lo.
Se isso é tudo que o senhor tem a dizer, observei, então a mim não resta
mais nada a dizer.
Ele concordou com um aceno, sacou do bolso aquele relógio que os ladrões
tanto temiam e me perguntou onde eu ia jantar. Respondi que o faria nos meus
próprios aposentos com Herbert. Senti-me obrigado a convidá-lo a nos honrar
com sua presença, e ele de pronto aceitou o convite. Porém insistiu em caminhar
comigo até minha morada, para que eu não fizesse nenhum preparativo especial
para ele, só que antes tinha de escrever uma ou duas cartas e (é claro) lavar as
mãos. Assim, respondi que eu iria para a antessala, para conversar com
Wemmick.
O fato é que, depois que pus no bolso as quinhentas libras, surgiu na minha
cabeça uma ideia que já me ocorrera muitas vezes; e pensei que Wemmick seria
a pessoa adequada a quem pedir um conselho a esse respeito.
Ele já havia trancado seu cofre e feito seus preparativos para ir embora.
Havia se levantado de sua mesa, colocado seus dois castiçais sebosos ao lado das
espevitadeiras numa prateleira junto à porta, prontos para serem apagadas as
velas; havia abafado as brasas da lareira, deixado bem à mão o chapéu e o
sobretudo, e estava a bater no próprio peito com a chave do cofre, à guisa de
exercício atlético após o trabalho.
Meu caro Wemmick, disse eu, quero pedir sua opinião. Eu gostaria muito
de ajudar um amigo.
Wemmick estreitou sua caixa de correio e sacudiu a cabeça, como se fosse
radicalmente contrário a qualquer fraqueza fatal dessa espécie.
O amigo em questão, prossegui, está tentando se estabelecer no mundo
dos negócios, porém não tem dinheiro, e está sendo difícil e desanimador para
ele dar os primeiros passos. Pois bem, quero fazer alguma coisa no sentido de
ajudá-lo a dar os primeiros passos.
Com dinheiro à vista?, disse Wemmick, com uma voz mais seca do que
serragem.
Um pouco de dinheiro à vista, respondi, pois uma imagem nada
tranquilizadora surgiu em minha mente daquela pilha simétrica de papéis na
minha sala; um pouco de dinheiro à vista, e talvez um adiantamento da renda
que vou herdar.
Senhor Pip, disse Wemmick, eu gostaria de contar nos dedos com o
senhor as diversas pontes1 daqui até Chelsea Reach. Vejamos: a ponte London,
uma; a Southwark, duas; Blackfriars, três; Waterloo, quatro; Westminster, cinco;
Vauxhall, seis. Ele assinalava cada ponte batendo com a chave do cofre na
palma da mão. Como o senhor vê, tem seis pontes pra escolher.
Não estou entendendo, respondi.
Escolha uma ponte, senhor Pip, prosseguiu Wemmick, e vá até ela, e
jogue o seu dinheiro dentro do Tâmisa do arco central, e o senhor sabe o que
acontece com ele. Ajude seu amigo com esse dinheiro, e o senhor também sabe
o que acontece com ele só que é uma coisa menos agradável e menos
lucrativa.
Ele escancarou a boca de tal modo que daria para pôr no correio um jornal
inteiro dentro dela.
Você está me desanimando, observei.
É minha intenção, retrucou Wemmick.
Quer dizer que, na sua opinião, comecei a perguntar, com alguma
indignação, nunca se deve
Investir valores portáteis num amigo?, completou Wemmick. De modo
algum. A menos que se tenha a intenção de se livrar do amigo nesse caso, a
questão é saber quantos valores portáteis vale a pena gastar para se livrar do
amigo.
Então é essa a sua opinião pensada, Wemmick?
É essa, ele respondeu, a minha opinião pensada neste escritório.
Ah!, exclamei, pois imaginei ver ali uma possibilidade, e insisti: Mas seria
essa a sua opinião em Walworth?.
Senhor Pip, ele respondeu, muito sério, Walworth é um lugar, e este
escritório é outro. Do mesmo modo como o idoso é uma pessoa e o senhor
Jaggers é outra. Não se pode fazer confusão entre uma coisa e a outra. Os meus
sentimentos em Walworth devem ser recebidos em Walworth; apenas os meus
sentimentos oficiais devem ser recebidos neste escritório.
Muito bem, disse eu, com grande alívio, então vou procurá-lo em
Walworth, o senhor pode contar com isso.
Senhor Pip, ele retrucou, o senhor vai ser bem recebido lá, enquanto
pessoa física.
Esta conversa toda se deu em voz baixa, pois sabíamos muito bem que os
ouvidos de meu tutor eram extremamente aguçados. Neste momento ele
apareceu à porta de sua sala, enxugando as mãos numa toalha, quando então
Wemmick vestiu seu sobretudo e levantou-se para apagar as velas. Nós três
saímos juntos, e chegando à porta da rua, Wemmick foi para um lado, enquanto
eu e o sr. Jaggers fomos para o outro.
Naquela noite, não pude conter o desejo, mais de uma vez, de que o sr.
Jaggers tivesse um idoso na Gerrard-street, ou uma Poderosa, ou alguém ou
alguma coisa que o fizesse relaxar um pouco a testa franzida. Era um tanto
incômodo pensar, no dia em que eu completava vinte e um anos de idade, que
atingir a maioridade não parecia valer muito a pena num mundo tão cauteloso e
desconfiado, tal como ele o apresentava. Meu tutor era mil vezes mais bem
informado e mais inteligente do que Wemmick, e, no entanto, eu preferiria mil
vezes jantar com Wemmick. E o sr. Jaggers não fez com que apenas eu ficasse
profundamente melancólico, pois, depois que ele se foi, Herbert, com os olhos
fixos na lareira, observou que devia ter cometido um crime de cujos detalhes se
esquecera, para se sentir de tal modo abatido e culpado.
18
Julgando que domingo seria o melhor dia para conhecer os sentimentos
walworthianos do sr. Wemmick, dediquei a tarde do domingo seguinte a uma
peregrinação ao castelo. Ao chegar diante das ameias, encontrei a bandeira
britânica desfraldada e a ponte levadiça levantada; porém, sem deixar que essa
demonstração de desafio e resistência me desanimasse, toquei a campainha e fui
recebido do modo mais pacífico pelo idoso.
O meu filho, disse o velho, após levantar a ponte levadiça, imaginou que
talvez o senhor aparecesse hoje, e mandou dizer que voltava logo da caminhada
da tarde. Ele é muito sistemático quanto a essas caminhadas, o meu filho. É
muito sistemático em tudo, o meu filho.
Concordei com um aceno de cabeça, tal como o próprio Wemmick teria
feito, entrei e sentei-me junto à lareira.
O senhor conheceu o meu filho, disse o velho, efusivo como sempre,
enquanto aquecia as mãos no fogo, no escritório dele, imagino? Assenti com a
cabeça. Ah! me disseram que o meu filho é muito bom no que ele faz, não é?
Assenti com ênfase. Sim; é o que me dizem. Ele trabalha com advocacia?
Assenti com ainda mais ênfase. O que me admira, disse o velho, pois meu
filho não foi criado pra ser advogado, e sim provador de vinho.1
Curioso para saber até onde o ancião estava informado a respeito da
reputação do sr. Jaggers, gritei seu nome para ele. Sua resposta deixou-me
completamente confuso; ele riu gostosamente e me disse, com muita animação:
Não, sem dúvida; o senhor tem razão. E até hoje não tenho a menor ideia do
que ele quis dizer, nem qual foi o gracejo que me atribuiu.
Como eu não podia ficar eternamente sentado naquela poltrona balançando a
cabeça para ele, sem fazer nenhuma outra tentativa de interessá-lo, perguntei-lhe
aos gritos se ele também havia trabalhado como provador de vinho. Após
berrar a expressão mais vezes e dar tapinhas no peito do velho para associar o
sentido dela à pessoa dele, por fim consegui fazê-lo me entender.
Não, respondeu ele; nos armazéns, nos armazéns. Primeiro, lá pra
aqueles lados, com um gesto que parecia indicar a chaminé, mas que entendi
como uma referência a Liverpool; e depois aqui em Londres. Porém, por ter
uma deficiência pois sou um tanto mouco, meu senhor
Em pantomima, manifestei grande espanto.
Sim, um tanto mouco; e por conta dessa deficiência, meu filho meteu-se na
advocacia e encarregou-se de mim, e pouco a pouco conseguiu essa propriedade
tão bonita. Mas, pra voltar ao que o senhor disse, insistiu o velho, mais uma vez
rindo gostosamente, digo e repito: não, sem dúvida; o senhor tem razão.
Eu estava a me perguntar, modesto, se, recorrendo a toda a minha argúcia,
teria conseguido fazer um comentário que o faria rir a metade do que ele rira
daquele gracejo imaginário, quando levei um susto ao ouvir um estalido súbito
vindo da chaminé, e fantasmagoricamente abriu-se uma portinhola de madeira
com o nome john escrito nela. O velho, seguindo a direção de meu olhar,
exclamou triunfante: Meu filho chegou!, e fomos os dois até a ponte levadiça.
A cena era impagável: Wemmick me saudando com um aceno do outro lado
da vala quando poderia com a maior facilidade ter trocado um aperto de mãos
comigo. O idoso manejava a ponte levadiça com tanto prazer que não me
ofereci para ajudá-lo, porém permaneci em silêncio até que Wemmick
atravessou a ponte e me apresentou à sra. Skiffins, que o acompanhava.
A sra. Skiffins tinha uma aparência rígida, e, tal como o cavalheiro que a
acompanhava, uma caixa de correio no lugar da boca. Teria talvez dois ou três
anos menos que Wemmick, e deu-me a impressão de que possuía alguns valores
portáteis. O corte de seu vestido da cintura para cima, tanto à frente quanto atrás,
fazia com que sua silhueta lembrasse um papagaio de papel; e eu diria talvez que
o vestido era um pouco laranja demais, e as luvas um pouco verdes demais.
Porém parecia uma pessoa simpática e demonstrou muita consideração pelo
idoso. Não demorou para que eu percebesse que ela visitava o castelo com
frequência; pois, assim que entramos, e elogiei o método engenhoso através do
qual Wemmick anunciava sua chegada, ele pediu-me que fixasse minha atenção
por um momento no outro lado da chaminé, e desapareceu. Em seguida ouviu-se
outro estalido, e outra portinhola se abriu, com o nome Sra. Skiffins; depois a
sra. Skiffins se fechou e John se abriu; em seguida a sra. Skiffins e John se
abriram juntos, e por fim fecharam-se juntos. Quando Wemmick reapareceu,
após demonstrar suas invenções mecânicas, manifestei grande admiração por
elas, e ele comentou: Ora, essas coisas são agradáveis e úteis pro idoso. E vale a
pena dizer, meu caro, que, de todas as pessoas que chegam a esse portão, o
segredo dessas portinholas só é do conhecimento do idoso, da senhora Skiffins e
de mim!.
E o senhor Wemmick as fez, acrescentou a sra. Skiffins, com suas
próprias mãos, e foi tudo tirado de sua própria cabeça.
Enquanto a sra. Skiffins retirava a touca (as luvas verdes ela manteve nas
mãos durante toda a noite, como sinal externo e visível de que havia uma visita
presente), Wemmick convidou-me para dar uma volta na propriedade com ele,
para que eu visse como ficava a ilha no inverno. Pensando que isso me daria
uma oportunidade de conhecer os seus sentimentos walworthianos, toquei no
assunto assim que saímos do castelo.
Tendo pensado na questão com cuidado, introduzi o tema como se jamais o
tivesse mencionado antes. Disse a Wemmick que a situação de Herbert Pocket
me preocupava, e contei-lhe como nos havíamos conhecido, narrando nossa luta.
Falei rapidamente sobre a família de Herbert, seu caráter e sua dependência
financeira em relação ao pai, cujo auxílio era incerto e nada pontual. Mencionei
o quanto me fora vantajoso, quando eu ainda era muito cru e ignorante, o contato
com ele, e confessei temer não haver retribuído de modo suficiente, e que talvez
ele tivesse saído melhor se não fossem eu e minhas esperanças. Sem fazer
qualquer alusão à sra. Havisham, ainda assim dei a entender que nós dois talvez
tivéssemos disputado o mesmo patrocínio, e afirmei ter certeza de que ele
possuía uma alma generosa e que estava muito acima de quaisquer
desconfianças, retaliações ou tramas mesquinhas. Por todos esses motivos (disse
eu a Wemmick), e porque ele era meu jovem companheiro e amigo, e eu tinha
muito afeto por ele, era minha intenção fazer com que minha boa sorte tivesse
algum impacto sobre ele, e assim sendo recorria aos conselhos de Wemmick,
pessoa experiente, que conhecia os homens e os negócios, para saber qual seria a
melhor maneira de tentar, com base em meus recursos, ajudar Herbert a obter
alguma renda imediata coisa de cem libras por ano, para mantê-lo
esperançoso e animado e pouco a pouco lhe dar uma participação em alguma
pequena sociedade. Em conclusão, insisti para que Wemmick compreendesse
que minha ajuda deveria ser dada a Herbert sem que ele soubesse ou sequer
desconfiasse, e que não havia outra pessoa no mundo com quem eu poderia me
aconselhar. Terminei pondo a mão em seu ombro e dizendo: Sou obrigado a me
abrir com você, embora saiba que deste modo estou a incomodá-lo; mas a culpa
é sua, por ter me trazido aqui pela primeira vez.
Wemmick permaneceu calado por algum tempo, e em seguida disse, com
certo sobressalto: Olhe, senhor Pip, uma coisa eu tenho de lhe dizer. O senhor é
generoso como o diabo.
Então me ajude a ser generoso, retruquei.
Ah, disse Wemmick, sacudindo a cabeça, não é esse o meu trabalho.
E aqui não é seu lugar de trabalho, devolvi.
O senhor tem razão, ele concordou. Acertou na mosca. Senhor Pip, vou
pôr a cachola pra funcionar, e acho que o que o senhor quer fazer pode ser feito
aos poucos. O Skiffins (o irmão dela) é contador e agente. Vou falar com ele e
começar a trabalhar pro senhor.
Agradeço muitíssimo.
Pelo contrário, disse ele, eu é que agradeço, pois se bem que estamos
atuando estritamente como pessoas físicas, não há como não ver que tem umas
teias de aranha de Newgate por aqui, e desse modo a gente acaba com elas.
Depois de conversar mais um pouco sobre o assunto, voltamos ao castelo,
onde encontramos a sra. Skiffins preparando o chá. A responsabilidade pelas
torradas foi delegada ao idoso, e esse excelente cavalheiro estava de tal modo
absorto na tarefa que parecia correr o risco de derreter seus próprios olhos. A
refeição que íamos fazer não era apenas uma formalidade, e sim uma realidade
vigorosa. O idoso preparou tamanha pilha de torradas amanteigadas que mal
dava para vê-lo por trás delas, colocadas sobre um suporte de ferro preso na
barra superior da lareira; e a sra. Skiffins fez uma tal quantidade de chá que o
porco no quintal ficou muito alvoroçado, e repetidamente manifestou seu desejo
de participar da festa.
A bandeira foi içada, o canhão foi disparado, na hora apropriada, e senti-me
confortavelmente isolado do resto de Walworth, como se a vala tivesse dez
metros de largura e outros tantos de profundidade. Nada perturbava a paz do
castelo, senão o ruído das portinholas de John e da sra. Skiffins a abrir-se de vez
em quando, pois o mecanismo era sujeito a uma enfermidade espasmódica que
me proporcionava um incômodo reativo, até que me acostumei. Concluí, com
base na natureza metódica dos gestos da sra. Skiffins, que ela preparava chá ali
todas as noites de domingo; e desconfiei que o broche clássico que ela usava,
representando o perfil de uma mulher indesejável com um nariz muito reto e
uma lua muito nova, era um valor portátil que lhe fora dado por Wemmick.
Comemos todas as torradas e bebemos chá na mesma proporção, e foi
delicioso perceber o quanto todos nós ficamos aquecidos e lambuzados depois. O
idoso, em particular, poderia muito bem passar pelo velho chefe de uma tribo
selvagem, limpo e recém-ungido. Depois de uma breve pausa para descanso, a
sra. Skiffins na ausência da criadinha, a qual, ao que parecia, recolhia-se ao
seio da família nas tardes de domingo lavou a louça, com ares de dama que se
entrega a uma atividade na qualidade de amadora, de modo a não comprometer
nenhum de nós. Em seguida voltou a calçar as luvas, reunimo-nos em torno da
lareira e Wemmick disse: Agora, pai idoso, leia o jornal pra nós.
Wemmick explicou-me, enquanto o idoso punha os óculos, que isso era uma
tradição, e que o ancião ficava satisfeitíssimo quando lia as notícias em voz alta.
Não lhe peço desculpas, prosseguiu Wemmick, porque a ele já não restam
muitos prazeres não é, pai idoso?
Está bem, John, está bem, respondeu o velho, vendo que lhe dirigiam a
palavra.
Basta acenar com a cabeça pra ele de vez em quando, sempre que ele
levantar a vista do jornal, disse Wemmick, que ele vai ficar feliz como um rei.
Estamos todos prestando atenção, idoso.
Está bem, John, está bem!, respondeu o velho, tão ocupado e tão alegre
que a cena era realmente encantadora.
A leitura do idoso me fez relembrar as aulas na casa da tia-avó do sr.
Wopsle, com a peculiaridade ainda mais agradável de que ela parecia vir de um
buraco de fechadura. Como o idoso queria que as velas ficassem perto dele, e
como estava sempre correndo o risco de enfiar a cabeça ou o jornal nas chamas,
ele exigia tanta atenção cuidadosa quanto uma fábrica de pólvora. Porém
Wemmick era tão incansável quanto delicado em sua vigilância, e o idoso não
interrompeu sua leitura, não se dando conta dos constantes atos de resgate.
Sempre que olhava para nós, todos manifestávamos muito interesse e espanto, e
balançávamos a cabeça até que ele retomasse a leitura.
Como Wemmick e a sra. Skiffins estavam sentados lado a lado, e eu me
colocara num canto mais escuro, observei um lento e gradual alongamento da
boca do sr. Wemmick, que indicava claramente estar ele lenta e gradualmente
colocando o braço na cintura da sra. Skiffins. Depois de algum tempo, vi sua mão
surgir do outro lado daquela senhora; mas nesse momento a sra. Skiffins o deteve
à perfeição com a luva verde, livrou-se do braço dele como quem se despe de
uma peça de vestuário e colocou-o na mesa à sua frente. A tranquilidade da sra.
Skiffins enquanto realizava esse gesto foi uma das coisas mais notáveis que eu
jamais vira, e se me fosse possível conceber que aquele ato prescindia da
volição, eu teria concluído que ela agira de modo mecânico.
Algum tempo depois, percebi que o braço do sr. Wemmick começava a
desaparecer outra vez, gradualmente, até sumir de todo. Logo em seguida, sua
boca voltou a alargar-se. Após um intervalo de suspense para mim, fascinante e
quase doloroso, vi sua mão aparecer do outro lado da sra. Skiffins. No mesmo
instante ela a deteve com a precisão de um boxeador plácido, retirou aquela
espécie de cinta tal como antes e colocou-a na mesa. Tomando a mesa como
representante do caminho da virtude, posso afirmar que, durante todo o tempo da
leitura do idoso, o braço de Wemmick ficou o tempo todo a desviar-se do
caminho da virtude, sendo nela reposto pela sra. Skiffins. Por fim, de tanto ler o
idoso acabou cochilando. Foi nesse momento que Wemmick pegou uma pequena
chaleira, uma bandeja com taças e uma garrafa negra com uma rolha afixada a
uma peça de porcelana, representando um dignitário clerical de aspecto
rubicundo e sociável. Com a ajuda desses implementos, todos nós voltamos a
beber algo de quente, inclusive o idoso, que logo acordou. A sra. Skiffins preparou
as bebidas, e observei que ela e Wemmick usavam a mesma taça. Naturalmente,
não me ofereci para levar a sra. Skiffins em casa, e dadas as circunstâncias
julguei melhor ser o primeiro a partir: o que fiz, despedindo-me cordialmente do
idoso, tendo passado uma noite agradável.
Antes que se passasse uma semana, recebi um bilhete de Wemmick, enviado
de Walworth, dizendo que esperava ter avançado um pouco em relação àquela
questão que nos dizia respeito como pessoas físicas, e que gostaria que eu voltasse
a visitá-lo para discutir o assunto. Assim, lá fui eu de novo a Walworth, e outra
vez, e mais outra, e marquei encontros com ele no centro de Londres diversas
vezes, porém jamais comentei o assunto com ele em Little Britain, nem em seus
arredores. Como resultado, encontramos um jovem comerciante ou agente de
embarque, honesto e ainda se iniciando no mundo dos negócios, que precisava de
um auxiliar inteligente e precisava de capital, e que, no decorrer do tempo,
haveria de precisar de um sócio. Eu e ele assinamos cláusulas secretas referentes
a Herbert, e paguei-lhe metade das quinhentas libras que havia recebido, e
comprometi-me a fazer uma série de outros pagamentos: alguns deles
venceriam em certas datas com base em minha renda; outros, apenas quando eu
recebesse toda a herança. O irmão da sra. Skiffins encarregou-se das
negociações. Wemmick esteve o tempo todo atuando nos bastidores, mas seu
nome jamais apareceu em nenhum papel.
Toda a transação foi realizada de maneira tão engenhosa que Herbert jamais
suspeitou que eu estivesse envolvido. Nunca me esquecerei do sorriso radiante
com que ele chegou em casa numa tarde e me disse, como se fosse uma grande
notícia, que se havia envolvido com um tal de Clarriker (o jovem comerciante), e
que Clarriker havia manifestado um interesse extraordinário por ele, e que
finalmente parecia ter surgido sua oportunidade. A cada dia, à medida que suas
esperanças se tornavam mais sólidas e seu sorriso mais radiante, ele deve ter-me
julgado um amigo cada vez mais afetuoso, pois era com muita dificuldade que
eu continha minhas lágrimas de triunfo ao vê-lo tão feliz. Por fim, fechado o
negócio, tendo ele se tornado sócio de Clarriker, e tendo conversado comigo a
noite inteira, animado pelo prazer e pelo sucesso, cheguei mesmo a chorar
quando me recolhi, de pensar que minhas esperanças haviam trazido algo de
bom para alguém.
Um grande acontecimento da minha vida, um momento decisivo de minha
vida, agora se descortina. Porém, antes que eu possa relatá-lo, preciso dedicar
um capítulo a Estella. Não é muita coisa, considerando-se que o tema ocupou por
tanto tempo meu coração.
19
Se aquela casa velha e grave perto do rossio de Richmond vier a ser assombrada
depois que eu morrer, certamente será pelo meu fantasma. Ah, as muitas e
muitas noites e dias em que o espírito intranquilo dentro de mim assombrou
aquela casa no tempo em que Estella nela morava! Estivesse onde estivesse meu
corpo, meu espírito estava sempre vagando, vagando, vagando em torno daquela
casa.A pessoa com quem Estella estava morando, uma certa sra. Brandley, era
uma viúva que tinha uma filha alguns anos mais velha do que Estella. A mãe
parecia jovem, e a filha, velha; a tez da mãe era rosada, e a da filha, amarelada;
a mãe representava a frivolidade, e a filha, a teologia. As duas tinham o que é
considerado uma boa posição, e visitavam e eram visitadas por muita gente.
Havia pouca ou nenhuma comunhão de sentimentos entre elas duas e Estella,
mas havia um entendimento de que Estella precisava delas e elas precisavam de
Estella. A sra. Brandley fora amiga da sra. Havisham no tempo em que esta
ainda não se havia isolado do mundo.
Dentro ou fora da casa da sra. Brandley , eu sofria todas as formas e graus de
tortura que Estella era capaz de me infligir. A natureza das minhas relações com
ela, que me concedia familiaridade sem me garantir sua preferência, levava-me
à loucura. Ela usava-me para provocar os outros admiradores, e lançava mão da
familiaridade que havia entre nós para menosprezar constantemente minha
dedicação a ela. Se eu fosse seu secretário, mordomo, meio-irmão, parente
pobre nem mesmo se fosse um irmão mais moço de seu noivo eu não teria
me sentido mais distante de minhas esperanças quanto mais próximo estivesse
dela. O privilégio de chamá-la pelo nome e ouvi-la chamar-me pelo meu tornouse,
naquelas circunstâncias, um fator agravante de meu sofrimento; e se isso
provavelmente quase enlouquecia seus outros pretendentes, não tenho dúvida de
que quase enlouqueceu a mim.
Estella tinha uma infinidade de admiradores. Certamente meus ciúmes
transformavam em admiradores todos os que dela se aproximavam, mas mesmo
sem mim eles seriam numerosos.
Eu a via com frequência em Richmond, dela ouvia falar com frequência na
cidade, e com frequência a levava a passear de barco juntamente com as
Brandley ; eram piqueniques, festas ao ar livre, idas ao teatro, à opera, às salas de
concerto, bailes, todos os tipos de prazeres, em meio aos quais eu a perseguia
e todos eram para mim verdadeiras torturas. Jamais gozei de uma única hora de
felicidade em sua presença, e, no entanto, minha consciência passava as vinte e
quatro horas do dia sonhando com a felicidade de tê-la a meu lado até a morte.
Durante essa fase de nosso relacionamento a qual durou, como logo se
verá, um período que na época me pareceu bem longo ela habitualmente
adotava aquele tom que dava a entender que nossa ligação nos fora imposta à
força. Havia outras ocasiões em que esse tom e todos os outros inúmeros tons que
ela adotava eram interrompidos de súbito, e Estella parecia apiedar-se de mim.
Pip, Pip, disse-me ela certa vez, numa dessas interrupções, quando
estávamos sentados afastados um do outro sob uma janela, ao anoitecer, na casa
de Richmond, será que nunca vais te acautelar?
Quanto a quê?
Quanto a mim.
Não devo me sentir atraído por ti, é isso que queres dizer, Estella?
Se é isso que quero dizer! Se não sabes o que quero dizer, estás cego.
Eu deveria ter respondido que o Amor costuma ser representado como um
cego, não estivesse eu constantemente constrangido e não era este o menor
dos meus sofrimentos pelo sentimento de que seria falta de generosidade da
minha parte impor-me a ela, quando ela sabia que era obrigada a obedecer à sra.
Havisham. Eu sempre temia que essa consciência da parte de Estella me
colocasse numa situação muito desvantajosa em relação a seu orgulho, e me
tornasse causador de sentimentos de rebeldia em seu coração.
Seja como for, respondi, não há como eu me acautelar desta vez, pois tu
me escreveste pedindo-me que viesse te ver.
É verdade, disse Estella, com um sorriso frio e indiferente que sempre me
gelava a alma.
Depois de contemplar o crepúsculo por algum tempo, ela prosseguiu:
Chegou o momento em que a senhora Havisham quer que eu passe um dia
com ela na Casa Satis. Ela pede que tu me leves lá e me tragas de volta, se
quiseres. Ela não gosta que eu viaje sozinha, e não quer receber minha criada,
pois sua sensibilidade a faz horrorizar-se só de pensar que uma pessoa desse tipo
vai depois falar dela. Podes me levar?
Se eu posso levar-te, Estella!
Então podes? Depois de amanhã, por favor. Todas as despesas serão pagas
com o dinheiro da minha bolsa. Estás ciente das condições de tua ida?
E tenho que obedecer, respondi.
Foi essa toda a preparação que recebi para essa visita, como sempre ocorria
em casos assim: a sra. Havisham jamais me escrevia; aliás, eu jamais vira a
letra dela. Fomos dois dias depois, e a encontramos no quarto em que eu a vira
pela primeira vez, e é desnecessário dizer que nada havia mudado na Casa Satis.
A sra. Havisham estava ainda mais terrivelmente apaixonada por Estella do
que da última vez em que eu as vira juntas; repito a palavra em plena
consciência, pois havia mesmo algo de terrível no modo enérgico como ela a
olhava e abraçava. Ela entregava-se à beleza de Estella, a suas palavras, a seus
gestos, e ficava a morder seus próprios dedos trêmulos enquanto a contemplava,
como se estivesse devorando o belo ser que havia criado.
Voltava a vista de Estella para mim, com um olhar penetrante que parecia
chegar ao coração e perscrutar suas feridas. Como te trata ela, Pip, como te
trata ela?, perguntava-me, com sua avidez de bruxa, mesmo quando Estella
estava presente. Porém, era quando ficávamos sentados ao lado dela junto à
lareira, à noite, que a sra. Havisham agia de modo mais insólito; pois, mantendo a
mão de Estella presa em seu braço e agarrando-a com a sua, arrancava da
jovem, valendo-se do que ela lhe havia contado nas cartas que lhe enviava com
regularidade, o nome e a condição social de cada um dos homens que ela
fascinara; e a sra. Havisham, detendo-se nesse inventário com a intensidade de
uma mente tomada por um ferimento e uma doença mortais, conservava a outra
mão apoiada na bengala, e o queixo apoiado na mão, e os olhos mórbidos e
luzidios fixos em mim, um verdadeiro espectro.
Nesses momentos eu percebia, por mais que isso me tornasse infeliz, e
despertasse em mim a consciência amarga da situação de dependência, de
degradação, mesmo, em que me encontrava eu percebia que Estella estava
sendo usada pela sra. Havisham para se vingar dos homens, e que ela não me
seria concedida enquanto a velha não gozasse essa vingança por um bom tempo.
Eu percebia a razão pela qual Estella me fora atribuída. Ao enviá-la ao mundo
para atrair, atormentar e torturar, a sra. Havisham fazia-o com a certeza maligna
de que ela estaria fora do alcance de todos os admiradores, e de que todos que
apostassem nela estavam fadados a ser derrotados. Eu percebia que também era
atormentado pelo que havia de perverso naquele engenho, muito embora o
prêmio estivesse reservado a mim. Percebia por que motivo eu era alvo de uma
protelação tão demorada, e por que motivo meu antigo tutor se recusava a
admitir que tinha conhecimento formal de tal plano. Em suma, eu percebia como
era a sra. Havisham, tal como a tinha diante de meus olhos, e sempre a tivera
diante de meus olhos; e percebia com clareza o que havia de sombrio e malsão
na casa em que ela vivia sua vida escondida do sol.
As velas que iluminavam aquele quarto ficavam em castiçais na parede.
Elas situavam-se a uma altura considerável do chão e ardiam com aquele brilho
constante e sem vida de uma luz artificial num ar raramente renovado. Enquanto
eu olhava para elas, e para a penumbra fraca que elas geravam, e para o relógio
parado, e para as peças fenecidas do traje de noiva que ficavam espalhadas
sobre a mesa e pelo chão, e para a figura terrível daquela mulher, com seu
reflexo espectral lançado pelo fogo, em tamanho ampliado, no teto e na parede,
percebia em tudo aquilo a estrutura que minha mente havia construído, repetida e
jogada de volta para mim. Meus pensamentos penetraram no salão do outro lado
do patamar da escada, onde a mesa estava posta, e eu a via como se estivesse
escrita nas teias de aranha que desciam do centro de mesa, no rastejar das
aranhas sobre a toalha, nas trajetórias dos camundongos que corriam atrás dos
lambris com seus coraçõezinhos acelerados, e nos movimentos espasmódicos das
baratas no soalho.
Nesta visita, aconteceu de Estella e a sra. Havisham trocarem algumas
palavras ásperas. Era a primeira vez que eu as via discutir.
Estávamos sentados junto à lareira, tal como relatei ainda há pouco, e a sra.
Havisham ainda mantinha o braço de Estella preso no seu, e ainda agarrava a
mão de Estella, quando a moça pouco a pouco começou a desprender-se dela. Já
manifestara sua impaciência orgulhosa mais de uma vez, e sua atitude em
relação àquele afeto feroz era mais tolerância do que aceitação ou retribuição.
O quê!, exclamou a sra. Havisham, voltando o olhar faiscante para ela.
Estás cansada de mim?
Só um pouco cansada de mim mesma, respondeu Estella, soltando o braço
e caminhando até o enorme console, onde ficou a contemplar o fogo.
Diz a verdade, sua ingrata!, gritou a sra. Havisham, batendo com a
bengala no chão com toda a força. Estás cansada de mim.
Estella olhou-a com absoluta tranquilidade e voltou a olhar para o fogo. Seu
vulto gracioso e seu belo rosto manifestavam uma calma indiferença à fúria da
outra que chegava a ser cruel.
És pau, és pedra!,1 exclamou a sra. Havisham. Teu coração é de gelo,
gelo!
O quê?, retrucou Estella, mantendo a atitude indiferente enquanto se
encostava no console, movendo apenas os olhos. A senhora me acusa de ser
fria? A senhora?
E não és?, foi a resposta feroz.
A senhora há de saber, disse Estella, pois sou o que a senhora fez de mim.
Todo o mérito é seu, e toda a culpa também; todo o sucesso é seu, e todo o
fracasso; em suma, sou sua.
Vejam só, vejam só!, exclamou a sra. Havisham, com amargura.
Vejam só, tão dura e ingrata, diante da lareira onde ela foi criada! Onde eu a
apertei contra esse meu peito infeliz, ainda sangrando das punhaladas recebidas,
e onde por tantos anos eu derramei carinhos sobre ela!
Pelo menos não assenti ao que foi combinado, replicou Estella, pois se eu
soubesse andar e falar, quando tudo foi combinado, era tudo que eu poderia ter
feito. Mas o que a senhora quer de mim? A senhora tem sido muito boa para
mim, e eu lhe devo tudo que tenho e sou. O que a senhora quer?
Amor, respondeu a outra.
Pois a senhora o tem.
Não tenho, disse a sra. Havisham.
Mãe adotiva, prosseguiu Estella, sem jamais abrir mão de sua atitude
serena e graciosa, sem jamais levantar a voz como fazia sua interlocutora, mãe
adotiva, eu já disse que lhe devo tudo. Tudo que possuo é seu. Tudo que a senhora
me deu, pode voltar a ser seu se a senhora assim desejar. Fora isso, nada mais
tenho. E se a senhora me pede que eu lhe dê o que jamais me foi dado, minha
gratidão e meu dever não podem fazer o que é impossível.
Então eu nunca lhe dei amor!, exclamou a sra. Havisham, virando-se
enfurecida para mim. Então eu nunca lhe dei um amor candente, inseparável
do ciúme às vezes, e da dor mais intensa, enquanto ela me fala desse jeito! Ela
que me chame de louca, que me chame de louca!
Por que eu haveria de chamá-la de louca, retrucou Estella, logo eu?
Haverá alguém vivo que conheça melhor do que eu os seus objetivos na vida?
Haverá alguém vivo que conheça melhor do que eu a sua memória implacável?
Eu, que me sentei diante dessa lareira naquele banquinho que está agora mesmo
a seu lado, aprendendo as suas lições e olhando para o seu rosto, quando o seu
rosto era desconhecido e me assustava!
Tempos logo esquecidos!, gemeu a sra. Havisham. Logo esquecidos!
Não, não foram esquecidos, retorquiu Estella. Não foram esquecidos,
porém guardados com carinho na minha memória. Quando foi que traí seus
ensinamentos? Quando foi que demonstrei esquecer as suas lições? Quando foi
que a senhora me viu admitir aqui, e levou a mão ao peito, alguma coisa que a
senhora proibisse? Não seja injusta comigo.
Tão orgulhosa, tão orgulhosa!, gemeu a sra. Havisham, jogando para trás
com as duas mãos o cabelo grisalho.
Quem me ensinou a ser orgulhosa?, devolveu Estella. Quem me elogiou
quando aprendi minha lição?
Tão dura, tão dura!, gemeu a sra. Havisham, repetindo o gesto anterior.
Quem me ensinou a ser dura?, replicou Estella. Quem me elogiou quando
aprendi minha lição?
Mas ser orgulhosa e dura comigo!, a sra. Havisham praticamente gritou,
enquanto estendia os braços. Estella, Estella, Estella, orgulhosa e dura comigo!
Estella olhou-a por um momento com uma espécie de perplexidade
tranquila, mas fora isso não parecia perturbada; passado o momento, voltou a
olhar para o fogo.
Não consigo entender, disse ela, levantando a vista após alguns momentos
de silêncio, por que a senhora age de modo tão pouco razoável quando venho
visitá-la depois de estarmos há algum tempo separadas. Nunca me esqueci do
seu ressentimento, e do que o causou. Nunca fui infiel à senhora nem aos seus
ensinamentos. Nunca demonstrei nenhuma fraqueza de que eu possa me
confessar culpada.
Seria uma fraqueza corresponder a meu amor?, exclamou a sra.
Havisham. Mas é claro que sim, ela diria que sim!
Começo a achar, disse Estella, pensativa, depois de mais um momento de
perplexidade tranquila, que estou quase entendendo o que está acontecendo. Se
a senhora tivesse criado sua filha adotiva sempre nesses cômodos escuros e
fechados, e se jamais tivesse dito a ela que existia a luz do dia, à qual ela jamais
viu o seu rosto se a senhora tivesse feito tal coisa, e então, por algum motivo,
quisesse que ela entendesse o que era a luz do dia e soubesse tudo a seu respeito,
a senhora ficaria decepcionada e zangada?
A sra. Havisham, com a cabeça nas mãos, gemia baixinho e balançava-se
em sua cadeira, mas nada disse em resposta.
Ou então, disse Estella, para dar um exemplo mais apropriado, se a
senhora lhe houvesse ensinado, desde que ela começou a entender as coisas, com
toda a energia e vigor, que existia, sim, a luz do dia, mas que era uma coisa
inimiga e destrutiva, e que ela devia sempre se voltar contra essa luz, pois essa luz
causara a sua ruína e também causaria a dela, se ela não se cuidasse; se a
senhora tivesse agido assim, e então, por algum motivo, quisesse que ela
aceitasse com naturalidade a luz do dia, e ela não conseguisse fazê-lo, a senhora
ficaria decepcionada e zangada?
A sra. Havisham a escutava (ou ao menos parecia, pois eu não podia ver seu
rosto), mas permanecia sem dar resposta.
Assim, disse Estella, há que me aceitar tal como fui feita. O sucesso não
é meu, o fracasso não é meu, mas eu sou a combinação dos dois.
A sra. Havisham havia se sentado, sem que eu entendesse bem como, no
soalho, em meio às relíquias desbotadas de seu noivado ali espalhadas.
Aproveitei-me da oportunidade eu estava à procura de tal coisa desde o início
para sair do recinto, depois de atrair a atenção de Estella, com um gesto, para
a sra. Havisham. Quando saí, Estella continuava parada junto ao enorme console,
tal como antes. O cabelo grisalho da sra. Havisham estava esparramado no chão,
em meio aos outros destroços do noivado, e era uma cena deplorável.
Foi com o coração pesado que fiquei a caminhar à luz das estrelas por uma
hora, ou mais, no pátio, e na cervejaria, e no jardim abandonado. Quando por
fim criei coragem de voltar para o quarto, encontrei Estella sentada diante da sra.
Havisham, alinhavando uma daquelas velhas peças de vestuário que estavam
caindo aos pedaços, e que tantas vezes me são trazidas à lembrança quando vejo
restos desbotados e esfarrapados de velhas bandeiras nas paredes das catedrais.
Depois, eu e Estella jogamos cartas, tal como outrora só que agora, mais
sofisticados, jogávamos jogos franceses e assim a noite transcorreu, e fui me
deitar. Meu quarto ficava naquele prédio separado do outro lado do pátio. Era a
primeira vez que eu me deitava para dormir na Casa Satis, e o sono se recusava a
se aproximar de mim. Eu era assombrado por mil senhoras Havisham. Ela
estava deste lado do travesseiro e daquele, à cabeceira, ao pé da cama, atrás da
porta semiaberta do toucador, dentro do toucador, no quarto do andar de cima, no
quarto do andar de baixo por toda parte. Por fim, quando a noite se arrastava
lentamente em direção às duas da madrugada, senti que realmente não
conseguia mais suportar aquele lugar como um lugar em que me deitar, e que
precisava me levantar. Assim, levantei-me, vesti-me e saí para o quintal,
chegando ao longo corredor de pedra, com o objetivo de ir até o pátio externo e
ficar caminhando lá, para aliviar minha mente. Porém, tão logo cheguei ao
corredor, apaguei minha vela, pois vi a sra. Havisham caminhando nele como
um fantasma, gemendo baixinho. Segui-a a certa distância, e vi-a subindo a
escada. Ela levava na mão uma vela nua, a qual provavelmente pegara num dos
castiçais de seu quarto, e à luz dessa vela constituía uma visão das mais insólitas.
Parado ao pé da escada, senti o ar bolorento que vinha do salão de festa, sem vêla
abrir a porta, e ouvi-a caminhar no salão, e depois voltar para seu quarto, e
depois para o salão, sempre gemendo baixinho. Após algum tempo, tentei,
naquela escuridão, sair dali ou voltar atrás, mas não consegui fazer nem uma
coisa nem outra, até que a primeira luz do dia me mostrou onde pôr as mãos.
Durante todo esse tempo, sempre que me aproximava do pé da cama eu via a luz
da vela passando lá em cima, e ouvia o gemido incessante.
Antes de irmos embora no dia seguinte, não voltou a ocorrer nenhum conflito
entre a sra. Havisham e Estella, nem tal coisa reocorreu em qualquer outra
ocasião semelhante; e houve quatro ocasiões semelhantes, se não me falha a
memória. Tampouco sofreu qualquer mudança a atitude da sra. Havisham em
relação a Estella, tirando, creio eu, o fato de que uma espécie de medo veio
somar-se às características anteriores.
Seria impossível virar essa página da minha vida sem colocar nela o nome
de Bentley Drummle; se fosse possível, eu o faria, com muito prazer.
Em certa ocasião em que os Tentilhões estavam reunidos em peso, e em que
os bons sentimentos estavam sendo promovidos da maneira usual, todos
discordando de todos, o Tentilhão que presidia a reunião chamou todo o Arvoredo
à ordem, lembrando que o sr. Drummle ainda não havia feito um brinde a uma
senhora, o que, segundo a constituição solene da sociedade, cabia àquele bruto
fazer naquela ocasião. Julguei ver em seu rosto um olhar de deboche dirigido a
mim no momento em que as garrafas estavam passando de mão em mão, mas
como não havia nenhuma amizade a nos unir, isso era bem possível. Qual não foi
minha surpresa tingida de indignação quando ele pediu que os comensais se
unissem a ele num brinde a Estella!
Que Estella?, perguntei.
Não importa, retorquiu Drummle.
Estella de onde?, insisti. Isso você tem que responder. E, de fato, como
Tentilhão, ele era obrigado a fazê-lo.
De Richmond, senhores, disse Drummle, ignorando a mim, e de uma
beleza inigualável.
Como se aquela besta quadrada entendesse alguma coisa de belezas
inigualáveis!, cochichei para Herbert.
Conheço essa dama, disse Herbert do outro lado da mesa, depois do
brinde.
Conhece?, perguntou Drummle.
Eu também, acrescentei, com o rosto vermelho.
Conhece?, perguntou Drummle. Ah, meu Deus!
Era essa a única reação se não fosse um copo, um prato arremessado
de que a lerda criatura era capaz; porém fiquei indignadíssimo, como se tivesse
sido alvo de um sarcasmo ferino, e na mesma hora levantei-me e disse que era
típico da insolência do nobre Tentilhão em questão vir ao Arvoredo sempre
falávamos em vir ao Arvoredo, como se fosse uma expressão parlamentar
precisa vir ao Arvoredo e brindar uma dama sobre a qual ele nada sabia. Ao
ouvir isso, o sr. Drummle levantou-se e perguntou o que eu queria dizer com tal
coisa. Em seguida, respondi, da maneira mais extremada, que julgava que ele
soubesse onde me encontrar.2
Se era possível, num país cristão, proceder sem derramamento de sangue
depois disso, era uma questão a respeito da qual os Tentilhões se dividiram. O
debate tornou-se tão animado, aliás, que ao menos mais seis nobres membros
disseram a outros seis, durante a discussão, que eles julgavam que os outros
soubessem onde encontrá-los. Foi, porém, decidido por fim (pois que o Arvoredo
era um tribunal de honra) que, se o sr. Drummle trouxesse a menor prova que
fosse de que ele tinha a honra de conhecer a dama em questão, o sr. Pip teria que
pedir desculpas, como cavalheiro e como Tentilhão, por ter sido dominado por
um impulso que
.3 Decidiu-se que a prova deveria ser entregue no dia
seguinte (para que nossa honra não pegasse um resfriado nesse ínterim), e no dia
seguinte Drummle compareceu com um documento pequeno e delicado, escrito
na letra de Estella, em que ela afirmava ter tido a honra de dançar com ele
algumas vezes. Assim, é claro, não me restou outra opção senão desculpar-me
por ter sido dominado por um impulso que
, e repudiar como insustentável a
ideia de que seria possível encontrar-me em algum lugar. Eu e Drummle
ficamos então bufando um para o outro por uma hora, cada um em sua cadeira,
enquanto o Arvoredo se envolvia em contradições indiscriminadas, e por fim
afirmou-se que os bons sentimentos haviam sido promovidos de modo
extraordinário.
Narro esse episódio em tom jocoso, mas para mim a coisa era muito séria.
Pois nem sei como exprimir quanto sofrimento me causava a ideia de que Estella
tivesse manifestado algum interesse por um pateta desprezível, desajeitado e
mal-humorado, alguém tão abaixo da média. Até hoje, creio que foi uma
espécie de fogo puro de generosidade e desinteresse de meu amor por ela que
tornava insuportável a ideia de que ela pudesse rebaixar-se ao nível daquele
cachorro. Sem dúvida, eu teria me sentido infeliz qualquer que fosse a pessoa por
quem ela demonstrasse interesse, porém alguém mais merecedor me teria
causado um sofrimento diferente em gênero e grau.
Para mim foi fácil descobrir, como o fiz em pouco tempo, que Drummle
havia começado a segui-la com afinco, e que ela lhe permitia tal coisa. Não
demorou para que ele passasse a persegui-la o tempo todo, e assim eu e ele
passamos a nos cruzar dia sim, dia não. Ele persistia, com uma obstinação cega,
e Estella o estimulava, ora incentivando-o, ora desanimando-o, ora quase
lisonjeando-o, ora desprezando-o abertamente, ora reconhecendo-o muito bem,
ora mal se lembrando de quem ele era.
O Aranha, como o apelidara o sr. Jaggers, estava acostumado a viver à
espreita, porém, e possuía a paciência dos seres da sua espécie. Além disso, tinha
uma confiança estúpida em seu dinheiro e na grandeza de sua família, os quais
por vezes de fato lhe valiam quase substituindo a concentração e a
determinação. Assim, o Aranha, vigiando Estella obstinadamente, sustentava-se
por mais tempo do que muitos outros insetos mais inteligentes que ele, e muitas
vezes descia de sua teia e aparecia em cena no momento exato.
Em certo baile de assembleia4 em Richmond (naquela época, havia bailes
desse tipo na maioria dos lugares), no qual a beleza de Estella se impusera a todas
as outras, o lamentável Drummle ficou de tal modo a acercar-se dela, e com
tanta tolerância de sua parte, que resolvi falar com Estella a esse respeito.
Aproveitei a primeira oportunidade, que ocorreu quando ela aguardava que a sra.
Brandley a levasse para casa, sentada longe das outras pessoas em meio a
algumas flores, pronta para partir. Eu estava com ela, pois quase sempre as
acompanhava quando elas iam e vinham de tais lugares.
Estás cansada, Estella?
Bastante, Pip.
E não admira que estejas.
Seria melhor se dissesses que eu não devia estar, pois tenho que escrever
minha carta para a Casa Satis antes de me deitar.
Relatando o triunfo de hoje?, perguntei. Um triunfo bem medíocre,
Estella.
O que queres dizer? Não estou sabendo de triunfo nenhum.
Estella, disse eu, olha para aquele sujeito ali no canto, que está olhando
para nós.
Olhar para ele por quê?, ela retrucou, voltando a vista para mim. O que
há naquele sujeito ali no canto para usar as tuas palavras que mereça o
meu olhar?
Pois é justamente essa pergunta que eu quero te fazer, disse eu. Pois ele
passou a noite inteira esvoaçando em torno de ti.
Mariposas e outras criaturas feias de toda espécie, replicou Estella,
olhando-o de relance, ficam esvoaçando em torno de uma vela acesa. O que
pode fazer a vela?
Nada, respondi, mas a Estella não pode fazer alguma coisa?
Ora!, retrucou ela, rindo, após um momento, Talvez. Sim. O que quiseres
que eu faça.
Mas Estella, ouve-me. Fico consternado ao ver-te dar confiança a um
homem tão desprezado por todos quanto o Drummle. Tu sabes o quanto ele é
desprezado.
E então?, exclamou ela.
Sabes que ele é tão feio por dentro quanto é por fora. Um sujeito limitado,
mal-humorado, ranzinza, estúpido.
E então?, exclamou Estella.
Sabes que ele não tem nenhuma qualidade senão a de ter dinheiro, e uma
lista ridícula de ancestrais desmiolados; sabes disso, não é?
E então?, ela repetiu; e cada vez que dizia isso arregalava os belos olhos
mais um pouco.
Para vencer o obstáculo daquela resposta lacônica, apropriei-me dela e
disse, repetindo-o com ênfase: E então? Pois é justamente por isso que fico
arrasado.
Ora, se eu pudesse acreditar que ela dava confiança a Drummle com
intenção de me fazer sofrer, a mim, eu teria encarado a coisa com mais
equanimidade; mas Estella, à sua maneira habitual, me excluiu de consideração
de tal forma que eu não podia supor tal hipótese.
Pip, disse Estella, olhando à sua volta, não sejas ridículo, de falar sobre
seu efeito em ti. Pode ter efeito sobre outras pessoas, e talvez seja esta a
intenção. Não vale a pena falar nisso.
Vale a pena, sim, insisti, porque para mim é insuportável imaginar que as
pessoas digam: Ela joga fora sua graça e seus atrativos num boçal, o ser mais
baixo em toda essa multidão.
Pois para mim não é, disse Estella.
Ah! Não sejas tão orgulhosa, Estella, e tão inflexível.
Chama-me de orgulhosa e inflexível ao mesmo tempo!, exclamou Estella,
abrindo as mãos. E isso logo depois de criticar-me por me rebaixar a dar
atenção a um boçal!
Quanto a isso, não há dúvida, disse eu, um tanto apressadamente, pois já
te vi dirigindo olhares e sorrisos a ele ainda há pouco, olhares e sorrisos do tipo
que jamais diriges
a mim.
Então queres de mim, disse Estella, virando-se de súbito com um olhar
fixo e sério, se não zangado, que eu te engane e te atormente?
Quer dizer que tu o enganas e o atormentas, Estella?
Sim, e a muitos outros também a todos, menos a ti. Eis que chega a
senhora Brandley . Não digo mais nada.
E tendo dedicado um capítulo ao tema que tanto ocupava meu coração, e
que tantas vezes o fazia doer vez após vez, passo a relatar, sem intervalo, o evento
que pairava sobre mim há mais tempo ainda; o evento que começara a ser
urdido antes mesmo que eu soubesse que havia uma Estella no mundo, e no
tempo em que sua inteligência infantil começava a ser distorcida pelas mãos
engelhadas da sra. Havisham.
Na história oriental,5 o pesado bloco de pedra que cairia sobre a cama do
conquistador no momento da vitória era lentamente retirado da pedreira, o túnel
por que passaria a corda em que ele seria pendurado era lentamente escavado
por léguas e léguas de rocha, o bloco era lentamente levantado e encaixado no
teto, a corda era afixada a ele e lentamente passada por léguas e léguas de túnel
até chegar ao grande aro de ferro. Depois que tudo isso era preparado com tanto
trabalho, chegada a hora, o sultão era despertado na calada da noite, e o
machado afiado que cortaria a corda do aro de ferro era posto em sua mão, e o
sultão dava o golpe, e a corda rompia-se e fugia, e o teto desabava. Assim foi no
meu caso; todo o trabalho, de perto e de longe, que culminaria naquele fim, fora
realizado; e num instante o golpe foi desferido, e o teto de minha fortaleza
desabou sobre mim.
20
Tinha eu vinte e três anos de idade. Nem uma palavra me fora dita a respeito do
assunto das minhas esperanças, e uma semana já se passara desde meu
aniversário. Havíamos nos mudado do Barnards Inn mais de um ano antes, e
agora estávamos no Temple.1 Nossos aposentos ficavam em Garden-court, perto
do rio.
O sr. Pocket e eu já não mantínhamos há algum tempo nossos vínculos
originais, embora continuássemos a nos dar muito bem um com o outro. Apesar
da minha incapacidade de me decidir por alguma coisa a qual, espero eu, era
uma decorrência da natureza intranquila e incompleta da minha posse sobre
meus bens eu gostava de ler, e lia regularmente algumas horas por dia. Os
negócios de Herbert continuavam em andamento, e minha situação permanecia
sob todos os aspectos tal como estava no final do capítulo anterior.
Os negócios haviam levado Herbert a empreender uma viagem a Marselha.
Eu estava sozinho e tinha a consciência incômoda de que estava sozinho.
Desanimado e ansioso, esperando há muito tempo que no dia seguinte ou na
semana seguinte as coisas ficassem claras para mim, e há muito tempo
decepcionado, faziam-me falta o rosto alegre e o jeito prestimoso de meu amigo.
Fazia um tempo horrível; chuvoso e úmido, chuvoso e úmido; e lama, lama,
muita lama em todas as ruas. Dia após dia, um véu extenso e pesado, vindo do
leste, cobria toda a Londres, e não parava de vir, como se houvesse para os lados
do leste uma eternidade de nuvem e vento. Eram tão furiosas as lufadas que
chegavam a arrancar o chumbo dos telhados dos edifícios mais altos da cidade; e
no campo, árvores eram arrancadas, e pás de moinhos eram levadas para longe;
do litoral, chegavam notícias trágicas de naufrágios e mortes. A fúria do vento
vinha acompanhada de aguaceiros violentos, e o dia que terminava no momento
em que me sentei para ler tinha sido o pior de todos.
De lá para cá, ocorreram mudanças naquela parte do Temple, e agora ele
não tem mais um aspecto tão remoto quanto tinha na época, nem é tão exposto
ao rio. Morávamos no andar de cima do último prédio, e o vento que vinha do rio
sacudia a estrutura na noite em questão como se fossem disparos de canhão, ou
ondas do mar a se quebrar. Quando a chuva começou a fustigar as janelas,
pensei, levantando a vista e olhando para as vidraças a estremecer, que era como
se eu estivesse num farol em plena tempestade. De vez em quando a fumaça
descia da chaminé, como se nem ela suportasse sair numa noite assim; e quando
abri as portas e olhei escada abaixo, vi que os lampiões da escada tinham sido
apagados pelo vento; e quando, fazendo sombra com as mãos, olhei pelas janelas
negras (abri-las, mesmo que fosse apenas uma fresta, estava fora de questão,
com aquela chuva e aquele vento), percebi que também os lampiões do pátio
tinham sido apagados, e que os lampiões das pontes e do litoral estremeciam, e
que o fogo que ardia nas fornalhas de carvão das barcas no rio estava sendo
lançado para a frente pelo vento, formando manchas de um vermelho ígneo na
chuva.
Eu lia com meu relógio sobre a mesa, tendo decidido fechar o livro às onze
horas. Quando o fiz, os sinos da catedral de São Paulo, e os de todas as outras
muitas igrejas da cidade uns antecipando-se a eles, outros acompanhando-os,
e outros ecoando-os deram as horas. O som era curiosamente deformado pelo
vento; e eu estava a escutar, e a pensar em como o vento o atacava e
despedaçava, quando ouvi passos subindo a escada.
Se uma fantasia nervosa me levou a sobressaltar-me, e a associar o ruído, de
um modo horrendo, ao passo de minha irmã morta, isso não importa. A ideia só
durou um instante, e voltei a escutar com atenção, e ouvi os passos tropeçarem
na escada. Lembrei então que as luzes estavam apagadas, e assim peguei meu
lampião de leitura e fui até o alto da escada. Fosse quem fosse a pessoa que
estava lá em baixo, ela parou ao ver minha luz, pois fez-se silêncio.
Há alguém aí embaixo, não?, perguntei em voz alta, olhando para a
escuridão.
Há, sim, disse uma voz na escuridão.
Que andar você procura?
O último. O senhor Pip.
Sou eu algum problema?
Problema nenhum, respondeu a voz. E o homem recomeçou a subir.
Permaneci com o lampião colocado no corrimão, e pouco a pouco o homem
surgiu no círculo de luz. Havia um quebra-luz no lampião, para que apenas o livro
fosse iluminado, e o círculo de luz era muito reduzido; assim, o homem só se
tornou visível por um breve instante, e logo em seguida voltou à sombra. Naquele
instante, eu vira um rosto que me era estranho, olhando para cima com um ar
incompreensível de estar emocionado e satisfeito por me ver.
Deslocando o lampião à medida que o homem subia, vi que ele estava bem
vestido, mas com trajes rudes; era como um viajante num navio. Que tinha
cabelos longos, grisalhos, cor de ferro. Que teria cerca de sessenta anos de idade.
Que era musculoso, bronzeado e endurecido pela exposição ao tempo. Quando
ele subia os dois últimos lanços, e a luz de meu lampião nos incluiu a ambos, vi,
com uma espécie de perplexidade parva, que ele estendia as duas mãos para
mim.
Por favor, o que o traz aqui?, perguntei-lhe.
O que me traz aqui?, ele repetiu, fazendo uma pausa. Ah! Sim. Vou
explicar o que me traz, com sua permissão.
Quer entrar?
Quero, ele respondeu. Quero entrar, sim, senhor.
Eu fizera a pergunta num tom nada hospitaleiro, pois não me agradava a
expressão alegre e satisfeita de reconhecimento que ainda estava estampada em
seu rosto. Não me agradava porque parecia dar a entender que ele esperava que
eu correspondesse. Porém recebi-o no cômodo de que havia saído ainda há
pouco, e depois que pus o lampião sobre a mesa pedi-lhe, no tom mais educado
que me foi possível adotar, que se explicasse.
Ele olhou à sua volta com um ar muito estranho um ar de contentamento
perplexo, como se tivesse tido alguma participação naquelas coisas que admirava
, despiu o sobretudo grosseiro e tirou o chapéu. Vi então que sua cabeça era
calva, coberta de sulcos, e que os longos cabelos grisalhos só cresciam dos lados.
Mas nada do que eu via proporcionava qualquer explicação. Pelo contrário, ele
mais uma vez estendeu as duas mãos para mim.
O que é isso?, exclamei, imaginando que talvez fosse um louco.
Ele parou de olhar para mim e lentamente esfregou a mão direita na cabeça.
É meio decepicionante, disse ele, com uma voz áspera e trêmula, adespois de
tanta expectativa, e de vir de tão longe, mas não é sua culpa nem minha. Eu
me explico em meio minuto. Por favor, me dê meio minuto.
Ele sentou-se numa cadeira colocada diante da lareira e cobriu a testa com
as mãos grandes e morenas, cobertas de veias. Olhei-o com atenção, e sentindo
um pouco de repulsa; porém eu não o conhecia.
Não tem ninguém aqui por perto, disse ele, olhando para trás, tem?
Como é que um estranho, chegando à minha casa a esta hora da noite, me
faz uma pergunta dessas?, retruquei.
O senhor é esperto, ele respondeu, sacudindo a cabeça para mim de modo
calculadamente afetuoso, um gesto ao mesmo tempo ininteligível e
profundamente irritante. É bom ver que o senhor cresceu e ficou esperto! Mas
não vá partir pra cima de mim, não. Despois o senhor ia se arrepender.
Desisti da intenção que ele percebera, pois o reconheci! Ainda não conseguia
identificar um único traço seu, mas o reconheci! Se o vento e a chuva tivessem
levado para longe todos os anos que haviam decorrido, espalhando todos os
objetos que se interpunham, levando-nos de volta para o campo-santo onde
havíamos ficado face a face pela primeira vez, em níveis tão diferentes, eu não
teria reconhecido o meu forçado de modo mais nítido do que o fazia agora, na
cadeira diante da lareira. Nem era necessário que ele tirasse do bolso uma lima e
a mostrasse a mim; nem era necessário que tirasse o lenço do pescoço e o
amarrasse em torno da cabeça; nem era necessário que abraçasse o próprio
corpo com os dois braços e andasse a estremecer de frio, olhando para mim para
que eu o reconhecesse. Reconheci-o antes mesmo que ele me desse a primeira
dessas pistas, embora momentos antes eu não tivesse a menor ideia a respeito de
sua identidade.
Ele voltou para o lugar onde eu estava, e mais uma vez estendeu as duas
mãos. Sem saber o que fazer pois de tão atônito eu perdera meu autocontrole
com relutância estendi as duas mãos para ele. Ele as agarrou com avidez,
levou-as aos lábios e beijou-as, e continuou a segurá-las.
Tu agiste de modo nobre, meu menino, disse ele. Nobre, Pip! E eu nunca
me esqueci!
Alguma coisa em seu jeito indicou que ele ia me abraçar, e pus a mão para
afastá-lo.
Espere!, exclamei. Não se aproxime! Se o senhor se sente grato pelo que
fiz quando era menino, espero que tenha demonstrado sua gratidão mudando de
vida. Se veio aqui para me agradecer, não era necessário. Seja como for que
você me encontrou, há algo de bom no sentimento que o trouxe aqui, e não vou
expulsá-lo; mas certamente tem que entender que
eu
Minha atenção foi de tal modo atraída pelo que havia de singular no seu
modo de olhar-me fixamente que as palavras morreram em minha língua.
Estavas dizendo, depois de ficarmos a nos entreolhar em silêncio, que eu
certamente tenho de entender. Tenho de entender o quê?
Que eu não posso querer renovar um contato que tivemos por acaso há
tantos anos, em circunstâncias tão diferentes. Alegro-me de imaginar que o
senhor se arrependeu e mudou de vida. Alegra-me dizer-lhe isso. Alegro-me de
ver que, julgando que eu mereço um agradecimento, tenha vindo me agradecer.
Mas nossos caminhos são diferentes, assim mesmo. O senhor está molhado e
parece cansado. Quer beber alguma coisa antes de sair?
Ele havia recolocado o lenço no pescoço frouxamente, e em pé, observandome
com atenção, mordiscava a ponta do lenço. Eu acho, ele respondeu, ainda
com o lenço na boca e ainda a me observar, que aceito, sim, tomar alguma
coisa (obrigado) antes de ir embora.
Havia uma bandeja pronta num aparador. Fui pegá-la e coloquei-a sobre a
mesa perto da lareira, e perguntei ao homem o que ele queria tomar. Tocou
numa das garrafas sem olhar para ela nem dizer nada, e preparei-lhe rum com
água. Eu tentava manter a mão firme enquanto preparava a bebida, mas o olhar
do homem, confortavelmente sentado em sua cadeira com a ponta do lenço
comprido e molhado entre os dentes sem dúvida, ele se esquecera do lenço
tornava muito difícil mantê-la firme. Quando por fim levei-lhe o copo, vi atônito
que seus olhos estavam rasos dágua.
Até aquele momento, eu permanecera de pé, para não disfarçar minha
vontade de que ele fosse embora logo. Porém, vendo que ele amolecia, eu
próprio amoleci, e senti um pouco de arrependimento. Espero, disse eu,
rapidamente vertendo alguma bebida num copo para mim e puxando uma
cadeira para junto da mesa, que não pense que fui áspero ainda há pouco. Não
tive essa intenção, e peço-lhe desculpas se foi o que aconteceu. Desejo-lhe tudo
de bom, e felicidade!
Quando levei meu copo aos lábios, ele olhou com espanto para a ponta do
lenço, o qual caiu de sua boca quando ele a abriu, e me estendeu a mão. Retribuí
o gesto, e então ele bebeu, e passou a manga da camisa nos olhos e na testa.
Como o senhor ganha a vida?, perguntei-lhe.
Já criei ovelhas, vacas, e fiz outras coisas também, lá no Novo Mundo, ele
respondeu; milhares de léguas de mar feroz daqui.
Teve sucesso, espero?
Muito sucesso. Tem gente que foi pra lá junto comigo e também se deu
bem, mas ninguém chegou nem perto de mim. Fiquei famoso pelo sucesso que
tive.
Alegro-me de saber disso.
É bom te ouvir dizendo isso, meu querido menino.
Sem parar para tentar entender essas palavras e o tom em que elas foram
ditas, resolvi mencionar algo que acabara de me ocorrer.
O senhor conhece o mensageiro que me mandou uma vez, perguntei, já
que ele assumiu essa responsabilidade?
Nunca vi o sujeito. Não tinha como.
Ele veio fielmente, e me entregou as duas notas de uma libra. Eu era um
menino pobre na época, como o senhor sabe, e para um menino pobre era uma
pequena fortuna. Mas, tal como o senhor, tive sucesso desde então, e peço-lhe
que me permita devolver a quantia. Pode usá-la em prol de algum outro menino
pobre. Tirei as notas da minha carteira.
Ele ficou a olhar-me quando pus a carteira sobre a mesa e abri-a, e ficou a
olhar-me enquanto eu separava as duas notas de uma libra. Eram limpas e novas,
eu desdobrei-as e entreguei-as a ele. Sempre olhando para mim, o homem
colocou-as uma sobre a outra, dobrou-as no sentido do comprimento, torceu-as,
queimou-as no lampião e pôs as cinzas na bandeja.
Se me permites, disse ele então, sorrindo como quem franze a testa, e
franzindo a testa como quem sorri, posso te perguntar como foi que te saíste tão
bem, depois daquele dia em que eu e tu estava tiritando de frio lá no charco?
Como?
Ah!
Ele esvaziou o copo e pôs-se de pé junto ao fogo, com a mão bronzeada e
pesada sobre o console. Pôs um dos pés sobre uma das grades, para esquentá-lo,
e a bota úmida começou a emitir vapor; mas ele nem olhou para a bota nem
para o fogo, porém ficou a olhar fixamente para mim. Foi só então que comecei
a tremer.
Quando meus lábios se entreabriram, e formaram algumas palavras sem
som, obriguei-me a dizer ao homem (embora não conseguisse fazê-lo de modo
claro) que eu fora escolhido para herdar uma propriedade.
Será que um bandido como eu pode perguntar que propriedade é essa?, ele
indagou.
Gaguejei: Não sei.
Será que um bandido como eu pode perguntar de quem é essa
propriedade?, ele indagou.
Gaguejei de novo: Não sei.
Posso então tentar adivinhar, disse o presidiário, a renda que recebes
desde a maioridade? Só o primeiro número. Cinco?
Com o coração batendo como se fosse um martelo pesado e descontrolado,
levantei-me da minha cadeira e apoiei a mão no espaldar, olhando para o
homem com olhos esgazeados.
E o tutor, ele prosseguiu. Tinha que ter um tutor, ou coisa que o valha,
enquanto eras menor de idade. Um adevogado, talvez. A primeira letra do nome
do adevogado não seria J?
Toda a verdade a respeito da minha situação surgiu diante de mim de súbito;
e o que nela havia de decepção, perigo, vergonha, consequências de todo tipo,
tudo isso veio de roldão, de tal modo que me senti esmagado, e era com esforço
que conseguia respirar.
Imagina, resumiu ele, que o criente do tal adevogado com nome que
começa com J, que pode bem ser Jaggers imagina que ele veio de navio a
Portsmouth, e desembarcou lá, e quer encontrar-te. Seja como for que o senhor
me encontrou, disseste ainda há pouco. Pois bem! Como foi que te encontrei?
Ora, escrevi pra uma pessoa em Londres pedindo teu endereço. O nome da tal
pessoa? Ora, Wemmick.
Eu não teria conseguido pronunciar uma única palavra, nem que fosse para
salvar minha própria vida. Permaneci parado, com uma das mãos no espaldar da
cadeira e a outra no peito, pois eu parecia estar sufocando permaneci assim,
com o olhar esgazeado voltado para o homem, até que me agarrei à cadeira, pois
todo o recinto começou a rodar à minha volta. Ele segurou-me, levou-me até o
sofá, recostou-me nas almofadas e apoiado sobre um dos joelhos pôs aquele
rosto que agora eu lembrava bem, e que me fazia estremecer, bem junto ao
meu.
Isso mesmo, Pip, meu querido menino, fiz um cavalheiro de ti! Foi eu que
fez isso! Eu jurei naquele tempo que se algum dia eu ganhasse um guinéu, que
fosse, esse guinéu havia de ser teu. Jurei adespois, que se algum dia eu fizesse
especulação e enricasse, tu havias de enricar também. Vivi uma vida dura, pra
que tu vivesses na moleza; me matei de trabalhar pra tu não precisar trabalhar.
Quem diria, hein, meu menino? Pensas que te conto isso agora pra tu sentires que
me deve alguma coisa? Nada disso. Te conto pra tu saberes que aquele cachorro
sem dono que não deixaste morrer naquele monte de lixo, ele conseguiu subir
tanto na vida que pôde fazer de alguém um cavalheiro e, Pip, esse alguém é
tu!
O horror que eu sentia por aquele homem, o pavor que tinha dele, a
repugnância com que eu me esquivava dele não poderiam ter sido maiores se ele
fosse uma fera terrível.
Olha aqui, Pip. Eu sou teu segundo pai. Tu és meu filho és mais pra mim
que qualquer filho. Eu guardei dinheiro só pra que pudesses gastar. Quando eu
era pastor de ovelha contratado2 vivendo sozinho numa cabana, só vendo cara de
ovelha, tanto que quase que cheguei a esquecer como que era cara de homem ou
de mulher, eu só via a sua. Muitas vez eu larguei a faca quando eu almoçava ou
jantava naquela cabana e falei pra mim mesmo assim: Lá está o menino me
olhando de novo, enquanto eu estou comendo e bebendo!. Eu te vi muitas vez,
que nem que te vi aquela vez no chaco, no meio da neblina. Que Deus me mate
mortinho!, eu dizia todas as vez e saía da cabana pra dizer isso a céu aberto
, se, adespois que eu ganhar minha liberdade e ganhar dinheiro, eu não fizer
daquele menino um cavalheiro! E foi o que eu fiz. Olha só pra ti, meu querido
menino! Olha só esse lugar onde moras, que podia ser a casa de um lorde! De
um lorde? Ah! Hás de apostar dinheiro com os lordes, e sair ganhando!
Na empolgação de seu triunfo, e cônscio de que por um triz eu não
desmaiara, ele não percebia de que modo eu recebia todas essas informações.
Era a única coisa que me aliviava.
Olha aqui!, ele prosseguiu, tirando de meu bolso meu relógio, e virando
para si um anel que eu tinha no dedo, enquanto eu me esquivava do contato com
ele como se de uma cobra, é de ouro, e é uma belezura: isso é coisa de
cavalheiro, é ou não é? Um brilhante cercado de rubi: isso é coisa de cavalheiro,
é ou não é? Olha só a tua camisa; coisa fina e bonita! Olha essas tuas roupa;
melhor não há! E os teus livro, também, olhando à sua volta, enchendo as
estante, um monte de livro! E tu lês tudo isso, não é? Vi que estavas lendo quando
cheguei. Ha, ha, ha! Hás de ler esses livros pra mim, meu querido menino! E se
estiver escrito em língua de estranja que eu não sei falar, vou me sentir tão
orgulhoso que nem se entendesse tudo.
Mais uma vez, tomou minhas duas mãos e levou-as aos lábios, enquanto meu
sangue gelava nas veias.
Não precisa falar, não, Pip, disse ele, depois de novamente passar a
manga da camisa nos olhos e na testa, com aquele estalo na garganta que eu
lembrava bem e quanto maior sua sinceridade, maior o horror que ele me
inspirava, o melhor a fazer é mesmo ficar calado, meu querido menino. Tu não
ficaste tanto tempo esperando este momento, como eu fiquei; não estavas
preparado pra ele, como eu estava. Mas nunca pensaste que podia ser eu?
Ah, não, não, não, respondi. Nunca, nunca!
Pois é, mas foi eu, sim, sozinho. Ninguém mais nessa história, só eu e o
senhor Jaggers.
Não havia mais ninguém?, perguntei.
Não, disse ele, com uma expressão de surpresa; e quem havia de ser? E,
meu querido menino, estás mesmo um belo de um rapagão! Em algum lugar,
tem alguém de olhinhos vivos não tem? Alguém de olhinhos vivos que tu estás
sempre pensando nela?
Ah, Estella, Estella!
Esses olhinhos hão de ser teus, meu menino, se eles tiver preço em dinheiro.
Não que um cavalheiro como tu, tão bem na vida como tu, precise de dinheiro
pra conquistar esses olhinhos; mas que o dinheiro ajuda, isso ajuda! Deixa só eu
terminar o que te estava contando, meu querido menino. Graças àquela cabana e
àquele trabalho, ganhei o dinheiro que meu amo me deixou (pois ele morreu, e
antes ele era que nem eu), e ganhei minha liberdade e fui fazer minha vida. Tudo
que eu fiz, foi por ti que eu fiz. Que Deus faça tudo ir pros ares, eu dizia, fosse o
que fosse, se não for por ele! E tudo deu muito certo. Que nem eu te disse inda
há pouco, fiquei até famoso. Foi o dinheiro que eu herdei, e os lucro dos
primeiros anos que mandei pro senhor Jaggers tudo pra ti e aí ele foi te
procurar, que nem que eu mandei ele fazer na minha carta.
Ah, se ele jamais tivesse me procurado! Se me tivesse deixado na ferraria
nem um pouco contente, e, no entanto, em comparação com o que eu era
agora, feliz!
E sabes, meu querido menino, era uma recompensa pra mim, entendes,
saber que em segredo eu estava fazendo de alguém um cavalheiro. Os cavalo
puro-sangue dos colonos jogava pó em cima de mim quando eu caminhava; o
que é que eu dizia? Eu dizia pros meus botão: Eu estou fazendo de alguém um
cavalheiro muito mais distinto do que tu jamais hás de ser!. Quando um deles
dizia pro outro: Esse aí era um prisioneiro uns anos atrás, e agora tem muita sorte
de ser um trabalhador qualquer, inguinorante, o que é que eu dizia? Eu dizia pros
meus botão: Se eu não sou um cavalheiro, e se ainda não tenho estudo, eu sou
dono de um. Vosmicês todos têm gado e terra; qual de vosmicês tem um
cavalheiro bem criado em Londres?. Era assim que eu seguia em frente. E
assim eu dizia sempre a mim mesmo que um dia eu ia vir até aqui pra ver o meu
menino, e me revelar pra ele, na casa dele.
Ele pôs a mão no meu ombro. Estremeci de pensar que aquela mão podia
muito bem estar manchada de sangue.
Não foi fácil pra mim, não, Pip, vir lá daquela terra, e também ainda é
perigoso. Mas eu cismei que vinha, e quanto mais difícil era, mais eu me
esforçava, porque eu estava decidido, mais do que decidido. E finalmente eu
consegui. Meu querido menino, eu consegui!
Tentei pôr ordem nas minhas ideias, porém sentia-me aturdido. O tempo
todo eu parecia prestar mais atenção ao vento e à chuva do que ao que ele dizia;
naquele exato instante, não me era possível separar a voz dele daquelas vozes,
embora elas fossem tonitruantes e ele estivesse calado.
Onde vais me pôr?, ele perguntou-me depois de algum tempo. Tens que
me pôr em algum lugar, meu querido menino.
Para dormir?, perguntei.
Isso. E dormir um bom tempo, ele respondeu; pois passei meses e meses
num navio, jogado de um lado pro outro, com água pra todo lado.
Meu amigo e companheiro, disse eu, levantando-me do sofá, viajou;
pode ficar no quarto dele.
Ele não volta amanhã, não?
Não, respondi, de modo quase mecânico, por mais que me esforçasse;
não volta amanhã, não.
Porque, sabes, meu querido menino, disse ele, baixando a voz, e pondo o
dedo comprido no meu peito de modo expressivo, há que ter cuidado.
Como assim? Cuidado?
Meu Deus, é coisa de vida ou morte!
Como, morte?
Fui degredado pro resto da vida. Voltar é morrer. 3 Muita gente tem voltado
nos últimos anos, e se me pegam é forca na certa.
Só faltava mesmo isto: o desgraçado, depois de me desgraçar com suas
cadeias de ouro e prata por tantos anos, arriscara a própria vida para me ver, e
era eu que a protegia agora! Se ele me inspirasse amor e não horror; se ele me
inspirasse muita admiração e afeição, em vez de uma repugnância fortíssima,
não teria sido pior do que era. Pelo contrário, seria melhor, porque meu coração
naturalmente haveria de querer preservá-lo.
Minha primeira precaução foi fechar os estores, para que a luz não fosse
vista da rua, e depois fechar e trancar as portas. Enquanto isso, ele ficou em pé
diante da mesa bebendo rum e comendo biscoitos; e vendo-o de tal modo
ocupado, voltei a ver meu forçado no charco fazendo sua refeição. Eu quase o
imaginava prestes a abaixar-se para limar os grilhões da perna.
Fui ao quarto de Herbert e fechei todas as comunicações entre ele e a escada
além da sala em que transcorrera nossa conversa, e então lhe perguntei se não
queria deitar-se. Ele disse que sim, mas pediu-me uma roupa de cavalheiro
para vestir no dia seguinte. Separei algumas peças para ele, e mais uma vez meu
sangue gelou nas veias quando ele mais uma vez tomou-me as duas mãos para
me dar as boas-noites.
Afastei-me dele, sem saber como o fiz, ajeitei a lenha na lareira da sala
onde havíamos estado juntos e sentei-me junto ao fogo, com medo de me deitar.
Passei uma hora ou mais tão aturdido que nem conseguia pensar; e foi só quando
comecei de fato a pensar que me dei conta o quanto estava arrasado, o quanto
estava despedaçado o navio em que eu embarcara.
As intenções da sra. Havisham a meu respeito, tudo apenas um sonho;
Estella, não mais destinada a mim; na Casa Satis eu não passava de um utensílio,
um punitivo para parentes ávidos, um modelo com coração mecânico para servir
de objeto na falta de outros; essas foram as primeiras pontadas de dor que senti.
Mas a dor mais intensa e profunda de todas fora por causa do forçado,
culpado de sabia-se lá quais crimes, que podia a qualquer momento ser retirado
daqueles aposentos, onde eu estava a pensar, e ser enforcado junto à porta de Old
Bailey era que eu abandonara Joe.
Agora eu não voltaria para Joe, não voltaria para Biddy, por motivo algum;
simplesmente, creio eu, porque a consciência do meu comportamento
desprezível para com eles era maior do que qualquer outro motivo. Nenhuma
sabedoria deste mundo poderia me dar o conforto que me deveria ter sido
proporcionado pela simplicidade e fidelidade deles dois; mas eu jamais, jamais,
jamais poderia desfazer o que havia feito.
Em cada uivo de vento e pancada de chuva eu ouvia perseguidores. Por duas
vezes, teria sido capaz de jurar que ouvira alguém batendo e cochichando à porta
da rua. Dominado por esses temores, comecei a imaginar ou relembrar que
havia tido prenúncios misteriosos da vinda desse homem. Que, nas últimas
semanas, eu cruzara com rostos na rua que me pareceram semelhantes ao dele.
Que esses rostos semelhantes se haviam tornado mais e mais numerosos à
medida que o navio em que ele vinha se aproximava. Que seu espírito maligno
de algum modo me enviara aqueles mensageiros ao meu, e que agora, naquela
noite de tempestade, ele estava cumprindo o prometido, e viera ter comigo.
Juntamente com essas reflexões vinha a consideração de que, com meus
olhos de criança, eu vira o quanto ele era desesperadamente violento; que eu
ouvira o outro presidiário dizer mais de uma vez que ele tentara matá-lo; que eu o
vira dentro da vala brigando e debatendo-se como uma fera selvagem. De
lembranças tais eu trouxe à luz da lareira o medo semiconsciente de que talvez
fosse perigoso estar fechado junto com ele, sozinho, naquela madrugada
tempestuosa. Esse medo foi inchando até tomar conta de toda a sala, impelindome
a pegar uma vela e ir olhar para meu terrível hóspede.
Ele havia enrolado um lenço em torno da cabeça, e o rosto estava fixo e
tenso, imerso no sono. Mas estava mesmo dormindo, e em silêncio, embora
houvesse uma pistola sobre o travesseiro. Tendo feito essa verificação, sem fazer
ruído retirei a chave da porta de seu quarto e a pus do lado de fora, e tranquei-o
lá dentro antes de voltar a sentar-me junto à lareira. Pouco a pouco fui
escorregando da cadeira e me deitando no chão. Quando acordei, sem ter me
livrado durante o sono de minha sensação de desgraça, os relógios das igrejas
para o leste estavam dando as cinco horas, as velas haviam de todo se extinguido,
a lareira estava apagada, e o vento e a chuva intensificavam a escuridão negra e
espessa.
fim da segunda parte
das grandes esperanças de pip
volume iii
1
Foi sorte minha eu ter de tomar precauções para garantir (até onde isso me era
possível) a segurança daquele terrível visitante, pois essa ideia, dominando minha
consciência a partir do momento em que despertei, fazia os outros pensamentos
permanecerem numa multidão confusa, à distância.
A impossibilidade de mantê-lo oculto em meus aposentos era evidente. Não
havia como conseguir tal coisa, e qualquer tentativa nesse sentido
inevitavelmente geraria suspeitas. Era bem verdade que eu não tinha mais o
vingador a meu serviço, porém dependia dos serviços de uma velha
mexeriqueira, auxiliada por uma mulher desmazelada que ela chamava de
sobrinha, e manter um quarto escondido das duas seria um convite à curiosidade
e mexericos. Ambas tinham a vista fraca, fato que eu atribuía a seu hábito
crônico de ficar espiando pelo buraco da fechadura, e estavam sempre por perto
quando sua presença não era desejada; aliás, era essa a sua única qualidade
infalível, além do hábito de furtar. A fim de não criar um mistério para essas
pessoas, decidi dizer-lhes naquela manhã que meu tio havia inesperadamente
chegado do interior.
Tomei essa decisão tateando no escuro, tentando encontrar algo que me
permitisse acender uma luz. Não encontrando nada, julguei melhor ir ao prédio
adjacente e pedir ao vigia de lá que viesse com sua lanterna. Ao descer a escada
no escuro, caí por cima de alguma coisa, e essa alguma coisa era um homem
acocorado num canto.
Como ele não respondesse quando lhe perguntei o que estava fazendo ali,
porém se esquivasse de meu contato em silêncio, fui correndo até a guarita e
pedi ao vigia que viesse depressa, relatando-lhe o incidente no caminho. O vento
continuava tão feroz como antes, e não arriscamos ameaçar a chama da lanterna
reacendendo os lampiões apagados da escada, porém olhamos para os degraus
de baixo para cima, e não vimos ninguém ali. Ocorreu-me a possibilidade de que
o homem tivesse entrado em meus aposentos; assim, acendendo minha vela na
do vigia e deixando-o parado à porta, examinei-os com cuidado, inclusive o
quarto em que meu temível hóspede dormia. Tudo estava tranquilo, e certamente
não havia ninguém naqueles cômodos.
Preocupava-me que tivesse havido alguém na escada, precisamente naquela
noite, e perguntei ao vigia, na esperança de obter alguma explicação útil,
enquanto eu lhe servia um trago à porta, se ele havia deixado entrar pelo portão
algum cavalheiro que parecia ter jantado fora. Sim, ele respondeu; em diferentes
momentos da noite, três cavalheiros. Um morava em Fountain Court e os outros
dois na Lane, e ele vira todos três irem para casa. O único outro homem que
morava na casa onde ficavam meus aposentos estava no interior havia algumas
semanas; e ele sem dúvida não voltara durante aquela noite, pois víramos a sua
porta fechada com sua tranca ao subirmos a escada.
O tempo estava tão ruim, disse o vigia, devolvendo o copo, que quase
ninguém apareceu no portão. Fora os três que eu falei, só me lembro de outro
que veio depois das onze horas, um desconhecido perguntando pelo senhor.
Meu tio, murmurei. Sim.
O senhor viu esse?
Sim. Claro.
E também a pessoa que veio com ele?
Pessoa que veio com ele!, repeti.
Imaginei que estava com ele, explicou o vigia. A pessoa parou, quando
ele parou para me perguntar, e a pessoa veio pra cá quando ele veio pra cá.
Que espécie de pessoa?
O vigia não havia prestado atenção; diria que era um trabalhador; ao que lhe
parecia, usava roupas empoeiradas, com um casaco escuro por cima. O vigia
não dava tanta importância à coisa quanto eu, naturalmente, pois não tinha os
meus motivos para se preocupar.
Depois que me livrei dele, o que achei melhor fazer sem prolongar as
explicações, minha mente ficou profundamente perturbada por essas duas
circunstâncias tomadas juntas. Se era fácil dar uma explicação inocente às duas
em separado por exemplo, alguém que fora jantar fora, ou mesmo que
jantara em casa, e que não passara por perto do portão daquele vigia, talvez
tivesse adormecido na minha escada e meu visitante sem nome talvez tivesse
trazido uma pessoa consigo para que ela lhe indicasse o caminho consideradas
conjuntamente elas eram preocupantes, para alguém que, por efeito de
mudanças ocorridas em poucas horas, se tornara desconfiado e temeroso como
eu.
Acendi a lareira, que ardia fracamente naquela hora da madrugada, e
cochilei diante dela. Tive a impressão de ter dormido por toda uma noite quando
os relógios deram seis horas. Como ainda faltava uma hora e meia para que o dia
clareasse, voltei a cochilar; ora despertando inquieto, com conversas prolixas
sobre coisa alguma em meus ouvidos; ora transformando em trovão o vento na
chaminé; e por fim mergulhando num sono profundo do qual a luz do dia me
arrancou sobressaltado.
Durante todo esse tempo eu não conseguira pensar na minha própria
situação, e mesmo agora não era capaz de fazê-lo. Ainda não tinha forças para
tal. Sentia-me profundamente desalentado e angustiado, porém de um modo
incoerente e geral. Quanto a elaborar um plano para o futuro, isso era para mim
tão difícil quanto seria fabricar um elefante. Abrindo os estores e contemplando a
manhã úmida e tempestuosa, cor de chumbo; andando de um cômodo para o
outro; voltando a sentar-me, tiritando, diante da lareira, aguardando a chegada da
lavadeira; eu pensava na minha infelicidade, mas dificilmente saberia dizer por
quê, ou há quanto tempo, eu era tão infeliz, ou em que dia da semana estava
fazendo tal reflexão, ou sequer quem era eu, que a fazia.
Por fim, chegaram a velha e a sobrinha esta com uma cabeça que não
era fácil de distinguir de sua vassoura poeirenta manifestando surpresa ao ver
a mim e o fogo aceso. Expliquei-lhes que meu tio chegara durante a noite e
estava dormindo, e que portanto os preparativos para o desjejum teriam de ser
modificados. Em seguida, lavei-me e vesti-me enquanto elas esbarravam nos
móveis e levantavam poeira; e assim, numa espécie de sonho ou sonambulismo,
dei por mim mais uma vez sentado diante da lareira, esperando que ele
viesse fazer o desjejum.
Por fim, a porta do quarto abriu-se e ele saiu. Para mim era insuportável
olhar para ele, e tive a impressão de que seu aspecto era ainda pior à luz do dia.
Eu nem sei, disse eu, em voz baixa, quando ele se sentou à mesa, que
nome lhe dar. Eu disse que o senhor é meu tio.
Isso mesmo, meu menino querido! Me chama de tio.
O senhor adotou um nome, imagino, no navio?
Adotei, sim, meu menino querido. O nome de Provis.
E pretende conservá-lo?
Sim, claro, meu menino querido, é um nome tão bom quanto outro qualquer
a menos que prefiras outro.
Qual o seu nome verdadeiro?, perguntei, num cochicho.
Magwitch, ele respondeu, no mesmo tom; o nome de batismo é Abel.
O senhor foi criado para ser o quê?
Um bandido, meu menino querido.
Falava sério, usando a palavra como se ela denotasse alguma profissão.
Quando o senhor chegou ao Temple ontem à noite
, disse eu, fazendo
uma pausa para perguntar a mim mesmo se fora de fato na véspera, pois me
parecia fazer muito tempo.
Sim, meu menino querido?
Quando o senhor chegou ao portão e perguntou ao vigia onde eu morava,
havia alguém com o senhor?
Comigo? Não, meu menino querido.
Mas havia uma outra pessoa?
Não prestei muita atenção, disse ele, hesitante, por não conhecer o lugar.
Mas acho que tinha uma pessoa, sim, que chegou junto comigo.
O senhor é conhecido em Londres?
Espero que não!, ele respondeu, passando um dedo indicador no pescoço
com um gesto súbito que me afogueou o rosto e nauseou-me.
Já foi conhecido em Londres, outrora?
Não muito, meu menino querido. Eu passava mais tempo no interior.
O senhor foi
julgado
em Londres?
Qual das vez?, ele perguntou, com um olhar penetrante.
A última.
Ele fez que sim com a cabeça. Foi assim que eu conheci o senhor Jaggers.
Foi ele que me defendeu.
Eu estava prestes a lhe perguntar por que motivo fora a julgamento, porém
ele pegou uma faca, brandiu-a, exclamou: E pelo que eu fiz, já paguei!, e
atacou seu desjejum.
Comia com uma avidez muito desagradável, e todos os seus gestos eram
grosseiros, ruidosos e sôfregos. Alguns de seus dentes se haviam perdido depois
do dia em que eu o vira comendo no charco, e enquanto ele revirava a comida
na boca e inclinava a cabeça para que seus dentes mais poderosos entrassem em
ação, ele lembrava terrivelmente um cachorro velho e faminto. Se eu estivesse
com apetite, ele me teria feito perdê-lo, e teria ficado tal como de fato fiquei
tomado por uma aversão impossível de conter, olhando melancólico para a
toalha da mesa.
Eu como muito, mesmo, meu menino querido, disse ele, como que
pedindo desculpas, ao terminar a refeição, mas sempre fui assim. Se eu fosse
de comer menos, quem sabe eu entrava em menos encrenca. Também fumo
muito. A primeira vez que me deram trabalho de pastor de ovelha, lá do outro
lado do mundo, acho que só num virei carneiro também, um carneiro maluco de
tanta tristeza, graças ao meu cachimbo.
Enquanto falava, levantou-se da mesa e, pondo a mão no bolso interno do
jaquetão de lã, pegou um punhado de fumo solto do tipo denominado cabeçade-
negro.1 Tendo enchido o cachimbo, pôs de volta no bolso o resto do fumo,
como se o bolso fosse uma gaveta. Depois pegou uma brasa na lareira, usando as
tenazes, e com ela acendeu o cachimbo, e depois se virou, dando as costas para o
fogo, e repetiu seu gesto predileto, o de estender as duas mãos para mim.
E este aqui, disse ele, acariciando minhas mãos enquanto tirava uma
baforada do cachimbo, e este aqui é o cavalheiro que eu fiz! Um cavalheiro de
verdade! Me faz muito bem olhar pra ti, Pip. Tudo o que eu quero é ficar parado
olhando pra ti, meu menino querido!
Soltei minhas mãos assim que pude, e me dei conta de que eu estava
começando a compreender, pouco a pouco, minha situação. Compreendi a que
eu estava acorrentado, com correntes muito fortes, enquanto ouvia aquela voz
áspera e contemplava aquela calva cheia de sulcos, circundada por cabelos
grisalhos cor de ferro.
Não quero ver o meu cavalheiro andando na lama da rua; não quero ver
lama na bota dele. Meu cavalheiro precisa de cavalo, Pip! Cavalo pra montar,
cavalo pra puxar carruagem, pro criado dele também. Então um colono qualquer
pode ter um cavalo (e puro-sangue ainda por cima, meu Deus!) e o meu
cavalheiro de Londres não pode? De jeito nenhum. A gente quer te ver com um
sapato melhor do que esse, não é, Pip?
Ele tirou do bolso uma carteira grande e grossa, cheia a ponto de estourar, e
jogou-a sobre a mesa.
Nessa carteira aí tem bastante pra gastar, meu menino querido. Ela é tua.
Tudo que eu tenho não é meu não; é teu. Pode pegar sem medo. Não preocupa
que tem mais. Eu voltei aqui pra terrinha pra ver o meu cavalheiro gastando
dinheiro que nem um cavalheiro. O prazer é meu. O meu prazer é ver ele
gastando. E vocês todos que se danem!, ele resumiu, olhando à sua volta e
estalando os dedos ruidosamente, que se danem todos vocês, desde o juiz com a
peruca dele até o colono cavucando a terra, que eu vou mostrar pra vocês um
cavalheiro que vale mais que vocês todos juntos!
Um momento!, exclamei, quase num paroxismo de medo e repulsa,
quero falar com o senhor. Quero saber o que fazer. Quero saber como protegêlo,
quanto tempo vai ficar aqui, quais são os seus planos.
Olha, Pip, disse ele, pondo a mão no meu braço de uma maneira
subitamente alterada, contida; antes de mais nada, olha aqui. Eu perdi a cabeça
inda há pouco. O que eu falei foi muito vulgar; isso mesmo, vulgar. Olha, Pip.
Esquece o que eu disse. Eu não vou mais ser vulgar.
Antes de mais nada, insisti, quase gemendo, quais as precauções a tomar
para que o senhor não seja reconhecido e preso?
Não, meu menino querido, disse ele, no tom de antes, antes que isso tem
outra coisa. Tem a mesquinhez. Eu não passei esses anos todo fazendo um
cavalheiro sem saber o respeito que ele merece. Olha, Pip. Eu fui vulgar; fui sim,
vulgar. Esquece o que eu disse, meu menino querido.
A consciência do que havia de grotesco e terrível naquilo me fez rir
nervosamente, enquanto eu respondia: Eu já esqueci. Pelo amor de Deus, não
se fala mais nisso!.
É, mas olha só, ele insistiu. Meu menino querido, eu não vim de tão longe
pra ser vulgar. Mas podes continuar, meu menino querido. Estavas dizendo
Como protegê-lo do perigo que o ameaça?
Ora, meu menino querido, o perigo não é tão grande assim. Pelo que dizem,
até que não é muito perigo não. Fora o Jaggers, o Wemmick e tu, quem mais que
está sabendo?
Não há nenhuma pessoa que possa identificá-lo na rua?, indaguei.
Bom, ele respondeu, não tem muita gente não. Não vou sair por aí
anunciando no jornal que o A. M. voltou de Botany Bay ;2 e tanto tempo passou,
quem é que vai ganhar alguma coisa com isso? Mas enfim, olha aqui, Pip.
Mesmo que o perigo fosse cinquenta vez maior, eu vinha te ver, ouviu?
E quanto tempo vai ficar?
Quanto tempo?, disse ele, tirando da boca o cachimbo preto e baixando o
queixo, enquanto me olhava fixamente. Eu não volto mais, não. Vim pra ficar.
Onde o senhor vai morar?, perguntei. O que há de se fazer com o senhor?
Onde vai estar em segurança?
Meu menino querido, ele respondeu, o dinheiro compra peruca pra
disfarçar, e polvilho pra pôr no cabelo, e óculos, e roupa preta culote, essas
coisa. Tem gente que já fez isso antes de mim, e se com eles deu certo, comigo
também há de dar. E quanto ao lugar que eu vou ficar, e do que eu vou viver,
meu menino querido, me diz o que tu achas.
Agora o senhor diz que não há perigo, argumentei, mas ontem à noite a
coisa era muito séria, e o senhor jurou que podia morrer.
E morro mesmo, disse ele, recolocando o cachimbo na boca, morro
enforcado, no meio da rua, pertinho daqui, e é bom que tu leves isso a sério. Mas
o que está feito, feito está. Estou aqui. Voltar agora seria tão perigoso quanto ficar
seria mais perigoso ainda. Além disso, Pip, estou aqui porque fiz o que fiz por
ti, esses anos todos. E se estou correndo perigo, sou um pássaro velho que já caiu
em muita arapuca na vida, e não vai ser um espantalho qualquer que há de me
dar medo. Se a morte está escondida dentro dele, então ela que venha pra fora,
que eu olho ela no olho e vou acreditar nela, mas só nessa hora. E agora me
deixa olhar pro meu cavalheiro de novo.
Mais uma vez, ele tomou-me pelas duas mãos e encarou-me com um ar de
quem admira sua propriedade: fumando com muita complacência o tempo todo.
Pareceu-me que o melhor que eu podia fazer seria arranjar-lhe um lugar
discreto para ficar bem perto dali, para onde ele haveria de se mudar quando
Herbert voltasse, o que eu imaginava que aconteceria dentro de dois ou três dias.
Que o segredo teria de ser confidenciado a Herbert por uma questão de
necessidade inevitável, mesmo se eu não levasse em conta o alívio imenso que
seria para mim abrir-me com ele, era algo que a mim me parecia claro.
Entretanto, não estava de modo algum muito claro para o sr. Provis (decidi
chamá-lo assim), o qual afirmou que só concordaria com a participação de
Herbert depois que o visse e fizesse um juízo favorável de sua fisionomia. E
mesmo assim, meu querido menino, disse ele tirando do bolso uma pequena
bíblia ensebada, de capa preta, com fecho de metal, vamos fazer ele jurar.
Afirmar que meu terrível protetor levava aquele livrinho preto consigo com
o único objetivo de fazer as pessoas jurarem em caso de emergência seria
afirmar algo que nunca pude determinar isto, porém, posso afirmar: jamais o
vi usá-lo para qualquer outro fim. O livro em si parecia ter sido roubado de
algum tribunal, e talvez por conhecer seus antecedentes, e também por ter tido
alguma experiência própria nesse sentido, ele confiava em seus poderes como
uma espécie de encantamento ou talismã legal. Nessa primeira ocasião em que
sacou um livro, lembrei-me de que ele me fizera jurar fidelidade no camposanto,
tantos anos antes, e que na noite anterior dissera que fazia um juramento
quando tomava suas decisões na solidão do degredo.
Como no momento estava usando traje de marinheiro, dando a impressão de
que estaria vendendo papagaios e charutos, resolvi conversar com ele sobre as
roupas que deveria usar. Ele tinha uma crença extraordinária nas virtudes dos
culotes como disfarce, e já havia mentalmente esboçado um vestuário que lhe
daria uma aparência intermediária entre um deão e um dentista. Foi só com
muita dificuldade que o convenci a utilizar um traje mais semelhante ao de um
fazendeiro próspero, e combinamos que ele cortaria o cabelo bem curto e o
empoaria.3 Por fim, como ele ainda não fora visto pela lavadeira nem pela
sobrinha, decidimos que ele não se apresentaria a elas enquanto não mudasse de
traje. Tomar decisões a respeito de tais precauções pode parecer uma coisa
simples, porém eu estava de tal modo aturdido, para não dizer transtornado, que o
processo se arrastou tanto que só saí de casa para começar a pôr em prática o
plano às duas ou três da tarde. O sr. Provis ficaria fechado nos meus aposentos
enquanto eu estivesse na rua, e não abriria a porta em hipótese alguma.
Sabendo que havia uma pensão respeitável na Essex-street, os fundos da qual
davam para o Temple, tanto assim que eu quase podia vê-la das minhas janelas,
antes de mais nada fui lá e tive a sorte de poder alugar o segundo andar para meu
tio, o sr. Provis. Em seguida, fui de loja em loja, comprando os apetrechos que
eram necessários para mudar a aparência dele. Feito isso, dirigi-me, por conta
própria, a Little Britain. O sr. Jaggers estava sentado à sua mesa, mas ao me ver
entrar levantou-se imediatamente e postou-se diante da lareira.
Bem, Pip, disse ele, tenha cuidado.
Certamente, respondi. Pois eu havia pensado no que lhe dizer ao ir para lá.
Não se comprometa, disse ele, e não comprometa ninguém. Entendeu?
Ninguém. Não me diga nada: não quero saber de nada; não sou curioso.
Estava claro que ele sabia que o homem havia chegado.
Eu só queria, senhor Jaggers, disse eu, certificar-me de que é verdade o
que me foi dito. Não tenho esperança de que seja mentira, mas posso pelo menos
me certificar.
O sr. Jaggers assentiu com a cabeça. Mas você disse o que me foi dito ou
o que me foi informado?, ele me perguntou, inclinando a cabeça para o lado e
sem olhar para mim, e sim, com ar de quem estava escutando, para o chão. O
que me foi dito parece implicar comunicação oral. É impossível comunicar-se
oralmente com um homem que está em Nova Gales do Sul, você sabe.
Direi então informado, senhor Jaggers.
Bom.
Fui informado, por um homem chamado Abel Magwitch, que ele é o
benfeitor cuja identidade desconheço há tanto tempo.
O homem é esse mesmo, disse o sr. Jaggers, lá de Nova Gales do Sul.
Somente ele?, perguntei.
Somente ele, respondeu o sr. Jaggers.
Não sou insensato a ponto de julgar que o senhor é de algum modo
responsável pelos meus equívocos e pelas conclusões erradas que tirei, mas
sempre imaginei que fosse a senhora Havisham.
Como você mesmo disse, Pip, respondeu o sr. Jaggers, encarando-me
com frieza, e mordendo o indicador, não sou de modo algum responsável por
isso.
E, no entanto, parecia muito que fosse, implorei, com o coração nas mãos.
Não havia nenhum indício concreto, Pip, disse o sr. Jaggers, sacudindo a
cabeça e juntando as abas da casaca. Jamais se guie pelas aparências; sempre
se funde em dados concretos. Não há regra melhor do que essa.
Não tenho mais nada a dizer, prossegui, com um suspiro, depois de
permanecer em silêncio por algum tempo. Certifiquei-me do que me foi
informado, e ponto final.
E agora que Magwitch em Nova Gales do Sul por fim se revelou,
disse o sr. Jaggers, você compreenderá, Pip, que durante todo esse tempo, em
minhas comunicações com você, sempre me ative estritamente aos fatos. Jamais
me afastei, por um milímetro que fosse, dos fatos. Você tem consciência disso?
Tenho, sim, senhor.
Comuniquei a Magwitch em Nova Gales do Sul quando ele me
escreveu pela primeira vez de Nova Gales do Sul a ressalva de que ele não
deveria esperar de mim que eu jamais me afastasse dos fatos. Também fiz outra
ressalva. Ele pareceu dar a entender vagamente sua intenção de algum dia vir
visitá-lo aqui na Inglaterra. Deixei claro que não queria mais ouvir falar de tal
coisa; que não era nem um pouco provável que ele conseguisse obter um perdão;
que ele haveria de ficar no degredo todo o resto de sua vida; e que se ele voltasse
a este país, estaria cometendo um crime, o que o deixaria exposto à pena mais
extrema. Fiz esse alerta a Magwitch, disse o sr. Jaggers olhando para mim
fixamente; escrevi para Nova Gales do Sul. Ele certamente terá seguido minha
orientação.
Certamente, concordei.
Fui informado por Wemmick, prosseguiu o sr. Jaggers, ainda olhando
fixamente para mim, de que ele recebeu uma carta, enviada de Portsmouth,
por um colono chamado Purvis, ou
Ou Provis, sugeri.
Ou Provis obrigado, Pip. Talvez seja mesmo Provis? Talvez você saiba
que é Provis?
Isso mesmo, respondi.
Você sabe que é Provis. Uma carta, enviada de Portsmouth, por um colono
chamado Provis, pedindo o seu endereço, a mando de Magwitch. Wemmick
mandou-lhe a informação pedida, pelo que sei, via correio. Provavelmente foi
através do Provis que você recebeu a explicação de Magwitch de Nova Gales
do Sul?
Foi através do Provis, sim, respondi.
Até logo, Pip, disse o sr. Jaggers, estendendo a mão; foi um prazer vê-lo.
Quando escrever para o Magwitch em Nova Gales do Sul ou o Provis,
tenha a bondade de lhe dizer que os detalhes e os documentos serão enviados,
juntamente com o saldo, pois ainda resta um saldo. Até logo, Pip!
Trocamos um aperto de mãos, e ele ficou a olhar-me fixamente até me
perder de vista. Virei-me para trás ao chegar à porta, e ele continuava me
olhando fixamente, enquanto as duas máscaras horrendas na prateleira pareciam
estar tentando levantar as pálpebras e arrancar de suas gargantas inchadas: Ah,
mas que homem, esse!.
Wemmick havia saído, e mesmo que estivesse sentado a sua mesa não
poderia ter feito nada por mim. Voltei direto para o Temple, onde encontrei o
terrível Provis bebendo grogue e fumando cabeça de negro, tranquilo.
No dia seguinte, todas as roupas que eu mandara fazer foram entregues, e
ele experimentou-as. Cada peça que vestia (era essa a minha impressão
desanimadora) assentava-lhe menos do que a anterior. Tinha eu a impressão de
que alguma coisa nele frustrava qualquer tentativa de disfarçá-lo. Quanto mais e
melhor eu o vestia, mais ele parecia aquele fugitivo trôpego no charco. Esse
efeito sobre minha mente fantasiosa e ansiosa era em parte causado, sem dúvida,
pelo fato de que seu rosto e seu jeito estavam se tornando mais familiares para
mim; creio, porém, que além disso ele arrastava uma das pernas como se ainda
tivesse um grilhão preso a ela, e dos pés à cabeça ele era essencialmente um
forçado.
Ademais, ele ainda conservava sinais da vida solitária que levara naquela
cabana, e isso lhe emprestava um ar selvagem que roupa alguma seria capaz de
domesticar; ostentava também os sinais de homem marcado, egresso da vida que
levara posteriormente; e coroando tudo isso, havia sua consciência de que estava
fugindo e se escondendo ainda agora. Em todas as suas posturas, sentado e em
pé, comendo e bebendo andando de um lado para outro a cismar, de um jeito
relutante, com os ombros empertigados tirando do bolso seu enorme canivete
de cabo de chifre, limpando a lâmina na perna e cortando a carne levando aos
lábios copos e xícaras leves como se fossem canecos grosseiros cortando uma
fatia de pão e pegando com ela os últimos restos do molho, dando voltas e mais
voltas no prato, como se para aproveitar ao máximo sua ração, e depois
limpando nela as pontas dos dedos e por fim comendo-a nesses gestos, e numa
infinidade de outros exemplos sem nome a cada minuto do dia, lá estava o
prisioneiro, o criminoso, o forçado, plenamente visível para qualquer um.
Fora sua a ideia de empoar o cabelo, e eu aceitei-a depois de dissuadi-lo de
usar culotes. Porém o efeito do polvilho nele só pode ser comparado, a meu ver,
ao efeito provável do ruge no rosto de um defunto; era terrível como tudo aquilo
que nele se queria ocultar irrompia através daquela fina camada de fingimento, e
parecia explodir no seu cocuruto. Abandonamos o polvilho após a primeira
tentativa, e ele passou a usar o cabelo grisalho cortado curto.
Não há palavras que possam exprimir a consciência que eu tinha, na época,
do terrível mistério que ele representava para mim. Quando adormecia à noite,
as mãos nodosas agarradas aos braços da espreguiçadeira, a cabeça calva
tatuada com sulcos profundos caída sobre o peito, eu ficava a olhar para ele,
perguntando a mim mesmo o que ele teria efeito, e atribuindo-lhe todos os
crimes do Calendar,4 até ser dominado por um poderoso impulso que me fazia
levantar de repente e fugir dele. A cada hora aumentava o horror que ele me
inspirava, tal modo que eu teria cedido a esse impulso assim que ele se
manifestou, apesar de tudo que aquele homem fizera por mim, e dos riscos que
correra, não fosse a consciência de que Herbert em breve estaria de volta. De
certa feita cheguei mesmo a levantar-me no meio da noite e começar a vestir as
piores roupas que tinha, com a intenção de fugir às pressas, deixando para ele
todas as minhas outras posses, e alistar-me como soldado raso para ir servir na
Índia. Creio que nem mesmo um fantasma me teria apavorado mais, sozinho
naqueles aposentos, durante as noites intermináveis, com a chuva e o vento
incessantes. Um fantasma não poderia ser preso e enforcado por minha culpa, e
a consciência de que isso poderia acontecer com ele, e o pavor de que tal
acontecesse aumentavam ainda mais o horror que eu sentia. Quando ele não
estava dormindo, nem jogando uma forma complicada de paciência com seu
baralho de cartas gastas um jogo que nunca vi antes nem depois, e no qual ele
registrava os pontos que acumulava cravando o canivete na mesa quando não
estava fazendo nem uma coisa nem outra, pedia-me que lesse para ele: Em
língua de estranja, meu menino querido!. Eu obedecia, e ele, sem entender
palavra da minha leitura, ficava parado diante da lareira contemplando-me com
ares de exibidor, e eu o via, por entre os dedos da mão com a qual eu cobria meu
rosto, gesticulando para a mobília, e pedindo-lhe que atentasse para minha
proficiência. O estudante imaginário perseguido pela criatura disforme5 por ele
criada, do modo mais ímpio, não poderia ser mais desgraçado do que eu,
perseguido pela criatura que me criara, e dela fugindo com uma repulsa que se
tornava cada vez mais forte quanto mais ele me admirava e afeiçoava-se a mim.
Ao relatar esses fatos, percebo que dou a impressão de que tudo durou um
ano. Durou cerca de cinco dias. Sempre na expectativa da chegada de Herbert,
eu não ousava sair de casa, senão após o pôr do sol, quando levava Provis para
tomar um pouco de ar. Até que uma noite, finalmente, depois do jantar, quando
eu havia começado a cochilar, exausto pois minhas noites eram agitadas, e
meu descanso era interrompido por sonhos terríveis fui despertado pelo som
alvissareiro de passos na escada. Provis, que também estava dormindo, levantouse
trôpego de sono com o barulho que eu fizera, e no instante seguinte vi seu
canivete brilhando em sua mão.
Silêncio! É o Herbert!, disse eu; e Herbert entrou efusivamente, o frescor
de mil quilômetros de França no rosto.
Handel, meu caro, como vais, e como vais, e como vais? Parece que estive
fora por um ano! E deve ter sido isso mesmo, pois estás tão magro e pálido!
Handel, meu
Eh! Perdão.
Interrompeu sua fala e o gesto de apertar minha mão quando viu Provis.
Este, encarando-o com atenção, estava guardando lentamente o canivete,
enquanto procurava em outro bolso alguma outra coisa.
Herbert, meu amigo, disse eu, fechando as portas duplas, enquanto
Herbert me olhava sem entender, uma coisa muito estranha aconteceu. Este
aqui um é
uma visita minha.
Tudo bem, meu querido menino!, disse Provis, aproximando-se com seu
livrinho de capa preta e dirigindo-se a Herbert: Segure na sua mão direita. Que
Deus o mate na mesma hora se você fizer alguma traição! Beije!.
Faze o que ele pede, disse eu a Herbert. E assim, Herbert, voltando para
mim um olhar amistoso cheio de preocupação e espanto, obedeceu, e Provis,
imediatamente apertando sua mão, disse: Agora você jurou. E não acredite no
meu juramento se Pip não fizer docê um cavalheiro de verdade!.
2
Seria inútil tentar descrever o espanto e a inquietude de Herbert, quando eu, ele e
Provis nos sentamos diante da lareira e revelei-lhe todo o segredo. Basta dizer
que vi meus próprios sentimentos refletidos no rosto de Herbert, e dentre eles, em
particular, a repugnância que me inspirava o homem que tanto fizera por mim.
O que por si só teria estabelecido uma divisão entre aquele homem e nós, se
não houvesse nenhuma outra circunstância a nos separar, era a sensação de
triunfo que lhe inspirava meu relato. Fora o desconforto que manifestou por ter
sido vulgar numa ocasião após sua volta o qual passou a comunicar a
Herbert tão logo concluí minha revelação ele não via nenhum motivo para
que eu me queixasse de minha boa sorte. Quando se vangloriava de ter feito um
cavalheiro de mim, e de ter vindo para me ver representar esse papel graças a
sua prosperidade, vangloriava-se por mim tanto quanto por si próprio; e que tal
circunstância era muito agradável para nós dois, e motivo de grande orgulho para
ambos, era uma conclusão firmemente estabelecida em sua mente.
Se bem que, olhe aqui, camarada do Pip, disse ele a Herbert, depois de ter
discorrido por algum tempo, sei muito bem que uma vez, depois que eu voltei
por meio minuto eu fui vulgar. Eu falei pro Pip: eu sei que fui vulgar. Mas não
preocupa com isso, não. Se eu fiz do Pip um cavalheiro, e se ele vai fazer um
cavalheiro docê, eu sei muito bem que ocês dois merece respeito. Meu querido
menino, e camarada de Pip, ocês dois pode contar comigo, que eu vou sempre
usar uma mordaça de educação. Pus a mordaça desde aquele meio minuto em
que recaí na mesquinhez, e estou com ela agora, e assim hei de ficar daqui pra
frente.
Disse Herbert: Certamente, mas a expressão em seu rosto dava a entender
que para ele aquilo não representava nenhum consolo, e ele permaneceu
perplexo e desanimado. Estávamos ansiosos para que aquele homem fosse logo
para seus aposentos e nos deixasse juntos, mas ele, sem dúvida por estar
enciumado, não queria nos deixar a sós, e ficou conosco até tarde. Já era meianoite
quando fui levá-lo até a Essex-street e o deixei em segurança diante de sua
porta às escuras. Quando a porta se fechou, vivi meu primeiro momento de alívio
desde a noite em que ele chegara.
Nunca inteiramente livre da lembrança inquietante do homem na escada, eu
sempre olhava a minha volta quando levava meu hóspede para passear após o
pôr do sol, e quando o trazia de volta; e foi o que fiz agora. Por mais difícil que
seja evitar, numa cidade grande, a suspeita de que se está sendo observado
quando a mente tem consciência de tal perigo, eu não conseguia convencer a
mim mesmo que houvesse alguém entre as pessoas a minha volta interessado em
meus movimentos. As poucas pessoas que passavam seguiam cada uma seu
próprio caminho, e a rua estava vazia quando cheguei de volta ao Temple.
Ninguém saíra pelo portão conosco, ninguém entrou pelo portão comigo. Quando
passei pela fonte, vi as janelas dos fundos dos aposentos dele, iluminadas e
silenciosas, e quando parei por alguns instantes à porta do prédio onde eu morava,
antes de subir a escada, o Garden-court continuava tão silencioso e vazio quanto a
escada, quando comecei a subi-la.
Herbert recebeu-me de braços abertos, e eu jamais sentira antes, com tanta
força, a felicidade que é ter um amigo. Depois que ele me dirigiu algumas
palavras sensatas de solidariedade e estímulo, sentamo-nos para examinar a
questão: o que fazer?
Como a cadeira que fora ocupada por Provis ainda permanecia no mesmo
lugar de antes pois ele tinha o hábito, característico de quem já viveu em uma
cabana, de se estabelecer num lugar e lá permanecer inquieto, às voltas com seu
cachimbo, seu fumo, seu canivete, seu baralho e não sei o que mais, como se
todas essas atividades lhe estivessem prescritas numa lousa como sua cadeira,
dizia eu, permanecia no lugar de antes, Herbert sentou-se nela sem se dar conta
do que fazia, mas logo em seguida levantou-se de súbito, empurrou-a para o lado
e instalou-se noutra. Depois disso, não teve oportunidade de dizer que sentia uma
aversão por meu protetor, nem eu tive ocasião de confessar idêntico sentimento.
Trocamos essa confidência sem pronunciar uma única sílaba.
Mas, disse eu a Herbert, depois que ele se sentou em outra cadeira, o que
se há de fazer?
Meu pobre e caro Handel, respondeu ele, segurando a cabeça, estou
aturdido demais para pensar.
Era assim que eu estava, Herbert, ao primeiro impacto do golpe. Mesmo
assim, alguma coisa tem de ser feita. Ele está decidido a fazer mais despesas
cavalos, carruagens, luxos de toda espécie. É preciso impedi-lo de algum modo.
Queres dizer que não podes aceitar
?
E como eu poderia fazê-lo?, interpus, quando Herbert fez uma pausa.
Pensa só nele! Olha só para ele!
Um arrepio involuntário se apossou de nós dois.
No entanto, infelizmente, creio que a terrível verdade, Herbert, é que ele é
apegado a mim, fortemente apegado a mim. Onde já se viu destino
semelhante!
Meu pobre e caro Handel, repetiu Herbert.
Além disso, prossegui, pensando bem, mesmo se eu parasse por aqui, e
nunca mais aceitasse um tostão dele, pense só no quanto já lhe devo! E mais:
estou muito endividado muitíssimo para uma pessoa como eu, que agora não
tem mais esperanças e que não aprendeu nenhum ofício, e não presta para
coisa alguma.
Ora, ora, ora!, ralhou Herbert. Não me digas que não prestas para coisa
alguma!
Então para que é que eu presto? Só sei de uma coisa que posso fazer: sentar
praça. E se ainda não fiz isso, meu caro Herbert, é só porque ainda me restava a
possibilidade de recorrer a teus conselhos, tua amizade e teu afeto.
É claro que, neste momento, meus olhos encheram-se de lágrimas; e é claro
que Herbert, a não ser por apertar minha mão calorosamente, fez de conta que
não o percebeu.
Seja como for, meu caro Handel, disse ele, após uma pausa, virar
soldado não resolve nada. Se renunciasses à proteção e aos favores dele, creio
que o farias na vaga esperança de um dia poderes pagar o que já deves. Tal
esperança seria mesmo muito vaga se virasses soldado! Além disso, é absurdo.
Ficarias bem melhor na firma de Clarriker, ainda que ela seja pequena. Estou
trabalhando para me tornar sócio, bem o sabes.
Pobre rapaz! Mal sabia ele com que dinheiro o fazia.
Mas há outra questão, disse Herbert. Esse homem é um ignorante
determinado, que há muito tempo tem uma ideia fixa. Mais do que isso, ele me
parece (mas posso estar julgando-o mal) um homem de temperamento
desesperado e feroz.
É mesmo, disso eu não tenho dúvida, concordei. Vou te dizer as provas
que tenho. E relatei-lhe o que não havia mencionado na minha narrativa: aquele
encontro com o outro forçado.
Vê, então, disse Herbert; pensa só! Ele vem aqui correndo risco de vida,
para realizar sua ideia fixa. No momento em que a realiza, depois de tanto
esforço e tanta espera, tu puxas o tapete debaixo dos pés dele, destróis sua ideia e
fazes com que suas realizações não tenham nenhum valor para ele. Não
imaginas o que ele pode fazer, sob o impacto dessa decepção?
Imagino, sim, Herbert, e desde a noite fatal em que ele chegou tenho
sonhado com isso. Não há nada que tenha ocupado meus pensamentos tanto
quanto a ideia de ele se deixar prender.
Então podes ter certeza, disse Herbert, que o risco de que ele faça isso é
muito grande. Esse é o poder que ele tem sobre ti enquanto permanecer na
Inglaterra, e seria essa a imprudência que ele cometeria se tu o desiludisses.
Tamanho foi o horror que me causou essa possibilidade, a qual me onerava
desde o início, e que me faria ver a mim mesmo, de algum modo, como culpado
de sua morte, que não consegui ficar sentado na minha cadeira, porém pus-me a
andar de um lado para o outro. Nesse ínterim, disse a Herbert que, mesmo se
Provis fosse reconhecido e preso involuntariamente, eu me sentiria muito infeliz
por ter sido a causa de seu infortúnio, por mais inocente que fosse. Sim; muito
embora eu me sentisse tão infeliz por estar ele à solta e perto de mim, e muito
embora eu preferisse mil vezes passar o resto de meus dias trabalhando na
ferraria a viver tal situação!
Mas não havia como escapar da pergunta: o que fazer?
A primeira coisa a fazer, e a mais importante, disse Herbert, é tirá-lo da
Inglaterra. Terás que ir com ele, e assim será possível fazê-lo ir.
Mas ainda que eu consiga fazê-lo ir, eu poderia impedi-lo de voltar?
Meu bom Handel, então não está claro que, com Newgate logo ali na
esquina, é muito mais perigoso abrir-se com ele, e desse modo fazê-lo agir de
modo estouvado, aqui do que em qualquer outro lugar? Se fosse possível utilizar
como pretexto para tirá-lo da Inglaterra o outro forçado, ou outra coisa qualquer
de sua vida
Aí está!, exclamei eu, detendo-me diante de Herbert com as mãos
espalmadas, como se elas contivessem todo o desespero da situação. Não sei
nada sobre a vida dele. Quase enlouqueci ao passar a noite aqui vendo-o à minha
frente, tão envolvido com a minha sorte e a minha desgraça, e ao mesmo tempo
nada saber sobre ele, a não ser que foi ele o miserável que me apavorou durante
dois dias de minha infância!
Herbert levantou-se, tomou-me o braço, e lentamente ficamos a andar
juntos de um lado para o outro, contemplando o tapete.
Handel, disse Herbert, parando, tens certeza de que não podes mais
aceitar nada das mãos dele, não tens?
Absoluta. Certamente tu também terias, se estivesses em meu lugar.
E tens certeza de que precisas romper com ele?
Herbert, como podes perguntar uma coisa dessas?
E tu tens, e tens de ter, a consideração pela vida que ele arriscou por ti, e
sentes que tens de impedi-lo, se possível, de jogar fora essa vida. Nesse caso, é
preciso tirá-lo da Inglaterra antes de tomar qualquer iniciativa no sentido de
desligar-te dele. Feito isso, desliga-te dele, pelo amor de Deus, que depois nós
damos um jeito juntos, meu querido amigo.
Foi um conforto para mim trocar um aperto de mãos com ele depois disso, e
voltar a andar de um lado para o outro, tendo feito apenas isso.
Bem, Herbert, disse eu, quanto a obter alguma informação sobre a vida
dele, só sei de uma maneira de fazê-lo. O jeito é lhe perguntar, à queima-roupa.
Isso mesmo. Pergunta a ele, disse Herbert, no desjejum, amanhã de
manhã. Pois ele dissera, ao despedir-se de Herbert, que viria fazer o desjejum
conosco.
Tendo tomado essa decisão, fomos nos deitar. Tive os sonhos mais delirantes
a respeito do homem, e despertei nem um pouco descansado; além disso, quando
acordei voltou a apossar-se de mim o medo que eu havia perdido durante a noite,
de que viesse à tona que ele era um degredado que voltara ilegalmente à
Inglaterra. Uma vez desperto, esse medo não me dava trégua.
Ele chegou na hora combinada, tirou do bolso o canivete e sentou-se para
comer. Estava cheio de planos para que seu cavalheiro se mostrasse a todos
como o cavalheiro que era, e insistiu para que eu começasse logo a gastar o
dinheiro contido na carteira que ele deixara comigo. Considerava meus aposentos
e os dele como residências temporárias, e aconselhou-me a procurar
imediatamente uma maloca elegante perto do Hy de Park, onde houvesse um
lugar em ele pudesse tirar uma pestana. Quando terminou seu desjejum e se
pôs a limpar a lâmina do canivete na calça, eu lhe disse, sem rodeios:
Depois que o senhor foi embora ontem à noite, contei a meu amigo que os
soldados o encontraram brigando no charco, quando chegamos. O senhor se
lembra?
Se me lembro?, ele retrucou. E como!
Queremos saber alguma coisa sobre aquele homem e sobre o senhor. É
estranho não saber nada sobre ele e sobre o senhor, particularmente sobre o
senhor, senão o que fui capaz de contar a meu amigo ontem. Esta não seria uma
boa ocasião para saber mais?
Bem!, ele exclamou, depois de pensar um pouco. Ocê está jurado, não
é, camarada do Pip?
Certamente, respondeu Herbert.
Quanto a tudo que eu disser, ocê sabe, ele insistiu. O juramento se aplica
a tudo.
Estou ciente disso.
E veja bem! Tudo que eu fiz, eu já paguei por isso, com meu trabalho, ele
voltou a insistir.
Assim seja.
Ele pegou o cachimbo preto e ia enchê-lo de fumo cabeça-de-negro quando,
contemplando o punhado de fumo que tinha na mão, pareceu concluir que aquilo
talvez o fizesse perder o fio da meada. Guardou-o no bolso outra vez, enfiou o
cachimbo na casa de um botão do casaco, apoiou uma mão espalmada em cada
joelho e, depois de voltar um olhar feroz para o fogo por alguns momentos de
silêncio, olhou para nós e relatou o que se segue.
3
Meu querido menino e camarada do Pip. Não vou contar minha história como
se fosse uma canção ou um conto de fadas. Mas pra não perder tempo vou dizer
tudo de uma vez só: entrei na prisão e saí da prisão, entrei na prisão e saí da
prisão, entrei na prisão e saí da prisão. Pronto, é só isso. A minha vida é quase
que só isso, até a hora que me levaram embora, despois que o Pip se mostrou
meu amigo.
Já fizeram comigo quase tudo nesse mundo menos me enforcar. Já fui
trancado tantas vez quanto um bule de chá de prata. Já fui levado de carroça de
um lado pro outro, expulso de tudo quanto é cidade, posto no pelourinho,
chicoteado, torturado e arrastado. Quanto ao lugar em que eu nasci, sei tanto
quanto ocês ou menos ainda. A lembrança mais antiga que eu tenho é eu, em
Essex, ganhando a vida roubando nabo. Alguém tinha me abandonado um
homem um latoeiro levando o fogo consigo, e me deixando com muito
frio.
Eu sabia que meu nome era Magwitch, e que me batizaram Abel. Como
que eu sabia isso? Mais ou menos como eu sabia os nome dos passarinho que eu
via nas sebe, tentilhão, tordo, pardal. Eu podia muito bem achar que tudo era
mentira, mas aí vi que os nome dos passarinho eram mesmo aqueles, e daí
pensei que o meu também devia ser esse.
Desde que me tenho por gente, todo mundo que viu o pequeno Abel
Magwitch, mesmo quando era bem pequeno, ou morria de medo dele, ou
enxotava ele, ou prendia ele. Me prenderam uma vez, duas vez, três vez, e assim
foi que mais ou menos cresci preso.
Foi assim que, quando eu era uma criaturinha esfarrapada de dar dó (não
que eu me visse no espelho, porque quase nunca que eu entrava em casa que
tivesse mobília), começaram a dizer que eu era incorregível. Esse aí é
totalmente incorregível, diziam a quem vinha visitar a prisão, apontando pra
mim. Esse aí praticamente mora na prisão, esse menino. Então olhavam pra
mim, e eu olhava pra eles, e eles media minha cabeça,1 às vezes eles devia
mas era medir meu estômago e tinha uns outro que me dava uns folheto que
eu não sabia ler, e me fazia discurso que eu não conseguia entender. Eles sempre
falavam no diabo. Mas que diabo eu podia fazer? Eu tinha que pôr alguma coisa
no estômago, é ou não é? Mas estou sendo vulgar, e sei que devo respeito a
ocês. Meu querido menino e camarada do Pip, não preocupa, não, que não vou
ser vulgar.
Vagabundeando, mendigando, roubando, trabalhando às vezes quando
conseguia mas isso era raro, o que ocês vai entender se parar para pensar se
ocês ia querer me empregar se me visse fazendo de tudo um pouco, de
caçador, operário, carroceiro, ceifeiro, mascate, quase tudo que paga pouco e
termina em confusão, me fiz homem. Um soldado desertor num abrigo pra
vagabundo, tatuado até o queixo, me ensinou a ler; e um gigante de feira, que
ganhava um pêni cada vez que assinava o nome, me ensinou a escrever. Nessa
época eu não era preso tantas vez quanto antes, mas mesmo assim gastei muito
latão de chave de cadeia.
Nas corrida de Epson, coisa de mais de vinte anos atrás, conheci um
homem que eu rachava a cabeça dele com esse atiçador, como se fosse uma
pata de lagosta, se ela estivesse aqui nessa lareira. O nome de verdade dele era
Compey son; e foi com esse homem, meu querido menino, que tu me viste
brigando naquela vala, tal qual tu contaste a teu camarada depois que me despedi
ontem à noite.
Ele se fazia passar por cavalheiro, o tal do Compey son, e tinha estudado
numa escola de gente rica, ele tinha estudo. Sabia falar bem e conhecia as
maneira da gente rica. Era bonitão também. Foi na véspera do grande páreo,
quando eu encontrei o tipo na charneca, numa taberna que eu conhecia. Ele e
mais uns estava sentado numa mesa quando eu entrei, e o taberneiro (que me
conhecia, e que era do meu ramo) chamou ele e falou assim: Acho que este
homem é o que ocê quer apontando pra mim.
O Compey son olha pra mim com muita atenção, e eu pra ele. Ele tem
relógio com corrente, anel, alfinete de gravata e roupa bonita.
A julgar pelas aparência, ocê não tem tido sorte, diz ele a mim.
Sim, senhor, sorte é coisa que nunca tive. (Eu estava saindo da cadeia de
Kingston por vagabundagem. Podia até ter sido por outra coisa, mas não foi.)
A sorte muda, diz o Compey son; talvez a sua esteja prestes a mudar.
Aí eu digo: Espero que mude mesmo. Está precisando.
O que é que ocê sabe fazer? pergunta o Compey son.
Comer e beber, eu respondo, se o senhor providenciar os materiais.
O Compey son riu, olhou pra mim outra vez com muita atenção, me deu
cinco xelim e combinou de encontrar comigo na noite seguinte. No mesmo lugar.
Fui encontrar com o Compey son na noite seguinte, no mesmo lugar, e ele
me tomou como parceiro. E qual era o negócio dele, que eu seria parceiro? O
negócio do Compey son era fraude, falsificar assinatura, passar nota roubada, e
por aí vai. Todo tipo de falcatrua que ele inventava na cabeça dele, só que não
sujava as mão, os lucro ia pro bolso dele e outra pessoa ia pra cadeia era esse
o negócio do Compey son. O coração dele era mais duro que uma lima de ferro,
ele era frio que nem a morte, e a cabeça dele era como a do tal diabo de quem
falei ainda há pouco.
Tinha um outro que trabalhava com o Compey son, que ele chamava de
Arthur não como se fosse nome de batismo, e sim sobrenome. Estava mal de
saúde, e parecia um fiapo de gente. Ele mais o Compey son tinha passado a perna
numa mulher rica uns anos antes, e ganharam um bom dinheiro; mas o
Compey son apostava e jogava; ele era capaz de perder todo o tesouro da Coroa
na mesa verde. Então o tal do Arthur estava morrendo, e morrendo pobre, com
tremedeira de bebida ainda por cima, e a mulher do Compey son (que vivia
apanhando do Compey son) ajudava o Arthur quando podia, e o Compey son não
tinha pena de ninguém e de nada.
Só de olhar pro Arthur, eu devia de tomar tenência, mas não; e a verdade é
que nessa época eu topava qualquer coisa e como é que eu podia ficar
escolhendo, meu querido menino e camarada do Pip? E assim comecei a
trabalhar com o Compey son, e virei um joguete na mão dele. O Arthur morava
no sótão da casa do Compey son (que ficava perto de Brentford), e o Compey son
anotava tudo que gastava com ele de casa e comida, porque se um dia ele ficasse
bom, ele havia de pagar tudo com trabalho. Mas o Arthur em pouco tempo
liquidou a conta dele. A segunda ou terceira vez que eu vi o sujeito, ele entrou
correndo na sala do Compey son tarde da noite, só com uma camisola de flanela,
o cabelo encharcado de suor, dizendo pra mulher do Compey son: Sally, ela está
mesmo lá em cima junto comigo, agora, e eu não consigo mandá-la embora. Ela
está toda de branco, diz ele, com umas frô branca no cabelo, e está uma fera,
leva uma mortalha no braço, e diz que vai me enrolar nela às cinco da manhã.
Diz o Compey son: Seu idiota, não sabe que ela tem corpo? Como é que ela
podia estar lá em cima sem ter passado pela porta, ou pela janela, ou pela
escada?.
Não sei como ela chegou lá, diz o Arthur, estremecendo de delírio, mas o
fato é que ela está lá, ao pé da cama, e está uma fera. E ali, onde o coração dela
partiu e foi você que partiu! tem gotas de sangue.
O Compey son falava duro, mas sempre foi um covarde. Vai lá em cima
com esse doente, diz ele à mulher, e você, Magwitch, vá ajudar também, por
favor. Mas ele mesmo é que nunca ia lá.
Eu e a mulher do Compey son fomos levar o Arthur pra cama, e ele
delirava o tempo todo. Olhem só para ela!, ele gritava. Ela está sacudindo a
mortalha pra mim! Vocês não estão vendo? Vejam só os olhos dela! Não é
horrível, essa raiva toda? Depois ele gritou: Ela vai pôr a mortalha em mim, e aí
eu vou morrer! Tira a mortalha dela, tira a mortalha dela!. E ele se agarrou a
nós, falando com ela o tempo todo, respondendo a ela, até que no fim eu já quase
achava que estava vendo a tal mulher também.
A mulher do Compey son, que já estava acostumada com ele, deu-lhe um
trago pra passar o delírio, e aos poucos ele foi se acalmando. Ah, ela foi
embora! Será que o guarda veio buscar?, ele perguntou. Isso mesmo,
respondeu a mulher do Compey son. Você disse a ele que a trancasse? Disse,
sim, ela respondeu. E que tirasse aquela coisa horrível dela? Disse, sim, ela
respondeu. Você é uma pessoa boa, ele disse, por favor não me abandone,
aconteça o que acontecer, e muito obrigado!
Ele descansou até quase as cinco da manhã, e então acordou de repente
gritando, gritando: Ela está aí! Ela voltou com a mortalha. Está desdobrando a
mortalha. Está vindo do canto do quarto. Está chegando perto da cama. Me
segurem, ocês dois um de cada lado não deixem ela encostar essa coisa
em mim. Ah! ela não conseguiu dessa vez. Não deixem ela jogar a coisa em
cima de mim. Ela está me levantando. Me segurem!. Então ele se levantou de
repente, e morreu.
O Compey son achou melhor assim, pra ele e pro próprio Arthur. Logo
adespois nós começamo a trabalhar, e antes ele me fez jurar (ele não era bobo)
em cima do meu livrinho este livrinho preto aqui, meu querido menino, que eu
fiz o seu camarada jurar nele.
Pra não entrar nas coisa que o Compey son planejou e eu fiz era assunto
pra uma semana só vou te dizer aqui, meu querido menino, e a ocê,
camarada do Pip, que o homem me endividou tanto que eu acabei virando o
preto escravo dele. Eu sempre lhe devia dinheiro, estava sempre nas mão dele,
sempre trabalhando, sempre correndo perigo. Ele era mais moço que eu, mas
sabia das coisa, tinha estudo, e me punha no bolso com a maior facilidade, e não
tinha piedade. Eu e a minha mulher, nós passava
Cala-te, boca! Eu não falei
nela
Olhou à sua volta, confuso, como se tivesse perdido o lugar em que estava no
livro de suas lembranças; e virou o rosto para o fogo, e espalmou as mãos sobre
os joelhos, e levantou-as e pousou-as de novo.
Não carece de falar nisso, disse ele, olhando a seu redor mais uma vez. O
tempo que eu passei com o Compey son foi quase que o pior de todos; dito isso,
não carece de dizer mais nada. Eu contei que fui julgado, sozinho, por
contravenção, no tempo em que eu estava com o Compey son?
Respondi que não.
Pois bem!, exclamou ele, fui a julgamento, e fui julgado culpado. Agora,
isso de ser preso por suspeita, foi duas ou três vez nos quatro ou cinco ano que a
coisa durou; mas não tinha prova, não. Por fim, prenderam eu e o Compey son,
pelo crime de pôr em circulação nota roubada e teve outras acusação
também. Aí o Compey son disse pra mim: Defesas separadas, sem
comunicação e foi só. E eu estava tão na miséria que vendi todas as roupa
que eu tinha, menos a que eu estava vestindo, antes de procurar o Jaggers.
Quando me puseram no banco dos réu, a primeira coisa que eu reparei era
como que o Compey son parecia um cavalheiro, com aquele cabelo cacheado,
aquela roupa preta, e aquele lenço branco no bolso, e como eu parecia um
vagabundo miserável. Quando a acusação começou a mostrar as prova, reparei
que tudo apontava pra mim, e quase nada pra ele. Quando começaram os
depoimento, reparei que era sempre eu que me apresentava à vítima, sempre eu
que fechava o negócio, sempre eu que recebia o pagamento, sempre eu que
parecia fazer tudo e ficar com o lucro. Mas aí, quando entrou o adevogado de
defesa, aí eu entendi bem a trapaça; porque então o defensor do Compey son
disse: Meritíssimo e cavalheiros, aqui tens a vossa frente dois homem que podes
ver bem separados; um deles, o mais jovem, que teve boa criação e que assim
será referido; o outro, o mais velho, que teve má criação e que assim será
referido; um, o mais jovem, raramente visto aqui nestas transação, e apenas
como suspeito; o outro, o mais velho, sempre visto nelas e sempre julgado
culpado. Pode haver dúvida que, se só um deles está envolvido, só pode ser um, e
que se estão os dois envolvido, só um pode ser de longe o pior?. E por aí afora. E
quanto ao caráter, não era o Compey son que tinha estudado em escola, e que
tinha colega ocupando cargo aqui e ali, e não era ele que tinha sido visto pelas
testemunha nesse clube e naquela sociedade, e nunca fazendo nada de errado? E
não era eu que já tinha sido julgado, e era muito bem conhecido em tudo que era
prisão e xilindró? E em matéria de fazer discurso, não era o Compey son que
sabia falar com eles, escondendo o rosto naquele lenço branco de vez em quando
ah! e recitando verso também no meio da fala dele e não era eu que só
sabia dizer: Senhores, este homem ao meu lado é um pulha descarado? E
quando saiu o veredicto, não é que o Compey son pegou uma recomendação de
piedade por ter bom caráter e más companhias, desde que ele desse tudo que era
informação contra mim, enquanto que eu só ganhei uma palavra culpado? E
quando eu falei pro Compey son: Quando sair deste tribunal, hei de te quebrar a
cara, não é que o Compey son pede ao juiz pra ser protegido, e aí dois carcereiro
fica entre eu e ele? E quando sai a sentença, não é que ele pega sete ano e eu
catorze, e o juiz fica com pena dele, porque ele tinha tudo pra se dar bem, e diz
que eu sou um criminoso inverterado, dominado por paixãos violentas, que ainda
vai acabar fazendo coisas mais piores?
Ele estava agora muito excitado, porém se conteve, respirou fundo duas ou
três vezes, engoliu duas ou três vezes, e estendendo a mão em minha direção
disse, como se para me tranquilizar: Não vou ser vulgar, não, meu querido
menino!.
Ele estava de tal modo acalorado que tirou o lenço e enxugou o rosto, a
cabeça, o pescoço e as mãos, antes de poder continuar.
Eu tinha dito pro Compey son que ia quebrar a cara dele, e jurei que faria
isso, senão que o Senhor quebrasse a minha! Nós fomos no mesmo navio-prisão,
mas eu nunca que conseguia ficar perto dele muito tempo, se bem que eu tentei.
Por fim cheguei por trás e bati no rosto dele pra ele virar e eu poder acertar a
cara dele em cheio, mas aí me viram e me pegaram. O calabouço daquele navio
não era dos mais fortes, pra alguém que entendia de calabouço e sabia nadar e
mergulhar. Fugi pra praia, e estava escondido no meio das sepultura, invejando
os que estavam enterrado dentro delas, já com tudo terminado, quando eu vi o
meu menino!
Olhou-me com um olhar afetuoso que quase voltou a fazer-me sentir
aversão por ele, embora ele tivesse me inspirado muita piedade.
Através do meu menino, fiquei sabendo que o Compey son também estava
no charco. Juro que sou capaz de acreditar que ele fugiu de medo, pra escapar de
mim, sem saber que era eu que tinha fugido do navio. Eu fui atrás dele, e quebrei
a cara dele. E agora, disse eu, como a pior coisa que eu posso fazer, e pouco se
me dando o que acontecer comigo, vou te levar de volta pra lá. E era o que eu ia
fazer mesmo, nadar até o navio puxando ele pelos cabelo, se os sordado não me
pega.
É claro que ele levou a melhor até o fim porque o caráter dele era tão
bom. Ele tinha fugido quando estava quase maluco de tanto medo que tinha de
mim e da minha tenção de matar ele; e pegou um castigo leve. Eu fui posto a
ferros, levado a julgamento outra vez, e peguei a pena de degredo perpeto. Só
que não esperei até o fim, meu querido menino e camarada de Pip, e vim pra
cá.
Ele enxugou-se outra vez, tal como antes, e em seguida lentamente tirou um
punhado de fumo do bolso, e pegou o cachimbo que estava preso na casa do
botão, lentamente encheu-o e começou a fumar.
Ele morreu?, perguntei, após uma pausa.
Ele quem, meu menino querido?
O Compey son.
Se estiver vivo, aposto que está rezando pra que eu não esteje, com um
olhar feroz. Nunca mais ouvi falar dele.
Herbert estava escrevendo com o lápis na capa de um livro. Discretamente,
empurrou o livro em minha direção, enquanto Provis, em pé, fumava olhando
para o fogo, e eu li estas palavras:
O nome do jovem Havisham era Arthur. Compey son é o homem que se fez
de apaixonado pela sra. Havisham.
Fechei o livro, fiz um discreto sinal de cabeça para Herbert, e pus o livro
sobre a mesa; mas nem eu nem ele dissemos palavra, e ficamos a olhar para
Provis, que fumava junto à lareira.
4
Que adiantaria fazer uma pausa para me perguntar até que ponto a repulsa que
me inspirava Provis teria origem em Estella? Que adiantaria retardar minha
caminhada, a fim de comparar o estado mental em que eu tentara me livrar do
estigma da prisão, antes de me encontrar com ela no escritório da diligência,
com o estado mental em que, agora, eu refletia sobre o abismo que havia entre a
bela e orgulhosa Estella e o forçado repatriado que eu abrigava? Minha
caminhada não seria facilitada por isso, o fim da caminhada não melhoraria em
nada, Provis não ganharia nada, nem seria eu escusado.
Um novo medo se formara em meu espírito por efeito da narrativa de
Provis; melhor dizendo, sua narrativa dera uma forma e um sentido ao medo que
já estava lá. Se Compey son estivesse vivo e descobrisse que Provis voltara, não
havia dúvida sobre quais seriam as consequências. Que Compey son morria de
medo dele, nenhum dos dois sabia melhor do que eu; e que um homem como
Compey son, tal como ele me fora descrito, hesitaria em livrar-se de uma vez por
todas de um inimigo temível pelo simples recurso de se tornar um delator, seria
simplesmente impensável.
Eu jamais dissera nada, e jamais viria a dizer nada foi essa a decisão que
tomei a respeito de Estella a Provis. Porém, observei a Herbert que só poderia
ir para o estrangeiro depois de ir ter com Estella e a sra. Havisham. Tivemos essa
conversa quando ficamos a sós na noite do dia em que Provis nos contou sua
história. Resolvi ir a Richmond no dia seguinte, e fui.
Quando me apresentei na casa da sra. Brandley, a empregada de Estella foi
chamada e me disse que Estella tinha ido para o interior. Para onde? Para a Casa
Satis, como sempre. Não como sempre, respondi, pois ela jamais tinha ido lá
antes sem mim; quando ficara de voltar? A empregada assumiu um ar de
reserva ao responder, o que aumentou minha perplexidade; e a resposta que me
deu foi que achava que Estella só voltaria por pouco tempo. Essa resposta me
deixou no escuro; a única coisa que entendi era que o objetivo era mesmo
deixar-me no escuro, e assim voltei para casa de todo desconcertado.
Outra conversa noturna com Herbert depois que Provis foi para sua casa (eu
sempre o levava lá, e sempre ficava a olhar com cuidado à minha volta) nos
levou à conclusão de que eu não devia dizer nada a respeito da viagem ao
estrangeiro enquanto não voltasse da casa da sra. Havisham. Nesse ínterim,
Herbert e eu iríamos pensar cada um por sua conta o que seria a melhor coisa a
dizer; se seria melhor fingirmos que estávamos com medo de que ele estivesse
sendo observado por alguma pessoa suspeita, ou se eu, que nunca tinha saído do
país, deveria propor uma viagem. Nós dois sabíamos que ele aceitaria qualquer
coisa que eu propusesse. Concordamos que seria impensável ele permanecer por
muito tempo na situação perigosa em que se encontrava.
No dia seguinte, cometi a baixeza de dizer que havia prometido visitar Joe;
em relação a Joe e a seu nome, porém, eu era capaz de quase qualquer baixeza.
Provis teria de ser muito cuidadoso durante minha ausência, e Herbert ficaria
encarregado de cuidar dele tal como eu estava cuidando. Minha ausência seria
por uma noite apenas, e ao voltar começaria a satisfazer seu desejo ansioso de
que eu começasse a levar uma vida de cavalheiro em escala mais grandiosa.
Ocorreu-me então e, como fiquei sabendo depois, ocorreu também a Herbert
que este seria o melhor pretexto para fazê-lo atravessar o canal da Mancha:
uma viagem para fazer compras, ou coisa parecida.
Tendo desse modo preparado o caminho para a minha ida à casa da sra.
Havisham, parti na primeira diligência da manhã, quando ainda estava escuro, e
eu já me encontrava em campo aberto quando o dia foi nascendo aos poucos,
hesitante, gemendo e estremecendo, envolto em retalhos de nuvem e farrapos de
névoa, como um mendigo. Quando chegamos ao Javali Azul, depois de viajar
algum tempo debaixo de garoa, quem eu vejo saindo pelo portão, com um palito
na mão, e olhando para a diligência, senão Bentley Drummle!
Como ele fingiu não me ver, também fingi que não o via. O fingimento era
muito pouco convincente das duas partes; menos ainda porque nós dois entramos
no salão de chá, onde ele havia acabado de fazer seu desjejum e eu pedi que
trouxessem o meu. Para mim, sua presença na aldeia era venenosa, porque eu
sabia muito bem o que o levara lá.
Fingindo que lia um jornal sujo de muitos dias atrás, que em matéria de
notícias locais não tinha nada que fosse mais legível que as manchas de café,
picles, molho de peixe e de carne, manteiga derretida e vinho, manchas que
salpicavam toda a superfície do papel, como se o jornal tivesse contraído uma
variedade altamente irregular de sarampo, instalei-me numa mesa enquanto ele
permanecia de pé junto à lareira. Pouco a pouco foi se tornando insuportável
para mim vê-lo diante da lareira, e levantei-me, decidido a aproveitar o fogo
também. Fui obrigado a pôr a mão atrás de suas pernas para pegar o atiçador
quando me aproximei da lareira para avivar o fogo, mas continuei fingindo que
não o reconhecia.
Está me ignorando?, disse o sr. Drummle.
Ah!, exclamei, com o atiçador na mão; é o senhor? Como tem passado?
Eu estava me perguntando quem estaria bloqueando a lareira.
Tendo dito isso, pus-me a atiçar o fogo com muita energia, e depois me
plantei ao lado do sr. Drummle, com os ombros eretos e de costas para o fogo.
O senhor acaba de chegar?, perguntou o sr. Drummle, empurrando-me
um pouco com o ombro.
Sim, respondi, empurrando-o um pouco com o ombro.
Lugar horrível, comentou Drummle. O senhor é desta região, não é?
Sou, respondi. Segundo me dizem, é muito parecida com a sua terra,
Shropshire.1
Nem um pouco parecida, retrucou Drummle.
Nesse ponto o sr. Drummle olhou para suas botas, e eu olhei para as minhas,
e então o sr. Drummle olhou para as minhas botas, e eu olhei para as dele.
Está aqui há muito tempo?, perguntei, decidido a não lhe ceder um
centímetro do fogo.
Tempo suficiente para já estar cansado do lugar, respondeu Drummle,
fingindo bocejar, porém igualmente decidido.
Vai ficar aqui muito tempo?
Não sei, respondeu Drummle. E o senhor?
Não sei, respondi.
Senti nesse momento, por um frêmito no sangue, que, se o ombro do sr.
Drummle tivesse ocupado mais um milímetro de espaço, eu o teria jogado pela
janela afora; senti também que, se o meu ombro tivesse esboçado semelhante
gesto, o sr. Drummle me teria empurrado para dentro do reservado mais
próximo. Ele assobiou um pouco. Fiz o mesmo.
Muitos charcos na região, não é?, comentou Drummle.
É, sim. E daí?, devolvi.
O sr. Drummle olhou para mim, olhou para minhas botas e depois exclamou:
Ah!, e riu-se.
Está se divertindo, senhor Drummle?
Não muito, respondeu. Hoje vou sair a cavalo. Quero explorar esses
charcos para me distrair. Há umas aldeias perdidas por aí, segundo me dizem.
Umas tabernas curiosas e ferrarias coisas assim. Garçom!
Sim, senhor.
Meu cavalo está pronto?
Já está à sua espera à porta.
Sei. Escute. A moça não vai sair a cavalo hoje; o tempo não está bom.
Sim, senhor.
E não venho almoçar, porque vou almoçar na casa da moça.
Sim, senhor.
Então Drummle olhou para mim de relance, com um ar de triunfo insolente
naquele rosto de bochechas caídas que me atingiu no fundo do coração, por mais
insosso que ele fosse, e de tal modo me irritou que me senti inclinado a agarrá-lo
e (como fez o ladrão com a velha, segundo o livro)2 fazê-lo sentar-se no fogo.
Uma coisa estava clara para nós dois: enquanto não viesse alguém quebrar
aquele impasse, nem eu nem ele abriríamos mão do fogo. E assim ficamos os
dois em pé, um junto ao outro, ombro a ombro, pé diante de pé, as mãos para
trás, sem ceder um centímetro. Via-se o cavalo à porta, na garoa; meu desjejum
foi posto sobre a mesa; os restos do desjejum de Drummle foram levados para a
cozinha, o garçom me convidou a comer, fiz que sim com a cabeça, e nós dois
mantivemos nossas posições.
O senhor voltou ao Arvoredo depois daquela reunião?, indagou Drummle.
Não, respondi; a última vez que estive lá me cansei dos Tentilhões.
Foi quando tivemos uma diferença de opiniões?
Foi, respondi, muito secamente.
Ora, ora! Até que não foram muito duros com o senhor, zombou
Drummle. Não devia ter perdido a cabeça.
Senhor Drummle, retruquei, não lhe reconheço competência para dar
conselhos sobre esse assunto. Quando perco a cabeça (não que eu admito ter
pedido a cabeça naquela ocasião), eu não jogo copos em ninguém.
Eu jogo, disse Drummle.
Depois de olhar de relance para ele uma ou duas vezes, num estado de
ferocidade crescente, eu disse:
Senhor Drummle, não procurei esta conversa, e não a julgo agradável.
De fato, não é, com certeza, ele replicou, com arrogância, olhando para
mim por cima do ombro; eu nem penso nela.
Assim sendo, prossegui, com sua permissão, vou sugerir que doravante
nos abstenhamos de manter qualquer espécie de comunicação.
É também a minha opinião, disse Drummle, e é o que eu teria sugerido
ou, o que é mais provável, teria feito sem nem mesmo sugeri-lo. Mas não
perca a cabeça. O senhor já não perdeu o bastante?
O que o senhor quer dizer?
Gar-çom!, disse Drummle, à guisa de resposta.
O garçom apareceu.
Escute aqui. Você entendeu que a moça não vai andar a cavalo hoje, e que
eu vou almoçar na casa da moça?
Perfeitamente, sim, senhor.
Depois que o garçom verificou, com a palma da mão, que meu chá estava
rapidamente esfriando, e me dirigiu um olhar de súplica, e saiu em seguida,
Drummle, tomando cuidado para não mover o ombro a meu lado, pegou um
charuto no bolso e arrancou-lhe a ponta com os dentes, mas não deu nenhum
sinal de sair do lugar. Embora fervendo de raiva, eu sentia que não poderíamos
trocar mais nem uma palavra sem que o nome de Estella fosse mencionado, e eu
não suportaria ouvi-lo pronunciar esse nome; assim sendo, olhando fixamente
para a parede à minha frente, como se não houvesse ninguém a meu lado,
obriguei-me a ficar calado. Não sei dizer quanto tempo poderíamos ter ficado
nessa situação ridícula, se não tivessem entrado na sala de chá três prósperos
fazendeiros trazidos pelo garçom, imagino os quais chegaram
desabotoando seus sobretudos e esfregando as mãos, e assim, quando eles se
aproximaram da lareira, fomos obrigados a lhes ceder o lugar.
Vi Drummle pela janela, agarrando a crina do cavalo e montando nele com
seu modo bruto e desajeitado, e se afastando com um movimento para o lado e
para trás. Achei que tinha ido embora, quando então ele voltou, pedindo para que
acendessem o charuto que tinha na boca, coisa que ele se esquecera de fazer.
Um homem com uma roupa coberta de pó apareceu trazendo o que ele queria
eu não sabia dizer de onde o homem surgira, se do pátio da taverna, da rua ou
de outro lugar qualquer e quando Drummle se abaixou da sela e acendeu o
charuto, rindo, com um movimento de cabeça em direção à janela da sala de
chá, os ombros caídos e os cabelos em desalinho desse homem, que estava de
costas para mim, me fizeram pensar em Orlick.
Indignado demais para verificar no momento se era mesmo ele, e para
tomar meu desjejum, lavei a poeira da viagem do rosto e das mãos e saí em
direção à velha casa memorável, na qual teria sido muito melhor para mim se eu
jamais tivesse posto o pé, muito melhor se eu jamais a tivesse visto.
5
No quarto da penteadeira, onde havia velas de cera ardendo em candelabros nas
paredes, encontrei a sra. Havisham e Estella; a sra. Havisham estava sentada
num sofá perto da lareira, e Estella numa almofada a seus pés. Estella fazia tricô,
enquanto a outra assistia. As duas levantaram a vista quando entrei, e ambas
perceberam que eu estava diferente. Foi o que concluí com base no olhar que
elas trocaram.
E que ventos, disse a sra. Havisham, te trazem aqui, Pip?
Embora ela olhasse fixamente para mim, percebi que estava um tanto
constrangida. Estella, parando de tricotar por um instante e olhando para mim, e
em seguida retomando o trabalho, deu-me a impressão, com base no movimento
de seus dedos, uma impressão tão nítida como se ela estivesse usando o alfabeto
dos surdos-mudos, de que percebera que eu havia descoberto a identidade real de
meu benfeitor.
Senhora Havisham, comecei, fui ontem a Richmond para falar com
Estella, e ao saber que algum vento a trouxera aqui, vim para cá.
Como a sra. Havisham fizesse sinal pela terceira ou quarta vez para que eu
me sentasse, escolhi a cadeira da penteadeira, que eu vira ocupada por ela tantas
vezes. Com tantas ruínas a meus pés e a meu redor, naquele dia o lugar me
parecia bem adequado a mim.
O que eu tinha a dizer a Estella, senhora Havisham, vou dizer à senhora e a
ela, daqui a pouco. Não vai surpreendê-las, nem desagradá-las. Sou tão infeliz
quanto vocês duas sempre quiseram que eu fosse.
A sra. Havisham continuava a olhar fixamente para mim. Eu percebia, pelo
movimento de seus dedos enquanto trabalhava, que Estella prestava atenção em
minhas palavras, porém ela não levantou a vista.
Descobri quem é meu protetor. Não foi uma descoberta feliz, e não deve
aumentar minha reputação, condição social, fortuna, nada. Tenho motivos para
não dizer mais nada a esse respeito. Não se trata de um segredo meu, e sim de
outra pessoa.
Como permaneci calado por algum tempo, olhando para Estella e pensando
em como prosseguir, a sra. Havisham repetiu: Não se trata de um segredo seu,
e sim de outra pessoa. Sim?.
Quando a senhora me chamou aqui pela primeira vez, no tempo em que eu
morava lá na aldeia aldeia essa da qual eu jamais devia ter saído imagino
que vim aqui tal como poderia ter sido qualquer outro menino, como uma
espécie de criado, para atender a uma veleidade ou um capricho, e ser pago por
isso, não foi?
Sim, Pip, respondeu a sra. Havisham, balançando a cabeça; foi isso
mesmo.
E o senhor Jaggers
O senhor Jaggers, disse a sra. Havisham, completando minha frase num
tom de firmeza, não teve nada a ver com isso, e não sabia de nada. O fato de
que ele é meu advogado, e também é do teu protetor, é uma coincidência. Ele
oferece seus serviços profissionais a muitas outras pessoas, de modo que se trata
de uma coincidência perfeitamente razoável. Seja como for, ela aconteceu, e
não foi obra de ninguém.
Qualquer um poderia ver naquele rosto envelhecido que nada estava sendo
ocultado nem disfarçado, até aquele momento.
Mas quando cheguei à conclusão errada, na qual persisti por tanto tempo, a
senhora deixou que eu persistisse no erro?, perguntei.
Sim, ela respondeu, mais uma vez balançando a cabeça, deixei.
Isso foi um ato de bondade?
Quem sou eu, exclamou a sra. Havisham, batendo com a bengala no chão
e explodindo de raiva de modo tão súbito que Estella olhou para ela atônita,
quem sou eu, pelo amor de Deus, para cometer atos de bondade?
Essa queixa era uma confissão de fraqueza, e não fora a minha intenção
obrigá-la a fazê-la. Foi o que eu disse, quando ela mergulhou no mutismo depois
dessa explosão.
Ora, ora!, disse ela. O que mais?
Fui muito bem pago pelo trabalho que fiz aqui, prossegui, para apaziguá-la,
pagando o meu aprendizado, e só fiz essas perguntas para meu próprio
esclarecimento. O que vou perguntar agora tem outro objetivo (mais
desinteressado, espero). Ao deixar que eu persistisse no erro, senhora Havisham,
a senhora queria punir intrigar talvez a senhora queira escolher a palavra
que melhor exprima a sua intenção, sem ofensa seus parentes interesseiros?
Sim. Mas era o que eles mesmos queriam! E tu também. Com a vida que
tive, porque haveria eu de pedir a eles, ou a ti, que não vissem a situação dessa
maneira? Vocês prepararam suas próprias armadilhas. Não eu.
Esperei que ela se aquietasse pois também essa fala foi dita numa
explosão súbita de raiva e prossegui.
Tenho convivido muito com uma família aparentada com a senhora, desde
que fui para Londres. Sei que estavam sinceramente iludidos, tanto quanto eu. E
seria falsidade e baixeza da minha parte se eu não lhe dissesse, seja isso aceitável
ou não para a senhora, e quer a senhora acredite em mim, quer não, que a
senhora está sendo profundamente injusta com o senhor Matthew Pocket e com o
filho dele, Herbert, se imagina que eles não são pessoas generosas, honestas,
francas e incapazes de qualquer ato interesseiro ou mesquinho.
Eles são teus amigos, retrucou a sra. Havisham.
Eles se tornaram meus amigos, respondi, embora acreditassem que eu
havia caído nas suas boas graças no lugar deles, enquanto Sarah Pocket, a
senhora Georgina e a senhora Camilla não eram minhas amigas, creio eu.
Esse contraste entre os dois grupos, tive o prazer de observar, pareceu
favorecer meus amigos junto à sra. Havisham. Ela me dirigiu um olhar
penetrante por algum tempo, e depois disse, em voz mais baixa:
O que queres para eles?
Apenas, respondi, que a senhora não os confunda com os outros. Eles
podem ter o mesmo sangue, mas creia-me não têm a mesma natureza.
Ainda me olhando de modo penetrante, a sra. Havisham repetiu:
O que queres para eles?
Não sou tão astuto, como a senhora pode ver, respondi, percebendo que
corava um pouco, a ponto de conseguir esconder, mesmo que fosse essa minha
intenção, que quero alguma coisa para eles, sim. Se a senhora pudesse dispor de
uma certa quantia para dar a meu amigo Herbert um auxílio que lhe valerá pelo
resto da vida, mas que, dadas as circunstâncias, terá de ser entregue a ele sem
seu conhecimento, posso lhe mostrar como fazer isso.
Por que sem seu conhecimento?, ela indagou, apoiando as mãos na
bengala para poder me olhar de modo ainda mais atento.
Porque fui eu, respondi, que comecei a ajudá-lo há mais de dois anos,
sem que ele soubesse, e não quero que ele descubra esse fato. Por que motivo
não posso continuar a ajudá-lo, isso não posso dizer. Faz parte do segredo que é
de outra pessoa e não meu.
Pouco a pouco ela desviou o olhar de mim e fixou-o no fogo. Depois de
contemplá-lo por um tempo que, naquele silêncio e à luz das velas que se
consumiam gradualmente, pareceu ser muito longo, ela voltou a si quando
algumas brasas desabaram na lareira, e voltou a olhar para mim de início,
com um olhar vago e depois com uma atenção cada vez mais concentrada.
Nesse ínterim, Estella continuava a tricotar. Tendo fixado a atenção em mim, a
sra. Havisham disse, falando como se nossa conversa não tivesse sido
interrompida:
O que mais?
Estella, disse eu, voltando-me para ela agora, e tentando conter o tremor
da voz, sabes que te amo. Sabes que te amo muito, há muito tempo.
Ela levantou os olhos para meu rosto, quando me ouviu dirigir-me a ela, e
seus dedos continuaram a trabalhar, enquanto ela me contemplava com uma
expressão inalterada. Vi que o olhar da sra. Havisham se desviou de mim para
ela, e dela para mim.
Eu já devia ter-te dito isso antes, mas não o fiz por estar equivocado. Meu
erro levou-me a nutrir esperanças de que a senhora Havisham quisesse nos
destinar um ao outro. Por achar que não tinhas escolha quanto a isso, por assim
dizer, evitei confessar meu amor. Mas agora tenho que fazê-lo.
Mantendo a fisionomia inalterada, e com os dedos ainda trabalhando, Estella
fez que não com a cabeça.
Eu sei, respondi a seu gesto; eu sei. Não tenho esperança de que algum
dia possa chamar-te minha, Estella. Não sei o que vai acontecer comigo no
futuro próximo, se vou ficar muito pobre, para onde vou. Mas o fato é que eu te
amo. Amo-te desde que te vi pela primeira vez nesta casa.
Olhando para mim com perfeita indiferença e com os dedos ocupados, ela
voltou a sacudir a cabeça.
Teria sido crueldade da parte da senhora Havisham, uma crueldade
horrível, aproveitar-se da suscetibilidade de um menino pobre, e torturar-me
todos esses anos com uma esperança vã e uma causa perdida, se ela tivesse
refletido sobre a gravidade do que estava fazendo. Mas creio que ela não o fez.
Creio que, tendo de suportar seu próprio sofrimento, ela esqueceu-se do meu,
Estella.
Vi que a sra. Havisham levou a mão ao coração e a manteve ali, e que
continuava olhando ora para Estella, ora para mim.
Creio, disse Estella, muito plácida, que há sentimentos, fantasias não
sei que nome lhes dar que não consigo compreender. Quando dizes que me
amas, entendo o significado de tuas palavras enquanto tais, mas só isso. Não dizes
nada a meu coração, não tocas nada ali. O que dizes não me importa nem um
pouco. Tentei alertar-te quanto a isso; não é verdade?
Respondi, profundamente contrito: É.
Pois é. Mas tu não ouviste meus alertas, pois pensavas que eu não falava a
sério. Não é verdade?
Eu pensava, e esperava, que não estivesses falando a sério. Uma moça tão
jovem, inexperiente, e bela, Estella! Sem dúvida, isso não é algo natural.
É natural para mim, ela retrucou. E em seguida acrescentou, enfatizando
suas palavras: É natural para a pessoa que me tornei. Ao te dizer essas coisas
que te digo, traço uma diferença profunda entre ti e todas as outras pessoas. Mais
do que isso não posso fazer.
Não é verdade, argumentei, que Bentley Drummle está aqui, à tua
procura?
É a pura verdade, respondeu ela, referindo-se a Drummle com a
indiferença nascida do total desprezo.
Não é verdade que tu lhe alimentas as esperanças, passeias a cavalo com
ele, e que ele vem almoçar contigo hoje mesmo?
Ela apareceu um pouco surpresa ao ver que eu sabia essas coisas, porém
mais uma vez respondeu: É a pura verdade.
Não é possível que o ames, Estella!
Seus dedos se imobilizaram pela primeira vez, e ela disse, num tom de
irritação: Mas o que foi que acabei de te dizer? Continuas a pensar, apesar do
que eu disse, que não estou falando a sério?.
Não é possível que vás casar-te com ele, Estella?
Estella olhou para a sra. Havisham, e por um momento ficou a pensar, com
a costura nas mãos. Então respondeu: Por que não te dizer logo a verdade? Vou
casar-me com ele, sim.
Abaixei o rosto e cobri-o com as mãos, mas consegui controlar-me melhor
do que eu poderia imaginar, levando-se em conta a agonia que suas palavras me
causaram. Quando voltei a levantar o rosto, a expressão da sra. Havisham era tão
terrível que me causou forte impressão, embora eu estivesse tão perturbado e
afobado.
Estella, minha querida, minha querida Estella, não deixes que a senhora
Havisham a leve a dar esse passo fatal. Recusa-me em caráter definitivo é
isso que fizeste, sei muito bem disso mas guarda-te para um homem mais
merecedor de ti que Drummle. A senhora Havisham entrega-te a ele como a
maior punição e ofensa que pode ser imposta aos muitos homens melhores que
ele que te admiram, e aos poucos que te amam de verdade. Entre esses poucos,
pode haver um que te ame tanto, ainda que não há tanto tempo, quanto eu.
Escolhe esse homem, que vou poder suportá-lo melhor, para teu próprio bem!
Meu tom grave despertou nela uma sensação de espanto que talvez a fizesse
sentir compaixão, se lhe fosse possível apreender o sentido do que eu lhe dizia.
Vou casar-me com ele, ela repetiu, com uma voz mais suave. Os
preparativos para o casamento estão em andamento, e a cerimônia será
realizada em breve. Por que mencionas minha mãe adotiva de forma tão
injuriosa? A decisão é minha.
A decisão é tua, Estella? A decisão de se jogar nos braços de um
brutamontes?
Em que braços devo então me jogar?, ela retorquiu, com um sorriso. Nos
de um homem que em pouco tempo perceberia (se é que as pessoas sentem
mesmo tais coisas) que eu não sentia nada por ele? Ora! A coisa está decidida.
Vai ser bastante bom para mim, e também para ele. Quanto ao que dizes sobre a
senhora Havisham ter me levado a dar isso que chamas de passo fatal, por ela eu
haveria de esperar mais, e não me casar agora; mas estou cansada da vida que
tenho levado, que para mim tem muito poucos atrativos, e estou disposta a mudar
de vida. Não digas mais nada. Jamais haveremos de nos entender.
Um brutamontes mesquinho, e ainda por cima um boçal!, insisti, em
desespero.
Não se preocupe: não vou fazê-lo feliz, disse Estella; esse perigo não
existe. Ora! Dá-me tua mão, e vamos nos despedir, menino ou homem
sonhador.
Ah, Estella!, repliquei, enquanto minhas lágrimas amargas jorravam em
sua mão, por mais que eu as tentasse refrear, mesmo se eu permanecesse na
Inglaterra e pudesse manter a cabeça erguida, como poderia eu ver-te casada
com Drummle?
Bobagem, ela respondeu, Bobagem. Isso há de passar logo.
Nunca, Estella!
Hás de te esquecer de mim em uma semana.
Esquecer-me de ti! Tu és parte da minha existência, parte de mim mesmo.
Estás presente em cada linha que li, desde que cheguei aqui pela primeira vez,
um menino grosseiro cujo pobre coração tu machucaste já naquele dia. Estás
presente em toda paisagem que vi desde então no rio, nas velas dos navios, nos
charcos, nas nuvens, na luz, na escuridão, no vento, no bosque, no mar, nas ruas.
És a concretização de todas as fantasias belas que minha mente já conheceu. As
pedras de que são feitos os mais sólidos prédios de Londres não são mais reais,
nem mais impossíveis de ser deslocadas por tuas mãos, do que tua presença e tua
influência sobre mim, lá e em toda parte, no passado e no futuro. Estella, até a
última hora de minha vida, tu hás de ser uma parte de meu caráter, do pouco que
há de bom em mim, e do que há de mau. Mas neste momento de separação só te
associo ao que há de bom, e sempre hei de me apegar a isso com fidelidade, pois
certamente tu me fizeste muito mais bem do que mal, por mais intensa que seja
a minha dor agora. Que Deus te abençoe, que Deus te perdoe!
Em que êxtase de dor consegui arrancar de mim essas palavras descosidas,
não sei. Esse galimatias brotou no meu íntimo, como sangue de uma ferida
interna, e saiu num jorro. Beijei a mão de Estella por alguns instantes, e assim
me separei dela. Mas depois lembrei-me e pouco depois a lembrança me veio
com mais razão ainda que enquanto Estella me olhava apenas com espanto e
incredulidade, a figura espectral da sra. Havisham, a mão ainda posta no peito,
parecia transfigurada, num esgar terrível de piedade e remorso.
Tudo feito, tudo findo! Tantas coisas estavam feitas e findas que quando saí
pelo portão à luz do dia me pareceu ter um matiz mais escuro do que tivera no
momento em que eu entrara. Por algum tempo, escondi-me em becos e
travessas remotas, e depois resolvi seguir a pé até Londres.1 Pois àquela altura eu
havia me convencido de que não conseguiria voltar à estalagem e encontrar
Drummle lá; que não suportaria ter de falar com alguém na diligência; que a
melhor coisa que eu podia fazer era extenuar-me ao máximo.
Já passava de meia-noite quando atravessei a ponte London. Seguindo a rede
estreita e intrincada das ruas que, naquele tempo, seguiam para o oeste perto da
margem de Middlesex do Tâmisa, meu acesso mais próximo ao Temple ficava
bem perto do rio, passando por Whitefriars. Não me esperavam senão para o dia
seguinte, mas eu levava minhas chaves, e se Herbert já estivesse recolhido eu
poderia deitar-me sem incomodá-lo.
Como era raro eu entrar pelo portão de Whitefriars depois da hora em que
fechavam o Temple, e como eu estava muito enlameado e cansado, não me
importei de constatar que o porteiro noturno me examinou com muita atenção ao
abrir uma nesga de portão para que eu entrasse. Para lhe refrescar a memória,
identifiquei-me.
Eu não estava bem certo, senhor, mas era quem eu pensava ser. Tenho um
bilhete para o senhor. O mensageiro que o trouxe pediu-lhe que fizesse o
obséquio de lê-lo à luz de minha lanterna.
Muito espantado com esse pedido, peguei o bilhete. Era dirigido ao sr. Philip
Pip, e acima do cabeçalho liam-se as palavras: por favor leia isto aqui. Abri-o,
enquanto o porteiro levantava a lanterna, e li, na letra de Wemmick:
não vá para casa.
6
Afastando-me do portão do Temple tão logo li a mensagem, fui nem sei como
até Fleet-street, lá aluguei um fiacre retardatário e tomei a direção do
Hummuns1 em Covent Garden. Naquela época, podia-se arranjar uma cama lá
a qualquer hora da noite; o porteiro, abrindo para mim o portão, acendeu a vela
que era a próxima da fila em sua prateleira e levou-me diretamente até o quarto
que era o próximo da lista. Era uma espécie de socavão nos fundos do térreo,
onde uma monstruosa e despótica cama de quatro colunas ocupava todo o
espaço, com um de seus pés arbitrários na lareira e outro na porta, relegando o
miserável lavabo a um canto apertado, como se exercendo o direito divino dos
reis.
Eu pedira uma lamparina, e o porteiro me trouxe, antes de recolher-se, uma
tradicional vela de junco daqueles tempos virtuosos um objeto que era como o
fantasma de uma bengala, capaz de partir-se imediatamente se fosse tocado, no
qual não se podia acender coisa alguma, e que era colocado numa espécie de
solitária no fundo de uma torre de lata alta, cheia de furos redondos que
projetavam nas paredes um padrão luminoso capaz de manter qualquer um
acordado. Quando me deitei, com os pés doídos, exausto e infeliz, constatei que
era tão impossível fechar meus olhos quanto seria fechar os olhos daquele Argos
insensato.2 E assim, na escuridão e no silêncio da noite, ficamos um a olhar para
o outro.
Que noite terrível! Noite de angústia e sofrimento, interminável! Havia no
quarto um cheiro nada hospitaleiro de fuligem fria e poeira quente; e, quando eu
olhava para os cantos do dossel da cama, ficava a imaginar quantas moscasvarejeiras
do açougue, e lacraias dos mercados, e larvas do campo deveriam
estar repousando ali, à espera do próximo verão. Isso me fez pensar se às vezes
elas não cairiam lá do alto, e então comecei a imaginar que sentia uns toques
leves no rosto uma ideia desagradável, que me fez imaginar outras presenças
ainda mais asquerosas, atrás de mim. Depois de permanecer algum tempo
deitado em vigília, aquelas vozes extraordinárias que abundam no silêncio
começaram a se fazer ouvir. O armário cochichava, a lareira suspirava, o
pequeno lavabo estalava, e uma corda de violão de vez em quando soava dentro
da cômoda. Mais ou menos ao mesmo tempo, os olhos projetados na parede
assumiram uma nova expressão, e em cada um daqueles círculos luminosos eu
via escritas estas palavras: não vá para casa.
Quaisquer que fossem as outras fantasias noturnas e os outros ruídos noturnos
que me assaltavam, nada atenuava aquele não vá para casa. As palavras se
insinuavam em todos os meus pensamentos, tal como faria uma dor física. Não
muito tempo antes, eu lera nos jornais que um cavalheiro desconhecido chegara
à noite ao Hummuns, deitara-se e dera fim à própria vida, sendo encontrado na
manhã seguinte imerso em sangue. Ocorreu-me a ideia de que ele teria ocupado
aquele mesmo socavão em que eu estava, e levantei-me da cama para verificar
se não havia manchas de sangue a meu redor; então abri a porta e olhei para o
corredor, animando-me com a companhia de uma luz longínqua, perto da qual,
eu sabia, o porteiro estava cochilando. O tempo todo, porém, perguntas como:
Por que não podia eu ir para casa? O que teria acontecido lá em casa? Quando eu
poderia voltar para lá? E Provis estaria em segurança? me ocupavam a mente de
tal modo que era de se esperar que não coubesse mais nenhum pensamento
dentro dela. Mesmo quando eu pensava em Estella e lembrava que nos havíamos
despedido pela última vez naquele dia, rememorando todas as circunstâncias de
nossa despedida, e a aparência dela, e seu tom de voz, e os movimentos de seus
dedos enquanto ela tricotava mesmo nesses momentos eu continuava a repetir
incessantemente: não vá para casa. Quando por fim adormeci, de pura exaustão
mental e física, a frase transformou-se num verbo imenso e sombrio que eu era
forçado a conjugar. Modo imperativo, tempo presente: não vás para casa, que
ele não vá para casa, que nós não vamos para casa, que vós não vades para casa,
que eles não vão para casa. Então, potencialmente: não posso ir para casa; não
devo ir para casa; não quero ir para casa; até sentir que estava enlouquecendo, e,
a cabeça girando sobre o travesseiro, eu abria os olhos e voltava a ver aqueles
círculos de luz a me olharem nas paredes.
Eu pedira que me despertassem às sete horas, pois estava claro para mim
que eu devia falar com Wemmick antes de procurar qualquer outra pessoa, e
estava igualmente claro que apenas os seus sentimentos de Walworth deveriam
ser consultados. Foi um alívio sair daquele quarto onde eu passara uma noite tão
terrível, e não foi necessário que batessem à minha porta mais de uma vez para
que eu me levantasse daquela cama intranquila.
As ameias do castelo surgiram diante de meus olhos às oito horas. Como por
acaso a criadinha estava entrando na fortaleza naquele momento com dois
pãezinhos quentes, passei pelo portão e pela ponte levadiça acompanhado por ela,
e assim cheguei sem ser anunciado à presença de Wemmick, no momento em
que ele preparava chá para si próprio e para o idoso. Uma porta aberta me
concedeu uma visão do idoso em sua cama.
Olá, senhor Pip!, saudou-me Wemmick. Então o senhor voltou para casa,
não?
Voltei, sim, respondi, mas não entrei nela.
Muito bem, disse ele, esfregando as mãos. Deixei um recado para o
senhor em cada um dos portões do Temple, para não haver erro. Em qual portão
o senhor chegou?
Respondi-lhe a pergunta.
Vou passar nos outros hoje e destruir os bilhetes, disse Wemmick; é uma
boa regra nunca deixar provas documentais, se possível, porque nunca se sabe
quando alguém vai usá-las. Vou tomar uma liberdade. O senhor se incomodaria
de assar esta linguiça para o idoso?
Respondi que seria um prazer.
Então podes cuidar dos teus afazeres, Mary Anne, disse ele à criadinha; e
com isso ficamos aqui só nós, não é, senhor Pip?, acrescentou, com uma
piscadela, enquanto ela se afastava.
Agradeci-lhe a amizade e a cautela, e nossa conversa prosseguiu em voz
baixa, enquanto eu assava a linguiça do idoso e ele passava manteiga no pão do
idoso.
Mas sim, senhor Pip, disse Wemmick, nós dois nos entendemos. Estamos
falando em caráter privado e pessoal, e estivemos envolvidos numa transação
confidencial ontem. Os sentimentos oficiais são uma coisa. Nós somos
extraoficiais.
Assenti cordialmente. Estava tão nervoso que cheguei a acender a linguiça
do idoso como se fosse um archote, e fui obrigado a soprá-la.
Ouvi dizer por acaso, ontem de manhã, disse Wemmick, estando eu num
certo lugar onde uma vez o levei mesmo estando aqui só nós dois, não vale a
pena mencionar nomes quando não é estritamente necessário
Não vale a pena, não, concordei. Compreendo.
Pois lá ouvi dizer, por acaso, ontem de manhã, disse Wemmick, que uma
certa pessoa não desprovida de vínculos com as colônias, e não de todo
desprovida de valores portáteis
não sei exatamente de quem se trata de fato
não vamos dar nome a esta pessoa
Não é preciso, concordei.
causou certo rebuliço em certa parte do mundo aonde muita gente vai,
nem sempre por vontade própria, e não sem levar o governo a incorrer em
certas despesas
Observando o rosto de Wemmick, fiz da linguiça do idoso um verdadeiro
fogo de artifício, o que teve o efeito de desconcentrar em muito tanto a minha
atenção quanto a dele, pelo qual pedi desculpas.
ao desaparecer do tal lugar, e nunca mais dar notícias a ninguém. A
partir do quê, prosseguiu Wemmick, fizeram-se conjeturas e elaboraram-se
teorias. Soube também que seus aposentos em Garden-court, no Temple, haviam
estado sob vigia, e talvez voltassem a ser vigiados.
Por quem?, perguntei.
Melhor não entrar nisso, disse Wemmick, esquivo, pois pode entrar em
choque com minhas responsabilidades oficiais. Foi o que ouvi dizer, como já ouvi
dizer outras coisas curiosas no mesmo lugar em outros momentos. Não estou me
fundando em informações que tenha recebido. Ouvi dizer.
Enquanto falava, tomou-me das mãos o garfo em que estava espetada a
linguiça e dispôs o desjejum do idoso numa pequena bandeja. Antes de colocá-la
diante dele, foi até seu quarto com um guardanapo branco limpo e amarrou-o
sob o queixo do ancião, sentou-o na cama e pôs a touca que ele usava de um lado
da cabeça, dando-lhe uma aparência bem jovial. Em seguida, pôs a bandeja à
sua frente com muito cuidado, dizendo: O senhor está bem, não está, pai
idoso?. E o alegre ancião respondeu: Muito bem, John, meu rapaz, muito
bem!. Como parecia haver um acordo tácito no sentido de que o idoso não
estava apresentável, e, portanto, devia ser considerado invisível, fingi não ter
nenhum conhecimento dessas atividades.
Isso de vigiarem meus aposentos (coisa que já tive motivo para suspeitar),
disse eu a Wemmick quando ele voltou, está ligado à pessoa a quem o senhor
aludiu, não está?
Wemmick fez uma cara muito séria. Eu não poderia dizer tal coisa, com
base no que sei. Isto é, eu não poderia dizer que sim de saída. Mas ou há uma
ligação, ou haverá, ou há um grande perigo de que possa vir a haver.
Percebendo que sua lealdade para com Little Britain impedia-o de dizer tudo
que sabia, e cônscio, com muita gratidão, do quanto ele se expunha para dizer o
que dizia, eu não podia pressioná-lo. Porém, após meditar um pouco olhando
para o fogo, disse-lhe que gostaria de lhe fazer uma pergunta, a qual ele poderia
responder ou não, conforme julgasse melhor, e que estava certo de que sua
decisão seria acertada. Ele parou de comer e, cruzando os braços, beliscando as
mangas da camisa (para ele, o máximo do conforto que se permitia em casa era
despir o paletó), fez que sim com a cabeça, para que eu lhe dirigisse minha
pergunta.
O senhor ouviu falar de um homem de má índole, cujo nome verdadeiro é
Compey son?
Ele respondeu com outro aceno de cabeça.
Ele está vivo?
Outro aceno.
Está em Londres?
Ele fez que sim mais uma vez, apertando bem sua caixa de correio, acenou
pela última vez e voltou a comer.
Bem, disse Wemmick, terminada a seção de perguntas, enfatizando e
repetindo esse ponto para minha orientação, fiz o que fiz depois de ouvir o que
ouvi. Fui até Garden-court para conversar com o senhor; não o encontrando lá,
fui à firma de Clarriker para falar com o senhor Herbert.
E o senhor o encontrou?, perguntei, com muita ansiedade.
Encontrei-o, e sem mencionar nenhum nome nem entrar em nenhum
detalhe, dei-lhe a entender que se ele soubesse de alguém fulano, beltrano ou
sicrano que estivesse nos seus aposentos, ou na vizinhança, era bom ele tirar
fulano, beltrano ou sicrano de lá enquanto o senhor estivesse fora.
Ele ficou muito perplexo a respeito do que fazer?
Ficou muito perplexo a respeito do que fazer; mais ainda quando eu lhe
disse que, na minha opinião, não era seguro tentar levar fulano, beltrano ou
sicrano para muito longe no momento. Senhor Pip, vou lhe dizer uma coisa. Nas
atuais circunstâncias, o melhor lugar para se estar é uma grande cidade, quando
já se está nela. Não saia da toca tão cedo. Fique onde está. Espere até as coisas
ficarem mais tranquilas, antes de partir para outros ares, até mesmo ares
estrangeiros.
Agradeci o conselho valioso e perguntei-lhe o que Herbert fizera.
O senhor Herbert, disse Wemmick, depois de ficar estupefato por meia
hora, elaborou um plano. Contou-me um segredo que está cortejando uma
moça cujo papai, como o senhor certamente há de saber, é inválido. Este papai,
que já foi tesoureiro de navios, vive deitado numa cama diante de uma janela
arredondada pela qual ele pode ver os navios subindo e descendo o rio. O senhor
conhece a moça, decerto?
Não pessoalmente, respondi.
A verdade é que ela me via como uma má companhia para Herbert, pois eu
o levava a gastar muito dinheiro, e que, na primeira vez em que Herbert se
propôs a apresentar-me a ela, a moça recebeu a proposta com tão pouco
entusiasmo que Herbert se viu obrigado a me confidenciar a situação, para que
eu esperasse um pouco até vir a conhecê-la. Quando comecei a ajudar Herbert
sem seu conhecimento, consegui suportar essa situação com bom humor; ele e
sua prometida, por sua vez, naturalmente não estavam muito sequiosos de
introduzir a presença de uma terceira pessoa em seus encontros; e assim, embora
ele me garantisse que eu subira no conceito de Clara, e embora eu e ela há muito
tempo trocássemos saudações em caráter regular através de Herbert, ainda não
a vira nenhuma vez. Porém, não importunei Wemmick com tais detalhes.
Como a casa da janela arredondada, disse Wemmick, fica à beira-rio,
perto do Pool, entre Limehouse e Greenwich, e está aos cuidados, pelo que sei,
de uma viúva muito respeitável, a qual tem um andar superior que pretende
alugar, o senhor Herbert me perguntou se eu achava que seria boa ideia instalar
lá por uns tempos fulano, beltrano ou sicrano. Pois respondi que me parecia uma
ótima ideia, por três motivos, que vou lhe expor. Em primeiro lugar: fica bem
longe dos lugares frequentados pelo senhor, e também das ruas mais
movimentadas, grandes e pequenas. Em segundo lugar: sem ter de ir lá
pessoalmente, o senhor poderia ficar sabendo se fulano, beltrano ou sicrano
estava em segurança, através do senhor Herbert. Em terceiro lugar: depois de
algum tempo, quando tal fosse oportuno, caso o senhor quisesse pôr fulano,
beltrano ou sicrano a bordo de um navio estrangeiro, ele já estaria bem
localizado para tal.
Muito confortado por essas considerações, agradeci Wemmick vez após vez,
e pedi-lhe encarecidamente que prosseguisse.
Pois bem! O senhor Herbert entregou-se à tarefa com vontade, e às nove
da noite de ontem abrigou fulano, beltrano ou sicrano seja lá quem for eu e
o senhor não queremos saber com muito êxito. Na sua antiga moradia, foi-lhe
dito que sua presença era requerida em Dover, e de fato ele foi levado pela
estrada de Dover, e de lá foi encaminhado à nova morada. Ora, eis mais uma
vantagem de tudo isso: as coisas foram feitas sem a sua presença, e se alguém
vier a se interessar pelas suas atividades, virá à tona que o senhor estava longe
daqui, ocupado com outros assuntos. Isso afasta as suspeitas e as confunde; pelo
mesmo motivo, recomendei-lhe que, mesmo se voltasse para casa ontem à noite,
não deveria entrar nela. A coisa fica ainda mais confusa, se o que se quer é
confundir.
Wemmick, tendo terminado seu desjejum, neste momento consultou o
relógio e começou a vestir o casaco.
E agora, senhor Pip, disse ele, ainda com as mãos dentro das mangas,
creio que fiz o máximo que posso fazer; mas, se por acaso puder fazer mais
de um ponto de vista de Walworth, e em caráter estritamente privado e pessoal
, eu o farei com prazer. Eis o endereço. Não há problema algum se o senhor
quiser ir lá hoje à noite para ver com seus próprios olhos se fulano, beltrano ou
sicrano está bem, antes de voltar para casa o que é mais um motivo para o
senhor não ter voltado ontem. Mas depois de ir para casa, não volte aqui. O
senhor é muito bem-vindo, é claro, senhor Pip; suas mãos agora já estavam
fora das mangas, e eu estava a apertá-las; e deixe-me lhe dizer mais uma coisa
importante. Pôs as mãos nos meus ombros e acrescentou, num cochicho sério:
Aproveite esta noite para apossar-se dos valores portáteis dele. O senhor não
sabe o que vai acontecer com ele. Não deixe que nada aconteça com os valores
portáteis dele.
Não tendo qualquer esperança de fazer com que Wemmick compreendesse
de que modo eu encarava essa questão, abstive-me de tentar fazê-lo.
Está na minha hora, disse Wemmick, e tenho de sair. Se o senhor não
tiver nada de mais urgente a fazer do que ficar aqui até anoitecer, é o que o
aconselho que faça. O senhor parece muito preocupado, e lhe faria bem passar
um dia absolutamente tranquilo com o idoso ele deve se levantar em breve
e provar um pouco do
o senhor se lembra do porco?
Claro, respondi.
Pois bem, provar um pouco dele. Aquela linguiça que o senhor assou era
dele, e ele era sob todos os aspectos um porco de primeira. Prove um pouco,
mesmo que seja apenas por se tratar de um velho conhecido seu. Até logo, pai
idoso!, gritou, alegre.
Muito bem, John; muito bem, meu rapaz!, veio a vozinha do velho do
quarto.
Logo em seguida adormeci diante da lareira de Wemmick, e eu e o idoso
aproveitamos um a companhia do outro cochilando diante do fogo mais ou
menos o dia todo. Comemos lombo de porco no almoço, e verduras da horta da
propriedade, e eu acenava com a cabeça para o idoso com boa intenção sempre
que não conseguia fazê-lo com sono. Quando já estava bem escuro, deixei o
idoso preparando o fogo para fazer torradas; e com base no número de xícaras,
bem como nos olhares que ele dirigia às duas pequenas portas na parede, inferi
que a sra. Skiffins estava sendo esperada.
7
Já tinham dado as oito quando adentrei o ambiente impregnado do cheiro, não
desagradável, de maravalhas e serragem dos estaleiros e fabricantes de mastros,
remos e picadeiros. Toda aquela região beira-rio em torno do Pool,* a jusante da
ponte London, era um território desconhecido para mim, e quando cheguei à
margem do Tâmisa constatei que o lugar que procurava não ficava onde eu o
supunha, e não era de modo algum fácil de achar. Chamava-se Mill Pond Bank,
Chinkss Basin; e a única orientação de que eu dispunha para chegar a Chinkss
Basin era a informação de que ficava perto da Old Green Copper Rope-Walk.1
Pouco importa saber os nomes dos navios que estavam em reparo no dique
seco entre os quais me perdi, os navios velhos cujos cascos estavam sendo
despedaçados, o lodo e limo e demais detritos trazidos pela maré, os estaleiros e
demolidores de navios, as âncoras enferrujadas a afundar às cegas no chão após
anos de abandono, as pilhas de barris e tábuas amontoados, as cordoarias que não
eram a Old Green Copper. Depois de recuar algumas vezes antes de chegar a
meu destino, e de ultrapassá-lo outras tantas vezes, inesperadamente, ao virar
uma esquina, deparei com Mill Pond Bank. Era um lugar arejado, dadas as
circunstâncias, onde o vento que vinha do rio tinha espaço para fazer a curva;
havia duas ou três árvores, e também o toco de um moinho de vento, e a Old
Green Copper Rope-Walk, cuja forma comprida e estreita pude divisar à luz da
lua, uma série de estacas de madeira fincadas no chão que lembravam ancinhos
gastos, que de tão velhos tivessem perdido a maior parte dos dentes.
Escolhendo, dentre as poucas casas estranhas que havia em Mill Pond Bank,
uma com fachada de madeira e três andares de janelas arredondadas, olhei para
a placa na porta e li: senhora Whimple. Como era esse o nome que eu procurava,
bati, e uma senhora idosa, de aparência agradável e próspera, veio atender. Foi,
porém, imediatamente substituída por Herbert, que em silêncio me levou até a
sala e fechou a porta. Era uma sensação curiosa ver esse rosto bem conhecido
tão à vontade naquele cômodo e naquele bairro nada conhecidos; e dei por mim
olhando para ele tal como olhava para a cristaleira no canto, as conchas sobre o
console da lareira e as gravuras coloridas na parede, representando a morte do
capitão Cook,2 o lançamento de um navio e sua majestade, o rei Jorge iii, vestido
com trajes do cocheiro real peruca, calções de couro e botas de cano
comprido, no terraço do castelo de Windsor.
Está tudo bem, Handel, disse Herbert, e ele está plenamente satisfeito,
ainda que ansioso para falar contigo. Minha querida Clara está com o pai; e se
esperares que ela desça, vou apresentar-te a ela, e depois vamos lá em cima.
Isso é o pai dela.
Eu estava atentando para uns grunhidos assustadores que vinham do andar de
cima, e provavelmente dera sinais disso com a expressão de meu rosto.
Lamento dizer que ele é um velho sem-vergonha, disse Herbert, sorrindo,
mas nunca o vi. Não sentes o cheiro de rum? Ele não larga o copo.
Rum?, perguntei.
Isso mesmo, respondeu Herbert, e bem podes imaginar o efeito que tem
sobre a gota dele. Além disso, ele insiste em guardar todas as provisões em seu
quarto, e distribuí-las pessoalmente. Guarda-as em prateleiras em cima da cama,
e faz questão de pesar tudo. Imagino que o quarto deve parecer um verdadeiro
armazém.
Enquanto Herbert falava, os grunhidos foram crescendo até se
transformarem num urro prolongado, que em seguida foi morrendo aos poucos.
Isso é o que dá, explicou Herbert, de ele insistir em cortar o queijo. Um
homem com gota na mão direita e no resto do corpo tentando cortar um
queijo Gloucester duplo só pode acabar se machucando.
Ao que parecia, ele se machucara bastante, pois soltou outro urro furioso.
Para a senhora Wimple, conseguir alugar o andar de cima para o Provis foi
um golpe de sorte, disse Herbert, pois é claro que as pessoas, em geral, não
suportam esse barulho. Lugar curioso, Handel, não é?
Era mesmo um lugar muito curioso, porém muito limpo e arrumado.
A senhora Wimple, disse Herbert, quando fiz essa observação, é uma
excelente dona de casa, e realmente não sei o que faria a minha Clara sem a
ajuda maternal dela. Pois a Clara não tem mãe, Handel, nem nenhum outro
parente no mundo além do velho Gruffandgrim.**
Esse não é o nome dele, não é, Herbert?
Não, não, ele respondeu; é o apelido que lhe pus. Ele se chama senhor
Barley. Mas que felicidade para o filho de meu pai e minha mãe amar uma
moça que não tem parentes, e que jamais poderá se aborrecer, nem aborrecer
os outros, por conta da família!
Herbert me contara em ocasiões anteriores, e agora me fez lembrar, que
conheceu Clara Barley quando ela estava concluindo sua educação numa escola
em Hammersmith, e que, ao ser chamada de volta para casa a fim de cuidar do
pai, ela e ele haviam revelado o afeto que os unia à maternal sra. Whimple, a
qual desde então o estimulava e regulava com bondade e discrição em
quantidades iguais. Decidiu-se que nenhuma informação referente a assuntos
amorosos poderia ser confidenciada ao velho Barley, por não ser ele capaz de
compreender quaisquer assuntos de natureza mais psicológica que a gota, o rum
e o fornecimento de víveres.
Enquanto conversávamos em voz baixa, ao mesmo tempo que os grunhidos
do velho Barley faziam vibrar a viga que cruzava o teto, abriu-se a porta da sala
e entrou uma moça muito bonita, pequenina, de olhos negros, com cerca de vinte
anos de idade, trazendo na mão uma cesta; carinhoso, Herbert logo encarregouse
da cesta e apresentou-me a moça, ruborizada, dizendo: Clara. Era sem
dúvida uma jovem encantadora, a qual bem podia ser uma fada cativa, que
aquele ogro truculento, o velho Barley , obrigava a servi-lo.
Veja, disse Herbert, mostrando-me a cesta, com um sorriso compassivo e
terno depois que conversamos um pouco, eis o jantar da pobre Clara, que lhe é
entregue todas as noites. Eis a porção dela de pão, de queijo, e de rum o qual
sou eu que bebo. Eis o desjejum do senhor Barley de amanhã, a ser preparado.
Duas costeletas de carneiro, três batatas, ervilha, um pouco de farinha, cinquenta
gramas de manteiga, uma pitada de sal e toda esta quantidade de pimenta do
reino. Tudo a ser cozinhado junto, e ingerido quente; imagino que deve fazer
muito bem para a gota!
Havia algo de tão natural e cativante no olhar resignado que Clara dirigia a
cada um desses ingredientes, à medida que Herbert os mencionava e algo de
tão confiante, amoroso e inocente, no modo recatado como ela aceitava o braço
de Herbert que a estreitava e algo de tão doce nela, algo que pedia proteção
em Mill Pond Bank, perto de Chinkss Basin e da Old Green Copper Rope-Walk,
com os grunhidos do velho Barley fazendo a viga tremer que eu não teria
desfeito o noivado entre ela e Herbert nem por todo o dinheiro contido naquela
carteira que eu jamais abrira.
Eu estava a olhar para ela com prazer e admiração quando de repente os
grunhidos se transformaram num urro outra vez, e ouviu-se um baque assustador,
como se um gigante com perna de pau estivesse tentando furar o teto com a
perna para chegar a nós. Ao ouvir isso, Clara disse a Herbert: O papai está me
chamando, querido!, e saiu correndo.
Um velho rabugento e muito exigente!, disse Herbert. O que será que ele
quer agora, Handel?
Sei lá, respondi. Algo para beber?
Isso mesmo!, exclamou Herbert, como se eu tivesse feito uma
adivinhação extraordinariamente arguta. Ele guarda o grogue já preparado num
barrilzinho sobre a mesa. Espera um pouco, que logo vais ouvir Clara levantandoo
para que ele vá beber um pouco. Lá vai ele! Mais um urro, culminando
com uma sacudidela prolongada. Agora, disse Herbert, quando se fez silêncio,
ele está bebendo. Agora, quando os grunhidos recomeçaram a fazer a viga
tremer, ele deitou-se de novo!
Pouco depois, Clara voltou, e Herbert acompanhou-me até o andar de cima
para vermos Provis. Quando passamos pela porta do quarto do sr. Barley,
ouvimo-lo a murmurar com voz rouquenha, numa melodia que subia e descia
como o vento, o refrão que se segue, no qual as bênçãos substituem palavras com
sentido contrário.***
Ó de bordo! Benditos os seus olhos, cá está o velho Bill Barley. Cá está o
velho Bill Barley, benditos os seus olhos. Cá está o velho Bill Barley, deitado
numa cama, por Deus. Deitado numa cama, feito um linguado morto à deriva,
cá está o velho Bill Barley , benditos os seus olhos. Ó de bordo! Benditos sejam.
Com essa melodia consoladora, Herbert informou-me, o invisível Barley
conversava com seus botões dia e noite sem parar; muitas vezes enquanto ainda
era dia claro, estando, ao mesmo tempo, um de seus olhos colado a um
telescópio que era levado a sua cama, para que ele pudesse vasculhar o rio.
Em seus dois cômodos no andar superior do prédio, frescos e arejados, e
onde o barulho do sr. Barley era menos intenso do que no térreo, encontrei Provis
muito bem instalado. Ele não expressava nenhuma preocupação, e parecia não
ser atormentado por nenhuma que valesse a pena mencionar, porém observei
que algo nele havia amolecido algo de indefinível, pois eu não seria capaz de
dizer o quê, e posteriormente não consegui relembrar a sensação, quanto tentei
fazê-lo; mas alguma coisa nele sem dúvida mudara.
A oportunidade de reflexão que me dera aquele dia de descanso levara-me a
tomar a firme decisão de não contar a Provis nada a respeito de Compey son.
Pelo que eu sabia, o ódio que o outro lhe inspirava poderia levá-lo a ir a seu
encalço e desse modo provocar sua própria destruição. Assim, quando Herbert e
eu nos sentamos a seu lado diante da lareira, perguntei-lhe antes de mais nada se
ele confiava no discernimento e nas fontes de informação de Wemmick.
Claro, claro, meu menino querido!, ele respondeu, com um aceno
circunspecto. A gente do Jaggers sabe o que faz.
Pois então, estive com o Wemmick, disse eu, e vim lhe transmitir as
medidas de cautela que ele recomenda, e os conselhos que nos dá.
Foi o que fiz, de modo preciso, com a ressalva que mencionei ainda há
pouco; e disse-lhe que Wemmick ouvira dizer, na prisão de Newgate (eu não
sabia se o ouvira de policiais ou de prisioneiros), que alguma suspeita recaía
sobre ele, e que meus aposentos estavam sendo vigiados; Wemmick
recomendara que ele se mantivesse recluso por algum tempo, e eu me afastasse
dele; relatei-lhe também o que Wemmick dissera a respeito de sua ida ao
exterior. Acrescentei que, naturalmente, quando chegasse a hora, eu viajaria
com ele, ou o seguiria logo depois, dependendo do que Wemmick julgasse mais
seguro. Quanto ao que sucederia em seguida, não fiz nenhum comentário; na
verdade, eu próprio não sabia o que haveria de acontecer, nem gostava de pensar
no assunto, agora que via Provis em seu novo estado suavizado, correndo perigo
por minha causa. Quanto a alterar meu modo de vida, de modo a aumentar
minhas despesas, perguntei-lhe se não lhe parecia que, nas nossas atuais
circunstâncias instáveis e difíceis, isso não seria ridículo, ou coisa pior ainda?
Ele não tinha como discordar dessa avaliação; de fato, o tempo todo
mostrou-se muito razoável. Sua volta à Inglaterra era uma aventura, observou, e
sempre soubera que seria uma aventura. Não faria nada que tivesse o efeito de
transformá-la numa aventura desesperada, e preocupava-se muito pouco com
sua segurança quando estava tendo uma ajuda tão preciosa.
Herbert, que até então estava a olhar para o fogo e a meditar, neste ponto
observou que a sugestão de Wemmick lhe inspirara uma ideia a qual talvez
valesse a pena considerar. Nós dois somos bons remadores, Handel, e podemos
levá-lo de barco quando chegar a hora. Não seria necessário alugar um barco
nem contratar barqueiros; isso já removeria uma fonte de suspeitas, e sempre é
bom diminuir suspeitas. Embora a estação do ano não seja a mais propícia, não
achas que seria uma boa ideia se passasses agora mesmo a manter um barco no
embarcadouro do Temple, e adquirisses o hábito de remar no rio? Uma vez que
passas a fazê-lo habitualmente, ninguém repara mais. Vais remar vinte vezes ou
cinquenta vezes, e aí não há nada de especial quando o fazes pela vigésima
primeira, ou quinquagésima primeira.
Gostei da ideia, e Provis ficou entusiasmado com ela. Concordamos que
deveria ser posta em prática, e que Provis não deveria reconhecer-nos se
viéssemos a jusante da ponte London e passássemos por Mill Pond Bank.
Combinamos também que ele deveria sempre baixar a corrediça do lado da sua
janela que dava para o leste sempre que nos visse e tudo estivesse bem.
Finda aquela reunião, e tudo tendo sido acordado, levantei-me para ir
embora, dizendo a Herbert que era melhor eu e ele não irmos juntos para casa, e
que eu sairia meia hora à frente dele. Não me agrada deixá-lo aqui, disse eu a
Provis, embora esteja certo de que aqui o senhor está mais protegido do que
perto de mim. Adeus!
Meu menino querido, ele respondeu, apertando-me as mãos, não sei
quando voltaremos a nos ver, e não me agrada esse adeus. Diga boa noite!
Boa noite! Herbert será nosso intermediário sempre, e quando chegar a
hora pode estar certo de que eu estarei preparado. Boa noite, boa noite!
Julgamos melhor que ele ficasse em seus aposentos, e o deixamos no
parapeito da escada junto à porta, segurando um lampião acima da grade da
escada de modo a iluminá-la para nós. Olhando para trás e vendo Provis,
lembrei-me da noite em que ele chegou, em que ocupávamos posições opostas
às atuais, e pensei que naquela noite eu mal imaginava que meu coração estaria
tenso e ansioso ao despedir-me dele como estava agora.
O velho Barley estava a grunhir e praguejar quando voltamos a passar por
sua porta, aparentemente sem ter feito nenhuma pausa e sem manifestar
intenção de fazê-la. Chegando ao pé da escada, perguntei a Herbert se ele havia
divulgado o nome Provis. Ele respondeu que não, absolutamente; o nome do
inquilino era Campbell. Disse-me que tudo que se sabia na casa a respeito do sr.
Campbell era que ele, Herbert, fora encarregado de cuidar do sr. Campbell, e
tinha muito interesse em que ele fosse bem cuidado, e vivesse em recolhimento.
Assim, quando entramos na sala onde a sra. Whimple e Clara estavam
trabalhando, não fiz nenhum comentário sobre minhas próprias relações com o
sr. Campbell.
Depois que me despedi da mocinha bonita e delicada de olhos negros, e da
mulher maternal que não deixara que um amor sincero diminuísse seu apoio
honesto e solidário, tive a impressão de que Old Green Copper Rope-Walk se
havia transformado num lugar bem diferente. O velho Barley era tão velho
quanto o tempo, e praguejava como um batalhão inteiro, mas havia juventude,
confiança e esperança suficientes em Chinkss Basin para encher o lugar até
transbordar. Em seguida, pensei em Estella, e na nossa despedida, e fui para casa
numa tristeza profunda.
Tudo no Temple estava tão tranquilo quanto sempre estivera. As janelas dos
cômodos antes ocupados por Provis estavam escuras e silenciosas, e não havia
nenhuma presença esquiva no Garden-court. Passei pela fonte duas ou três vezes
antes de descer a escada que me levava a meus aposentos, e me vi
completamente a sós. Herbert, que veio até minha cama quando chegou pois
me deitei logo que pus os pés em casa, desanimado e exausto , me fez idêntico
relato. Abrindo uma das janelas depois disso, olhou para a calçada enluarada e
disse que estava tão vazia quanto uma catedral qualquer àquela hora.
No dia seguinte fui arranjar um barco. Logo o fiz, e o barco foi levado até o
embarcadouro do Temple, ficando num lugar aonde eu poderia chegar em um
ou dois minutos. Então comecei a remar, como se para praticar o esporte: por
vezes sozinho, por vezes com Herbert. Muitas vezes eu remava no frio, com
chuva ou granizo, mas ninguém me dava muita atenção desde que essas minhas
saídas se tornaram habituais. De início, eu não chegava nem mesmo à ponte
Blackfriars; mas, à medida que a maré foi mudando, comecei a ir até a ponte
London. Naquele tempo, ainda era a ponte velha,3 e quando a maré estava em
determinadas condições formava-se uma correnteza turbulenta que dava má
fama ao lugar. Mas eu sabia muito bem passar por baixo da ponte, depois que
vira tal coisa ser feita, e assim comecei a remar por entre os navios do Pool, indo
até Erith. A primeira vez que passei por Mill Pond Bank, eu e Herbert estávamos
remando juntos; e tanto na ida quanto na volta vimos a corrediça voltada para o
leste ser baixada. Herbert quase sempre ia lá no mínimo três vezes por semana, e
nunca me trouxe notícias preocupantes. Mesmo assim, eu sabia que havia motivo
para preocupação, e não conseguia me livrar da cisma de que estava sendo
vigiado. Uma vez que se forme tal ideia, ela se torna uma obsessão; eu não
saberia dizer quantas pessoas inocentes suspeitei que estavam a observar-me.
Em suma, eu vivia temendo pelo homem imprudente que vivia escondido.
Herbert por vezes me dissera que lhe era agradável pensar, quando se punha
junto a uma de nossas janelas à noite, numa hora em que a maré estava
baixando, que aquela água estava fluindo, com tudo que nela havia, em direção a
Clara. Eu, porém, pensava com horror que o rio fluía em direção a Magwitch, e
que todo e qualquer ponto negro em sua superfície poderia bem ser aqueles que o
perseguiam, seguindo céleres, silenciosos, implacáveis, para capturá-lo.
* Pool: trecho do rio Tâmisa compreendido entre a ponte London e o Cherry
Garden Pier, onde há um grande número de embarcadouros. (n. t.)
** Gruffandgrim: gruff quer dizer áspero, rude; grim, cruel, soturno. (n. t.)
*** uma palavra com sentido contrário: nos países de língua inglesa, no século
xix, o verbo damn (amaldiçoar, maldizer) e seus derivados eram considerados
termos indelicados demais para serem utilizados num romance. (n. t.)
8
Passaram-se algumas semanas sem que nada acontecesse. Esperávamos por
Wemmick, e ele não dava nenhum sinal. Se eu jamais o tivesse visto fora de
Little Britain, e jamais tivesse desfrutado o privilégio de ter uma relação pessoal
com ele no castelo, talvez desconfiasse dele; porém, conhecendo-o como o
conhecia, minha confiança era completa.
Minha situação financeira começou a ficar preocupante, e mais de um
credor veio fazer-me cobrança. Até eu comecei a sentir falta de dinheiro (isto é,
dinheiro vivo no bolso), e por isso comecei a converter em dinheiro algumas
joias de que abria mão com facilidade. Entretanto, estava decidido que seria uma
desonestidade cruel aceitar mais dinheiro de meu protetor, dado o atual estado de
incerteza de meus pensamentos e meus planos. Assim, eu lhe devolvera a
carteira através de Herbert sem jamais tê-la aberto, para que ele próprio a
guardasse, e sentia certa satisfação se falsa ou verdadeira, eu próprio não sei
dizer ao pensar que não havia tirado proveito de sua generosidade desde que
ele se revelara a mim.
Com o passar do tempo, fui me convencendo cada vez mais de que Estella
havia casado. Temendo uma confirmação, embora fosse apenas uma convicção
minha, eu evitava os jornais, e implorava a Herbert (a quem eu confidenciara as
circunstâncias de nosso último encontro) que jamais mencionasse o nome dela
em minha presença. Por que motivo guardei este último farrapo miserável do
manto de esperança que já se rasgara e fora entregue aos ventos, jamais saberei.
Por que motivo o leitor cometeu uma incoerência semelhante no ano passado, no
mês passado, na semana passada?
Minha vida se tornara infeliz, e a ansiedade que me dominava acima de
todas as outras, como uma montanha que se destaca da cordilheira, jamais sumia
de vista. Não obstante, não surgiu nenhum motivo adicional para temores. Por
mais que me levantasse de repente da cama assustado com a ideia de que ele
poderia ter sido descoberto; por mais que ficasse escutando com ouvidos
temerosos o passo de Herbert voltando à noite, temendo que estivesse mais
apressado que de costume por trazer más notícias o fato é que, apesar de tudo
isso, e de tantas outras circunstâncias semelhantes, a vida seguia normal.
Condenado à inação e a um estado constante de inquietude e suspense, eu saía
para remar em meu barco e esperava, esperava, esperava, da melhor maneira
de que era capaz.
Por vezes a maré era tal que, quando eu já estava no meio do passeio, não
me era mais possível voltar pelos arcos e por entre os esporões da velha ponte
London; então deixava meu bote no embarcadouro perto da alfândega, para que
depois ele fosse trazido até o Temple. Isso não era para mim um inconveniente,
pois servia para fazer com que eu e meu barco nos tornássemos conhecidos entre
os barqueiros da região. A partir de um desses incidentes surgiram dois encontros
que agora me compete relatar.
Uma tarde, já no final de fevereiro, cheguei ao embarcadouro à hora do pôr
do sol. Eu havia ido até Greenwich na baixa da maré, e voltara com ela. O dia
tinha sido de sol, porém se tornara nevoento à medida que escurecia, e na volta
eu fora obrigado a movimentar-me com muita cautela em meio às
embarcações. Tanto na ida quanto na volta eu vira o sinal na janela de Provis,
indicando que tudo estava bem.
O tempo agora não estava bom e eu sentia frio, e por isso resolvi jantar de
imediato; como em seguida teria horas de depressão e solidão se voltasse para
casa, resolvi ir ao teatro depois do jantar. O teatro em que o sr. Wopsle gozara
seu triunfo questionável ficava naquela região ribeirinha (ele não existe mais), e
foi para lá que me encaminhei. Eu tinha consciência de que o sr. Wopsle não
havia conseguido renovar a arte dramática; pelo contrário, participara de seu
declínio. Ele aparecera nos programas, de modo não muito alvissareiro, no papel
de um negro fiel, associado a uma menina de sangue nobre e um macaco. Além
disso, Herbert o vira como um tártaro predador, uma figura cômica com um
rosto que parecia um tijolo vermelho e um chapéu ridículo cheio de guizos.
Jantei num lugar que eu e Herbert chamávamos de restaurante geográfico
pois havia mapas-múndi traçados por marcas de copos de cerveja em todas
as toalhas, e mapas de molho de carne em cada uma das facas até hoje, não
há praticamente nenhum restaurante nos domínios do lorde prefeito que não seja
geográfico e fiz hora cochilando sobre os restos de pão, olhando para o
lampião de gás e sendo cozido pelo bafo quente que vinha da cozinha. Depois de
algum tempo, despertei e fui ao teatro.
Lá, vi um virtuoso contramestre a serviço de sua majestade um homem
excelente, ainda que eu preferisse que suas calças não fossem tão apertadas em
certos lugares nem tão largas em outros o qual enterrava os chapéus dos
homenzinhos até os olhos, embora fosse muito generoso e bravo, e não suportava
a ideia de que alguém pagasse impostos, embora fosse muito patriótico. Tinha no
bolso um saco cheio de dinheiro, como um pudim envolto em pano, e graças a
essa fortuna desposou uma jovem fantasiada de cama,1 para júbilo geral; toda a
população de Portsmouth (nove habitantes ao todo, segundo o último
recenseamento) veio à praia para esfregar as mãos e apertar as mãos dos outros,
cantando Vira, vira!. Um certo grumete de tez escura, porém, que não queria
virar, nem fazer mais nada que lhe fosse proposto, e cujo coração (segundo o
contramestre) era tão negro quanto seu rosto, propôs a dois outros grumetes que
criassem problemas para toda a humanidade; o que foi feito com tanta eficiência
(pois a classe dos grumetes tinha grande influência política) que as coisas
levaram metade da noite para serem resolvidas, e mesmo assim apenas graças à
intervenção de um merceeiro honesto de chapéu branco, perneiras pretas e nariz
vermelho, o qual entrou num relógio, com uma grelha na mão, e ficou a escutar,
e depois saiu de lá e derrubou pelas costas com a grelha todos aqueles que ele
não conseguiu convencer com base no que havia escutado em seu esconderijo.
Por esse motivo, o sr. Wopsle (que até então não fora mencionado) entrou,
ostentando uma estrela e a insígnia da Ordem da Jarreteira, como agente
plenipotenciário enviado diretamente do almirantado, dizendo que todos os
grumetes seriam presos imediatamente, e que ele trazia uma bandeira britânica
para o contramestre, em reconhecimento aos seus serviços prestados ao público.
O contramestre, pela primeira vez comovido, respeitosamente enxugou as
lágrimas no lábaro e depois, animando-se, dirigiu-se ao sr. Wopsle e, tratando-o
de vossa excelência, pediu-lhe permissão para segurar-lhe a mão. O sr. Wopsle
lhe estendeu a mão com dignidade, sendo imediatamente levado para um canto
cheio de poeira enquanto todo mundo dançava uma dança de marinheiros; e
daquele canto, contemplando o público com um olhar descontente, ele me viu.
A segunda peça era a mais recente pantomima cômica de Natal, em cuja
cena de abertura julguei perceber, constrangido, a figura do sr. Wopsle, com as
pernas cobertas de lã vermelha e um pedaço de franja de cortina vermelha na
cabeça, fabricando relâmpagos numa mina, e comportando-se com muita
covardia quando seu amo gigantesco surgiu (muito rouquenho) para almoçar.
Mas logo depois ele se mostrou em circunstâncias mais dignas, pois o gênio do
amor juvenil, precisando de ajuda por causa da brutalidade paterna de um
fazendeiro ignorante que se opunha à escolha feita pelo coração da filha, jogando
o escolhido, dentro de um saco de farinha, pela janela , convocou um mago
sentencioso; este, vindo do outro lado do mundo com pernas um tanto inseguras,
após uma viagem aparentemente violenta, revelou-se ninguém menos que o sr.
Wopsle com um chapéu pontudo, com um tratado de necromancia em um único
volume debaixo do braço. Como a ocupação desse mago no mundo consistia
principalmente em deixar que falassem com ele, cantassem para ele,
esbarrassem nele, dançassem para ele e acendessem diante de seu rosto fogos de
cores variadas, ele tinha muito tempo livre. E observei, com grande surpresa, que
ele dedicava boa parte desse tempo à atividade de olhar na minha direção, como
se estivesse atônito.
Havia algo de tão notável no olhar cada vez mais penetrante do sr. Wopsle, e
ele parecia estar pensando sobre tantas coisas e confundindo-se tanto, que eu não
conseguia entender o que estava acontecendo. Eu ainda estava pensando nisso
muito tempo depois de ele subir às nuvens dentro de um grande estojo de relógio,
e continuava sem entender. Ainda pensava no assunto quando saí do teatro uma
hora depois e encontrei-o à minha espera junto à porta.
Como vai?, disse eu, trocando um aperto de mãos com ele enquanto
virávamos a rua. Vi que o senhor me tinha visto.
Se o vi, senhor Pip!, exclamou ele. Claro que o vi. Mas quem mais estava
lá?
Quem mais?
É muito estranho, disse o sr. Wopsle, voltando a assumir seu olhar perdido;
e no entanto eu seria capaz de jurar que o vi.
Preocupado, insisti para que o sr. Wopsle explicasse o que queria dizer.
Se eu o teria percebido caso o senhor não estivesse lá, disse o sr. Wopsle
ainda com o olhar perdido, isso não posso garantir; mas acho que teria, sim.
Num gesto involuntário, olhei à minha volta, como estava acostumado a
fazer quando voltava para casa; pois aquelas palavras misteriosas me
provocaram um arrepio.
Ah! Ele não pode estar por perto, disse o sr. Wopsle. Ele saiu antes de
mim, eu o vi sair.
Tendo os motivos que tinha para estar desconfiado, cheguei mesmo a
suspeitar daquele pobre ator. Imaginei que aquilo fosse um estratagema para me
levar a abrir-me com ele. Assim, fiquei a olhá-lo enquanto caminhávamos lado a
lado, porém permaneci em silêncio.
Formei a ideia ridícula de que ele estaria em sua companhia, até que
percebi que o senhor não tinha consciência da presença dele, sentado atrás do
senhor, como um fantasma.
Voltei a ter um arrepio, mas estava decidido a não falar ainda, pois era
perfeitamente possível, a julgar por suas palavras, que ele estivesse tentando me
levar a associar aquelas referências a Provis. Naturalmente, eu tinha certeza
absoluta de que Provis não estivera presente.
Entendo por que o senhor está espantado comigo, senhor Pip; dá para
perceber. Mas é tão estranho! O senhor talvez nem acredite no que vou lhe dizer.
Eu próprio dificilmente acreditaria, se o senhor me dissesse.
É mesmo?, exclamei.
Sem dúvida. O senhor se lembra quando, muitos anos atrás, no Natal,
quando ainda era bem pequeno, fui jantar na casa do Gargery, e alguns soldados
vieram querendo consertar um par de algemas?
Lembro-me muito bem.
E o senhor lembra que deram uma busca por dois forçados, e nós fomos
juntos, e que o Gargery o carregou nas costas, e que eu saí disparado na frente, e
vocês mal conseguiram me acompanhar?
Lembro-me de tudo muito bem. Melhor do que ele imaginava menos o
último detalhe mencionado.
E o senhor lembra que encontramos os dois numa vala, e que estavam
lutando, e um deles havia machucado muito o outro, no rosto?
É como se visse a cena à minha frente.
E que os soldados acenderam archotes, e puseram os dois no meio, e que os
acompanhamos até o fim, caminhando pelo charco escuro, o fogo iluminando os
rostos deles lembro-me bem disso; o fogo iluminando os rostos deles, e a noite
escura a nosso redor?
Lembro, sim, respondi. Lembro-me de tudo isso.
Pois bem, senhor Pip, um daqueles dois forçados estava sentado atrás do
senhor hoje. Eu o vi atrás do seu ombro.
Calma lá!, pensei. Em seguida, perguntei-lhe: Qual dos dois o senhor
julga ter visto?.
O que estava machucado, ele respondeu sem hesitar, juro que o vi!
Quanto mais penso nele, mais certeza tenho de que era ele.
Isto é muito curioso!, exclamei, tentando o melhor que podia dar a
entender que aquilo não significava nada para mim. É mesmo muito curioso.
Impossível exprimir a angústia acentuada que essa conversa me
proporcionou, e o terror específico que me causava a ideia de que Compey son
estivera sentado atrás de mim como um fantasma. Pois se eu havia ficado
alguns momentos sem pensar nele desde que começara toda aquela história de
esconder meu protetor, fora justamente naqueles momentos em que ele estivera
mais próximo a mim; e ao pensar que eu estava de todo inconsciente de sua
presença e despreocupado após tantos cuidados, era como se eu tivesse fechado
toda uma avenida de cem portas para impedi-lo de entrar e depois descobrisse
que ele estava a meu lado. Era impossível duvidar que ele de fato estava lá,
porque eu também estava, e por menor que fosse a aparência de perigo à nossa
volta, o perigo estava sempre próximo e ativo.
Dirigi ao sr. Wopsle perguntas como: quando o homem havia entrado? Ele
não soube me responder; vira-me na plateia e, atrás de mim, percebera o
homem. Foi só algum tempo depois de vê-lo pela primeira vez que começou a
identificá-lo; mas desde o início de algum modo associou sua figura a minha
pessoa, e também a alguma coisa ocorrida nos velhos tempos, na aldeia. Como
estava ele vestido? Como uma pessoa próspera, mas nada que chamasse a
atenção; todo de preto, ele julgava. Seu rosto estava de algum modo desfigurado?
Não, ele achava que não. E quanto a isso eu estava de acordo, pois, embora
absorto como estava eu não houvesse reparado nas pessoas a meu redor,
parecia-me que um rosto desfigurado haveria de ter me chamado a atenção.
Depois que o sr. Wopsle me transmitiu tudo aquilo de que se lembrava ou
tudo que pude arrancar dele, e depois que o regalei com uma colação que
compensasse o cansaço da noite, despedimo-nos. Era entre meia-noite e meia e
uma da manhã quando cheguei ao Temple, e os portões estavam fechados. Não
havia ninguém perto de mim quando entrei e fui para casa.
Herbert já havia chegado, e tivemos uma conversa muito séria junto à
lareira. Mas não havia nada a fazer, senão contar a Wemmick o que eu
descobrira, e lembrá-lo de que estávamos aguardando suas instruções. Como eu
achava que poderia comprometê-lo se fosse com muita frequência ao castelo,
comuniquei-me com ele através de uma carta. Escrevi-a antes de me deitar, e
saí para colocá-la na caixa de correio; e, mais uma vez, não havia ninguém por
perto. Eu e Herbert concordamos que a única coisa que podíamos fazer era ter
muita cautela. De fato, ficamos muito cuidadosos mais ainda do que já
estávamos antes, se tal coisa era possível , e eu, de minha parte, jamais me
aproximava de Chinkss Basin, senão quando passava por lá de barco, e nessas
circunstâncias olhava para Mill Pond Bank tal como olhava para qualquer outra
coisa.
9
O segundo dos dois encontros mencionados no último capítulo ocorreu cerca de
uma semana depois do primeiro. Como antes, eu havia deixado meu barco no
ancoradouro a jusante da ponte London; e, sem conseguir me decidir onde
jantar, fui caminhando pela Cheapside, e lá fiquei a vagar, certamente a pessoa
mais intranquila em toda aquela movimentada avenida, quando uma manzorra
pousou em meu ombro, a mão de alguém que vinha atrás de mim e me
alcançou. Era o sr. Jaggers, e ele tomou-me o braço.
Como vamos na mesma direção, Pip, podemos caminhar juntos. Para onde
você está indo?
Para o Temple, eu acho, respondi.
Você não sabe?, indagou o sr. Jaggers.
Não sei, não, retruquei, satisfeito por poder ao menos uma vez sair-me
bem em seu interrogatório, pois ainda não me decidi.
Você vai jantar?, perguntou o sr. Jaggers. Imagino que isso, ao menos,
você não se incomoda de reconhecer, não é?
Não, respondi, Não me incomodo.
E está sozinho?
Também não me incomodo de reconhecer que estou sozinho.
Nesse caso, disse o sr. Jaggers, venha jantar comigo.
Eu ia rejeitar o convite com um pedido de desculpas quando ele acrescentou:
O Wemmick também vai.
Assim, transformei minha rejeição numa aceitação as poucas palavras
que eu já havia pronunciado serviriam tanto para uma resposta quanto para a
outra e assim seguimos por Cheapside e depois para Little Britain, enquanto
luzes fortes se acendiam nas vitrines das lojas, e os acendedores de lampiões,
encontrando com dificuldade um lugar para colocar suas escadas no meio da
multidão vespertina, subiam e desciam, e iam e vinham correndo, abrindo na
neblina cada vez mais espessa mais olhos vermelhos do que minha torre de luzes
do Hummuns abrira olhos brancos na parede espectral.
No escritório em Little Britain, repetiu-se a rotina de sempre de escrever
cartas, lavar as mãos, apagar as velas e trancar o cofre, a rotina que assinalava o
fim de mais um dia de trabalho. Enquanto eu aguardava junto à lareira do sr.
Jaggers, vi que a chama, ao subir e descer, dava a impressão de que as duas
máscaras na prateleira estavam fazendo um diabólico jogo de esconde-esconde
comigo; as duas velas grossas que iluminavam a mesa do sr. Jaggers, enquanto
ele escrevia num canto, estavam enfeitadas com mortalhas sujas, como se em
memória de tantos clientes enforcados.
Fomos à Gerrard-street, os três juntos, num fiacre de aluguel, e tão logo
chegamos o jantar foi servido. Embora nem me ocorresse a possibilidade de
fazer, em tal lugar, a referência mais indireta, através de uma expressão dirigida
a Wemmick, aos seus sentimentos de Walworth, eu teria gostado de receber da
parte dele um ou outro olhar simpático. Mas tal não ocorreu. Sempre que
levantava a vista da mesa, ele olhava para o sr. Jaggers, e em relação a mim se
comportava de uma maneira seca e distante, como se houvesse dois Wemmicks
gêmeos, e aquele fosse o irmão errado.
Você enviou aquele bilhete da senhora Havisham ao senhor Pip,
Wemmick?, perguntou o sr. Jaggers, assim que começamos a comer.
Não, senhor, respondeu Wemmick; eu ia despachá-lo quando o senhor
entrou no escritório com o senhor Pip. Está aqui. Entregou a missiva a seu
superior, e não a mim.
É um bilhete de duas linhas, Pip, disse o sr. Jaggers, repassando-o a mim,
que a senhora Havisham me enviou por não saber direito qual o seu endereço.
Ela diz que gostaria de lhe falar a respeito do assunto que você mencionou a ela.
Você vai lá?
Vou, respondi, olhando de relance o bilhete, cujo teor era exatamente
aquele.
Quando pretende ir?
Tenho um compromisso urgente, disse eu, olhando para Wemmick, que
estava despachando peixe em sua caixa de correio, e por isso não sei direito
quando vou. Acho que vou imediatamente.
Se o senhor Pip tem intenção de ir imediatamente, disse Wemmick ao sr.
Jaggers, ele não precisa responder o bilhete.
Entendendo que esse comentário queria dizer que era melhor agir depressa,
resolvi ir no dia seguinte e disse isso a eles. Wemmick bebeu uma taça de vinho e
olhou com um ar de satisfação irônica para o sr. Jaggers, mas não olhou para
mim.
Pois é, Pip! Nosso amigo, o Aranha, observou o sr. Jaggers, fez sua
jogada. Ele ganhou a partida.
Não pude fazer outra coisa senão concordar.
Ah! Ele é um sujeito promissor lá a sua maneira mas pode não
conseguir tudo que quer. O mais forte vai vencer no final, mas primeiro é preciso
saber quem é o mais forte. Se ele resolver bater nela
Não é possível, interrompi, com um ardor no rosto e no coração, que o
senhor realmente acredite que ele é canalha o bastante para fazer uma coisa
dessas, senhor Jaggers?
Não foi isso que eu disse, Pip. Estou só imaginando uma hipótese. Se ele
resolver bater nela, talvez se torne o mais forte; se for por uma questão de
intelecto, certamente que não. Não há como prever como um sujeito desse tipo
vai agir em tais circunstâncias, pois os dois resultados são igualmente prováveis.
Posso lhe perguntar quais são eles?
Um sujeito como o nosso amigo, o Aranha, respondeu o sr. Jaggers, ou
bate ou rasteja. Ele pode rastejar e resmungar, ou rastejar sem resmungar; mas
as opções são bater ou rastejar. Pergunte a Wemmick qual a opinião dele.
Ou bate ou rasteja, respondeu Wemmick, não se dirigindo a mim de modo
algum.
Então, à saúde da senhora Bentley Drummle, disse o sr. Jaggers, pegando
no aparador uma garrafa de vinho da melhor qualidade, e enchendo nossas taças
e a sua, e que a questão de quem é o mais forte seja resolvida em favor da
mulher! Pois em favor da mulher e do marido é que não vai ser. Mas Molly,
Molly , Molly , Molly , como você está lerda hoje!
Ela estava ao lado dele nesse momento, pondo uma travessa na mesa.
Quando recolheu as mãos, deu um ou dois passos para trás, murmurando uma
desculpa nervosa. E certo movimento de seus dedos, enquanto ela falava,
chamou minha atenção.
O que foi?, perguntou o sr. Jaggers.
Nada. É que o assunto do qual falávamos, expliquei, era um tanto
doloroso para mim.
O movimento dos dedos de Molly parecia o de alguém que tricotasse. Ela
olhava para o patrão, sem saber se estava livre para recolher-se ou se ele teria
mais alguma coisa para lhe dizer, e a chamaria se ela se afastasse. Tinha uma
expressão muito atenta no rosto. Sem dúvida, eu vira exatamente aqueles olhos e
aquelas mãos, numa ocasião memorável muito recente!
O sr. Jaggers despachou-a, e ela saiu da sala. Porém continuei a vê-la à
minha frente, tal como se não tivesse saído. Olhei para aquelas mãos, olhei para
aqueles olhos, olhei para aqueles cabelos soltos; e comparei-os com outras mãos,
outros olhos, outros cabelos, os quais eu conhecia, e com o que eles talvez
viessem a se tornar depois de vinte anos de uma vida tempestuosa junto a um
marido bruto. Olhei de novo para aquelas mãos e aqueles olhos da governanta, e
pensei no sentimento inexplicável que me dominara na última vez em que eu
caminhara e não a sós no jardim abandonado, e na cervejaria deserta.
Pensei que o mesmo sentimento voltara quando vi um rosto olhando para mim, e
uma mão acenando para mim, da janela de uma diligência; o sentimento voltara
como um relâmpago quando passei, numa carruagem e não a sós por
algum brilho súbito numa rua escura. Pensei que um elo nessa cadeia de
associações me ajudara a fazer essa identificação no teatro, e que esse elo, que
antes faltava, encaixara-se com precisão na corrente, quando por um acaso
passei da menção do nome de Estella àqueles dedos que pareciam tricotar e
àqueles olhos atentos. E tive certeza absoluta de que aquela mulher era a mãe de
Estella.
O sr. Jaggers já me vira com Estella, e provavelmente teria percebido os
sentimentos que eu sequer tentara ocultar. Ele acenou com a cabeça quando
observei que o assunto era doloroso para mim, deu-me um tapinha nas costas,
serviu mais uma rodada de vinho e continuou a comer.
Apenas mais duas vezes a governanta voltou a aparecer, ficou muito pouco
tempo na sala, e o sr. Jaggers foi ríspido com ela. Mas as mãos eram as mãos de
Estella, e os olhos eram os olhos de Estella, e se ela tivesse reaparecido cem
vezes eu não teria nem mais nem menos certeza de que minha convicção era
acertada.
O jantar foi um tanto monótono, pois Wemmick recebia o vinho que lhe era
oferecido de modo mecânico tal como receberia o salário ao ser pago e,
com os olhos em seu patrão, permanecia num estado de prontidão perpétua,
aguardando o interrogatório. Quanto à quantidade de vinho, sua caixa de correio
era tão indiferente quanto qualquer outra caixa de correio em relação à
quantidade de cartas nela colocada. Do meu ponto de vista, ele era o irmão
gêmeo errado, e apenas exteriormente se assemelhava ao Wemmick de
Walworth.
Despedimo-nos cedo e saímos juntos. Já enquanto procurávamos nossos
chapéus em meio ao depósito de botas do sr. Jaggers percebi que o irmão certo
estava voltando; e quando não havíamos ainda caminhado dez metros pela
Gerrard-street, no sentido de Walworth, dei-me conta de que estava caminhando
de braço dado com o outro irmão, o certo, e que o errado se havia desvanecido
na noite.
Bem, disse Wemmick, acabou! Ele é um homem maravilhoso, que não
tem igual no mundo; mas sinto que tenho de ficar todo amarrado quando janto
com ele e é mais confortável jantar desamarrado.
Achei que aquela definição era correta e transmiti-lhe esse pensamento.
Eu não diria isso a ninguém que não fosse o senhor, comentou ele. Sei
que o que dizemos um ao outro fica entre nós.
Perguntei-lhe se já vira alguma vez a filha adotiva da sra. Havisham, a
esposa de Bentley Drummle. Ele disse que não. Para não ser abrupto demais,
falei então sobre o idoso, e sobre a sra. Skiffins. Ele adquiriu um ar maroto
quando mencionei esta senhora, e parou de repente para assoar o nariz, com um
movimento de cabeça e um floreio que não eram totalmente isentos de bazófia.
Wemmick, disse eu, você lembra que me disse, antes de eu ir pela
primeira vez à casa do senhor Jaggers, que prestasse atenção na governanta?
Eu disse isso?, ele retrucou. É verdade, disse, sim. Mas que diabo, ele
acrescentou de repente, eu sei que disse isso. Pelo visto, ainda não estou
inteiramente desamarrado.
Você disse que ela era uma fera selvagem domada.
E o senhor, como a descreveria?
Tal como você. Como foi que o senhor Jaggers a domou, Wemmick?
Isso é segredo dele. Ela trabalha para ele há muitos anos.
Eu queria que você me contasse a história dela. Tenho muito interesse.
Você sabe que o que dizemos um ao outro fica entre nós.
Bem, respondeu Wemmick, não sei a história dela quer dizer, não sei a
história toda. Mas o que sei, vou lhe contar. Afinal, estamos falando em caráter
privado e pessoal, é claro.
É claro.
Há cerca de vinte anos, essa mulher foi julgada em Old Bailey por
assassinato, e foi absolvida. Era uma moça muito bonita, e creio que tem um
pouco de sangue cigano. Seja como for, o sangue dela ficava bastante quente
quando ela se exaltava, como o senhor pode imaginar.
Mas ela foi absolvida.
O senhor Jaggers foi quem a defendeu, prosseguiu Wemmick, com um
olhar carregado de significados, e ele trabalhou no caso de uma maneira
espantosa. Era um caso considerado perdido, e ele ainda estava no começo da
carreira, e a defesa que realizou foi admirada por todos; aliás, quase se pode
dizer que foi assim que ele conquistou sua reputação. Ele mesmo ia à delegacia,
todos os dias, por um bom tempo, tentando evitar até mesmo que ela fosse detida;
e no julgamento, não podendo atuar em sua defesa pessoalmente, auxiliou o
advogado de defesa, e como todos sabiam foi ele que lhe soprou tudo. A
vítima era uma mulher; uma mulher uns bons dez anos mais velha, muito maior,
e muito, muito mais forte. Era um caso de ciúmes. As duas viviam na
vagabundagem, e a nossa conhecida de Gerrard-street havia se casado muito
moça, casado na igreja verde1 (como se diz), com um vagabundo, e estava
furiosa de ciúmes. A mulher assassinada bem mais velha que o homem, aliás
foi encontrada morta num celeiro perto de Hounslow Heath. Tinha havido um
conflito violento, talvez uma luta. Ela estava cheia de contusões, arranhões e
cortes, e fora agarrada pelo pescoço e estrangulada. Ora, não havia indícios
razoáveis que apontassem para nenhuma outra pessoa que não essa mulher, e foi
com base no argumento de que para ela teria sido impossível cometer o crime
que o senhor Jaggers fundou sua defesa. O senhor pode ter certeza, disse
Wemmick, tocando-me na manga, que naquela ocasião ele não pôs tanta ênfase
na força das mãos dela, embora faça isso às vezes agora.
Contei a Wemmick que ele fizera questão de exibir a nós os punhos de Molly
naquele jantar.
Pois bem!, prosseguiu Wemmick. Aconteceu o senhor entende?
aconteceu que essa mulher foi vestida com muito cuidado desde o momento em
que foi presa, de modo que parecesse bem mais fraca do que era na verdade;
em particular, as mangas de seu vestido eram sempre feitas de tal modo que os
braços parecessem bem delicados. Em seu corpo havia apenas umas poucas
contusões como é de se esperar numa mulher sem eira nem beira mas as
costas de suas mãos estavam arranhadas, e a pergunta era esta: seriam marcas
de unhas? Pois bem, o senhor Jaggers mostrou que ela havia atravessado uma
quantidade de sarças que não chegavam até a altura de seu rosto, mas que ela
não poderia ter atravessado sem usar as mãos; de fato, as sarças em questão
foram examinadas e verificou-se que alguém havia passado por elas, e foram
encontrados pedacinhos de seu vestido e pequenas marcas de sangue aqui e ali.
Mas o lance mais ousado dele foi este: para provar que ela estava com ciúmes,
alegou-se que ela, mais ou menos na época do assassinato, havia num momento
de loucura matado sua própria filha, cujo pai era o tal homem uma criança de
três anos de idade para vingar-se dele. O raciocínio do senhor Jaggers foi este:
Afirmamos que essas marcas não foram feitas por unhas, e sim por espinhos de
sarças, e mostramos as sarças. Os senhores afirmam que são marcas de unhas, e
lançam a hipótese de que ela matou a criança. É preciso aceitar todas as
consequências dessa hipótese. Pelo que sabemos, é possível que ela tenha matado
a criança, e que a criança, agarrando-se a ela, tenha arranhado suas mãos. E
então? Os senhores não estão acusando-a de ter matado a criança. Por que não o
fazem? Quanto a este caso, se de fato há arranhões, afirmamos que, pelo que
sabemos, talvez os senhores tenham uma explicação para eles, pressupondo-se,
para fins de argumentação, que não foram os senhores que os inventaram?. Em
resumo, disse Wemmick, o senhor Jaggers foi demais para os jurados, e eles
entregaram os pontos.
Ela trabalha para ele desde então?
Trabalha; mas não é só isso, disse Wemmick. Ela começou a trabalhar
para ele assim que foi absolvida, domada tal como está agora. De lá para cá ela
foi aprendendo a fazer uma coisa e outra em seu ofício de governanta, mas ficou
domesticada desde o começo.
Então a criança era uma menina?
Dizem que era.
Você não tem mais nada a me dizer por hoje?
Nada. Recebi sua carta e já a destruí. Nada.
Despedimo-nos cordialmente e fui para casa, com questões novas a pensar,
embora os pensamentos antigos não me dessem trégua.
10
Pondo no bolso o bilhete da sra. Havisham, para que me servisse de credencial
que justificasse minha volta à Casa Satis tão cedo, pois por um capricho ela bem
poderia manifestar surpresa ao me ver, voltei lá de carruagem no dia seguinte.
Porém, saltei numa estalagem no meio do caminho, onde fiz o desjejum, e segui
a pé, porque meu objetivo era chegar à aldeia de modo discreto e pela via menos
esperada, e partir de lá da mesma maneira.
A luz do dia já começava a diminuir quando passei pelos pátios vazios, onde
meus passos ecoavam, atrás da High-street. Os recantos nas ruínas onde outrora
os monges tinham seus refeitórios e jardins, e onde as paredes fortes agora
serviam a humildes galpões e estrebarias, estavam quase tão silenciosos quanto
os velhos monges em suas sepulturas. Os sinos da catedral agora tinham um som
ao mesmo tempo mais triste e mais remoto para mim, enquanto eu apressava o
passo, evitando ser observado, do que jamais tiveram antes; assim também os
acordes do velho órgão soavam em meus ouvidos como música fúnebre; e as
gralhas, que revoavam em torno da torre cinzenta e pousavam nas árvores altas,
despidas de folhas, do jardim do priorado, pareciam me dizer que o lugar estava
mudado, e que Estella partira de lá para sempre.
Uma mulher idosa, que eu já vira antes e sabia ser uma das criadas que
moravam no prédio anexo atrás do pátio dos fundos, veio abrir o portão. A vela
acesa estava no corredor escuro, tal como antigamente, e eu peguei-a para subir
a escada sozinho. A sra. Havisham não estava em seu quarto, porém na sala
maior do outro lado do patamar da escada. Depois de bater à porta em vão, abria
e olhei para dentro, e vi a anciã sentada numa cadeira rota, bem perto da
lareira cheia de cinzas, imersa na contemplação do fogo.
Como fizera tantas vezes antes, entrei e parei com a mão no velho console,
onde ela pudesse me ver quando levantasse a vista. Havia nela um ar de solidão
absoluta que me inspiraria piedade, mesmo se ela houvesse voluntariamente me
causado um sofrimento mais profundo do que qualquer mal de que eu pudesse
acusá-la. Enquanto eu a olhava cheio de compaixão, pensando que, com o passar
do tempo, também eu viera a me tornar parte das esperanças destruídas daquela
casa, seu olhar pousou em mim. Ela olhou-me fixamente e disse, em voz baixa:
É ele, mesmo!.
Sou eu, o Pip. O senhor Jaggers me deu o seu bilhete ontem, e vim na
mesma hora.
Obrigada. Obrigada.
Peguei outra cadeira rota, coloquei-a perto do fogo e sentei-me, percebendo
uma expressão nova no rosto da sra. Havisham, como se ela estivesse com medo
de mim.
Quero retomar, disse ela, aquele assunto que levantaste da última vez que
vieste aqui, e mostrar-te que não sou totalmente insensível. Mas talvez não possas
mais acreditar, agora, que há alguma coisa de humano no meu coração?
Quando respondi com algumas palavras tranquilizadoras, ela estendeu a mão
direita trêmula, como se fosse me tocar; porém recolheu-a antes que eu
compreendesse o sentido do gesto, ou decidisse como reagir a ele.
Tu me disseste, falando por teu amigo, que podias me mostrar como fazer
algo de bom e útil. Algo que gostarias que fosse feito, não é?
Algo que eu gostaria muito que fosse feito.
O que é?
Comecei a contar-lhe a história secreta da sociedade de Herbert. Não havia
avançado muito na narrativa quando julguei perceber, com base no olhar de
minha interlocutora, que ela estava pensando mais em mim do que no que eu
estava dizendo. Meu juízo pareceu estar correto, pois quando parei de falar foi só
depois de um longo intervalo que ela demonstrou ter consciência da interrupção.
Tu te calaste, perguntou-me então, de novo parecendo ter medo de mim,
porque me odeias tanto que nem consegues falar comigo?
Não, não, respondi; mas como a senhora pode pensar uma coisa dessas!
Calei-me porque achei que a senhora não estava prestando atenção nas minhas
palavras.
Talvez eu não estivesse, mesmo, disse ela, levando a mão à cabeça.
Começa de novo, e deixa-me olhar para outra coisa. Espera! Agora podes
falar.
Pôs a mão na bengala, com o jeito decidido que às vezes assumia por força
do hábito, e ficou a olhar para o fogo com uma expressão enfática, de quem se
obriga a prestar atenção. Dei prosseguimento a minha explanação, e disse-lhe de
que modo eu tivera esperanças de completar a transação com base em meus
próprios recursos, quanto a isso, porém, me frustrara. Essa parte da história
(lembrei-lhe) envolvia questões sobre as quais eu nada podia dizer, pois faziam
parte de segredos importantes de outra pessoa.
Pois bem!, exclamou ela, acenando com a cabeça, mas sem olhar para
mim. E quanto falta para completar a quantia?
Eu temia responder a essa pergunta, pois a quantia me parecia vultosa.
Novecentas libras.
Se eu te der o dinheiro necessário para esse fim, tu guardarás meu segredo
tal como guardas o teu?
Com a mesma fidelidade.
E ficarás mais tranquilo?
Muito mais.
Estás muito infeliz agora?
Fez a pergunta ainda sem olhar para mim, mas com um tom involuntário de
comiseração. Não pude responder de imediato, porque minha voz falhou. Ela
pousou o braço esquerdo no castão da bengala e lentamente encostou a testa nele.
Não estou de modo algum feliz, senhora Havisham, mas tenho outros
motivos para sofrer além dos que a senhora conhece. São os tais segredos a que
me referi.
Depois de algum tempo, ela levantou a cabeça e voltou a olhar para o fogo.
É generoso da tua parte me dizer que tens outros motivos de infelicidade. É
mesmo verdade?
A pura verdade.
Então só posso ajudar-te, Pip, ajudando teu amigo? Uma vez feito isso, não
há nada que eu possa fazer por ti?
Nada. Agradeço-lhe a pergunta. Agradeço-lhe ainda mais o tom em que foi
feita a pergunta. Mas não há nada, não.
Após um instante, ela levantou-se e correu os olhos pela sala devastada,
procurando algo com que escrever. Nada encontrou, tirou do bolso um conjunto
de pequenas lousas de marfim,1 encadernadas em ouro embaçado, e nelas
escreveu com um lápis guardado num estojo de ouro embaçado que ela usava
pendurado ao pescoço.
Ainda tens relações de amizade com o senhor Jaggers?
Tenho, sim. Ontem mesmo jantei com ele.
Isto é uma autorização para que ele te dê o dinheiro que tu cederás,
irresponsavelmente, a teu amigo. Não guardo dinheiro aqui, mas se preferes que
o senhor Jaggers não fique sabendo de nada, posso enviá-lo a ti.
Obrigado, senhora Havisham, não faço nenhuma objeção a receber o
dinheiro através dele.
Ela leu para mim o que havia escrito: o texto era direto e claro, fora escrito
com a intenção evidente de me isentar de qualquer suspeita de que o dinheiro
viesse a ser utilizado em meu proveito. Ela entregou-me as lousas, e sua mão
tremeu de novo, e tremeu ainda mais quando tirou do pescoço o cordão a que
estava preso o lápis e o pôs na minha mão. Fez tudo isso sem olhar para mim.
Meu nome está na primeira folha. Se puderes escrever embaixo do meu
nome Eu a perdoo, ainda que muito depois de meu coração partido virar pó
eu te peço que o faça.
Ah, senhora Havisham, disse eu, posso fazê-lo agora mesmo. Erros sérios
foram cometidos; vivi às cegas e sem rumo, e eu próprio preciso de perdão e
orientação, tanto que não posso guardar rancor da senhora.
Ela voltou o rosto para mim pela primeira vez desde que o desviara, quando
então, para meu espanto e, devo acrescentar, para meu pavor caiu de
joelhos a meus pés; com as mãos unidas levantadas para mim tal como, quando
seu pobre coração era jovem, fresco e intacto, certamente tantas vezes levantouas
para o céu, ajoelhada junto à mãe.
Vê-la, com os cabelos encanecidos e o rosto engelhado, ajoelhada a meus
pés fez com que um tremor me percorresse todo o corpo. Implorei-lhe que se
levantasse, e abracei-a para ajudá-la; porém ela limitou-se a apertar a minha
mão que estava mais a seu alcance e, baixando a cabeça, pôs-se a chorar. Eu
jamais a vira verter uma única lágrima que fosse, e, na esperança de que o alívio
lhe fizesse bem, curvei-me sobre ela sem nada dizer. Ela não estava mais
ajoelhada, porém continuava no chão.
Ah!, exclamava, em desespero. O que foi que eu fiz? O que foi que eu
fiz?
Se a senhora quer saber o que fez de mau para mim, posso lhe responder:
muito pouco. Eu teria amado a Estella em quaisquer circunstâncias. Ela casouse?
Casou-se.
A pergunta era desnecessária, pois havia naquela casa desolada um toque
novo de desolação que já a respondia.
O que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz? Ela retorcia as mãos e
amassava os cabelos brancos, e repetia a frase sem parar. O que foi que eu
fiz?
Eu não sabia como responder, nem como consolá-la. Que ela fizera uma
coisa terrível ao tomar uma criança impressionável e moldá-la, de modo a
vingar seu ressentimento feroz, seu afeto rejeitado e seu orgulho ferido, disso eu
sabia muito bem. Mas que, ao expulsar da casa a luz do dia, ela expulsara uma
infinidade de coisas adicionais; que, na sua reclusão, ela se afastara de mil
influências naturais que poderiam tê-la ajudado a se recuperar; que seu espírito,
ao remoer suas mágoas na solidão, se tornara doentio, como acontece com todo
e qualquer espírito que faça o contrário do que ordena seu Criador disso eu
também sabia. E como seria possível a mim contemplá-la sem compaixão,
vendo-a punida na ruína em que se encontrava, profundamente inadaptada
àquele mundo em que fora colocada, na vaidade do sofrimento que se tornara
uma mania dominante, como a vaidade da penitência, a vaidade do remorso, a
vaidade da humildade, e as outras vaidades monstruosas que vêm assolando este
mundo?
Até o momento em que tu falaste com ela, e até o momento em que me vi
num espelho que me mostrava o que eu própria sentira uma vez, eu não sabia o
que havia feito. O que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz? E assim por diante,
vinte, cinquenta vezes mais: o que fizera ela?
Senhora Havisham, disse eu, quando ela se aquietou, quanto a mim, sua
consciência pode ficar em paz. Mas Estella é um caso diferente, e se a senhora
puder desfazer o mínimo que seja do mal que fez ao afastá-la de uma parte de
sua própria natureza, isso será melhor do que passar cem anos lamentando o
passado.
Eu sei, eu sei. Mas, Pip meu querido Pip! Havia uma nota de
compaixão feminina verdadeira naquele novo afeto. Meu querido Pip!
Acredita-me: quando ela veio a mim, de início eu queria salvá-la de um
sofrimento igual ao meu. De início, era só isso que eu queria.
Bem!, exclamei. Espero que sim.
Mas à medida que ela foi crescendo, e que percebi que haveria de ficar
muito bonita, pouco a pouco comecei a fazer coisa pior, e com meus elogios,
com minhas joias, com meus ensinamentos, e com minha imagem diante dela
para servir de alerta e fortalecer minhas lições, roubei-lhe o coração e pus em
lugar dele uma pedra de gelo.
Seria melhor, não pude evitar o comentário, deixá-la com um coração
natural, mesmo que viesse a ser ferido ou partido.
Ao ouvir isso, a sra. Havisham dirigiu-me um olhar transtornado por alguns
instantes, e logo voltou a exclamar: O que foi que eu fiz?.
E insistiu: Se soubesses toda a minha história, terias alguma compaixão por
mim e me entenderias melhor.
Senhora Havisham, respondi, do modo mais delicado de que era capaz,
creio poder afirmar que já conheço a sua história, desde a primeira vez que vim
aqui. Ela me inspirou muita comiseração, e creio que a compreendo, e
compreendo as influências que exerceu. O que se passou entre nós me dá
alguma desculpa para lhe fazer uma pergunta sobre a Estella? Não tal como ela é
hoje, mas tal como era quando chegou aqui.
A anciã estava sentada no chão, com os braços sobre a cadeira rota, e a
cabeça apoiada neles. Ela olhava-me nos olhos quando eu disse isso, e respondeu:
Faz tua pergunta.
Quem é a mãe da Estella?
Ela fez que não com a cabeça.
A senhora não sabe?
Ela repetiu o gesto.
Mas foi o senhor Jaggers que a trouxe aqui, ou apenas a mandou para cá?
Ele a trouxe.
A senhora poderia me dizer como foi que a coisa aconteceu?
Ela respondeu num sussurro cauteloso: Eu já estava encerrada nesses
cômodos há muito tempo (não sei quanto tempo; bem sabes quais são as horas
que os relógios daqui marcam), quando eu lhe disse que queria uma menininha
para criar e amar, e salvar-me de meu destino. Eu o vira pela primeira vez
quando o chamei para transformar esta casa numa desolação; eu vira seu nome
nos jornais, antes de me afastar do mundo. Ele disse-me que procuraria uma
órfã para mim. Uma noite ele a trouxe adormecida, e dei a ela o nome de
Estella.
Posso lhe perguntar que idade ela teria?
Dois ou três anos. Ela própria nada sabe, apenas que se tornou órfã e que eu
a adotei.
Tamanha era a minha convicção de que Molly era a mãe de Estella que eu
próprio não precisava de provas que me persuadissem. Mas para qualquer um,
pensei então, a ligação agora estava clara e direta.
De que adiantaria prolongar aquela entrevista? Eu havia obtido a ajuda para
Herbert, a sra. Havisham me dissera tudo que sabia a respeito de Estella, e eu
dissera e fizera o possível para apaziguar sua consciência. Não é preciso relatar
as palavras adicionais com que nos despedimos, o fato é que nos despedimos.
Já anoitecia quando desci a escada e saí para o ar natural. Disse à mulher
que abrira o portão para mim que não precisaria dela por enquanto, pois
pretendia caminhar pela propriedade antes de ir embora. Pois tinha eu o
pressentimento de que nunca mais haveria de voltar lá, e senti que a luz do
crepúsculo era a mais adequada para minha última visão do lugar.
Atravessando a selva de barris pela qual eu caminhara anos atrás, e na qual
anos de chuva haviam caído, fazendo a madeira apodrecer em muitos lugares, e
deixando pequeninos pântanos e poças dágua nos que ainda estavam em pé, fui
caminhando rumo ao jardim em ruínas. Percorri-o todo, passando pelo recanto
onde eu e Herbert havíamos lutado, passando pelos caminhos que eu e Estella
havíamos trilhado. Tudo tão frio, tão deserto, tão melancólico!
Voltando pela cervejaria, levantei o trinco enferrujado de uma portinha que
a ligava ao jardim, e entrei. Ia eu sair pela outra porta agora difícil de abrir,
pois a madeira úmida estava inchada, as dobradiças estavam cedendo e a soleira
estava coberta de cogumelos quando me virei e olhei para trás. Uma
associação infantil voltou-me com uma força extraordinária no momento em
que esbocei o gesto, e imaginei por um momento que via a sra. Havisham
dependurada na trave. Tão forte foi a impressão que fiquei parado debaixo da
trave, com um tremor a percorrer-me o corpo dos pés à cabeça, até me
convencer de que era apenas uma fantasia mesmo assim, fui até lá de um
salto.O que havia de lúgubre no lugar e na hora, e o terror enorme proporcionado
por essa ilusão, ainda que momentânea, me proporcionaram um medo
indescritível quando saí pelo portão de madeira onde uma vez eu ficara a puxar
os cabelos depois que Estella feriu meu coração. Chegando ao pátio da frente,
fiquei sem saber se chamava a mulher para que ela abrisse o portão da frente,
cuja chave estava em sua posse, ou se primeiro voltava à sala para ver se a sra.
Havisham continuava tal como estava quando eu dela me despedira. Escolhi a
segunda alternativa e subi a escada.
Pus a cabeça dentro da sala onde eu a deixara, e vi-a sentada na cadeira rota
junto à lareira, de costas para mim. No momento em que eu recolhia minha
cabeça para ir-me embora em silêncio, vi um clarão súbito. No mesmo
momento, vi-a correndo em minha direção, aos gritos, com um torvelinho de
fogo à sua volta, as chamas elevando-se acima dela a uma altura equivalente a
sua estatura.
Eu estava usando um casaco espesso, e levava no braço outro sobretudo
pesado. Sei que me livrei deles, fui até ela, deitei-a no chão e cobria-a com os
casacos; que com o mesmo objetivo arranquei da mesa a grande toalha,
arrastando para o chão o monte de podridão que havia no meio dela, e todas as
criaturas horrendas que ali se abrigavam; que ficamos a lutar no chão como se
fôssemos inimigos mortais, e quanto mais eu a cobria, com mais ferocidade ela
gritava e tentava livrar-se de mim; sei que tudo isso ocorreu com base no
resultado de meus atos, mas não a partir de nada que eu sentisse, nem pensasse,
nem soubesse que fiz. Quando dei por mim, estava deitado com ela no chão junto
da mesa enorme, com fagulhas ainda flutuando no ar enfumaçado, restos do que
fora seu desbotado vestido de noiva.
Então olhei à minha volta e vi as baratas e aranhas assustadas fugindo pelo
chão, e as criadas entrando na sala aos gritos. Eu continuava a segurá-la com
força como se ela fosse uma prisioneira que quisesse fugir; e creio que eu
próprio não sabia quem ela era, nem o motivo pelo qual havíamos lutado, nem
que ela havia pegado fogo, nem que as chamas estavam extintas, até o momento
em que vi os farrapos que haviam sido as roupas dela, não mais ardendo, porém
caindo, numa chuva negra, a nosso redor.
A anciã estava desacordada; achei melhor não removê-la, nem sequer tocar
nela. Pedimos ajuda, e segurei-a até que nosso pedido fosse atendido, como se
acreditasse insensatamente (e acho que eu de fato acreditava) que se a soltasse o
fogo recomeçaria e a consumiria. Quando me levantei, com a chegada do
médico e outras pessoas, verifiquei atônito que minhas duas mãos estavam
queimadas, pois até então eu não sentira nada.
O médico examinou-a e afirmou que ela sofrera queimaduras sérias, mas
que seu estado não era de modo algum desesperador; o principal perigo era o
choque nervoso. Por ordem do médico, sua cama foi levada para a sala e
colocada sobre a mesa, a qual era bem adequada para nela cuidarem de suas
feridas. Quando voltei a vê-la, uma hora depois, ela estava no exato lugar onde
eu a vira bater sua bengala, dizendo que era ali que seu corpo seria estendido.
Embora de seu vestido não sobrasse nenhum vestígio, segundo me disseram,
ela ainda guardava algo de sua aparência de noiva espectral; pois haviam-na
recoberto de algodão até o pescoço; assim, deitada sob um lençol branco de
algodão, ela ainda preservava o ar fantasmagórico de algo que existira, mas
sofrera uma mudança.
Fiquei sabendo, através da criadagem, que Estella estava em Paris, e o
médico prometeu-me que mandaria uma carta para ela pelo próximo correio.
Eu próprio encarreguei-me de notificar os parentes da sra. Havisham; decidi que
avisaria apenas o sr. Matthew Pocket, e deixaria que ele resolvesse quem mais
receberia a notícia. Foi o que fiz no dia seguinte, através de Herbert, tão logo
voltei para a aldeia.
Naquela noite, houve um momento em que ela falou de modo equilibrado
sobre o que havia acontecido, ainda que com uma vivacidade terrível. Por volta
de meia-noite começou a variar, e a partir daí passou a repetir incessantemente,
num tom grave e em voz baixa: O que foi que eu fiz?. E depois: De início eu
queria salvá-la de um sofrimento igual ao meu. E depois: Toma o lápis e
escreve embaixo do meu nome: Eu a perdoo!. Nunca mudava a ordem dessas
três frases, mas por vezes omitia uma palavra numa delas; jamais acrescentava
nenhuma palavra, porém deixava um espaço em branco e passava para a
palavra seguinte.
Como eu nada mais poderia fazer ali, e como tinha, mais perto de minha
casa, outro motivo sério para preocupações e temores que nem mesmo o
desvario da sra. Havisham conseguia me fazer esquecer, resolvi no meio da noite
que voltaria na manhã seguinte pela primeira diligência: caminharia mais de um
quilômetro e tomaria a carruagem já longe da aldeia. Por volta das seis da
manhã, pois, debrucei-me sobre ela e encostei meus lábios nos seus, no momento
exato em que eles diziam, sem se deterem ao serem tocados: Toma o lápis e
escreve embaixo do meu nome: Eu a perdoo!.
11
Minhas mãos tinham sido pensadas duas ou três vezes durante a noite, e mais
uma vez pela manhã. Meu braço esquerdo estava bem queimado até a altura do
cotovelo, e com menos gravidade até o ombro; doía muito, porém as chamas se
haviam fixado naquela direção, de modo que poderia ter sido pior. Minha mão
direita não estava tão queimada a ponto de eu não poder mexer os dedos.
Também estava com curativos, é claro, mas as bandagens incomodavam menos
do que as da mão e do braço esquerdo, que eu precisava apoiar numa tipoia; fui
obrigado a usar o casaco jogado sobre os ombros como um manto, solto nos
ombros e preso ao pescoço. Meu cabelo fora atingido pelo fogo, mas não minha
cabeça nem meu rosto.
Quando Herbert voltou de Hammersmith, onde foi falar com o pai, voltou
para nossos aposentos e passou o dia cuidando de mim. Revelou-se o mais
dedicado dos enfermeiros: nas horas certas trocava os curativos, mergulhava-os
no líquido refrigerante que era mantido à mão e recolocava-os, com uma ternura
e uma paciência que me tornaram muito grato.
De início, enquanto eu jazia inerte no sofá, era para mim dolorosamente
difícil, até impossível, livrar-me da impressão do brilho das chamas, sua avidez e
seu rugido, e o terrível cheiro de queimado. Quando eu cochilava por um minuto,
logo era despertado pelos gritos da sra. Havisham, vendo-a a correr em minha
direção ardendo em chamas. Esse sofrimento mental era muito mais difícil de
combater do que qualquer dor física que eu sentisse; e Herbert, percebendo esse
fato, fazia o possível para me distrair.
Nem eu nem ele falávamos a respeito do barco, porém ambos pensávamos
no assunto. Isso ficou claro porque evitávamos o tema, e pelo nosso acordo
tácito no sentido de fazer com que eu pudesse voltar a usar as mãos em horas,
e não em semanas.
A primeira pergunta que fiz a Herbert tão logo o vi foi, é claro, se tudo estava
bem em Mill Pond Bank. Como respondeu na afirmativa, com total confiança e
bom humor, só retomamos a questão ao final do dia. Porém nessa ocasião, ao
trocar os curativos, valendo-se mais da luz do fogo do que da luz do dia, ele
próprio puxou o assunto.
Conversei com o Provis ontem à noite, Handel, por umas boas duas horas.
Onde estava a Clara?
A minha querida Clara!, disse Herbert. Ela passou a noite toda subindo e
descendo, cuidando do Gruffandgrim. O velho começava a bater no chão assim
que ela saía de perto dele. Mas acho que ele já está perto do fim. Com todo
aquele rum e aquela pimenta e a pimenta e o rum ele não vai ficar batendo
no chão por muito mais tempo.
E então te casarás com ela, Herbert?
De que outra maneira eu posso cuidar dessa menina querida? Estende o
braço no encosto do sofá, meu caro, que eu me sento aqui e tiro o curativo tão
devagar que nem hás de sentir quando ele sair. Eu estava falando do Provis.
Sabes, Handel, que ele está cada vez melhor?
Eu te disse que achei que algo nele havia amolecido na última vez que o vi.
É verdade. E tinhas razão. Ontem ele estava muito comunicativo e contoume
mais sobre sua vida. Lembras que ele havia começado a falar, aqui em casa,
sobre uma mulher que lhe dera muito trabalho. Machuquei-te?
Eu fizera um movimento súbito, mas não por causa do curativo, e sim por
efeito das palavras de Herbert.
Eu havia me esquecido disso, Herbert, mas agora que o mencionas,
lembro-me, sim.
Pois bem, ele me contou esse trecho de sua vida, e a história é negra e
assustadora. Quer que te conte? Ou isso seria mais uma preocupação para ti
agora?
Conta-me, por favor. Conta-me tudo.
Herbert inclinou-se para a frente a fim de olhar-me mais de perto, como se
minha resposta tivesse sido mais apressada ou mais ansiosa do que ele
antecipava. Tua cabeça não está quente?, perguntou, tocando-a.
Não, respondia. Conta-me o que Provis te disse, meu caro Herbert.
Ao que parece, começou Herbert, este curativo saiu muito bem, e
agora vou pôr o refrescado de início dói, não é, meu caro? Mas logo fica
agradável ao que parece, a mulher era jovem, e ciumenta, e vingativa;
vingativa, Handel, ao grau máximo.
Ao grau máximo? Como assim?
A ponto de cometer assassinato. Está frio demais?
Não estou sentindo. Assassinato? Como foi? Quem ela assassinou?
Bem, o que ela fez talvez não mereça um nome tão terrível, disse Herbert,
mas ela foi a julgamento, e o sr. Jaggers a defendeu, e a reputação dessa defesa
foi o que fez seu nome chegar até o Provis. A vítima foi outra mulher, mais forte
que ela, e houve uma luta num celeiro. Quem provocou a luta, e quem tinha
razão, ou não tinha, não está claro; mas quanto ao resultado da luta não há dúvida,
pois a vítima foi encontrada estrangulada.
A mulher foi condenada?
Não; foi absolvida. Meu pobre Handel, eu te machuquei!
Pelo contrário, és muito cuidadoso, Herbert. Mas sim! O que mais?
A mulher que foi absolvida e o Provis, disse Herbert, tinham uma filha:
uma criancinha a quem o Provis era muitíssimo apegado. Na noite em que
apareceu estrangulada a vítima do ciúme dela, como te disse, a jovem esteve
antes com o Provis rapidamente e jurou-lhe que mataria a criança (a qual estava
com ela) e que ele nunca mais a veria; em seguida, desapareceu. Agora o
braço mais queimado está de novo bem acomodado na tipoia, e só falta a mão
direita, que é bem mais fácil. Para mim, é melhor trabalhar a essa luz do que a
uma luz mais forte, porque minha mão fica mais firme quando não vejo com
muita clareza essas queimaduras. Não achas que tua respiração está afetada,
meu caro? Pareces estar respirando rápido demais.
Pode ser, Herbert. A mulher cumpriu o juramento?
Agora vem o pior da história da vida do Provis. Ela cumpriu, sim.
Quer dizer, ele diz que ela cumpriu.
Mas é claro, meu caro, respondeu Herbert, num tom de surpresa, mais
uma vez se inclinando para me ver mais de perto. É ele que diz tudo. Não tenho
outras fontes.
Claro, claro.
Agora, prosseguiu Herbert, se ele havia maltratado a mãe da criança ou
não, isso o Provis não diz; mas ela passou quatro ou cinco anos da vida miserável,
que ele me relatou, ao seu lado, e ele parece ter sentido compaixão por ela, e ter
sido paciente com ela. Assim, temendo que fosse chamado a depor a respeito da
morte da criança, e portanto ser visto como o motivador do crime, ele escondeuse
(por mais sofresse com a morte da criança), ficou na sombra, como ele diz,
fora do alcance da justiça, e seu nome só veio à tona de modo muito vago, como
um certo Abel que teria sido a causa dos ciúmes. Depois de ser absolvida, a
mulher desapareceu, e assim Provis perdeu a criança e a mãe da criança.
Eu queria te perguntar
Só um momento, meu caro, insistiu Herbert, que já estou terminando.
Aquele gênio do mal, o Compey son, o pior dos canalhas entre tantos canalhas,
sabendo que ele estava escondendo-se nessa época, e sabendo o que o levava a
esconder-se, é claro que a partir daí passou a utilizar o conhecimento desse fato
como uma maneira de mantê-lo na pobreza, e de explorá-lo ao máximo. Ficou
claro ontem à noite que foi isso que aumentou o ódio do Provis.
Eu queria saber, disse eu, exatamente, Herbert, se ele te disse, quando foi
que isso aconteceu?
Exatamente? Deixa-me pensar o que ele disse. As palavras que usou foram:
Bem uns vinte anos atrás, quase logo depois que eu comecei a trabalhar pro
Compey son. Que idade tinhas quando o encontraste no cemitério?
Creio que tinha sete anos.
Certo. A coisa havia acontecido três ou quatro anos antes, segundo ele, e ao
te ver ele pensou na menininha que perdera em circunstâncias tão trágicas, a
qual estaria mais ou menos com a tua idade.
Herbert, disse eu, após uma pausa breve, num tom ansioso, podes me ver
melhor à luz da janela ou à luz do fogo?
À luz do fogo, respondeu Herbert, aproximando-se de mim outra vez.
Olha para mim.
Estou olhando, meu caro.
Põe a mão em mim.
Pronto.
Não te pareço estar com febre? Minha cabeça parece estar perturbada pelo
acidente de ontem?
N-não, meu caro, disse Herbert, após me examinar por alguns instantes.
Estás um tanto nervoso, mas não fora de ti.
Sim, estou perfeitamente lúcido. E o homem que estamos escondendo é o
pai de Estella.
12
Que objetivo eu tinha em vista quando me empenhava para descobrir quem
eram os pais de Estella, eu não saberia dizer. Em breve ficará claro que a
pergunta só se colocou com clareza a mim quando ela me foi formulada por
alguém mais sábio do que eu.
Porém, quando eu e Herbert tivemos essa conversa importante, fui
dominado pela convicção febril de que era importante investigar a questão a
fundo de que eu não deveria deixá-la de lado, e sim procurar o sr. Jaggers e
chegar à verdade nua e crua. Na verdade, não sei se sentia que fazia isso por
amor a Estella ou se meu objetivo era transferir para o homem cuja preservação
tanto me preocupava alguns vestígios do interesse romântico que há tanto tempo
eu nutria por ela. Talvez essa segunda possibilidade seja a que está mais próxima
à verdade.
Seja como for, sentia-me compelido a ir à Gerrard-street naquela noite.
Apenas o argumento de Herbert segundo o qual, se eu fosse, provavelmente teria
de ficar de cama depois, quando a segurança do nosso fugitivo dependia de mim,
teve o efeito de conter minha impaciência. Foi preciso deixar mais do que claro,
e repetir muitas vezes, que acontecesse o que acontecesse eu iria visitar o sr.
Jaggers no dia seguinte, para que eu por fim concordasse em permanecer em
repouso, a fim de que ele cuidasse de minhas feridas. Na manhã seguinte, bem
cedo, saímos juntos, e na esquina de Giltspur-street com Smithfield deixei que
Herbert fosse a seu escritório na City enquanto eu seguia para Little Britain.
Periodicamente, o sr. Jaggers e Wemmick examinavam as contas da firma,
verificavam os recibos e organizavam tudo. Nessas ocasiões, Wemmick levava
seus livros e papéis para a sala do sr. Jaggers, e um dos escreventes do segundo
andar ia para a antessala. Ao deparar com um desses funcionários ocupando o
posto de Wemmick, compreendi o que estava acontecendo; porém não lamentei
que o sr. Jaggers e Wemmick estivessem juntos, pois nessa oportunidade
Wemmick ficaria sabendo que eu não dissera nada que o comprometesse.
Fui favorecido pela minha aparência, o braço na tipoia e o casaco solto sobre
os ombros. Embora eu tivesse enviado ao sr. Jaggers um relato sucinto do
acidente tão logo cheguei a Londres, fui obrigado a lhe dar todos os detalhes; por
esse motivo nossa conversa foi menos seca e dura, e menos regulada pelas
convenções jurídicas, do que costumava ocorrer. Enquanto eu fazia meu relato, o
sr. Jaggers permaneceu em pé junto à lareira, como de hábito. Wemmick, em
sua cadeira, olhava para mim fixamente, as mãos enfiadas nos bolsos da calça, a
caneta presa na horizontal em sua caixa de correio. As duas máscaras brutais,
que na minha mente estavam sempre associadas às nossas conversas oficiais,
pareciam estar perguntando a si próprias se não estariam sentindo cheiro de
queimado.
Finda a minha narrativa, e respondidas todas as perguntas que me foram
feitas, apresentei o documento da sra. Havisham que me autorizava a receber as
novecentas libras para Herbert. Os olhos do sr. Jaggers afundaram-se um pouco
mais em suas órbitas quando lhe entreguei as lousas, mas logo ele as passou a
Wemmick, dizendo-lhe que preparasse o cheque para que ele o assinasse. Fiquei
olhando para Wemmick enquanto ele obedecia, e o sr. Jaggers, equilibrando-se e
balançando-se sobre suas botas bem engraxadas, ficou a olhar para mim.
Lamento, Pip, disse ele, quando pus o cheque no bolso, depois que ele o
assinou, não fazermos nada por você.
A senhora Havisham teve a bondade de me perguntar, retruquei, se ela
não podia fazer algo por mim, e respondi-lhe que não.
Cada um cuida de seus interesses, disse o sr. Jaggers. E percebi que os
lábios de Wemmick formavam a expressão valores portáteis.
Eu não teria dito não a ela se fosse você, insistiu o sr. Jaggers; mas cada
um é que sabe quais são seus interesses.
Os interesses de cada um, disse Wemmick, em tom de reprovação, são
os valores portáteis.
Pensando que chegara o momento de levantar a questão que me interessava,
virei-me para o sr. Jaggers:
Mas fiz um pedido à senhora Havisham, sim. Pedi-lhe que me desse
algumas informações a respeito de sua filha adotiva, e ela me disse tudo que
sabia.
É mesmo?, perguntou o sr. Jaggers, inclinando-se para a frente, olhando
para as botas e em seguida empertigando-se. Ah! Creio que eu não teria feito
isso, se eu fosse a senhora Havisham. Mas ela deve saber melhor do que
ninguém quais são os interesses dela.
Sei mais sobre a história da filha adotiva da senhora Havisham do que a
própria senhora Havisham sabe. Sei quem é a mãe dela.
O sr. Jaggers dirigiu-me um olhar inquisidor e repetiu: A mãe dela?.
Vi a mãe dela nos últimos três dias.
Sim?, exclamou o sr. Jaggers.
E o senhor também a viu. E a viu ainda mais recentemente.
Sim?, exclamou o sr. Jaggers.
Talvez eu saiba mais sobre a história de Estella até mesmo do que o senhor
sabe, prossegui. Sei também quem é o pai dela.
Uma imobilidade dominou o sr. Jaggers ele era controlado demais para
mudar de expressão, mas não conseguiu evitar que seu estado de atenção o
imobilizasse o que para mim deixou claro que ele não sabia quem era o pai de
Estella. Isso eu já desconfiava, porque Provis dissera (segundo me contara
Herbert) que havia ficado na sombra; liguei essa informação ao fato de que ele
próprio só se tornara cliente do sr. Jaggers cerca de quatro anos depois, quando
não teria mais motivo de revelar sua identidade. Porém antes eu não tinha
certeza de que o sr. Jaggers não sabia disso; agora não havia mais dúvida.
Então você sabe quem é o pai da moça, Pip?, perguntou o sr. Jaggers.
Sei, sim, respondi. O nome dele é Provis ele é de Nova Gales do Sul.
O sr. Jaggers não pôde conter um movimento súbito de espanto ao ouvir
essas palavras. O movimento foi o menor, o mais cuidadosamente reprimido e
mais rapidamente contido que se pode imaginar, porém eu o percebi, embora o
sr. Jaggers o disfarçasse tirando do bolso o lenço. Como Wemmick recebeu essa
informação, não sei dizer, pois eu temia olhar para ele naquele momento, para
que o perceptivo sr. Jaggers não detectasse que houvera alguma comunicação
entre nós da qual ele não tivesse conhecimento.
E quais as provas, Pip?, perguntou o sr. Jaggers, com perfeita
tranquilidade, fazendo uma pausa antes de levar o lenço ao nariz. É o próprio
Provis que o diz?
Ele não diz nada, respondi, nem nunca disse, nem sequer sabe ou imagina
que sua filha esteja viva.
Pela primeira vez, o poderoso efeito do lenço não funcionou. Minha resposta
foi de tal modo inesperada que o sr. Jaggers colocou-o no bolso sem completar o
gesto habitual que começara a esboçar, cruzou os braços e olhou para mim com
uma atenção severa, embora o rosto permanecesse impassível.
Então lhe relatei tudo que sabia, e expliquei como obtivera essas
informações; apenas deixei que ele inferisse que fora através da sra. Havisham
que eu ficara sabendo o que na verdade me fora dito por Wemmick. Quanto a
esse detalhe, fui muito cuidadoso. Além disso, só olhei para Wemmick quando
terminei meu relato, e depois de permanecer por algum tempo encarando o sr.
Jaggers em silêncio. Quando por fim voltei o olhar para Wemmick, vi que ele
havia retirado a caneta de sua caixa de correio e estava concentrado em seu
trabalho.
Ah!, exclamou sr. Jaggers por fim, aproximando-se dos papéis da mesa.
Onde estávamos mesmo, Wemmick, quando o Pip entrou?
Mas recusei-me a ser despachado daquela maneira e dirigi a ele um apelo
passional, quase indignado, no sentido de que ele fosse mais franco e destemido
comigo. Lembrei-o das falsas esperanças de que eu fora vítima, o longo tempo
em que elas haviam perdurado, a descoberta que eu fizera; e aludi ao perigo que
me pesava na alma. Afirmei que eu certamente era uma pessoa que merecia
um pouco de confiança de sua parte, em troca da confiança nele que eu acabava
de manifestar. Afirmei que eu não o acusava de nada, nem nutria qualquer
sentimento de desconfiança em relação a ele, porém esperava dele alguma
confirmação. E se me perguntasse por que motivo eu queria tal confirmação, e
por que eu imaginava ter direito a ela, minha resposta era que, por menos
importância que ele desse a esses sonhos vãos, eu amara Estella profundamente
e por muito tempo, e que, embora a tivesse perdido e fosse obrigado a viver em
sofrimento, tudo que dizia respeito a ela ainda me importava mais do que
qualquer outra coisa no mundo. E vendo que o sr. Jaggers permanecia imóvel e
silencioso, aparentemente indiferente a meu apelo, voltei-me para Wemmick:
Wemmick, sei que você é um homem de bom coração. Estive na sua casa
agradável, conheci o seu velho pai e sei com que diversões inocentes e alegres
você descansa de sua vida profissional. Peço-lhe encarecidamente que diga uma
palavra em meu favor junto ao senhor Jaggers, e lhe mostre que, dadas todas as
circunstâncias, ele devia ser menos reservado comigo!.
Nunca vi dois homens se entreolharem com tamanho espanto quanto o
fizeram o sr. Jaggers e Wemmick depois dessa minha apóstrofe. De início,
cheguei a temer que Wemmick fosse imediatamente demitido; porém essa
preocupação se dissipou quando vi que o sr. Jaggers relaxava a ponto de quase
sorrir, e que Wemmick tornara-se mais ousado.
Que história é essa?, exclamou o sr. Jaggers. Você e o seu velho pai, e as
suas diversões inocentes?
Ora!, respondeu Wemmick. Se não trago essas coisas pra cá, qual o
problema?
Pip, disse o sr. Jaggers, pousando a mão no meu braço e sorrindo
abertamente, este homem deve ser o impostor mais ladino de toda a Londres.
Absolutamente, retrucou Wemmick, cada vez mais ousado. Creio que o
senhor é que é.
Mais uma vez, eles trocaram um olhar de espanto; ao que parecia, um
continuava temendo estar sendo passado para trás pelo outro.
Você tem uma casa agradável?, exclamou o sr. Jaggers.
Como ela não interfere no trabalho, respondeu Wemmick, não vejo
problema. Agora, eu olho para o senhor, e não me surpreenderia nem um pouco
se descobrisse que o senhor tem planos de ter também uma casa agradável, um
dia desses, quando se cansar de todo este trabalho.
O sr. Jaggers concordou com a cabeça, retrospectivamente, duas ou três
vezes, e chegou mesmo a suspirar. Pip, disse ele, não vamos falar sobre
sonhos vãos; você entende mais dessas coisas do que eu, tendo vivências bem
mais recentes dessa espécie. Mas quanto a essa outra questão, vou lhe apresentar
uma hipótese. Veja bem, não estou admitindo nada.
Ele esperou que eu declarasse estar ciente de ter ele afirmado
expressamente que não estava admitindo nada.
Pois então, Pip, prosseguiu o sr. Jaggers, imagine a seguinte hipótese.
Imagine que uma mulher, nas circunstâncias mencionadas por você, mantinha a
filha escondida e foi obrigada a comunicar o fato a seu advogado, quando ele
insistiu que era importante ele saber, até para atuar em sua defesa, qual a real
situação da criança. Imagine que ao mesmo tempo ele foi encarregado de
procurar uma criança para ser adotada por uma mulher rica e excêntrica.
Entendo, senhor.
Imagine que esse advogado vivia num ambiente marcado pelo mal, onde
ele via crianças serem geradas em grande número, fadadas à morte certa.
Imagine que ele com frequência via crianças sendo solenemente julgadas por
crimes em tribunais, sendo expostas ao público; imagine que ele sabia que era
comum elas serem presas, açoitadas, degredadas, abandonadas, expulsas, sob
todos os aspectos preparadas para a forca, crescendo para serem enforcadas.
Imagine que praticamente todas as crianças que ele via no seu cotidiano
profissional podiam ser encaradas como filhotes de peixes que mais cedo ou
mais tarde haveriam de cair em sua rede para serem processadas,
defendidas, renegadas, transformadas em órfãs, infernizadas de uma maneira ou
outra.
Entendo, senhor.
Imagine, Pip, que no meio de todas essas crianças havia uma menininha
bonita que era possível salvar; uma criança cujo pai a dava por morta e tinha
medo de informar-se a respeito dela; e a cuja mãe o advogado podia afirmar o
que se segue: Eu sei o que você fez, e como você o fez. Você chegou assim,
atacou a vítima assim, ela se defendeu assim, você fez isso e mais isso, e agiu
assim para evitar suspeitas. Eu levantei todos esses fatos, que agora relato a você.
Abra mão da criança, a menos que seja necessário apresentá-la para provar sua
inocência, caso em que ela será apresentada. Entregue a criança a mim, e eu
farei o possível para que você seja absolvida. Se eu conseguir, a criança também
será salva; se não conseguir, ainda assim sua filha estará a salvo. Imagine que
isso foi feito, e que a mulher foi absolvida.
Entendo o senhor perfeitamente.
Mas entende que não estou admitindo nada?
O senhor não está admitindo nada. E Wemmick repetiu: Não está
admitindo nada.
Imagine, Pip, que a paixão e o pavor de morrer tiveram o efeito de abalar
bastante a mente dessa mulher, e que, quando ela foi posta em liberdade, o medo
levou-a a afastar-se do mundo e recorrer ao advogado em busca de abrigo.
Imagine que ele lhe deu abrigo, e que reprimia sua natureza violenta e selvagem
toda vez que ela dava sinais de irromper, afirmando seu poder sobre ela
repetindo tudo o que sabia a seu respeito. Você entende esse caso hipotético?
Perfeitamente.
Imagine que a menina cresceu e casou-se por interesse. Que a mãe ainda
estava viva. Que o pai ainda estava vivo. Que a mãe e o pai, um sem saber do
outro, estavam vivendo a poucos quilômetros, ou até metros, de distância um do
outro. Que o segredo continuava a ser um segredo, só que você o descobrira.
Essa última hipótese, peço que a examine com muito cuidado.
É o que estou fazendo.
Peço a Wemmick que a examine também com muito cuidado.
E Wemmick respondeu: Eu também.
Em prol de quem você revelaria o segredo? Do pai? Creio que ele não
ganharia nada sabendo da mãe. Da mãe? Creio que, se ela tivesse cometido tal
ato, seria melhor ficar onde está. Da filha? Creio que não seria bom para ela que
o marido ficasse conhecendo a identidade de seus pais, pois ela seria arrastada
para a ignomínia, depois de vinte anos de liberdade, com uma boa probabilidade
de assim permanecer o resto da vida. Mas, se você imaginar também que amou
essa moça, Pip, e em torno dela teceu aqueles sonhos vãos que, em uma ou
outra ocasião, já brotaram nas cabeças de tantos homens, bem mais do que você
imagina, então eu lhe digo que seria melhor e você há de concordar comigo
quando pensar mais sobre o assunto cortar fora a sua mão esquerda envolta
em ataduras com a mão direita, também envolta em ataduras, e depois passar a
faca para o Wemmick, para que ele corte fora também a direita.
Olhei para Wemmick, que tinha o semblante muito sério. Ele levou o
indicador aos lábios num gesto grave. Eu fiz o mesmo. O sr. Jaggers fez o
mesmo. Mas sim, Wemmick, disse o sr. Jaggers então, no seu tom normal,
onde mesmo nós estávamos quando o senhor Pip entrou?
Permaneci por algum tempo vendo os dois a trabalhar, e observei que os
olhares estranhos que eles antes trocavam de quando em quando se repetiram
várias vezes, só que agora cada um deles parecia desconfiado, ou mesmo certo,
de que se havia exposto ao outro num momento de fraqueza nada profissional.
Por esse motivo, imagino, agora estavam inflexíveis um com o outro: o sr.
Jaggers agia como um ditador, e Wemmick se justificava do modo mais
obstinado sempre que surgia o menor problema. Eu nunca os vira em tamanho
desacordo; pois de modo geral eles se davam muito bem.
Porém, por sorte, surgiu oportunamente Mike, o cliente do boné de pele que
costumava enxugar o nariz na manga, o qual eu vira na primeira vez em que
viera ao escritório. Esse indivíduo, que pelo visto estava sempre em apuros (ou
seja, em Newgate), ou ele ou algum membro da sua família, entrou dizendo que
sua filha mais velha havia sido detida sob a acusação de ter cometido um furto
numa loja. Enquanto ele relatava essa melancólica circunstância a Wemmick, e
o sr. Jaggers, olímpico, postava-se junto à lareira sem tomar conhecimento do
que acontecia, o brilho de uma lágrima surgiu no olho de Mike.
Mas o que é isso?, exclamou Wemmick, indignadíssimo. Como você me
vem aqui choramingando?
Não foi por querer, senhor.
Mas é o que você fez, retrucou Wemmick. Como você ousa? Você não
está em condições de vir aqui, se não consegue entrar aqui vazando feito uma
pena defeituosa. Que história é essa?
A gente não consegue conter os sentimentos, senhor Wemmick, implorou
Mike.
Conter o quê?, perguntou Wemmick, com ferocidade. Diga isso de
novo!
Escute uma coisa, meu caro, disse o sr. Jaggers, aproximando-se e
apontando para a porta. Saia desse escritório. Nada de sentimentos aqui. Rua.
Bem feito, disse Wemmick. Rua.
E assim, o infeliz Mike retirou-se com muita humildade, e o sr. Jaggers e
Wemmick pareceram voltar às boas, retomando o trabalho com ânimo
renovado, como se tivessem acabado de almoçar.
13
De Little Britain fui, com meu cheque no bolso, falar com o irmão da sra.
Skiffins, o contador; e depois que o irmão da sra. Skiffins, o contador, foi direto à
firma de Clarriker e trouxe Clarriker até mim, tive o grande prazer de concluir
essa transação. Foi a única coisa boa que fiz, e a única coisa que levei a cabo,
desde que tivera ciência das minhas grandes esperanças.
Como Clarriker me informasse nessa ocasião que a firma estava
progredindo, que ele agora poderia abrir uma pequena filial no Oriente a qual era
muito necessária para que ele expandisse seus negócios, e que Herbert, agora na
condição de sócio, iria encarregar-se dela, dei-me conta de que já devia estar
preparado para separar-me de meu amigo, mesmo não estando minha própria
situação mais estabelecida. E agora tive a impressão de que minha última âncora
estava sendo levantada, e que em pouco tempo eu estaria sendo levado pelos
ventos e correntezas.
Porém eu seria recompensado ao ver a felicidade com que Herbert chegaria
em casa em breve falando-me dessas mudanças, sem imaginar que não estaria
me contando novidade nenhuma, e tecendo fantasias em que ele levaria Clara
Barley à terra das Mil e uma noites,1 eu iria juntar-me a eles (numa caravana de
camelos, imagino) e todos nós subiríamos o Nilo, onde veríamos maravilhas.
Sem muito otimismo quanto à minha participação nesses planos mirabolantes, eu
sentia que o caminho de Herbert estava cada vez mais desimpedido, e que
bastava que o velho Bill Barley não economizasse rum e pimenta para que sua
filha em pouco tempo se visse muito bem instalada.
Já estávamos em março. Meu braço esquerdo, embora não houvesse
nenhum sintoma mais sério, levou tanto tempo para sarar da maneira natural que
eu ainda não podia vestir o casaco. Meu braço direito estava mais ou menos bom:
desfigurado, porém razoavelmente funcional.
Numa manhã de segunda-feira, quando eu e Herbert fazíamos o desjejum,
recebi a seguinte carta de Wemmick, entregue pelo correio.
Walworth. Queime este bilhete imediatamente após a leitura. No início da
semana, no máximo na quarta-feira, faça o que o senhor deve fazer, se se
sentir disposto a tentar. Queime agora.
Depois que mostrei a carta a Herbert e a pus no fogo mas não sem antes
que nós dois decorássemos seu conteúdo ficamos pensando no que fazer. Pois
era preciso levar em conta o fato de que eu ainda estava incapacitado.
Pensei e repensei no assunto, vez após vez, disse Herbert, e acho que
agora tive uma ideia melhor do que contratar um barqueiro do Tâmisa. Leva o
Startop contigo. Um bom sujeito, bom remador, gosta de nós, entusiasmado e
honrado.
Eu havia pensado nele, mais de uma vez.
Mas o que lhe dirias, Herbert?
Só é preciso lhe dizer muito pouco. Podemos dizer que é apenas um
capricho, porém que é preciso manter segredo, até que chegue o dia; então
diremos a ele que há um motivo urgente para levar o Provis para o estrangeiro.
Vais com ele?
Sem dúvida.
Para onde?
Para mim, em meio às muitas reflexões angustiadas que eu fizera em torno
do problema, nosso porto de destino era quase indiferente Hamburgo, Roterdã,
Antuérpia o lugar pouco importava, desde que Provis fosse tirado da
Inglaterra. Qualquer vapor estrangeiro que encontrássemos e nos aceitasse
haveria de servir. Eu sempre havia pensado em descer com ele um bom trecho
do rio no barco: sem dúvida, ir bem além de Gravesend, um lugar crítico para
uma investigação ou um inquérito se houvesse suspeitas. Como os vapores
estrangeiros partiriam de Londres mais ou menos na hora da maré alta, nosso
plano seria descer o rio na maré baixa anterior, e ficar à espera em algum lugar
discreto até podermos abordar um navio. Não seria difícil calcular com bastante
precisão a hora em que passaria um vapor por perto do lugar onde estaríamos,
fosse esse lugar onde fosse, se antes nos informássemos de modo adequado.
Herbert concordou com todos esses pontos, e imediatamente após o
desjejum fomos fazer nossas investigações. Verificamos que um vapor com
destino a Hamburgo era o que melhor nos serviria, e optamos por ele. Porém
anotamos também os outros navios estrangeiros que partiriam na mesma maré, e
fizemos questão de nos familiarizar com a forma e a cor de cada um. Em
seguida, separamo-nos por algumas horas; fui tirar os passaportes, enquanto
Herbert foi ter com Startop em sua residência. Fizemos tudo que era necessário
fazer sem maiores problemas, e voltamos a nos encontrar à uma da tarde para
trocar relatos. Eu, de minha parte, já trazia os passaportes; Herbert havia falado
com Startop, o qual estava mais do que pronto para nos ajudar.
Eles dois cuidariam dos remos, resolvemos, enquanto que eu me
encarregaria do leme. Nosso fugitivo seria apenas passageiro, e ficaria quieto em
seu canto; como velocidade não era importante, haveríamos de chegar a nosso
destino em tempo hábil. Combinamos que Herbert não voltaria em casa para
jantar antes de passar em Mill Pond Bank; que ele não iria lá na noite do dia
seguinte, terça-feira; que ele prepararia Provis para descer até o rio num trecho
bem perto da casa na quarta-feira, quando visse que estávamos chegando, não
antes disso; que tudo seria combinado com ele naquela noite de segunda-feira; e
que nada mais lhe seria dito enquanto ele não estivesse no barco.
Tendo tomado todas essas precauções com Herbert, fui para casa.
Ao abrir a porta de nossos aposentos com minha chave, encontrei uma carta
dirigida a mim na caixa de correspondência; uma carta muito suja, embora não
mal escrita. Fora entregue em mãos (certamente depois que eu saíra de casa), e
seu teor era o seguinte:
Se você não tem medo de ir ao charco hoje à noite, ou amanhã, às nove
horas, à casa do guarda da eclusa junto ao forno de cal, então é bom que
venha. Se quer informações a respeito do seu tio Provis, é importante que
venha sem dizer nada a ninguém e sem perder tempo. É preciso vir sozinho.
Leve esta carta consigo.
Eu já tinha preocupações suficientes antes de receber essa estranha carta.
Era difícil decidir o que fazer agora. E o pior era que a decisão teria de ser
tomada rapidamente, senão eu perderia a diligência vespertina, que me
permitiria chegar lá a tempo. No dia seguinte seria impossível ir, pois já estaria
quase na hora da partida. E havia uma possibilidade de que as tais informações
tivessem implicações para minha fuga.
Mesmo que eu tivesse bastante tempo para decidir, creio que teria ido assim
mesmo. Não dispondo de tempo o relógio indicava que a diligência partiria
em meia hora resolvi ir. Certamente não o teria feito se não fosse a referência
a meu tio Provis; esse fato, juntamente com a carta de Wemmick, e as
preparações frenéticas daquela manhã levaram-me a tomar a decisão.
É tão difícil compreender com clareza o sentido de quase qualquer carta
quando se está muito apressado que tive de ler aquela missiva misteriosa outra
vez, e mais outra, até me dar conta, de modo mecânico, de que ela me impunha
segredo. E foi de modo igualmente mecânico que reagi a essa imposição,
deixando um bilhete a lápis para Herbert, dizendo que estava de partida, não
sabia por quanto tempo, para ver como estava a sra. Havisham, mas que tentaria
voltar logo. Mal tive tempo de vestir o sobretudo, trancar as portas e sair em
direção ao escritório das diligências pelo caminho mais curto. Se tivesse tomado
um fiacre e seguido pelas vias principais, não teria chegado a tempo; pelo
caminho que escolhi, lá cheguei no momento exato em que a carruagem estava
saindo. Quando me dei conta, vi que era o único passageiro dentro dela, a
sacolejar-me, com as pernas afundadas na palha até a altura dos joelhos.
Na verdade, desde o momento em que recebera aquela carta eu não tinha
pleno controle de meus atos; após a azáfama daquela manhã, sua leitura me
deixara perplexo. A agitação matinal fora grande, pois, embora estivesse
aguardando há muito tempo e com muita ansiedade o aviso de Wemmick,
quando o aviso finalmente veio fui tomado de surpresa. E agora comecei a
perguntar a mim mesmo por que motivo estava naquela carruagem, se havia de
fato razão suficiente para estar ali, se não seria melhor saltar e voltar, se não era
má ideia atender ao chamado de uma carta anônima; em suma, passei por todas
aquelas fases de contradição e indecisão que, imagino, todo aquele que já se viu
agindo com muita pressa conhece muito bem. Mas a referência nominal a Provis
fora o fator predominante. Raciocinei, tal como já fizera antes sem me dar conta
de que o fizera se é possível chamar aquilo de raciocínio que se algum mal
vitimasse Provis por não ter atendido àquele chamado, como poderia eu me
perdoar depois?
Já estava escuro quando chegamos, e a viagem pareceu longa e monótona
para mim, que pouco podia ver de dentro da carruagem, e que não podia viajar
do lado de fora por estar com o braço machucado. Evitando o Javali Azul, fui a
uma estalagem menos recomendada do outro lado da cidade, e pedi que me
preparassem o jantar. Nesse ínterim, fui até a Casa Satis informar-me a respeito
da sra. Havisham; ela ainda estava muito mal, embora um pouco melhor.
A estalagem em que eu estava fora outrora parte de um convento, e fui
jantar num pequeno refeitório octogonal, como uma pia batismal. Vendo que eu
não conseguia cortar a carne, o estalajadeiro, um velho com uma calva luzidia,
veio ajudar-me. Começamos a conversar, e ele teve a bondade de brindar-me
com minha própria história naturalmente, contendo o detalhe conhecido
segundo o qual Pumblechook fora meu primeiro benfeitor e o responsável por
minha fortuna.
O senhor conhece o rapaz?, indaguei.
Se o conheço?, exclamou o velho. Desde que era deste tamaninho.
Ele costuma vir aqui?
Vem, sim, disse o velho, pra falar com os amigos, de vez em quando, e
dar as costas pro homem que mais ajudou ele.
Que homem?
Aquele de quem falei, ele respondeu. O senhor Pumblechook.
É só com ele que o rapaz é ingrato?
É, porque não tem mais ninguém, retrucou o homem. E sabe por quê?
Porque o Pumblechook é que fez tudo por ele.
É isso que o Pumblechook diz?
Que ele diz? Nem precisa dizer.
Mas ele diz isso?
Só de ouvir ele falar, o sangue da gente vira vinagre branco, meu senhor,
disse o estalajadeiro.
Pensei: No entanto, tu, Joe, tu jamais falas nisso. Joe, tão injustiçado e
amoroso, tu jamais te queixas. Nem tu, Biddy , tão bondosa!.
Pelo visto, o acidente tirou sua fome, disse o homem, indicando com o
olhar meu braço envolto em ataduras sob o casaco. Prove um pedaço bem
macio.
Não, obrigado, respondi, afastando-me da mesa para ir matutar junto ao
fogo. Não consigo comer mais. Por favor, pode levar.
Eu nunca sentira com tanta intensidade minha ingratidão para com Joe como
agora, em contraste com a impostura descarada de Pumblechook. Quanto mais
falso ele era, mais fiel era Joe; quanto mais vil ele era, mais nobre era Joe.
Com o coração profunda e merecidamente humilhado, fiquei mais de uma
hora a meditar junto ao fogo. Quando o relógio deu a hora, voltei a mim, porém
não haviam diminuído minha depressão e meu remorso; levantei-me, pedi que
prendessem meu casaco em torno do pescoço, e saí. Antes eu havia procurado a
carta nos meus bolsos, para consultá-la novamente, porém não conseguira
encontrá-la; preocupava-me a possibilidade de que ela tivesse caído na palha do
chão da carruagem. Eu sabia muito bem, porém, que o lugar combinado era a
casa do guarda da eclusa perto do forno de cal no charco, e que o encontro
estava marcado para as nove horas. Segui então diretamente para o charco, não
tendo tempo a perder.
14
Era uma noite escura, embora a lua cheia se elevasse no momento em que me
afastei das terras cultivadas e adentrei o charco. Além da linha escura do alagado
havia uma faixa de céu límpido, tão estreita que nela mal cabia o grande disco
vermelho da lua. Em poucos minutos ela ascendeu, saindo daquele trecho
límpido de céu e perdendo-se em meio às montanhas de nuvens.
Havia um vento melancólico, e o charco estava muito desolador. Para um
forasteiro, seria insuportável, e mesmo para mim o cenário era tão opressor que
hesitei, meio inclinado a voltar atrás. Mas eu conhecia bem aquela região, e teria
encontrado o caminho de volta numa noite bem mais escura, e não tinha
desculpa para voltar, já estando lá. Assim, tendo vindo contra minha própria
inclinação, contra ela insisti e segui adiante.
A direção que tomei não era a do meu antigo lar, nem aquela que
seguíramos em busca dos foragidos. Eu caminhava dando as costas para as
presigangas distantes; embora eu ainda pudesse ver os velhos faróis ao longe nas
pontas de areia, para isso era preciso olhar por cima do ombro. Eu conhecia o
forno de cal tão bem quanto conhecia a velha bateria, porém um ficava separado
do outro por quilômetros de distância; assim, se uma luz estivesse acesa em cada
um desses dois lugares à noite, haveria uma longa faixa de horizonte vazio entre
os dois pontos luminosos.
De início, tive que fechar algumas porteiras depois de passar por elas, e de
vez em quando era obrigado a deter-me enquanto os bois que se
escarrapachavam no caminho levantavam-se e arrastavam-se por entre o capim
e os juncos. Mas depois de algum tempo toda a baixada parecia pertencer apenas
a mim.
Levei mais meia hora para chegar aos arredores do forno. A cal ardia com
um cheiro lerdo e sufocante, porém quem acendera o fogo fora embora, porque
não havia nenhum trabalhador à vista. Bem perto do forno havia uma pequena
pedreira. Ela ficava exatamente no meu caminho, e haviam trabalhado nela
naquele dia, pois vi ferramentas e carrinhos de mão largados por lá.
Voltando ao nível do charco ao sair dessa escavação pois a pista passava
por dentro dela vi uma luz acesa na casa do guarda da eclusa. Apressei o
passo e bati à porta com a mão. Aguardando uma resposta, olhei à minha volta, e
percebi que a eclusa estava abandonada e quebrada, e que o casebre de madeira,
com telhado de telhas, não proporcionaria proteção das intempéries por muito
mais tempo, se é que ainda o fazia agora, e que a lama estava coberta de cal, e
que o vapor sufocante que saía do forno aproximava-se de mim como um
fantasma. Não tendo resposta, voltei a bater à porta. Também não houve
resposta, e pus a mão no trinco.
O trinco levantou-se, e a porta abriu-se. Olhando dentro da casa, vi uma vela
acesa sobre uma mesa, um banco e um colchão num estrado baixo. Vendo que
havia um sótão, gritei: Há alguém em casa?, mas não tive resposta. Então olhei
para o relógio e, percebendo que já passava das nove horas, voltei a perguntar:
Há alguém em casa?. Não havendo resposta mais uma vez, saí da casa, sem
saber o que fazer.
Começava a chover forte. Não tendo mais nada a ver além do que já fora
visto, voltei para dentro da casa e fiquei à porta, olhando para a noite lá fora.
Ocorreu-me então que alguém estivera ali recentemente e deveria voltar em
breve, senão a vela não estaria acesa, e resolvi verificar se o pavio era longo.
Virei-me para fazê-lo, e já havia segurado a vela quando ela foi apagada por um
choque violento, e quando dei conta de mim um laço forte fora jogado sobre
minha cabeça por detrás.
Agora, disse uma voz contida, praguejando, te peguei!
O que é isso?, gritei, debatendo-me. Quem é? Socorro! Socorro!
Não apenas meus braços foram apertados contra meu corpo como também
a pressão sobre o braço ferido causou-me uma dor intensa. Ora a mão de um
homem forte, ora o peito de um homem forte eram apertados contra minha boca
para amortecer meus gritos, e sentindo um hálito quente sempre junto a mim,
debati-me em vão no escuro, enquanto era amarrado com força à parede. E
agora, disse a voz contida com mais uma imprecação, grita de novo e dou
cabo de ti!
Sentindo-me fraco e indisposto com a dor no braço, confuso por ter sido
apanhado de surpresa, e no entanto percebendo que aquela ameaça poderia ser
posta em prática com facilidade, parei de resistir e tentei liberar meu braço um
pouco que fosse. Porém ele estava amarrado com muita força. Era como se,
tendo sido queimado antes, agora estivesse sendo fervido.
Quando a noite foi subitamente substituída por uma escuridão negra, dei-me
conta de que o homem havia fechado a janela. Depois de tatear um pouco, ele
encontrou a pederneira e o pedaço de aço que procurava e pôs-se a tentar
acender a vela. Forcei a vista olhando para as faíscas que caíam sobre a mecha,
enquanto o homem soprava e soprava, com um pavio na mão, porém eu só podia
ver os lábios dele, e o azul da ponta do pavio; e mesmo assim, apenas de relance.
A mecha estava úmida como era de se esperar, naquele lugar e uma por
uma as fagulhas morriam.
O homem não tinha pressa, e mais uma vez tomou a pederneira e o aço. À
medida que as fagulhas abundantes brotavam a seu redor, pude ver suas mãos e
algo do rosto, e percebi que ele estava sentado e debruçado sobre a mesa, mas só
isso. Depois de algum tempo vi seus lábios azulados outra vez, soprando a mecha,
e então uma chama súbita acendeu-se, revelando-me o rosto de Orlick.
Quem eu esperava ver, não sei. Certamente não Orlick. Ao vê-lo,
compreendi que eu estava correndo perigo de fato, e fixei a vista nele.
Orlick acendeu a vela com muito cuidado e deixou o pavio cair no chão,
pisando nele para apagá-lo. Então pôs a vela sobre a mesa para que pudesse me
ver, sentou-se com os braços cruzados sobre a mesa e ficou a olhar-me. Concluí
que eu fora amarrado a uma escada forte, perpendicular, afastada alguns
centímetros da parede uma escada que ficava fixa ali, dando acesso ao sótão.
Agora, disse ele, depois de nos entreolharmos por algum tempo, eu te
peguei.
Desamarra-me. Solta-me!
Ah!, ele respondeu. Vou te soltar. Vou te deixar ir pra lua, pras estrelas.
Quando chegar a hora certa.
Por que me fizeste vir até aqui?
Não sabes?, disse ele, com um olhar feroz.
Por que me atacaste no escuro?
Porque pretendo fazer tudo sozinho. Pra guardar um segredo, melhor um só
do que dois. Ah, meu inimigo, meu inimigo!
No modo como ele apreciava o espetáculo que eu lhe proporcionava,
estando ele sentado com os braços cruzados sobre a mesa, sacudindo a cabeça
para mim e abraçando o próprio corpo, havia uma malignidade que me fez
tremer. Enquanto eu o olhava em silêncio, ele estendeu a mão para um canto e
de lá tirou uma arma com coronha de latão.
Conheces isto?, perguntou, fazendo menção de apontar a arma para mim.
Sabes onde a viste antes? Fala, lobo!
Sei, respondi.
Foi por culpa tua que perdi aquele emprego. Foi, sim. Fala!
O que mais eu podia fazer?
Fizeste isso, o que já seria bastante. Como ousaste me separar da moça que
eu gostava?
Quando foi que fiz isso?
E quando não o fizeste? Foste tu, como sempre, quem fez o velho Orlick
ficar com má fama junto a ela.
Fizeste por merecer a tua má fama. Eu não poderia prejudicar-te se tu não
prejudicasses a ti mesmo.
Mentira. E és capaz de fazer qualquer coisa, gastar o que tiveres de gastar,
para me expulsar daqui, não é?, disse ele, repetindo as palavras que eu dissera a
Biddy na última vez em que estivera com ela. Pois vou te dizer uma coisa. Hoje
é que seria a melhor ocasião para me expulsares daqui. Ah! Valeria a pena
mesmo que tivesses que gastar vinte vezes todo o dinheiro que tens, até o último
tostão! Ele sacudiu a mão pesada em minha direção, rosnando como um tigre, e
senti que aquilo era verdade.
O que vais fazer comigo?
Eu vou, disse ele, batendo o punho cerrado na mesa com energia e
levantando-se ao fazê-lo, para que o golpe tivesse ainda mais força, eu vou te
matar!
Inclinou-se para a frente, encarando-me, e lentamente foi abrindo a mão,
passando-a na boca depois, como se estivesse salivando de antegozo, e voltou a
sentar-se.
Sempre atrapalhaste o velho Orlick, desde que eras pequeno. Hoje isso vai
acabar. Ele nunca mais vai te ver. Estás morto.
Tive a impressão de estar à beira da minha própria sepultura. Por um
momento olhei à minha volta, em pânico, tentando encontrar uma possibilidade
de fugir; mas não havia nenhuma.
Mais que isso, disse ele, cruzando os braços outra vez, de ti não há de
sobrar nem um farrapo, nem um osso, neste mundo. Vou jogar teu corpo dentro
do forno eu era capaz de carregar dois de ti e as pessoas que fiquem a
imaginar o que quiserem, pois nunca hão de saber o que aconteceu.
Minha mente, com uma rapidez inconcebível, elaborou todas as
consequências de uma tal morte. O pai de Estela acreditaria que eu o havia
abandonado, seria preso e morreria me acusando; até mesmo Herbert teria
dúvidas a meu respeito, quando comparasse a carta que eu deixara para ele com
o fato de que eu só estivera por um instante junto ao portão da casa da sra.
Havisham; Joe e Biddy jamais saberiam o quanto eu me arrependera naquela
noite; ninguém jamais saberia o que eu sofrera, como eu pretendera ser fiel, a
que agonia eu fora submetido. A morte que me aguardava era terrível, porém
muito mais terrível do que a morte era o terror de deixar uma lembrança má
após a morte. E eram tão rápidos os meus pensamentos que me imaginei
desprezado pelas gerações futuras os filhos de Estella, e os filhos deles
enquanto as palavras daquele facínora ainda estavam em seus lábios.
Agora, lobo, disse ele, antes de eu te matar como quem mata um bicho
e é isso que vou fazer, e foi por isso que te amarrei assim vou olhar bem
para ti e saborear o momento. Ah, meu inimigo!
Passara por minha cabeça a ideia de gritar por socorro outra vez, ainda que
poucos soubessem, como sabia eu, o quanto era isolado aquele lugar, e como era
inútil pedir ajuda. Mas ao vê-lo regozijar-se por me ver preso, deram-me forças
o ódio e o desprezo que ele me inspirava, e isso me fez calar. Acima de tudo,
decidi que não imploraria, e que morreria resistindo de algum modo a ele, ainda
que sem esperanças. Embora meus pensamentos em relação a todas as outras
pessoas fossem elevados naquele momento extremo, em que eu pedia
humildemente perdão aos céus, e me doía o coração ao pensar que eu não me
despedira, e nunca, nunca mais teria oportunidade de me despedir, daqueles que
me eram caros, como também não poderia me explicar a eles, nem lhes pedir
compaixão por meus erros miseráveis, ainda assim, se eu pudesse matá-lo,
mesmo no instante da morte, eu o teria feito.
Orlick havia bebido, e seus olhos estavam vermelhos. De seu pescoço pendia
um frasco de metal, tal como eu o vira tantas vezes fazer com sua comida e
bebida. Ele levou o frasco aos lábios e bebeu um gole ardente; senti o cheiro da
bebida forte que lhe fez o rosto corar.
Lobo!, disse ele, voltando a cruzar os braços. O velho Orlick vai te contar
uma coisa. Foste tu quem matou a megera da tua irmã.
Mais uma vez minha mente, com a mesma rapidez inconcebível de antes,
esgotou todo o assunto da agressão sofrida por minha irmã, seu estado de
invalidez, sua morte, antes mesmo que sua fala lerda e hesitante terminasse de
articular aquelas palavras.
Foste tu, canalha, retruquei.
Eu te digo que foste tu a coisa foi feita através de ti, ele insistiu, pegando
a arma e dando uma coronhada no ar vazio que nos separava. Eu vim por
detrás, que nem fiz ainda há pouco contigo. E acertei nela! Deixei ela morrendo,
e se tivesse um forno de cal pertinho como tem hoje, ela não ia sobreviver, não.
Mas não foi o velho Orlick que fez a coisa, foste tu. Tu eras favorecido, e ele
vivia levando descompostura e apanhando. O velho Orlick levava descompostura
e apanhava, não é? Agora vais pagar por isso. Tu o fizeste, e agora vais pagar.
Ele bebeu mais, e sua ferocidade aumentou. Vi, pelo ângulo em que o frasco
era inclinado, que não restava muito dentro dele. Compreendi com clareza que
Orlick estava se embriagando para criar coragem de me matar. Eu sabia que
cada gota ali contida era uma gota de minha vida. Sabia que, quando eu fosse
transformado em parte do vapor que se havia aproximado de mim pouco antes,
como se fosse meu próprio fantasma a me alertar, Orlick faria tal como fizera na
noite do ataque à minha irmã iria correndo para a aldeia, para ser visto a
arrastar-se de uma taverna a outra, bebendo. Em minha mente, acompanhei-o
num átimo até a aldeia, vi a imagem de Orlick andando pelas ruas, e contrastei as
luzes e a vida da aldeia com o charco isolado e o vapor branco que vagava no ar,
no qual eu estaria dissolvido.
Não era apenas que eu evocasse anos e anos enquanto ele pronunciava uma
dezena de palavras: o que ele dizia criava imagens em minha mente, e não só
palavras. No estado de excitação nervosa de meu cérebro, eu não conseguia
pensar num lugar sem que o visse, nem em pessoas sem que as visse. Impossível
exprimir o quanto eram vívidas essas imagens, e, no entanto, eu estava o tempo
todo observando Orlick atentamente e quem deixaria de observar atentamente
o tigre prestes a dar o bote? de tal modo que percebia o menor movimento de
seus dedos.
Depois de beber pela segunda vez, ele levantou-se do banco em que se
sentara e empurrou a mesa para o lado. Então pegou a vela, cobrindo-a com a
mão de modo a concentrar toda a luz sobre mim, e ficou em pé a me
contemplar, regozijando-se com o que via.
Lobo, vou te contar outra coisa. Foi no velho Orlick que tropeçaste na
escada da tua casa aquela noite.
Vi a escada com os lampiões apagados. Vi as sombras dos pesados
corrimãos, lançadas pela lanterna do vigia sobre a parede. Vi os aposentos que
jamais voltaria a ver; aqui, uma porta entreaberta; ali, uma porta fechada; e
todas as peças de mobília em seus lugares.
E por que o velho Orlick estava lá? Vou te contar mais uma coisa, lobo. Tu e
ela conseguiste mesmo me expulsar daqui, tanto que eu não consegui mais
arranjar trabalho fácil, e assim achei novos companheiros e novos patrões. São
eles que escreve as minhas carta quando eu quero escrever gostaste? eles
que escreve as minhas carta, lobo! Eles escreve com cinquenta letras diferentes,
e não sempre a mesma, como tu fazes, impostor que és. Eu resolvi que ia te
matar desde a vez que vieste aqui pro enterro da tua irmã. Ainda não tinha
descoberto um jeito de trazer-te aqui, e fiquei te vigiando pra conhecer teus
hábitos. Mas o velho Orlick dizia sempre com seus botões: Eu hei de dar um jeito
de pegar ele!. E não é que de tanto te procurar eu acabo encontrando o teu tio
Provis?
Mill Pond Bank, e Chinks Basin, e Old Green Copper Rope-Walk, tudo tão
vívido! Provis em seus aposentos, o sinal que agora nada mais significaria, a bela
Clara, a boa matrona maternal, o velho Bill Barley deitado na cama, tudo aquilo
passou por mim, como se estivesse na correnteza rápida de minha vida, correndo
célere rumo ao mar!
Então tinhas um tio! Ora, eu te conhecia lá do Gargery desde que eras um
lobinho tão pequeno que eu podia te estrangular com o polegar e este dedo
(pensei em fazer isso mais de uma vez, ao ver-te andando em meio aos bois nos
domingos), e naquele tempo não tinhas tio nenhum. Não tinha, não! Mas quando
o velho Orlick ficou sabendo que era quase certo que o teu tio Provis era o
homem que levava nas perna os ferro que o velho Orlick limou aqui nesse charco
tantos anos atrás, e que ele guardou até que acertou tua irmã com eles, como se
fosse um boi no matadouro, que nem ele vai te acertar hein? assim que ele
hein?
No meio daquela provocação feroz, ele aproximou-me do rosto a vela de tal
modo que me virei para o lado, para não me queimar.
Ah!, exclamou ele, rindo, depois de repetir o gesto, gato escaldado tem
medo de água fria! O velho Orlick sabia que tu te queimaste, o velho Orlick sabia
que estavas a esconder o teu tio Provis, o velho Orlick é muito mais esperto que tu
e sabia que tu virias cá hoje! Agora vou te contar mais uma coisa, lobo, e depois
terminou. Tem uns aí que é mais esperto que o teu tio Provis, que nem eu sou
mais esperto que tu. Ele que se cuide, despois que o sobrinho dele morrer! Ele
que se cuide quando ninguém encontrar nem um fiapo da roupa do sobrinho
queridinho dele, nem mesmo um osso! Tem uns aí que não suporta ver o
Magwitch isso mesmo, eu sei o nome dele! vivinho e na mesma terra que
eles, e que sabia muito bem do paradeiro dele quando ele estava nas estranja,
tanto assim que ele não tinha nada que voltar pra cá e ameaçar eles. Vai ver que
é o mesmo que escreve com cinquenta letras diferentes, e que não é que nem
um impostor como tu, que só escreve com uma. Cuidado com o Compey son,
Magwitch, cuidado com a forca!
Ele aproximou a vela de mim outra vez, chamuscando-me o rosto e o
cabelo, e cegando-me por um instante; depois virou para mim as costas fortes e
recolocou a vela sobre a mesa. Em minha mente, rezei uma prece e vi-me com
Joe, Biddy e Herbert, antes que ele voltasse a virar-se para mim.
Havia um espaço vazio de alguns metros entre a mesa e a parede. Nesse
espaço, ele ficou a andar de um lado para o outro. Sua enorme força parecia
estar mais concentrada do que nunca, e ele caminhava com os braços pesados
soltos, olhando-me com ferocidade. Não me restava mais nenhum vestígio de
esperança. Por maior que fosse minha agitação interior, e por mais
extraordinária a força das imagens que jorravam em minha mente em vez de
pensamentos, ainda assim eu compreendia muito bem que, se Orlick não
estivesse decidido a matar-me nos próximos instantes e fazer com que ninguém
jamais soubesse o que acontecera, ele não teria de modo algum me dito o que
me dissera.
De repente Orlick parou, tirou do frasco a rolha e jogou-a fora. Embora a
rolha fosse leve, ouvi-a cair como se fosse um peso de chumbo. Ele engoliu a
bebida devagar, inclinando a garrafa pouco a pouco, e não voltou a olhar para
mim. Verteu as últimas gotas na palma da mão e lambeu-a. Então, num súbito
frenesi de violência, e com as mais horrendas imprecações, jogou fora a garrafa
e abaixou-se; e vi em sua mão um malho pesado, de cabo comprido.
Permaneci fiel a minha decisão, pois sem articular uma única palavra vã de
apelo a ele dirigida, gritei a plenos pulmões e debati-me com toda minha força.
Só me era possível mover a cabeça e as pernas, e o fiz valendo-me de um vigor
que até então não sabia existir em mim. No mesmo instante ouvi vozes em
resposta, vi vultos e um feixe de luz entrarem de repente pela porta, ouvi vozes e
um tumulto, e vi Orlick emergir do meio de um conflito, como de um torvelinho
de água, saltar por cima da mesa e fugir na noite.
Depois de um intervalo em branco, dei por mim desamarrado, deitado no
chão, no mesmo lugar, com a cabeça no joelho de alguém. Meus olhos estavam
fixos na escada encostada na parede, quando recuperei os sentidos os olhos se
abriram antes que a mente enxergasse e assim, à medida que fui recobrando
a consciência, compreendi que estava no mesmo lugar onde a havia perdido.
Indiferente demais, de início, para sequer olhar à minha volta e ver quem
apoiava minha cabeça, fiquei olhando para a escada, quando surgiu entre meus
olhos e ela um rosto. O rosto do empregado de Trabb!
Acho que ele está bem, disse o empregado de Trabb, com uma voz séria;
mas ó como ele está branco!
Ao ouvir essas palavras, o rosto da pessoa que me apoiava a cabeça olhou
para meu rosto, e vi que era
Herbert! Meu Deus!
Calma, disse Herbert. Devagar, Handel. Não te precipites.
E o nosso velho colega, Startop!, exclamei, quando também ele se
debruçou sobre mim.
Lembra-te da ajuda que ele nos vai dar, disse Herbert, e fica calmo.
Ao ouvir essa alusão, levantei-me de um salto; logo, porém, voltei a deitarme,
por efeito da dor no braço. Não perdemos a oportunidade, não, Herbert?
Que dia é hoje? Há quanto tempo estou aqui? Pois eu tinha a estranha e forte
impressão de que estava deitado ali há muito tempo um dia e uma noite
dois dias e duas noites se não mais.
Não perdemos a oportunidade, não. Hoje ainda é segunda-feira.
Graças a Deus!
E tens todo o dia de amanhã, terça-feira, para descansar, disse Herbert.
Mas entendo que não consigas deixar de gemer, meu caro Handel. Estás muito
ferido? Consegues ficar de pé?
Claro, claro, respondi. E também andar. A única dor que sinto é neste
braço, que lateja.
Desnudaram meu braço e fizeram o que foi possível. Estava muitíssimo
inchado e inflamado, e eu mal suportava que o tocassem. Porém rasgaram seus
lenços para fazer novas bandagens, e cuidadosamente o recolaram na tipoia,
enquanto não chegássemos à aldeia, onde haveria uma loção refrescante para
nele passar. Em pouco tempo saímos e fechamos a porta da casinha escura e
vazia, e já passávamos pela pedreira, no caminho de volta. O menino que
trabalhava para Trabb que agora já era um rapazola crescido ia à nossa
frente com uma lanterna; fora ela a luz que eu vira entrando pela porta. Mas a
lua estava mais alta, uma diferença de umas boas duas horas desde a última vez
em que eu vira o céu, e a noite, embora chuvosa, estava bem mais límpida. O
vapor branco do forno passou por nós enquanto caminhávamos, e tal como antes
eu rezara em pensamento, agora eu dava graças a Deus mentalmente.
Insisti para que Herbert me contasse como viera me salvar, o que de início
ele se recusara terminantemente a fazer, repetindo que eu me acalmasse; agora,
porém, fiquei sabendo que com a pressa de partir eu deixara cair a carta, aberta,
em nossos aposentos, e Herbert, ao entrar, trazendo Startop, com quem se
encontrara na rua a caminho de casa, encontrou-a, pouco depois de eu ter saído.
O tom da carta deixou-o preocupado, ainda mais por efeito da incoerência entre
o teor dela e o da carta apressada que eu deixara para ele. Como sua
preocupação só fez aumentar, em vez de diminuir, após quinze minutos de
deliberação, ele partiu em direção ao escritório das diligências, acompanhado de
Startop, que se ofereceu para ir também, e lá perguntou a que horas partiria a
próxima carruagem. Ao saber que a diligência vespertina já havia partido, e
percebendo que, mais do que preocupado, estava agora alarmado, à medida que
iam surgindo obstáculos, Herbert decidiu tomar um carro da posta. Assim, ele e
Startop chegaram ao Javali Azul, julgando que lá iam encontrar a mim ou
notícias minhas; nada achando, foram à casa da sra. Havisham, onde perderam
meu rastro. Então voltaram ao hotel (sem dúvida, por volta da hora em que eu
estava ouvindo a popular versão local de minha própria história), para jantar e
encontrar um guia que os conduzisse pelo charco. Um dos homens que vadiavam
sob o arco do Javali era o empregado de Trabb fiel a seu velho hábito de estar
em todos os lugares onde nada tinha a fazer o qual me vira saindo da casa da
sra. Havisham e indo ao lugar onde jantei. Assim, o empregado de Trabb atuou
como guia, e com ele foram até a casa do guarda da eclusa, porém pelo
caminho da aldeia, que eu evitara. Enquanto seguiam, Herbert refletiu que era
mesmo possível que eu tivesse vindo numa missão genuína que visasse à
segurança de Provis, e raciocinando que nesse caso uma interrupção seria
prejudicial, deixou que o guia e Startop ficassem à entrada da pedreira e seguiu
caminho a sós, contornando a casa duas ou três vezes, tentando descobrir se
dentro dela tudo estava bem. Como só ouvisse os sons indistintos de uma única
voz grave e áspera (foi o período em que minha mente estava muito ocupada),
começou a duvidar que eu estivesse lá, quando de repente gritei bem alto, e ele
respondeu aos gritos, e entrou de súbito, seguido logo depois pelos outros dois.
Quando contei a Herbert o que havia ocorrido dentro da casa, ele opinou que
fôssemos imediatamente procurar um magistrado na aldeia, apesar do avançado
na hora, a fim de obter um mandado. Eu, entretanto, já concluíra que tal decisão,
mantendo-nos ali, ou obrigando-nos a voltar, talvez viesse a ter consequências
fatais para Provis. Não havia como refutar esse argumento, e assim desistimos
de perseguir Orlick por ora. Dadas as circunstâncias, julgamos prudente
apresentar ao empregado de Trabb uma versão atenuada da situação, pois estou
certo de que ele ficaria muito decepcionado se soubesse que sua intervenção me
salvara do forno de cal. Não que o empregado de Trabb fosse maligno por
natureza, porém tinha um excesso de vivacidade ociosa, e era dado a querer
variedade e agitação às custas de quem quer que fosse. Quando nos despedimos,
dei-lhe dois guinéus (o que ele aprovou) e disse-lhe que lamentava ter feito mau
juízo dele outrora (o que não lhe causou qualquer impressão).
Como quarta-feira estava tão próxima, resolvemos voltar a Londres naquela
noite, nós três no carro da posta; mais ainda porque desse modo estaríamos longe
da aldeia antes que a aventura daquela noite começasse a ser comentada.
Herbert comprou um frasco grande de sedativo para meu braço, e as aplicações
constantes desse medicamento me permitiram suportar a dor durante toda a
viagem. Já era dia claro quando chegamos ao Temple; deitei-me de imediato e
passei todo o dia acamado.
Na cama, meu terror de adoecer e não poder viajar no dia seguinte era
tamanho que não sei como ele não me fez adoecer. Isso certamente teria
acontecido, em conjunção com o sofrimento mental por que eu passara, não
fosse a tensão que me proporcionava a ideia do amanhã. Um dia antecipado com
tanta ansiedade, pleno de consequências tais, com resultados impossíveis de
prever, embora tão próximos.
Claramente, por motivo de precaução não podíamos nos comunicar com
Provis naquele dia, porém esse fato teve o efeito de aumentar ainda mais minha
inquietação. Qualquer passo, qualquer som provocava em mim um sobressalto,
fazendo-me pensar que ele fora descoberto e preso, e que o ruído que eu ouvia
era a aproximação do mensageiro que vinha trazer tal notícia. Convenci-me de
que sabia que ele já fora preso; que o que me atormentava era mais do que um
temor ou um pressentimento; que a coisa já acontecera, e eu misteriosamente
tinha conhecimento do fato. À medida que o dia transcorria e não vinha nenhuma
notícia má, que escurecia e a noite se instalava, meu terror de não poder partir no
dia seguinte por motivo de saúde dominou-me por completo. Meu braço
queimado latejava, minha cabeça febril pulsava, e eu temia que estivesse
começando a delirar. Contei até um número elevado, para me tranquilizar, e
fiquei a repetir trechos que conhecia de cor, em prosa e verso. Por vezes ocorria
que, apenas por estar exausto, eu cochilava por alguns momentos, ou sucumbia
ao esquecimento; então exclamava a mim mesmo, assustado: Pronto, começou
o delírio!.
Meus amigos me obrigaram a descansar o dia todo, mantendo meu braço
em bandagens, servindo-me bebidas frescas. Sempre que adormecia, eu
acordava com a mesma impressão que tivera na casa do guarda da eclusa: um
longo tempo se passara e a oportunidade de salvar Provis fora perdida. Por volta
de meia-noite, levantei-me e fui ter com Herbert, convicto de que eu dormira
por vinte e quatro horas e que a quarta-feira já ficara para trás. Foi meu último
ato de esgotamento nervoso, pois depois disso mergulhei num sono profundo.
A madrugada de quarta-feira estava raiando quando olhei pela janela. As
luzes das pontes, a piscar, já estavam desmaiando, e o sol ainda por vir era como
um charco de fogo no horizonte. O rio, escuro e misterioso, era cruzado por
pontes que assumiam um tom frio de cinzento, recebendo aqui e ali, nas partes
mais altas, um toque cálido do céu em fogo. Enquanto eu contemplava os
telhados amontoados, os campanários e pináculos de igrejas elevando-se num
céu excepcionalmente límpido, o sol nasceu, e um véu pareceu ser levantado do
rio, e milhões de faíscas explodiram nas suas águas. Também para mim foi
como se um véu se levantasse, e senti-me forte e revigorado.
Herbert dormia em sua cama, e nosso antigo colega estava adormecido no
sofá. Eu não podia vestir-me sem ajuda, porém aticei o fogo, que ainda ardia, e
preparei café para eles. Pouco depois os dois também despertaram, fortes e
revigorados como eu, e abrimos as janelas para que entrasse o ar fresco da
manhã, e olhamos para a maré, que ainda fluía em direção a nós.
Quando derem as nove horas, disse Herbert, alegre, esteja pronto e à
nossa espera, você que está aí em Mill Pond Bank!
15
Era um desses dias de março em que o sol é quente e o vento é frio, quando é
verão ao sol e inverno na sombra. Levávamos nossos capotes, e eu também tinha
uma valise. De todas as minhas posses deste mundo, levei apenas os poucos
objetos necessários que cabiam nela. Aonde eu iria, o que faria e quando
voltaria, eram perguntas cuja resposta eu desconhecia por completo; nem sequer
me importunava com elas, pois a única coisa importante era a segurança de
Provis. Foi apenas por um instante, quando me detive à porta e olhei para trás,
que perguntei a mim mesmo em que circunstâncias eu voltaria a ver aqueles
cômodos, se é que tal viria mesmo a acontecer.
Descemos sem pressa o ancoradouro do Temple, e lá ficamos parados,
como se não tivéssemos ainda nos decidido a efetuar o nosso plano.
Naturalmente, eu havia providenciado para que o barco estivesse pronto e tudo
estivesse em ordem. Após um curto hiato de indecisão, que foi testemunhado
apenas por duas ou três criaturas anfíbias que frequentavam o lugar,
embarcamos e partimos; Herbert ia à proa e eu comandava o leme. A maré
estava alta eram oito e meia.
Nosso plano era o que se segue. Como a maré começaria a baixar às nove e
nos favoreceria até as três, pretendíamos continuar seguindo mesmo depois que
ela virasse, e remar contra a correnteza até o anoitecer. A essa altura, já
estaríamos naquele trecho extenso abaixo de Gravesend, entre Kent e Essex,
onde o rio é largo e deserto, onde há muito poucos habitantes ribeirinhos, e onde
encontraríamos um ou outro albergue esparso, num dos quais nos recolheríamos.
Ali ficaríamos a noite toda. O vapor de Hamburgo e o de Roterdã partiriam de
Londres por volta das nove da manhã de quinta-feira. Saberíamos a que hora
cada um deles passaria, dependendo de onde estivéssemos, e faríamos sinal para
o primeiro; se por algum acaso não nos aceitassem, teríamos outra oportunidade.
Conhecíamos bem as características distintivas de cada navio.
Para mim, era tão grande a sensação de alívio por estar finalmente pondo
em prática meu plano que me parecia difícil imaginar a situação em que eu
vivera apenas poucas horas antes. O ar fresco, o sol, o movimento do barco, o
próprio rio em movimento aquela estrada que corria conosco, parecendo estar
no nosso lado, a nos animar e estimular tudo isso fez renascer minhas
esperanças. Mortificava-me poder fazer tão pouca coisa no bote, mas seria difícil
achar remadores melhores que meus dois amigos, e eles remavam num ritmo
uniforme que se manteve durante todo o dia.
Naquele tempo, o tráfego de vapores no Tâmisa era muito menos intenso do
que hoje em dia, e eram muito mais numerosos os barcos a remo. Em matéria
de chatas, carvoeiros e navios de cabotagem, havia talvez tantos quanto agora,
porém o número de navios a vapor, grandes e pequenos, era menos de um
décimo, de um vigésimo, do atual. Embora ainda fosse cedo, havia um grande
número de botes com dois remadores indo de um lado para o outro naquela
manhã, e também chatas sendo levadas pela maré; navegar pelo rio entre as
pontes, num barco descoberto, era naquele tempo coisa bem mais fácil e comum
do que agora; e assim fomos tocando em frente, em meio a esquifes e barcas,
rapidamente.
A velha ponte London em pouco tempo ficou para trás, e também o velho
mercado de Billingsgate, com seus barcos para pesca de ostras e seus holandeses,
e a Torre Branca, e o Portão dos Traidores, e logo nos vimos entre as fileiras de
navios. Lá estavam os vapores de Leith, Aberdeen e Glasgow, carregando e
descarregando mercadorias, parecendo elevar-se da superfície da água a uma
altura imensa quando passávamos por eles; dezenas e mais dezenas de
carvoeiros, onde os homens desciam o carvão em molinetes enquanto os
contrapesos subiam, sendo depois trazidos para dentro do barco; lá estava,
atracado, o vapor de Roterdã que partiria no dia seguinte, o qual observamos com
atenção; e lá estava o vapor de Hamburgo que partiria no dia seguinte; passamos
por baixo de seu gurupés. Então eu, instalado na popa, vi, com o coração batendo
mais forte, Mill Pond Bank e seu ancoradouro.
Ele está lá?, perguntou Herbert.
Ainda não.
Certo! Ele só devia descer quando nos visse. Vês se ele está dando o sinal?
Daqui não enxergo bem, mas acho que sim. É ele, sim! Parem de
remar. Devagar, Herbert. Levantar remos!
Mal tocamos no ancoradouro por um rápido momento, ele subiu a bordo, e
partimos outra vez. Ele levava consigo um capote de marinheiro e uma mala de
lona preta; parecia um piloto de rio, tal como eu desejava.
Meu menino querido!, disse ele, pondo o braço no meu ombro ao sentarse.
Meu amigo fiel, tudo perfeito. Obrigado, obrigado!
Mais uma vez, vimo-nos em meio a fileiras de navios, entrando e saindo,
esquivando-nos de correntes enferrujadas, amarras esfiapadas e boias flutuantes,
afundando momentaneamente cestas quebradas, dispersando maravalhas e
cavacos, rasgando a camada de carvão que cobria a água, passando sob as
figuras de proa de John de Sunderland, a fazer um discurso para os ventos (como
fazem tantos Johns), e de Betsy de Yarmouth, com uma formalidade rígida nos
seios e olhos redondos que se destacavam cinco centímetros da cabeça;
seguíamos, ao som de martinetes nos estaleiros, serrotes serrando madeira,
máquinas ruidosas chocando-se contra coisas desconhecidas, bombas a esvaziar
navios que faziam água, cabrestantes a girar, navios a fazer-se ao largo, criaturas
do mar a bradar imprecações ininteligíveis por cima das amuradas, sendo
respondidos por barqueiros, seguíamos até por fim chegar lá onde o rio estava
mais desimpedido, onde os grumetes podiam recolher as defensas, não estando
mais pescando em águas turbulentas, onde as velas se enfunavam ao vento.
No ancoradouro onde nosso fugitivo subira a bordo, e desde então, eu estava
atento para qualquer sinal de que estivéssemos sendo vigiados. Não vi nada.
Certamente não havíamos sido acompanhados nem seguidos por nenhum barco,
tal como não estávamos sendo seguidos agora. Se houvesse alguma embarcação
em nosso encalço, teríamos detido nosso curso, obrigando-a a seguir viagem ou
então a tornar óbvias suas intenções. Porém seguíamos a sós, aparentemente sem
sermos molestados.
Ele vestira seu capote de marinheiro, e parecia, tal como já observei, fazer
parte do cenário. Era curioso observar (mas talvez isto se explicasse pela vida
miserável que levara) que ele era o menos preocupado entre nós. Não que fosse
indiferente, pois havia comentado comigo que esperava viver para ver o seu
cavalheiro tornar-se um dos melhores cavalheiros num país estrangeiro; não me
parecia ser uma pessoa passiva ou resignada; porém não era homem de
antecipar medidas de cautela. Quando ocorria uma situação de perigo,
enfrentava-a, mas era preciso que o perigo se manifestasse para que ele fizesse
alguma coisa.
Se soubesses, meu menino querido, disse-me ele, o que é poder estar
sentado ao lado do meu menino querido, pitando meu cachimbo, adespois de
passar tanto tempo fechado entre quatro parede, tu havias de ter inveja de mim.
Mas não sabes o que é isso.
Creio que conheço as delícias da liberdade, respondi.
Ah, ele exclamou, sacudindo a cabeça, sério. Mas não sabes que nem eu
sei. Só quem já esteve trancafiado, meu menino querido, é que sabe que nem eu
mas não vou ficar triste, não.
Ocorreu-me que era uma incoerência de sua parte deixar-se levar por uma
ideia fixa a ponto de arriscar sua liberdade e até mesmo a própria vida. Refleti,
porém, que talvez a liberdade isenta de qualquer perigo fosse algo tão inusitado
para sua experiência de vida que não representasse para ele o que era para as
outras pessoas. Essas reflexões foram de certo modo confirmadas pelo que ele
disse, após fumar um pouco:
Sabes, meu menino querido, quando eu estava lá pras outras banda do
mundo, eu vivia pensando na banda de cá; e a vida por lá ficou sem graça,
apesar que eu estava enricando. Todo mundo conhecia o Magwitch, e o
Magwitch podia ir ou ficar que ninguém nem pensava nele. Aqui eles não ia ser
tão indiferente, meu menino querido quer dizer, se eles soubesse onde eu
estou.
Se tudo correr bem, repliquei, o senhor vai estar perfeitamente livre e
protegido outra vez, dentro de umas poucas horas.
Bem, disse ele, respirando fundo, é o que eu espero.
E é o que o senhor pensa?
Ele mergulhou a mão na água e disse, sorrindo, com aquele aparência mais
suave que eu já vira nele antes:
Acho que sim, meu menino querido. Seria difícil estar mais tranquilo do que
estou agora. Mas é tão agradável a gente deslizar rio abaixo que acho que é
por isso que eu tive uma ideia eu estava pensando, enquanto fumava inda há
pouco, que é tão difícil enxergar o que vai acontecer daqui a umas horas quanto é
enxergar o fundo desse rio. E também é tão impossível segurar a maré dos
acontecimento quanto deter a correnteza do rio. A água passou pelos meus dedo
e sumiu, está vendo?, disse ele, exibindo a mão que pingava.
Se não fosse pela expressão em seu rosto, eu diria que o senhor está um
pouco desanimado.
Nada disso, meu querido menino! É só porque estou deslizando nesse rio tão
tranquilo, e aquele marulho na proa do bote até parece música. Vai ver que é
também porque estou ficando velho.
Recolocou o cachimbo na boca com uma expressão serena, parecendo tão
calmo e contente como se já tivesse saído da Inglaterra. No entanto, permanecia
tão receptivo a conselhos quanto se estivesse sob terror constante, pois quando
saltamos do barco por um minuto para comprar umas garrafas de cerveja e ele
fez menção de acompanhar-nos, comentei que a meu ver seria mais seguro ele
ficar onde estava. Disse ele: É mesmo, meu menino querido?. E voltou a
sentar-se.
Estava frio no barco, porém o tempo estava bom, e o sol muito nos alegrava.
A correnteza era forte, eu a aproveitava ao máximo, e com o ritmo constante dos
remadores seguíamos sem problemas. Pouco a pouco, à medida que a maré
enfraquecia, deixávamos para trás os bosques e morros e nos aproximávamos
dos baixios de lama, mas a vazante ainda nos impelia quando chegamos à altura
de Gravesend. Como nosso fugitivo estava envolto em seu capote, fiz questão de
passar bem perto da alfândega flutuante, e em seguida voltei à correnteza,
passando ao lado de dois navios de emigrantes e à frente de um transporte
grande, com soldados na proa olhando do alto para nós. Pouco depois a
correnteza foi perdendo força, as naus que estavam ancoradas começaram a
manobrar, e logo estavam todas viradas no sentido contrário; assim, as
embarcações que pretendiam aproveitar a enchente da maré para seguir rumo
ao Pool amontoaram-se a nosso redor, enquanto mantínhamos nosso bote o mais
próximo da margem que podíamos, para nos afastar da correnteza, evitando com
cuidado os baixios e os bancos de lama.
Os remadores estavam bem descansados, pois de vez em quando haviam
deixado que a correnteza levasse o barco por um minuto ou dois, de modo que
lhes bastou um quarto de hora de repouso. Saltamos para a margem, em meio a
algumas pedras escorregadias, comemos e bebemos o que havíamos trazido
conosco, e olhamos à nossa volta. Ali era semelhante ao charco onde eu fora
criado, uma terra plana e monótona, com um horizonte indistinto, enquanto o rio
dava voltas e voltas, e as grandes boias giravam e giravam, e tudo mais quedava
imóvel. Por ora, o último dos navios já contornara a última ponta de areia que
havíamos contornado; e a última chata verde, com seu carregamento de palha e
sua vela parda, seguira viagem; e algumas dragas, que pareciam rabiscos toscos
traçados por uma criança que tentasse desenhar um barco pela primeira vez,
jaziam afundadas no lodo; um pequeno farol, construído sobre estacas,
destacava-se da lama como um aleijado que se apoiasse em muletas; outras
estacas destacavam-se da lama, e pedras escorregadias destacavam-se da lama,
e balizas e marcos vermelhos destacavam-se da lama, e um embarcadouro
velho e uma construção velha, sem telhado, afundavam na lama, e tudo à nossa
volta era estagnação e lama.
Partimos outra vez, e avançamos o quanto pudemos. Agora era muito mais
difícil navegar, porém Herbert e Startop perseveravam, remando, remando,
remando, até que o sol se pôs. Nesse ínterim, o rio havia subido um pouco, de
modo que podíamos ver acima da margem. Lá estava o sol vermelho, rente ao
plano da margem, numa névoa arroxeada que rapidamente enegrecia; o charco
deserto nos cercava; e ao longe víamos o terreno mais elevado, entre o qual e nós
não parecia haver nenhum ser vivo, salvo aqui e ali, no primeiro plano, uma
gaivota melancólica.
Como a noite descia depressa, e a lua, já tendo começado a minguar, não
haveria de nascer tão cedo, fizemos uma rápida reunião: rápida, pois claramente
o que tínhamos a fazer era aguardar no primeiro albergue isolado que
encontrássemos. Assim, os remadores retomaram seu trabalho, e eu fiquei atento
para o primeiro vulto que parecesse ser uma casa. Prosseguimos por algum
tempo, falando pouco, avançando sete ou oito quilômetros tediosos. O frio era
intenso, e um barco carvoeiro que passou por nós, com a fornalha acesa e
fumegante, pareceu-nos um lar aconchegante. A essa altura, a noite estava tão
escura quanto haveria de ficar até o amanhecer; e a pouca luz que havia parecia
vir mais do rio do que do céu, quando os remos, ao mergulharem na água,
atingiam os reflexos de algumas estrelas.
Nessa hora lúgubre, evidenciou-se que todos nós estávamos possuídos pela
ideia de que alguém nos seguia. A maré crescente batia pesada, em intervalos
irregulares, contra a margem; e cada vez que ouvíamos esse som, um de nós
invariavelmente olhava assustado naquela direção. Aqui e ali, o impacto da
correnteza havia formado pequenas enseadas na margem, e todos nós
encarávamos esses lugares com desconfiança e nervosismo. Vez por outra, um
de nós sussurrava: O que foi isso?. Ou então: Aquilo ali é um barco?. Em
seguida, mergulhávamos num silêncio sepulcral, e eu ficava a pensar, com
impaciência, como eram barulhentos os remos em suas toleteiras.
Por fim divisamos uma luz e um telhado, e pouco depois paramos junto a um
pequeno molhe feito com pedras recolhidas nas redondezas. Deixando os outros
no bote, desembarquei e constatei que a luz vinha da janela de uma taberna. Era
um lugar bem sujo, provavelmente conhecido por aventureiros e contrabandistas,
mas havia um bom fogo ardendo na cozinha, ovos e toucinho para comer, e
diversas bebidas alcoólicas. Havia também dois quartos, cada um com duas
camas É pegar ou largar, disse o taberneiro. Lá não estava mais ninguém
além do taberneiro, a mulher dele e uma criatura grisalha do sexo masculino,
Jack, o pau para toda a obra do pequeno molhe, tão escorregadio e enlameado
como o próprio molhe.
Acompanhado por esse assistente, voltei ao barco, e todos nós
desembarcamos, trazendo conosco os remos, o leme, o croque e tudo o mais, e
puxamos o bote para a terra. Fizemos uma ótima refeição junto à lareira da
cozinha e depois nos dispusemos nos quartos: Herbert e Startop ocuparam um
deles, eu e nosso fugitivo o outro. Constatamos que em ambos os aposentos o ar
era cuidadosamente excluído, como se fosse um elemento fatal à vida; e debaixo
das camas havia uma quantidade de roupas sujas e chapeleiras que me pareceu
excessiva para aquela família. Não obstante, julgávamos que tínhamos tido sorte,
pois teria sido difícil encontrar um lugar mais isolado do que aquele.
Enquanto relaxávamos junto à lareira após a refeição, Jack que estava
sentado num canto, e que calçava um par de sapatos inchados, o qual ele exibira
para nós enquanto comíamos ovos com toucinho, como relíquias interessantes
que retirara, alguns dias antes, dos pés de um marinheiro morto trazido pela maré
perguntou-me se tínhamos visto uma galeota de quatro remos subindo com a
correnteza. Quando respondi que não, ele disse que nesse caso o barco
provavelmente teria descido o rio; no entanto, ao sair dali, ele estava subindo.
Eles deve ter mudado de ideia por algum motivo, disse Jack, e resolveu
descer.
Uma galeota de quatro remos, foi o que você disse?, perguntei.
Quatro remando, respondeu o homem, e dois passageiro.
Eles desembarcaram aqui?
Eles vieram com uma jarra de dez litro, pegar cerveja. Se eu pudesse, eu
bem que punha veneno dentro da cerveja, disse o homem, ou então alguma
outra coisa assim.
Por quê?
Eu que sei por quê, respondeu o homem. Falava com uma voz úmida,
como se tivesse muita lama na garganta.
Ele acha, disse o taberneiro, um homem vagamente pensativo com olhos
claros, que parecia confiar muito no seu Jack, ele acha que eles era o que não
era.
Eu sei o que eu acho, comentou Jack.
Achas que eles era da alfândega, Jack?, indagou o taberneiro.
Acho, sim, respondeu ele.
Então estás enganado, Jack.
Estou nada!
Dada essa resposta com uma infinidade de significados, com sua desmedida
confiança nas próprias opiniões, Jack descalçou um dos sapatos inchados, olhou
dentro dele, jogou no chão da cozinha algumas pedras que lá encontrou e voltou a
calçar-se. Fez isso com o ar de quem tem tanta certeza do que diz que pode fazer
o que bem entender.
Ora, então o que foi que eles fez com os botão deles, Jack?, perguntou o
taberneiro, hesitando vagamente.
O que eles fez com os botão?, devolveu o homem. Jogou nágua. Engoliu.
Plantou na horta. Ora, o que eles fez com os botão!
Olha o respeito, Jack, repreendeu-o o taberneiro, num tom melancólico e
patético.
Funcionário da arfândega sabe o que fazer com os botão,1 repetindo a
palavra detestável com o maior desprezo, quando atrapalha eles. Um barco de
quatro remador e mais dois passageiro não fica subindo e descendo por aí, com a
maré ou contra ela, se a arfândega não estiver metida na história. Tendo dito
isso, saiu do recinto, desdenhoso; e o taberneiro, não tendo mais ninguém em
quem confiar, julgou impraticável continuar a discutir o assunto.
O diálogo deixou-nos todos nervosos, a mim em particular. O vento soturno
murmurava em torno da casa, a maré açoitava a margem do rio, e eu tinha a
sensação de que estávamos enjaulados e ameaçados. Uma galeota de quatro
remos rondando o lugar de modo tão pouco costumeiro que chegava a atrair as
atenções era uma circunstância incômoda que eu não conseguia deixar de lado.
Depois que consegui convencer Provis a deitar-se, saí com meus dois
companheiros (a essa altura, Startop já estava inteirado da situação) e realizamos
outra reunião. A questão discutida era se deveríamos ficar na estalagem até a
hora em que chegasse o vapor, por volta de uma da tarde, ou se seria melhor
partir de manhã cedo. Concluímos que era melhor ficarmos onde estávamos até
que faltasse cerca de uma hora para a chegada do vapor, quando então sairíamos
em sua direção, seguindo com facilidade no sentido da correnteza. Tendo tomado
essa decisão, entramos e fomos nos deitar.
Fui para a cama quase inteiramente vestido e dormi bem por algumas horas.
Quando despertei, estava ventando ainda mais, e a placa da estalagem (chamada
A Nau) estava rangendo e debatendo-se, provocando sons que me assustaram.
Levantei-me em silêncio, pois nosso fugitivo estava ferrado no sono, e fui espiar
pela janela. Dela via-se o molhe onde havíamos deixado o bote, e à medida que
minha visão foi se adaptando à luz da lua por trás das nuvens, vi dois homens
olhando para dentro dele. Eles passaram pela janela, sem olhar para o outro lado,
e não foram até o desembarcadouro, o qual, percebi, estava vazio, porém
seguiram pelo charco em direção do Nore.2
Meu primeiro impulso foi despertar Herbert e mostrar-lhe os dois homens se
afastando. Entretanto, antes de entrar no quarto dele, que ficava nos fundos da
casa, ao lado do meu, refleti que ele e Startop tiveram um dia mais trabalhoso
que o meu e estavam exaustos; assim, mudei de ideia. Voltando à minha janela,
vi os dois homens atravessando o charco. Naquela penumbra, porém, em pouco
tempo perdi-os de vista, e sentindo muito frio voltei para a cama, a pensar sobre
o ocorrido, e adormeci outra vez.
Levantamo-nos cedo. Enquanto andávamos de um lado para outro, os quatro,
antes do desjejum, julguei que seria bom contar a meus companheiros o que eu
vira. Mais uma vez, nosso fugitivo foi quem ficou menos preocupado. Era bem
provável que os homens fossem funcionários da alfândega, disse ele em voz
baixa, e que não estivessem procurando por nós. Tentei convencer-me de que
era isso mesmo o que, aliás, poderia muito bem ser verdade. Propus, no
entanto, que eu e ele caminhássemos juntos até um ponto distante que podíamos
ver dali, e que o barco fosse nos pegar lá, ou o mais perto possível de lá, por volta
do meio-dia. Todos acharam que era uma precaução razoável, e assim, pouco
após o desjejum, nós dois saímos, sem dizer nada na estalagem.
Ele fumava seu cachimbo enquanto caminhávamos, parando de vez em
quando para me dar um tapa de leve no ombro. Quem nos visse poderia pensar
que era eu que estava ameaçado, não ele, e que ele me tranquilizava. Falávamos
muito pouco. Quando nos aproximamos do local escolhido, pedi-lhe que ficasse
num local protegido enquanto eu fazia o reconhecimento do lugar, pois fora
naquela direção que os homens haviam seguido naquela noite. Ele concordou, e
segui em frente sozinho. Não havia nenhum barco ali, nem por perto, nem sinais
de que os homens tivessem embarcado nas redondezas. Por outro lado, a maré
estava alta, e era possível que tivessem ficado pegadas debaixo dágua.
Quando olhou de seu esconderijo ao longe e viu que eu lhe acenava com o
chapéu para que ele se aproximasse, Provis veio juntar-se a mim, e assim
ficamos os dois à espera: ora deitados na margem, envoltos em nossos agasalhos,
ora andando de um lado para outro para nos aquecer, até que vimos nosso barco
chegar. Entramos no bote sem problemas e saímos ao encalço do vapor.
Faltavam apenas dez minutos para a uma da tarde, e começamos a ficar atentos
para a fumaça do navio.
Porém só a divisamos à uma e meia, e pouco depois vimos a fumaça de
outro vapor vindo atrás do primeiro. Como ambos vinham a toda velocidade,
pegamos nossas bagagens e nos despedimos de Herbert e Startop. Trocamos
apertos de mãos cordiais, e nem bem meus olhos e os de Herbert haviam secado
quando vi uma galeota de quatro remos surgir de repente da margem, de um
ponto um pouco à frente de nós, vindo na mesma direção.
Ainda havia um trecho de margem entre nós e a fumaça do vapor, por efeito
da curva do rio; agora, porém, o navio estava visível, vindo diretamente para
onde estávamos. Gritei a Herbert e Startop que permanecessem à frente do
vapor, para que ele nos visse ali, e disse a Provis que permanecesse imóvel,
envolto em seu capote. Ele respondeu, alegre: Confia em mim, meu menino
querido, e ficou imóvel como uma estátua. Nesse ínterim, a galeota, manejada
com muita habilidade, cruzou nosso caminho, permitiu que a alcançássemos e
permaneceu a nosso lado. Deixando apenas espaço suficiente para os remos,
continuou junto de nosso bote, seguindo com a correnteza quando parávamos de
remar, e dando uma ou duas remadas quando o fazíamos. Dos dois passageiros,
um comandava o leme e olhava para nós atentamente como faziam todos os
remadores; o outro passageiro estava envolto em seus agasalhos tal como Provis,
e parecia encolher-se, e cochichar instruções ao homem do leme enquanto ele
olhava para nós. Ninguém dizia palavra nos dois botes.
Startop conseguiu, depois de alguns minutos, descobrir qual dos dois vapores
vinha à frente, e disse-me Hamburgo em voz baixa, sentados que estávamos
um de frente para o outro. O navio se aproximava muito depressa, e o ruído de
suas rodas era cada vez mais alto. Sua sombra já se projetava sobre nós quando a
galeota nos abordou. Respondi.
Vocês têm aí um degredado que voltou ao país, disse o homem do leme.
É aquele ali, embrulhado no capote. Ele se chama Abel Magwitch, também
conhecido como Provis. Dou voz de prisão a esse homem, e vocês têm que
entregá-lo a mim.
Ao mesmo tempo, sem dar nenhuma instrução a seus remadores, a galeota
encostou em nosso bote. Eles haviam avançado um pouco, recolhido os remos e
encostado, e agarrado nossa amurada, antes que nos déssemos conta do que
estavam fazendo. Isso causou muita confusão no vapor, e ouvi os que estavam a
bordo dele gritando para nós, e ouvi a ordem de parar as máquinas; ouvi o navio
parar, mas senti que ele se aproximava de nós com ímpeto irresistível. No
mesmo instante, vi o homem do leme da galeota pôr as mãos nos ombros do
prisioneiro, e vi que os dois botes estavam rodopiando ao sabor da correnteza, e
que toda a tripulação do vapor corria para a proa num frenesi. Ainda no mesmo
instante, vi o prisioneiro levantar-se, inclinar-se em direção a seu captor e
arrancar o capote do pescoço do passageiro que estava encolhido na galeota.
Ainda no mesmo instante, vi que o rosto revelado era o rosto do outro forçado, de
tantos anos antes. Ainda no mesmo instante, vi o rosto inclinar-se para trás com
um terror lívido nele estampado, o qual jamais esquecerei, ouvi uma gritaria
vinda do vapor e o barulho de alguma coisa caindo na água, e senti que o bote
afundava sob meus pés.
Durante um instante apenas, julguei estar a debater-me com mil represas e
mil explosões de luz; no instante seguinte fui recolhido pela galeota. Lá estava
Herbert, lá estava Startop; mas nosso bote havia desaparecido, e os dois
prisioneiros haviam desaparecido.
Com a gritaria que vinha do vapor, e o ruído furioso de seus apitos, e o
movimento contínuo do vapor e da galeota, de início eu não conseguia distinguir o
que era céu do que era água e do que era margem; mas os tripulantes da galeota
mais que depressa corrigiram sua rota e, dando algumas remadas rápidas para a
frente, em seguida largaram os remos e ficaram todos olhando, silenciosa e
atentamente, para a água atrás do barco. Pouco depois surgiu um objeto escuro,
vindo em direção a nós no sentido da correnteza. Ninguém disse nada, mas o
homem do leme levantou a mão, e todos os remadores remaram para trás
lentamente, mantendo a galeota imóvel. À medida que o vulto se aproximava, vi
que era Magwitch, nadando, porém com dificuldade. Ele foi recolhido a bordo do
barco, e imediatamente lhe algemaram os punhos e os tornozelos.
A galeota permanecia no mesmo lugar, e todos voltaram a olhar
atentamente para a água. Porém o vapor de Roterdã aproximava-se, e sem
entender o que estava acontecendo, vinha com velocidade. Depois que se fez
sinal para ele, os dois vapores se afastaram, e ficamos a nos balançar na esteira
do navio. Continuamos a vigiar a água, ainda por um bom tempo depois que a
agitação cessou e os dois vapores foram-se embora; mas àquela altura todos já
haviam percebido que não havia esperanças.
Por fim desistimos e desembarcamos perto da taberna onde havíamos
passado a noite, onde fomos recebidos com muito espanto. Ali, consegui que
cuidassem de Magwitch não mais Provis que recebera um ferimento grave
no peito e um corte profundo na cabeça.
Ele me disse que julgava ter passado por baixo da quilha do vapor, e ter
batido com a cabeça nela ao subir à tona. O ferimento no peito (que doía muito
quando ele respirava) ele pensava ter ocorrido quando se chocou contra a
amurada da galeota. Acrescentou que não saberia dizer o que fizera ou não fizera
com Compey son, mas que no momento em que puxou seu capote para
identificá-lo, o canalha levantara-se e recuara, e os dois caíram nágua juntos; o
ato de arrancar Magwitch de nosso bote e os esforços de seu captor no sentido de
segurá-lo tiveram o efeito de fazer com que nosso barco virasse. Num sussurro,
Magwitch contou-me que eles dois haviam afundado cingidos num abraço feroz
e lutado debaixo dágua, ele conseguira desvencilhar-se, golpeara o outro e subira
à tona.
Nunca tive motivo de questionar a veracidade de suas palavras. O homem do
leme da galeota fez idêntico relato do momento em que os dois caíram nágua.
Quando pedi a esse policial permissão para mudar o traje molhado do
prisioneiro, adquirindo algumas roupas na estalagem, o homem me autorizou de
imediato, observando apenas que ele teria de se responsabilizar por todos os
objetos que estivessem em posse do prisioneiro. Assim, a carteira de dinheiro que
outrora estivera em minhas mãos foi entregue ao policial. Ele permitiu-me
também que eu acompanhasse o prisioneiro até Londres, mas não estendeu a
autorização a meus dois amigos.
Jack, o homem dA Nau, foi levado ao lugar onde o afogado havia
desaparecido, e pôs-se a procurar o corpo nos lugares onde era mais provável
que ele fosse encontrado. Seu interesse pareceu acentuar-se bastante quando lhe
foi dito que o afogado estava usando meias. Pelo visto, seriam necessários mais
de dez afogados para lhe proporcionar um guarda-roupa completo; talvez fosse
por isso que as diferentes peças de seu vestuário estavam em diferentes graus de
putrefação.
Ficamos na estalagem até a virada da maré, quando então Magwitch foi
levado à galeota. Herbert e Startop decidiram voltar a Londres por terra assim
que pudessem. Nossa despedida foi melancólica, e quando me sentei ao lado de
Magwitch senti que doravante meu lugar seria sempre aquele, enquanto ele
estivesse vivo.
Pois agora a repugnância que ele me inspirava havia desaparecido por
completo, e naquela criatura perseguida, ferida e acorrentada que tomava minha
mão na sua eu via apenas um homem que pretendera ser meu benfeitor, e que
fora afetuoso, grato e generoso para comigo com muita constância durante anos.
Eu via nele apenas um homem que fora muito melhor do que eu fora para com
Joe.
Sua respiração se tornou cada vez mais difícil e dolorosa ao cair da tarde, e
muitas vezes ele não conseguia conter um gemido. Tentei apoiá-lo no meu braço
são, em alguma posição confortável; mas era terrível pensar que, no fundo, eu
não podia lamentar que ele estivesse muito ferido, pois sem dúvida seria melhor
se ele morresse. Eu não duvidava que ainda vivessem pessoas que eram capazes
de identificá-lo, e estavam dispostas a fazê-lo, e não tinha esperanças de que ele
viesse a ser tratado com leniência. Fora pintado com as piores cores no tribunal;
escapara da prisão e fora preso novamente; voltara do degredo apesar de ter
recebido pena de exílio perpétuo; e causara a morte do homem que levara a sua
apreensão.
Enquanto voltávamos em direção ao sol poente que havíamos deixado para
trás na véspera, e a correnteza de nossas esperanças parecia estar refluindo por
completo, eu lhe disse o quanto lamentava ter ele voltado à Inglaterra por minha
causa.
Meu menino querido, respondeu-me, estou satisfeito de ter corrido esse
risco. Eu pude ver meu menino, e ele há de conseguir se tornar um cavalheiro
sem mim.
Não. Eu pensara nisso, enquanto estávamos os dois sentados lado a lado. Não.
Independentemente de minhas próprias inclinações, eu compreendia agora o que
Wemmick dera a entender. Parecia-me claro que, quando Magwitch fosse
condenado, todos seus bens seriam confiscados pela Coroa.
Olha só, meu menino, disse ele. Como cavalheiro, é melhor que tu não
me conheças mais de agora em diante. Só venhas me visitar se por acaso
estiveres com o Wemmick. Fica onde eu possa te ver, quando eu for a
julgamento pela última vez, depois de tantas vezes, e eu não peço mais nada.
Jamais vou deixá-lo, respondi, desde que me permitam que fique perto
do senhor. Se Deus quiser, hei de lhe ser tão fiel quanto o senhor tem sido fiel a
mim!
Senti que sua mão tremia, ao apertar a minha, e ele virou-se para o lado, ao
deitar-se no fundo do barco, e ouvi aquele velho som em sua garganta
suavizado agora, como tudo o mais. Foi bom que ele tocasse nesse assunto, pois
me fez pensar em algo que talvez só viesse a me ocorrer tarde demais: Magwitch
não deveria jamais saber que suas esperanças de me tornar rico haviam
fracassado.
16
Ele foi conduzido ao tribunal no dia seguinte, e só não foi levado a julgamento de
imediato porque era necessário mandar vir um oficial que tivesse trabalhado na
presiganga da qual ele fugira, para confirmar sua identidade. Ninguém tinha
dúvida quanto a ela; porém, Compey son, que pretendia dar seu depoimento,
estava ao sabor das marés, morto, e por acaso não havia lá no momento nenhum
funcionário da prisão que pudesse dar o testemunho necessário. Eu recorrera
diretamente ao sr. Jaggers, indo à sua casa na noite mesmo em que cheguei a
Londres, para pedir sua ajuda, e ele se recusara a admitir o que quer que fosse
em benefício do prisioneiro. Nada havia a fazer, pois, segundo ele, o caso seria
encerrado dentro de cinco minutos depois que chegasse a testemunha, e não
havia no mundo alguém que tivesse o poder de impedir que o depoimento fosse
contrário a nós.
Expliquei ao sr. Jaggers que tencionava ocultar do prisioneiro o destino que
teria sua fortuna. O advogado ficou indignado comigo por ter eu deixado que o
dinheiro escapulisse por entre meus dedos, e disse-me que mais tarde
haveríamos de fazer um requerimento, e ao menos tentar de algum modo
conseguir uma parte dele. Não me ocultou, porém, que, embora houvesse muitos
casos em que o confisco não era feito, no caso em questão não havia
circunstâncias que favorecessem tal desfecho. Isso eu entendia muito bem. Não
tinha eu nenhum grau de parentesco com o criminoso, nem qualquer vínculo
reconhecido com ele; o homem não deixara nenhuma declaração por escrito em
meu favor antes de ser preso, e fazê-lo agora seria inútil. Eu não tinha nenhum
direito àquela fortuna, e por fim decidi, uma decisão à qual desde então me
mantive fiel, que jamais me imporia a tarefa vã de tentar provar que tinha tal
direito.
Não havia motivo para supor que o delator afogado esperasse receber como
recompensa uma parte do dinheiro confiscado, nem que ele soubesse detalhes
precisos sobre a situação financeira de Magwitch. Quando encontraram seu
corpo, muito longe do lugar onde ele morrera, e tão horrivelmente desfigurado
que só puderam reconhecê-lo com base no que havia em seus bolsos, ainda havia
anotações legíveis dentro de uma pasta que ele levava. Entre elas estava o nome
de um estabelecimento bancário em Nova Gales do Sul onde fora depositada
uma quantia, e uma relação de terras de valor considerável. Ambas essas
informações estavam numa lista que Magwitch, no tempo em que estivera preso,
dera ao sr. Jaggers, contendo os bens que ele imaginava que eu herdaria. Sua
ignorância terminou sendo boa para ele; o pobre-diabo jamais desconfiou de que
minha herança estivesse bem protegida, com a ajuda do sr. Jaggers.
Após três dias, durante os quais a promotoria aguardou a chegada da
testemunha da presiganga, o caso foi facilmente resolvido com o depoimento
esperado. O julgamento foi programado para a próxima sessão do tribunal, que
ocorreria em um mês.
Foi nessa triste época de minha vida que Herbert chegou do trabalho uma
noite um tanto desanimado, e me disse:
Meu caro Handel, infelizmente creio que terei de deixar-te em breve.
Como seu sócio já me havia preparado para essa notícia, fiquei menos
surpreso do que ele esperava.
Perderemos uma ótima oportunidade se eu adiar minha ida ao Cairo, e
temo ter que ir embora, Handel, quando tu mais precisas de mim.
Herbert, sempre precisarei de ti, porque sempre serás meu amigo querido;
mas minha necessidade não é maior agora do que em qualquer outra ocasião.
Ficarás muito sozinho.
Não tenho tempo para me preocupar com isso, repliquei. Sabes que
estarei com ele todo o tempo que me permitirem, e que ficaria com ele o dia
inteiro, se pudesse. E quando eu não estiver com ele, sabes que estarei pensando
nele sempre.
A situação terrível em que Magwitch se encontrava de tal modo nos
horrorizava que preferíamos não mencioná-la de modo mais direto.
Meu caro, disse Herbert, dada a proximidade de nossa separação pois
ela está mesmo muito próxima peço-te que me deixes perguntar-te uma
coisa: tens pensado no teu futuro?
Não, pois tenho medo de pensar no futuro, no meu ou em qualquer outro.
Mas não há como não pensar no teu; não, meu queridíssimo Handel,
impossível não pensar nisso. Gostaria que o fizesses agora, a ponto de trocar
umas poucas palavras comigo.
Certo, concordei.
Nesta nossa filial, Handel, vamos precisar de um
Vi que, por delicadeza, ele evitava usar a palavra correta, e assim completei:
Um caixeiro.
Um caixeiro. E espero não ser de todo improvável que ele venha um dia
(tal como aconteceu com um caixeiro teu conhecido) a se tornar também sócio
da firma. Portanto, Handel em suma, meu querido amigo, vens trabalhar
conosco?
Havia algo de encantador na cordialidade, de cativante na maneira como,
após dizer Portanto, Handel, como se, em meio a um sério preâmbulo de um
pronunciamento profissional, ele de repente abandonasse aquele tom, estendesse
sua mão honesta e falasse como um colegial.
Eu e a Clara temos conversado muito sobre isso, insistiu Herbert, e aquela
criaturinha querida implorou hoje mesmo, com lágrimas nos olhos, que eu te
dissesse que, se vieres morar conosco quando estivermos juntos, ela fará o
possível para te fazer feliz, e para convencer o amigo de seu marido que ele é
amigo dela também. Nós nos daríamos tão bem, Handel!
Agradeci efusivamente, a ele e a ela também, mas respondi que ainda não
lhe podia dizer com certeza se aceitava sua generosa oferta. Primeiro, porque
minha cabeça estava tão cheia de preocupações que eu ainda não podia pensar
no assunto com clareza. Segundo
sim! Segundo, porque eu tinha alguma coisa
vaga permeando meus pensamentos, a qual virá à tona quase no final desta
minha despretensiosa narrativa.
Mas se pensas, Herbert, que poderias, sem prejudicar tua firma, deixar a
questão em aberto por um tempo
Pelo tempo que quiseres, exclamou ele. Seis meses, um ano!
Nem tanto assim, respondi. Dois ou três meses, no máximo.
Herbert ficou satisfeitíssimo quando trocamos um aperto de mãos para selar
o acordo, e disse que agora tinha coragem de me dizer que partiria no final da
semana.
E a Clara?, indaguei.
A criaturinha querida, respondeu-me, fica ao lado do pai enquanto ele
durar; mas não há de durar muito tempo. A senhora Whimple me confidenciou
que ele já está por um fio.
Sem querer ser insensível, comentei, é o que ele tem de melhor a fazer.
Infelizmente, tenho que concordar contigo, disse Herbert. Quando isso
acontecer, venho buscar a minha criaturinha querida, e eu e ela vamos
discretamente à igreja mais próxima. Não esqueças! A minha abençoada
criaturinha não tem família, meu caro Handel, e nunca abriu o livro vermelho,1
e não faz ideia de quem terá sido o avô dela. Que belo destino para o filho de
minha mãe!
No sábado dessa mesma semana, despedi-me de Herbert cheio de
esperanças alegres, porém triste por ter de me deixar quando ele já estava
dentro de uma das carruagens que levam ao cais do porto. Entrei num café e
escrevi um bilhete para Clara, dizendo-lhe que ele partira com mil juras de amor
para ela, e então voltei para minha casa vazia se é que merecia tal nome, pois
não era mais um lar para mim, e eu não tinha mais lar em parte alguma.
Na escada encontrei Wemmick, que estava descendo, tendo tentado sem
sucesso aplicar os nós dos dedos à minha porta. Eu não o via sozinho desde aquela
desastrada tentativa de fuga, e ele viera, em caráter particular e pessoal, para me
dar uma breve explicação a respeito daquele fracasso.
O falecido Compey son, disse Wemmick, havia aos poucos levantado
metade dos fatos a respeito do assunto em questão, e a partir do que disseram
alguns dos homens dele que estavam em apuros (pois há sempre alguns homens
dele em apuros) fiquei sabendo do que soube. Mantive os ouvidos bem abertos,
dando a impressão de que estavam fechados, até ouvir dizer que ele estava fora,
e julguei então que seria a melhor hora de fazer a tentativa. Só posso concluir,
agora, que ele tinha o hábito, homem muito inteligente que era, de enganar seus
próprios asseclas. Espero que não ache que a culpa foi minha, não, senhor Pip?
Garanto que tentei ajudá-lo, com todo o meu empenho.
Disso tenho tanta certeza, Wemmick, quanto você mesmo tem, e agradeço
muito seu interesse e sua amizade.
Obrigado, muito obrigado. Foi um serviço malfeito, disse Wemmick,
coçando a cabeça, e lhe garanto que há muito tempo não me sinto tão
apoquentado. O que me quizila é perder tantos valores portáteis. Que coisa!
O que incomoda a mim, Wemmick, é pensar no proprietário desses
valores.
Claro, claro, disse Wemmick. Compreende-se que o senhor tenha pena
dele, e eu seria capaz de gastar cinco libras do meu próprio bolso para tirá-lo de
lá. Mas olhe só como eu vejo a situação. Tendo o falecido Compey son tido
ciência de que ele havia voltado para a Inglaterra, e estando decidido a fazer
com que ele fosse preso, a meu ver não havia jeito de salvá-lo. Por outro lado, os
valores portáteis podiam muito bem ter sido salvos. Essa é a diferença entre os
valores e o proprietário, o senhor entende?
Convidei Wemmick a subir e tomar um copo de grogue antes de voltar a pé
para Walworth. Ele aceitou. Enquanto tomava uma dose moderada, após dar
mostras de certa inquietação, sem mais nem menosq saiu-se com esta:
O que o senhor acha de minha ideia de tirar uma folga na segunda-feira,
senhor Pip?
Ora, imagino que você não faça isso há doze meses.
Doze anos, na verdade, disse Wemmick. Pois é. Vou tirar uma folga.
Mais ainda: vou dar uma caminhada. Mais ainda: vou convidá-lo a dar uma
caminhada comigo.
Estava eu prestes a esquivar-me daquele convite, alegando que no momento
eu não faria boa companhia, quando ele se antecipou a mim:
Sei dos seus compromissos, e sei o quanto o senhor está abalado. Mas se
pudesse me fazer esse obséquio, eu lhe ficaria grato. Não é uma caminhada
muito longa, e seria de manhã cedo. Digamos que iria ocupá-lo (com o desjejum
incluído na caminhada) das oito ao meio-dia. O senhor não poderia fazer um
esforço, senhor Pip?
Wemmick fizera tanto por mim, em diversas ocasiões, que o que ele me
pedia para fazer por ele era muito pouco. Respondi que poderia, sim, que o
acompanharia, e ele ficou tão alegre com minha aceitação que também me
alegrei. Atendendo a seu pedido, combinei de encontrar-me com ele no castelo
às oito e meia da manhã de segunda-feira, e em seguida nos despedimos.
Pontualmente, bati ao portão do castelo na manhã de segunda, e fui recebido
pelo próprio Wemmick, que me pareceu mais bem vestido do que de hábito,
usando um chapéu mais elegante. Na sala havia dois copos de leite com rum e
dois biscoitos. O idoso, ao que parecia, levantara-se cedo, pois ao olhar de
relance para seu quarto observei que a cama estava vazia.
Havendo nos fortificado após beber o rum com leite e comer os biscoitos,
estando assim preparados para a caminhada, qual não foi meu espanto ao ver
Wemmick pegar um caniço de pesca e levá-lo ao ombro. Então vamos
pescar?, perguntei. Não, respondeu-me Wemmick, mas gosto de caminhar
com um caniço.
Achei isso estranho, mas nada disse, e partimos. Seguimos em direção a
Camberwell Green, e quando já nos aproximávamos do parque Wemmick
exclamou de repente:
Ora! Uma igreja!
Não havia nada de espantoso no fato; mais uma vez, entretanto, fiquei um
tanto surpreso quando ele disse, como animado por uma ideia brilhante:
Que tal entrar?
Entramos, depois que Wemmick largou seu caniço no átrio, e ficamos
olhando à nossa volta. Nesse ínterim, Wemmick estava procurando alguma coisa
nos bolsos do paletó e terminou pegando um embrulho.
Ora!, exclamou. Dois pares de luvas! Que tal calçá-las?
Como eram luvas de pelicas brancas, e como a caixa de correio de
Wemmick estava agora escancarada ao máximo, comecei a ficar muito
desconfiado. Minhas suspeitas foram confirmadas quando vi o idoso entrar por
uma porta lateral, acompanhando uma senhora.
Ora!, exclamou Wemmick. É a senhora Skiffins! Que tal um
casamento?
A discreta donzela usava seus trajes habituais, com a única diferença de que
estava no momento ocupada em substituir suas luvas de pelica verdes por luvas
brancas. Também o idoso estava no momento preparando um sacrifício
semelhante para o altar de Himeneu.2 Para o ancião, porém, era tão difícil
calçar as luvas que Wemmick foi obrigado a encostá-lo num pilar e puxá-las,
enquanto eu o segurava em torno da cintura para que ele resistisse a esses
esforços. Graças a esse engenhoso recurso, suas luvas foram por fim calçadas à
perfeição.
O acólito e o pároco então chegaram, e fomos dispostos ao longo daquela
balaustrada fatal. Levando às últimas consequências a pretensão de estar agindo
o tempo todo de improviso, Wemmick disse a si próprio, tirando algo do bolso do
colete antes do início da cerimônia: Ora! Uma aliança!.
Atuei como padrinho do noivo, enquanto uma empregadinha da igreja, uma
moça flácida com uma touca como as que usam os bebês, fez de conta que era
amiga do peito da sra. Skiffins. A responsabilidade de levar a noiva ao altar coube
ao idoso, o que teve o efeito não intencional de escandalizar o clérigo, e a coisa se
deu assim: Quando ele perguntou Quem dá esta mulher como esposa a este
homem? , o ancião, não fazendo a menor ideia do momento da cerimônia a
que havíamos chegado, permaneceu mudo, contemplando sorridente os dez
mandamentos. O pároco insistiu: quem dá esta mulher como esposa a este
homem?. Como o ancião permanecesse em seu estado de tranquila
inconsciência, o noivo exclamou, com sua voz costumeira: Caro idoso, o senhor
sabe muito bem; quem é que dá?. Respondeu o idoso, com muita presteza, antes
de dizer que era ele quem dava: Está bem, John, está bem, meu rapaz!. E o
pároco fez uma pausa tão funesta que por um momento cheguei a pensar que
dificilmente conseguiríamos realizar o casamento naquele dia.
Porém, a coisa foi levada a cabo, e quando saíamos da igreja Wemmick
destampou a pia batismal, pôs as luvas brancas dentro dela e fechou-a de novo. A
sra. Wemmick, pensando no futuro, guardou no bolso as suas luvas brancas e
voltou a calçar as verdes. Diga-me lá, senhor Pip, disse Wemmick,
recolocando no ombro o caniço, com um gesto triunfal, ao sairmos da igreja, se
alguém seria capaz de imaginar que estamos comemorando um casamento!
Ele já havia encomendado um desjejum numa taverna pequena e
agradável, a menos de dois quilômetros dali, numa colina do outro lado do
parque; e nessa taverna havia uma mesa de bagatelle,* para se por acaso
quiséssemos nos descontrair depois da solenidade. Percebi, com prazer, que a
sra. Wemmick agora não desenroscava mais o braço de Wemmick quando ele se
adaptava às curvas de seu corpo, porém, sentada numa cadeira de encosto alto
junto à parede, como um violoncelo em seu estojo, submetia-se àquele abraço,
tal como o melodioso instrumento o faria.
Fizemos uma excelente refeição, e sempre que alguém recusava algo
Wemmick dizia: Foi incluído na encomenda; pode comer sem medo!. Brindei
o novo casal, o idoso, o castelo, saudei a noiva na hora das despedidas, e fui tão
simpático quanto consegui ser.
Wemmick veio até a porta comigo, e mais uma vez troquei com ele um
aperto de mãos, e desejei-lhe felicidades.
Brigado!, exclamou Wemmick, esfregando as mãos. Ela é uma
excelente administradora de aves, o senhor não imagina. Vou lhe dar uns ovos, e
o senhor vai poder julgar. Veja lá, senhor Pip!, ele chamou-me de volta e disse,
em voz baixa: Este sentimento é inteiramente de Walworth, por favor.
Compreendo. Não é para ser mencionado em Little Britain, retruquei.
Wemmick concordou com a cabeça. Depois do que o senhor revelou
naquele dia, melhor o senhor Jaggers não ficar sabendo de nada. Ele pode pensar
que estou ficando com o miolo mole, ou coisa parecida.
* Bagatelle: jogo em que se utilizam um taco e nove bolas, numa mesa
retangular com bolas e obstáculos. (n. t.)
17
Na prisão, ele permaneceu deitado, muito doente, durante todo o intervalo entre o
momento em que foi detido e o início da sessão do júri. Havia fraturado duas
costelas, as quais feriram um de seus pulmões, e respirava com muita dor e
dificuldade, que aumentavam a cada dia. Em consequência do ferimento, falava
tão baixo que mal se conseguia ouvi-lo; por esse motivo, falava muito pouco. Mas
estava sempre disposto a me ouvir; e passou a ser meu principal dever dizer-lhe,
e ler para ele, o que eu sabia que ele deveria ouvir.
Por estar doente demais para permanecer numa prisão comum, depois de
um ou dois dias foi transferido para a enfermaria. Isso me deu uma oportunidade
de passar mais tempo fazendo-lhe companhia do que me teria sido permitido em
outras circunstâncias. Ademais, não fosse sua doença, ele teria sido posto a
ferros, por ser considerado um fujão pertinaz, e não sei que outras coisas.
Embora eu o visse todos os dias, era por pouco tempo apenas; portanto, os
intervalos regulares que separavam minhas visitas eram longos o bastante para
que eu pudesse perceber em seu rosto quaisquer sinais sutis de alterações
ocorridas em seu estado físico. Não me lembro de ter visto uma única vez
alguma mudança para melhor; ele definhava, tornando-se mais fraco e mais
doente, a cada dia, desde que foi encerrado no cárcere.
A espécie de submissão ou resignação que demonstrava era a de um homem
exaurido. Por vezes me parecia, com base em seu aspecto ou em uma ou duas
palavras que escapavam de seus lábios, que ele estava a se perguntar se não
poderia ter sido um homem melhor, dadas circunstâncias melhores. Porém,
jamais se justificou com nenhum comentário indireto desse teor, nem tentou
distorcer a forma que o passado assumira por toda a eternidade.
Aconteceu duas ou três vezes, na minha presença, de uma ou outra pessoa
que cuidava dele aludir a sua terrível reputação. Nesses momentos um sorriso
brotava em seu rosto, e ele voltava os olhos para mim com uma expressão
confiante, como se para afirmar que sabia que eu vira nele alguma pequena
qualidade positiva, mesmo que fosse tantos anos antes, quando eu era criança. No
mais, era humilde e contrito, e jamais o ouvi queixar-se.
Quando foi aberta a sessão do júri, o sr. Jaggers requereu que o julgamento
fosse adiado para a sessão seguinte.1 O pedido foi feito, claramente, com base na
certeza de que o prisioneiro não viveria tanto tempo, e foi indeferido. O
julgamento teve início de imediato, e quando ele foi levado ao banco dos réus,
sentaram-no numa cadeira. Permitiram que eu me sentasse perto dele, ainda que
do lado de fora da grade, e segurasse a mão que ele estendia a mim.
O julgamento foi muito curto e muito direto. Tudo que podia ser dito em seu
favor foi dito que ele se tornara trabalhador, e obtivera a prosperidade graças
ao trabalho legal e honesto. Mas não havia como negar o fato de que ele voltara
do degredo, e estava ali, na presença do juiz e do júri. Não havia como julgá-lo
pelo crime de retornar do desterro e não declará-lo culpado.
Naquela época, era habitual (como fiquei sabendo a partir da terrível
vivência daquelas sessões) dedicar o último dia da sessão à leitura das sentenças,
e causar grande efeito terminando com a sentença de morte. Não fosse a
imagem indelével que ficou gravada na minha memória, eu mal conseguiria
acreditar, no momento em que escrevo estas palavras, que vi trinta e dois
homens e mulheres levados diante do juiz para receber tal sentença juntos. O
primeiro de todos era ele; sentado, a fim de que pudesse respirar o suficiente
para não morrer.
Toda a cena se desenrola outra vez diante de meus olhos, nas cores vívidas
do momento, até mesmo as gotas das chuvas de abril nas janelas do tribunal,
brilhando ao sol de abril. Confinados ao banco dos réus, estando eu do lado de
fora, segurando a mão dele, estavam os trinta e dois homens e mulheres: uns
arrogantes, uns paralisados de terror, uns soluçando e chorando, uns cobrindo os
rostos, uns lançando olhares soturnos à sua volta. Algumas das prisioneiras
gritaram, porém foram obrigadas a calar-se, e o silêncio se fez. Os xerifes, com
suas longas correntes e flores na lapela, outros petrechos e monstros cívicos,
pregoeiros, meirinhos, uma enorme galeria cheia de gente uma numerosa
plateia de teatro assistia ao confronto solene entre os trinta e dois e o juiz.
Então o juiz dirigiu-se a eles. Uma das criaturas miseráveis à sua frente a quem
ele tinha de dar um destaque especial era um homem que quase desde a
primeira infância vivera como fora-da-lei; que, após várias prisões e castigos,
fora por fim condenado ao exílio por um determinado período; e que, em
circunstâncias de extrema violência e ousadia, conseguira fugir e recebera como
punição o degredo perpétuo. Este miserável parecera por algum tempo ter
tomado consciência de seus erros, estando muito afastado do cenário de seus
crimes de juventude, e vivendo uma vida tranquila e honesta. Porém, num
momento fatal, cedendo a suas velhas inclinações e paixões, as quais o haviam
por tanto tempo transformado num flagelo da sociedade, ele abandonara seu
refúgio de repouso e arrependimento, voltando ao país do qual fora banido. Antes
de ser denunciado, por algum tempo conseguiu escapar da Justiça, mas quando
por fim foi capturado, em plena fuga, não só ofereceu resistência como também
só ele próprio sabia se propositalmente ou se na cegueira de seu atrevimento
causou a morte daquele que o denunciara, o qual era conhecedor de toda sua
carreira criminosa. A punição prescrita para o crime de retornar ao país de onde
ele fora banido era a pena de morte, e no seu caso, com todos os agravantes, ele
teria de preparar-se para morrer.
O sol entrava pelos janelões do tribunal, atravessando as gotas dágua
reluzentes que escorriam pelas vidraças, lançando um feixe largo de luz entre os
trinta e dois e o juiz, juntando aqueles a este, e talvez trazendo à lembrança de
alguns dos espectadores que tanto aqueles quanto este um dia seriam submetidos,
em termos de absoluta igualdade, ao Juízo mais elevado, que tudo sabe e jamais
erra. Levantando-se por um momento, o rosto um ponto a brilhar na luz, o
prisioneiro disse: Meritíssimo, recebi minha sentença de morte do Todopoderoso,
porém submeto-me à sua, e voltou a sentar-se. Ouviram-se alguns
psius, e o juiz continuou dizendo o que tinha a dizer aos outros condenados. Em
seguida, a sorte de todos foi formalmente lançada; alguns precisaram de apoio
para sair do recinto, e outros saíram com passo confiante e uma expressão feroz
de coragem no rosto; uns poucos acenaram com a cabeça para a galeria, dois ou
três trocaram apertos de mão, e outros saíram mascando fragmentos das plantas
aromáticas que havia no recinto. Ele foi o último a sair, porque precisava de
ajuda para se levantar da cadeira e porque caminhava muito devagar; e ficou
segurando minha mão enquanto todos os outros eram retirados, e enquanto a
plateia se levantava (ajeitando as roupas, como se estivessem na igreja ou em
outro lugar qualquer) e apontava para este ou aquele criminoso, principalmente
para ele e para mim.
Eu desejava intensamente e pedia em minhas preces, que ele morresse antes
que o juiz fizesse seu relatório;2 temendo, porém, que sobrevivesse, comecei
naquele mesma noite a redigir uma petição dirigida ao Secretário para os
Assuntos Internos, explicando de que modo eu o conhecera e relatando que ele
voltara à Inglaterra por mim. Adotei o tom mais fervoroso e patético possível, e
após concluí-la e enviá-la, escrevi outras petições dirigidas às autoridades que me
pareciam ser as mais misericordiosas, até mesmo à própria Coroa. Por alguns
dias e noites após a sentença de morte, eu só encontrava descanso quando
adormecia sentado em minha cadeira; dedicava-me em tempo integral a esses
documentos. E depois que os despachei, não conseguia afastar-me dos lugares
onde haviam sido entregues, porém tinha a impressão de que eles possuíam mais
chances e se tornavam menos inúteis quando eu estava perto deles. Nesse estado
de inquietude irracional e sofrimento mental, eu caminhava pelas ruas à noite, na
vizinhança das repartições e casas onde eu deixara as petições. Até hoje, as ruas
do oeste de Londres, numa noite fria e poeirenta de primavera, com suas
mansões severas fechadas e suas longas fileiras de lampiões, despertam
sentimentos melancólicos em mim.
As visitas diárias que me eram permitidas agora eram mais curtas, e ele era
vigiado de forma mais severa. Percebendo, ou imaginando, que suspeitavam que
eu planejasse levar veneno para o prisioneiro, pedi que me revistassem antes que
eu me sentasse à sua cabeceira, e disse ao carcereiro cuja presença era
constante que estava disposto a fazer qualquer coisa para convencê-lo de que eu
não tinha segundas intenções. Ninguém era ríspido com ele, nem comigo. Havia
um dever a cumprir, o qual era cumprido, mas sem rispidez. O carcereiro
sempre me garantia que a saúde dele havia piorado, e alguns dos outros
prisioneiros doentes que também estavam ali, bem como os prisioneiros que
deles cuidavam como enfermeiros (malfeitores, sim, porém capazes de gestos
de bondade, graças a deus!), sempre confirmavam essa avaliação.
À medida que os dias passavam, eu percebia que ele se tornava mais e mais
inerte, olhando placidamente para o teto branco, sem nada que lhe iluminasse o
rosto, até que alguma palavra dita por mim acendesse uma luz por um instante,
mas em seguida ela voltava a se apagar. Em certas ocasiões ele mal conseguia
falar, ou de fato emudecia; então ele me respondia com pequenas pressões em
minha mão, e aprendi a compreender muito bem o que ele queria dizer.
Quando já se haviam passado dez dias, vi nele uma mudança maior do que
as que tinham ocorrido até então. Seus olhos estavam voltados para a porta, e
brilharam quando entrei.
Querido menino, disse ele, quando me sentei ao lado da cama, pensei que
te atrasavas. Mas eu sabia que isso não podia ser.
Cheguei à hora de sempre, disse eu. Esperei no portão até o momento de
entrar.
Tu sempre esperas lá no portão, não é, meu menino querido?
Sim. Para não perder um único instante.
Brigado, meu menino querido, brigado. Deus te abençoe. Tu nunca que me
abandonaste, não.
Apertei sua mão em silêncio, pois não conseguia esquecer que outrora
pretendera abandoná-lo.
E o melhor de tudo, disse ele, é ver que estás mais à vontade do meu lado
despois que o céu escureceu pra mim do que estavas antes, quando o sol estava
brilhando. Isso é que é o melhor de tudo.
Ele estava deitado de costas, respirando com muita dificuldade. Por mais que
tentasse, por maior que fosse o amor que tinha por mim, a luz de seu rosto
apagou-se para sempre, e um véu desceu sobre o olhar tranquilo voltado para o
teto.
A dor aumentou muito hoje?
Não me queixo de nada, não, meu menino querido.
O senhor jamais se queixa.
Aquelas foram suas últimas palavras. Ele sorriu, e compreendi pelo seu
toque que queria levantar minha mão e pô-la sobre seu peito. Foi o que fiz, e ele
voltou a sorrir, e pôs as duas mãos sobre a minha.
O tempo que me era permitido esgotou-se enquanto estávamos ocupados
desse modo; quando, porém, olhei para trás, vi o diretor da prisão perto de mim,
e ele cochichou: Não é necessário sair agora. Agradeci com fervor e
perguntei: Posso falar com ele, se ele ainda puder me ouvir?.
O diretor afastou-se um pouco e fez sinal para que o carcereiro fosse
embora. Essa mudança, embora silenciosa, fez com que o véu descobrisse os
olhos plácidos voltados para o teto, e ele dirigiu a mim um olhar afetuoso.
Meu caro Magwitch, preciso lhe dizer uma coisa, agora, finalmente. Está
entendendo o que digo?
Uma pressão sutil em minha mão.
Sei que teve uma filha querida, e perdeu-a.
Uma pressão mais forte.
Ela sobreviveu e fez amigos poderosos. Está viva. Tornou-se uma dama, e é
belíssima. E eu a amo!
Com um débil esforço derradeiro, que nada teria logrado se não contasse
com minha aquiescência e meu auxílio, ele levantou minha mão até seus lábios.
Em seguida, delicadamente recolocou-a em seu peito e pousou suas mãos sobre
ela. Novamente voltou o olhar plácido para o teto e assim faleceu, e sua cabeça
pendeu sobre o peito.
Lembrando-me, então, do que havíamos lido juntos, pensei nos dois homens
que entraram no Templo para rezar,3 e entendi que não havia palavras melhores
que eu pudesse dizer junto a seu leito do que estas: Ó Deus, tem misericórdia de
mim, pecador!.
18
Agora que eu estava totalmente só, avisei que tinha intenção de entregar meus
aposentos no Temple tão logo expirasse o prazo do contrato de aluguel, e que
nesse ínterim iria sublocá-los. De imediato pus anúncios nas janelas, pois eu
estava endividado, quase não tinha dinheiro algum, e começava a ficar
seriamente preocupado com o estado de minhas finanças. Melhor dizendo, eu
deveria estar alarmado, se tivesse energia e concentração suficientes para
perceber com clareza qualquer verdade além do fato de que eu estava ficando
muito doente. A tensão recente que sofrera me permitira adiar a doença, mas
não me livrar dela; eu sabia que agora ela haveria de me vitimar, e não sabia
mais quase nada além disso, e não pensava a sério nem mesmo nesse pouco que
sabia.Durante um ou dois dias, permaneci deitado no sofá, ou no chão em
qualquer lugar onde estivesse no momento em que fraquejava com um peso
na cabeça e dor nos membros, sem ânimo e sem forças. Então veio uma noite
que me pareceu muito longa, cheia de ansiedade e horror; e quando, de manhã,
tentei sentar-me na cama e pensar no ocorrido, constatei que não conseguia fazêlo.
Se eu havia de fato descido até o Garden-court, altas horas da noite, tentando
às apalpadelas encontrar o barco que eu imaginava que estivesse lá; se duas ou
três vezes havia recuperado a consciência na escada, apavorado, sem saber
como havia me levantado da cama; se dera por mim acendendo o lampião,
atormentado pela ideia de que Magwitch estaria subindo a escada, e que o vento
apagara as luzes; se eu fora indizivelmente perturbado pelos ruídos enlouquecidos
de alguém falando, rindo e gemendo, e me perguntara se não seria eu mesmo
quem produzia esses ruídos; se havia uma fornalha de ferro fechada num canto
escuro do quarto, e uma voz gritara vez após vez que a sra. Havisham estava
ardendo dentro dela eram essas as questões que eu tentava determinar e pôr
em ordem, deitado na cama naquela manhã. Porém, o vapor de um forno de cal
interpunha-se entre mim e elas, embaralhando tudo, e foi através desse vapor,
por fim, que vi dois homens olhando para mim.
O que vocês querem?, perguntei, assustado. Não os conheço.
Bem, respondeu um deles, abaixando-se e tocando-me no ombro, tratase
de uma questão que o senhor logo resolverá, parece-me; mas o senhor está
preso.
De quanto é a dívida?
Cento e vinte e três libras, quinze xelins e seis pence. Devida a um joalheiro,
creio eu.
O que fazer?
Melhor vir para minha casa,1 disse o homem. Minha casa é muito
confortável.
Fiz uma tentativa de levantar-me e vestir-me. Quando me dei conta dos
homens outra vez, estavam parados a uma pequena distância da cama, olhando
para mim. Eu continuava deitado.
Vocês veem o estado em que estou, disse eu. Eu iria com vocês se
pudesse, mas na verdade não tenho como fazê-lo. Se me tirarem daqui, acho que
vou morrer no caminho.
Talvez eles tenham respondido, ou argumentado comigo, ou tentado me
convencer de que eu estava melhor do que supunha. Mas como eles só vivem na
minha lembrança por esse único fio tênue, não sei o que fizeram; sei apenas que
não me removeram da cama.
Que tive febre e as pessoas me evitavam, que sofri muito, que com
frequência perdi o uso da razão, que o tempo parecia interminável, que eu
confundia existências impossíveis com minha própria identidade; que eu era um
tijolo na parede e no entanto implorava que me soltassem do lugar rodopiante em
que os pedreiros me haviam instalado; que eu era uma barra de aço numa
máquina enorme, a girar ruidosamente à beira de um abismo, e no entanto
implorava como ser humano que parassem a máquina, e que minha peça nela
fosse arrancada a marteladas; que passei por todas essas fases da doença, tudo
isso sei com base na minha própria memória, e até certo ponto tive consciência
disso na ocasião. Que por vezes eu me debatia com pessoas de carne e osso,
julgando serem assassinos, e que de repente entendia que elas queriam meu
bem, e então me entregava exausto a seus braços, e permitia que me deitassem,
disso tive consciência na ocasião. Mas, acima de tudo, eu sabia que havia uma
tendência constante nessas pessoas as quais, quando eu me sentia muito mal,
apresentavam extraordinárias transformações do rosto humano, e assumiam
proporções inusitadas acima de tudo, dizia eu, eu sabia que havia uma
tendência extraordinária nessas pessoas a assumir, mais cedo ou mais tarde, as
feições de Joe.
Quando passou a pior fase de minha doença, comecei a perceber que,
embora todas as suas outras características mudassem, essa persistia de modo
coerente. Quem quer que se aproximasse de mim acabava se transformando em
Joe. Eu abria os olhos durante a noite e via, na poltrona à cabeceira da cama, Joe.
Abria os olhos de dia e, sentado à janela aberta, com a corrediça baixada,
fumando seu cachimbo, via ainda Joe. Pedia uma bebida refrescante, e a mão
querida que a levava aos meus lábios era a de Joe. Deixava a cabeça cair de
volta no travesseiro depois de beber, e o rosto que olhava para mim, cheio de
esperança e ternura, era o rosto de Joe.
Por fim, um dia, criei coragem e perguntei: É mesmo Joe?.
E aquela voz querida, dos tempos de outrora, respondeu: O cujo, ele
mesmo, meu velho.
Ah, Joe, tu partes meu coração! Olha para mim com ar de zangado, Joe.
Bate em mim, Joe. Chama-me de ingrato. Não sejas assim tão bom comigo!
Pois Joe chegara ao ponto de pousar a cabeça no travesseiro a meu lado e
abraçar meu pescoço, tão feliz ficou ao ver que eu o reconhecia.
Meu Pip querido, meu velho, disse Joe, eu e tu sempre fumo amigo. E
quando estiveres bom de novo pra dar uma volta vai ser uma patuscada e
tanto!
Dito isso, Joe voltou para junto da janela e ficou de costas para mim,
enxugando os olhos. E como minha extrema fraqueza me impedia de levantarme
e ir até ele, permaneci deitado, murmurando, penitente: Que Deus o
abençoe! Que Deus abençoe este homem doce e cristão!.
Os olhos de Joe estavam vermelhos quando o vi de novo junto a mim; eu,
porém, estava segurando sua mão, e nós dois estávamos felizes.
Quanto tempo, meu querido Joe?
O que queres dizer, Pip, é quanto tempo durou a tua doença, não é, meu
velho?
Isso mesmo, Joe.
Estamos no final de maio, Pip. Amanhã é primeiro de junho.
E estiveste aqui todo esse tempo, meu querido Joe?
Quase todo, meu velho. Pois, como eu falei pra Biddy quando chegou a
carta dizendo que estavas doente, a cuja foi trazida pelo carteiro, que antes era
solteiro e agora está casado, se bem que ganha pouco, pro tanto que ele anda e
mais o que ele gasta de sola de sapato, mas riqueza não era o que ele queria não,
e casar era o que ele mais queria do fundo do coração
É tão bom te ouvir, Joe! Mas interrompi o que dizias a Biddy .
O cujo, ele prosseguiu, foi que talvez tu estavas no meio de gente
estranha, e que eu e tu sempre fumo amigo, uma visita agora quem sabe não
seria má ideia. E a Biddy, ela virou pra mim e falou assim: Vá ter com ele sem
perder mais tempo. Em suma, eu acho que não estaria te enganando, Joe
acrescentou, após um momento de reflexão séria, se te disser que as palavras
exata da moça foi isso: sem perder nem mais um minuto.
Neste ponto, Joe interrompeu-se, dizendo-me que lhe haviam recomendado
falar comigo apenas com muita moderação, e alimentar-me aos poucos e em
intervalos curtos, tendo eu apetite ou não, e que eu devia fazer tudo que ele
mandasse. Assim, beijei-lhe a mão e calei-me, enquanto ele redigia um bilhete
para Biddy , no qual eu lhe mandava minhas saudações.
Pelo visto, Biddy ensinara-o a escrever. E estando eu deitado na minha
cama, olhando para ele, ao pensar nisso, em meu estado de fraqueza, chorei
mais uma vez, de alegria, por ver o orgulho com que ele compunha sua carta.
Minha cama, sem o dossel, fora levada, estando eu deitado nela, para a sala, por
ser o cômodo mais arejado e mais amplo, e o tapete fora retirado, e a sala era
mantida sempre limpa e arrumada, dia e noite. Era à minha escrivaninha,
empurrada para um canto e coberta de frascos de remédios, que Joe estava
sentado para realizar seu grande feito, primeiro escolhendo uma pena no estojo
como se fosse uma caixa de ferramentas, e arregaçando as mangas como se
fosse empunhar um pé-de-cabra ou uma marreta. Joe precisou apoiar-se
pesadamente na mesa com o cotovelo esquerdo, e dobrar bem a perna direta,
para poder começar, e quando por fim começou, desenhava cada traço
descendente com tanta lentidão que dava a impressão de estar fazendo um risco
de dois metros de comprimento, e a cada traço ascendente eu ouvia sua pena
arranhando bem alto. Curiosamente, ele julgava que o tinteiro estava do lado em
que não estava, e a toda hora mergulhava a pena no ar, parecendo muito
satisfeito com o resultado. De vez em quando esbarrava em algum obstáculo
ortográfico, mas de modo geral saiu-se muito bem, e depois que assinou o nome,
e transferiu um borrão final do papel para seu cocuruto com os dois indicadores,
levantou-se e ficou a rodear a escrivaninha, contemplando o fruto de seu trabalho
de diversos pontos de vista, com uma satisfação ilimitada.
Não querendo preocupar Joe por falar demais, mesmo não podendo falar
demais nem se quisesse, resolvi só pedir notícias da sra. Havisham no dia
seguinte. Ele fez que não com a cabeça quando lhe perguntei se ela se
recuperara.
Ela morreu, Joe?
Ora, meu velho, disse Joe, num tom de admoestação, como se tentando ir
aos poucos, eu não iria ao ponto de falar uma coisa dessa, porque isso é dizer
muito; mas ela não está
Viva, Joe?
É mais ou menos isso, disse Joe; ela não está mais viva.
Ela levou muito tempo para morrer, Joe?
Depois que tu adoeceste, ela levou mais ou menos, se me mandassem dizer
quanto era, assim uma semana, disse Joe, ainda decidido, para me proteger, a ir
aos poucos.
Meu querido Joe, sabes o que vai ser da propriedade dela?
Bom, meu velho, disse Joe, diz-que ela tinha destinado a maior parte dela
à senhora Estella. Mas ela tinha escrevido um codicílio,2 de próprio punho, um ou
dois dias antes do acidente, no qual ela deixava quatro mil libras limpas pro
senhor Matthew Pocket. E sabe por quê, Pip, ela deixou essas quatro mil libras
limpas pra ele? Por causa do que o Pip falou a respeito do dito Matthew. Foi o
que a Biddy me disse que ela escreveu, disse Joe, repetindo aquele detalhe
como se ele lhe fizesse um bem incomparável, a respeito do dito Matthew.
Quatro mil libras limpinhas, Pip!
Jamais descobri com quem Joe aprendeu a destacar a limpeza das quatro mil
libras, mas o adjetivo parecia aumentar a quantia para ele, e estava claro que lhe
dava prazer insistir nesse ponto.
Este relato muito me alegrou, pois aumentava o valor da única coisa boa que
eu fizera. Perguntei a Joe se ele ficara sabendo se algum outro parente recebera
algum legado.
A senhora Sarah, disse Joe, ganhou vinte e cinco libras por ano pra
comprar remédio, por causa que ela sofre do figo. A senhora Georgiana ganhou
vinte libras, só. A senhora
como é que chama o nome daquele bicho que tem
corcova, meu velho?
Camelo?, respondi, sem entender por que ele haveria de querer saber tal
coisa.
Joe fez que sim com a cabeça. A senhora Camela, que logo entendi ser
uma referência a Camilla, ganhou cinco libras pra comprar uma lamparina pra
ela se animar quando ela acordar no meio da noite.
A precisão desses detalhes era óbvia para mim, e fez-me ter plena confiança
nas informações trazidas por Joe. E agora, disse Joe, ainda estás fraco, meu
velho, e por isso só mais uma novidade por hoje. O velho Orlick andou
arrombando uma casa de família.
Casa de quem?, indaguei.
É bem verdade que ele é meio chegado a se prosear, disse Joe, como que
se desculpando, mas mesmo assim, a casa de um inglês é o castelo dele, e
castelo só se arromba em caso de guerra. E por mais defeito que ele tem, no
fundo do coração ele sempre foi um negociante de cereal.
Foi a casa de Pumblechook que arrombaram, então?
Isso mesmo, Pip, disse Joe, e levaram o dinheiro dele, e beberam o vinho
dele, e comeram a comida dele, e deram um tapa na cara dele, e puxaram o
nariz dele, e amarraram ele na cama, e deram uns sopapos nele, e encheram a
boca dele de semente de frô pra ele não gritar. Mas ele reconheceu o Orlick, e o
Orlick agora está na cadeia.
E foi assim que chegamos a ter uma conversa sem restrições. Demorei para
recuperar minhas forças, mas pouco a pouco fui melhorando; Joe ficou comigo,
e imaginei que eu voltara a ser o pequeno Pip de outrora.
Pois a ternura de Joe era de tal modo adequada à minha necessidade que eu
era como uma criança em suas mãos. Sentado a meu lado, ele falava-me com a
confiança de outrora, e a simplicidade de outrora, com seu jeito despretensioso e
protetor de outrora, e eu quase chegava a crer que toda a minha vida desde que
eu saíra da nossa velha cozinha era um dos efeitos mentais da febre que havia
passado. Ele fazia tudo por mim, menos os trabalhos domésticos, para os quais
contratou uma mulher muito decente, depois de pagar e dispensar a lavadeira
assim que chegou. A cuja, eu te garanto, Pip, ele dizia sempre, para justificar
a liberdade que tomara, eu peguei furando a cama de hóspede, que nem se
fosse um barril de cerveja, e punhando as pena num balde pra vender. Ia acabar
furando a tua cama também, pra tirar as pena contigo deitado nela, e levando o
carvão na sopeira e na travessa de legume, e levando o vinho e o rum nas tuas
bota de cano alto.
Aguardávamos com impaciência o dia em que eu poderia sair para dar um
passeio, como outrora aguardávamos o dia em que eu me tornaria aprendiz. E
quando o dia chegou, veio uma carruagem descoberta, Joe agasalhou-me,
pegou-me no colo, carregou-me escada abaixo e colocou-me dentro da
carruagem, como se eu ainda fosse a criaturinha indefesa à qual ele dera com
tanta abundância a riqueza de sua natureza pródiga.
E Joe sentou-se a meu lado, e juntos saímos em direção ao campo, onde o
verão luxuriante já se manifestava nas árvores e na grama, e doces perfumes
estivais estavam no ar. Por acaso, era um domingo, e ao contemplar a beleza à
minha volta, e pensar que tudo aquilo crescera e mudara, e que as florezinhas
silvestres se haviam formado, e as vozes dos passarinhos se haviam fortalecido,
enquanto eu, pobre de mim, ardia de febre e me debatia em minha cama, a
simples lembrança de ter ardido de febre e me debatido na cama perturbou
minha paz de espírito. Quando, porém, ouvi os sinos dominicais, e olhei mais um
pouco para a beleza que se espalhava a meu redor, senti que minha gratidão
ainda era muito insuficiente que ainda estava fraco demais para sequer ser
grato e apoiei a cabeça no ombro de Joe, tal como eu fazia tantos anos antes
quando ele me levava à feira ou a qualquer outro lugar, e o cenário que me
cercava era demais para meus sentidos ainda tenros.
Após algum tempo, tranquilizei-me um pouco mais, e ficamos a conversar
como fazíamos antigamente, deitados na grama na velha bateria. Joe não
mudara nem um pouco. Exatamente o que ele fora antes nos meus olhos, ele
continuava a ser agora; igualmente fiel, e igualmente bom.
Quando, na volta, ele me levantou outra vez, e me carregou com muita
facilidade cruzando o pátio e subindo a escada, pensei naquele Natal tão
acidentado em que ele me carregara pelo charco afora. Até aquele momento,
não havíamos tocado no assunto dos reveses por mim sofridos, e eu não sabia até
que ponto ele estava informado a respeito dos últimos acontecimentos. Agora eu
duvidava tanto de mim mesmo, e sentia tanta confiança em Joe, que não
conseguia me decidir se deveria falar nisso, vendo que ele não o fazia.
Acaso soubeste, Joe, perguntei-lhe naquela noite, depois de pensar mais
um pouco, enquanto ele fumava seu cachimbo junto da janela, quem era meu
protetor?
Ouvi dizer, respondeu ele, que não era a senhora Havisham, meu velho.
Soubeste quem era, Joe?
Bom, ouvi dizer que foi a pessoa que mandou aquela pessoa te entregar
aquele dinheiro lá na Barqueiros, Pip.
E foi mesmo.
Espantoso!, disse Joe, num tom absolutamente tranquilo.
Soubeste que ele morreu, Joe?, perguntei depois de algum tempo, cada vez
mais hesitante.
Quem? O que mandou entregar o dinheiro?
Ele mesmo.
Acho, disse Joe, depois de meditar por um bom tempo, e de dirigir um
olhar um tanto esquivo para a janela, que ouvi dizer alguma coisa mais ou
menos assim, que ele tinha mais ou menos morrido, sim.
Soubeste das circunstâncias em que ele morreu, Joe?
Soube muita coisa não, Pip.
Se quiseres saber mais, Joe
, comecei, quando Joe se levantou e veio até
meu sofá.
Olha aqui, meu velho, disse Joe, debruçando-se sobre mim. A gente
continua amigo, não é, Pip?
Tive vergonha de responder.
Muito bem, pois, disse Joe, como se eu tivesse de fato respondido; está
bem, isso está acertado. Entonces pra que entrar em detalhe, meu velho, já que
entre amigo não tem precisão dessas coisa? A gente tem muito assunto pra falar,
não precisa falar nessas coisa que não tem precisão. Meu Deus! Quando eu
penso na sua irmã, coitada, e como ela ficava espumando! E te lembras do paude-
cosca?
Se me lembro, Joe.
Olha aqui, meu velho, disse Joe, eu fiz o que pude pra que tu e o pau-decosca
ficasse separado um do outro, mas nem sempre eu conseguia fazer o que
eu queria. Pois quando a tua irmã, coitada, resolvia partir pra cima de ti, o
pobrema, prosseguiu Joe, naquele seu tom de argumentação favorito, não era
que ela partia pra cima de mim se eu ficava contra ela, não, mas que aí mesmo
é que ela caía em cima de ti com toda a vontade. Isso eu percebia. Não era por
medo dela puxar minha barba, nem me dar uns dois safanão (coisa que a tua
irmã tinha todo o direito de fazer) que um homem ia deixar de proteger um
menininho. Mas se o menininho inda vai apanhar mais por conta daquele puxão
na barba ou daquele safanão, entonces o homem pergunta pros botão dele: Que
é que adianta fazer isso? Sei o mal que vai causar, diz o homem, e não sei qual é
o bem. Me diga lá qual é o bem, meu senhor.
O homem diz isso?, perguntei, enquanto Joe fazia uma pausa para que eu
dissesse algo.
O homem diz isso, concordou ele. E o homem tem razão?
Querido Joe, ele tem sempre razão.
Entonces, meu velho, disse Joe, fia-te no que tu mesmo dizes. Se o
homem tem sempre razão (se bem que quase sempre ele se engana), entonces
ele tem razão quando fala assim: Quando eras pequeno, guardavas pra ti teus
pobreminhas, porque sabias que o J. Gargery nem sempre conseguia manter-te
separado do pau-de-cosca. Assim sendo, não penses mais nessas coisa entre nós,
e não vamos falar sobre essas coisa que não tem precisão de falar. A Biddy teve
muito trabalho, antes de eu vir pra cá (porque eu sou muito bronco), pra me
convencer que eu devia de encarar as coisa desse jeito, e também pra me
ensinar como que eu devia de falar, depois que eu já via as coisa como era pra
ver. Agora que eu consegui as duas coisa, disse Joe, encantado com sua própria
lógica, agora eu te digo, falando como amigo: não inzagera, não, come o teu
jantar, toma o teu vinho com água e vai pra cama.
A delicadeza com que Joe pôs de lado o assunto, e o tato e a bondade com
que Biddy a qual, com sua argúcia de mulher, descobrira tudo preparara-o
para conversar comigo, muito me impressionaram. Mas se Joe sabia o quanto eu
estava pobre, e que minhas grandes esperanças se haviam dissipado tal como as
névoas de nosso charco quando o sol esquentava, disso eu não fazia ideia.
Eis outra coisa a respeito de Joe que eu não compreendi quando começou a
surgir, mas que não demorei a entender, e lamentar: à medida que eu ficava
mais forte e melhor de saúde, Joe ficava menos à vontade comigo. Quando eu
estava fraco e de todo dependente dele, meu querido Joe assumira o velho tom
de antes, e me chamava pelos velhos nomes, Pip, meu velho, meu velho,
que agora eram música nos meus ouvidos. Eu também assumira meu jeito
antigo, e sentia-me feliz e grato por ele me permitir tal coisa.
Imperceptivelmente, porém, embora eu me apegasse a esse meu jeito com
unhas e dentes, Joe foi abrindo mão do seu; e se de início eu não compreendia o
que estava acontecendo, logo ficou claro que a causa do fenômeno estava em
mim, e que a culpa era toda minha.
Ah! Então eu não dera a Joe motivo para duvidar de minha constância, para
levá-lo a crer que, quando próspero, eu me tornaria frio com ele e o afastaria?
Não dera eu a seu coração inocente nenhum motivo para sentir instintivamente
que, à medida que eu ficasse mais forte, seu domínio sobre mim haveria de
diminuir, e que seria melhor ele relaxá-lo e deixar que eu me afastasse, antes
que eu próprio me livrasse dele?
Foi na terceira ou quarta vez em que fui caminhar nos Temple Gardens,
amparado pelo braço de Joe, que percebi essa mudança nele com muita clareza.
Estávamos sentados ao sol quente, olhando para o rio, e quando nos levantamos
comentei, por acaso:
Vê, Joe! Estou andando muito bem. Verás que agora na volta vou caminhar
sem ajuda.
É melhor não inzagerar, disse Joe, mas vou gostar muito de ver que o
senhor consegue.
Aquele o senhor incomodou-me, mas como poderia eu censurá-lo! Andei
até o portão do jardim, e então fingi que me sentia fraco, e pedi a Joe que me
apoiasse. Ele me estendeu o braço, porém ficou pensativo.
Eu, de minha parte, também fiquei pensativo; sentia-me perplexo e cheio de
remorso, tentando encontrar a melhor maneira de deter essa mudança gradual
em Joe. Que eu tinha vergonha de lhe dizer exatamente qual era minha situação,
e a que eu fora reduzido, não vou tentar negar; espero, porém, que essa
relutância não seja de todo censurável. Ele haveria de querer me ajudar,
recorrendo a suas pequenas economias, eu sabia, e eu sabia também que ele não
deveria me ajudar, e que eu não deveria permitir que ele o fizesse.
Naquela noite ficamos pensativos os dois. Mas antes de nos deitarmos, eu
havia decidido que esperaria o dia seguinte, que seria domingo, e na nova
semana seguiria um novo caminho. Na manhã de segunda-feira eu falaria a Joe
a respeito dessa mudança, eu poria de lado esse último vestígio de reserva, diria a
ele o que eu tinha em mente (aquele Segundo
, a que ainda não chegara), e
por que eu não resolvera ir trabalhar com Herbert; assim, a mudança seria
realizada em caráter definitivo. À medida que eu me tranquilizava, Joe também
parecia tranquilizar-se, e era como se ele, por uma faculdade de simpatia, tivesse
também tomado uma decisão.
Passamos um domingo tranquilo, tomamos um carro, saímos da cidade e
ficamos a caminhar pelo campo.
Dou graças a Deus por ter adoecido, Joe, observei.
Pip, meu velho, camarada velho, o senhor já está quase bom.
Para mim, foram dias memoráveis, Joe.
Também pra mim, tanto quanto pro senhor.
Passamos juntos alguns dias, Joe, que jamais hei de esquecer. Dias houve,
eu sei, que de fato esqueci, por algum tempo; mas estes, eu nunca vou esquecer.
Pip, disse Joe, parecendo um pouco afobado e preocupado, foi grandes
patuscadas. E, meu caro senhor, o que a gente fez
a gente fez.
À noite, depois que me deitei, Joe entrou em meu quarto, como vinha
fazendo sempre durante meu período de convalescença. Perguntou-me se eu
estava certo de que me sentia tão bem quanto me sentira pela manhã.
Estou bem, sim, meu querido Joe.
E está cada vez mais forte, meu velho?
Estou, sim, meu querido Joe, cada vez mais.
Joe deu tapinhas no meu ombro por cima da coberta, com sua manzorra
honesta, e disse, com uma voz que me pareceu rouquenha: Boa noite!.
Quando me levantei pela manhã, reanimado e ainda mais forte, só pensava
na minha decisão de me abrir com Joe, sem demora. Eu conversaria com ele
antes do desjejum. Haveria de vestir-me imediatamente, ir ao quarto dele e
surpreendê-lo, pois era a primeira vez que eu acordava cedo. Fui até seu quarto,
e ele não estava lá. Joe não estava mais lá, e seu baú também não.
Corri até a mesa do desjejum, e lá encontrei uma carta. Ela dizia apenas isto:
Sem querer me entrometer fui embora pois agora estás bem outra vez
querido Pip e ficas melhor sem
jo.
P. S. Sempre grandes amigos.
Junto com a carta, encontrei um recibo referente à dívida e aos gastos que
haviam levado à minha ordem de prisão. Até aquele momento eu supunha, na
minha ignorância, que meu credor havia retirado sua queixa, ou que a
suspendera enquanto eu estivesse doente. Jamais imaginara que Joe havia
saldado a dívida; porém ele o fizera, e o recibo estava em seu nome.
Que mais me restava agora, senão ir atrás dele, rumo à minha querida
ferraria, e lá abrir-me de todo com ele, e penitenciar-me, e aliviar minha mente
e meu coração revelando aquele Segundo
, que começara como uma vaga
ideia em minha cabeça, e que se cristalizara numa firme decisão?
O que eu decidira era que voltaria a Biddy , e haveria de lhe mostrar o quanto
eu estava humilde e arrependido, contar-lhe de que modo perdera todas as
minhas esperanças, e lembrar-lhe as confidências que havíamos trocado nos
tempos de minha primeira infelicidade. Então eu lhe diria: Biddy, creio que
gostavas muito de mim, quando meu coração inconstante, muito embora se
afastasse de ti, era mais tranquilo e melhor contigo do que jamais voltou a ser. Se
ainda consegues gostar de mim a metade do que gostavas antes, se consegues me
aceitar com todos os meus defeitos e decepções, se podes me receber como uma
criança perdoada (e, de fato, estou muito arrependido, Biddy, e preciso de uma
voz que me tranquilize e uma mão que me acaricie), espero ser um pouco mais
merecedor de ti do que antes não muito, mas um pouco. E, Biddy, caberá a ti
decidir se devo trabalhar na ferraria com Joe, ou se devo tentar encontrar algum
outro tipo de trabalho em nossa aldeia, ou se devemos ir para algum lugar
distante onde me aguarda uma oportunidade, a qual deixei de lado quando me foi
oferecida, enquanto eu não soubesse qual seria a tua resposta. E agora, querida
Biddy, se podes me dizer que seguirás pelo mundo comigo, certamente farás do
mundo um lugar melhor para mim, e farás de mim um homem melhor, e hei de
esforçar-me ao máximo para fazer do mundo um lugar melhor para ti.
Era essa a minha decisão. Após mais três dias de convalescença, voltei à
minha velha aldeia para realizar meu intento; e o que se passou comigo é tudo
que ainda tenho para relatar.
19
A notícia de minha derrocada espetacular havia chegado à minha aldeia natal e
suas redondezas antes que eu lá chegasse. Descobri que o Javali Azul já estava
em posse dessa informação, e também que ela em muito alterara a atitude do
estabelecimento. Se o Javali cultivara a minha estima com cálida assiduidade
quando eu estava começando a gozar a minha propriedade, ele estava
excepcionalmente frio, agora que eu não tinha mais propriedade nenhuma.
Era noite quando cheguei, exaurido por aquela viagem que eu fizera tantas
vezes antes com facilidade. O Javali não pôde me conceder meu quarto habitual,
que estava ocupado (provavelmente por alguém que tinha grandes esperanças), e
coube-me apenas um quarto bem inferior, em meio aos pombos e às diligências
do pátio. Entretanto, dormi tão profundamente ali quanto no melhor aposento que
o Javali me pudesse ter concedido, e a qualidade de meus sonhos foi mais ou
menos a mesma que teria sido no melhor dos quartos.
De manhã cedo, enquanto preparavam meu desjejum, fui dar uma
caminhada na vizinhança da Casa Satis. Havia cartazes impressos no portão, e
em pedaços de tapete pendurados das janelas, anunciando a venda, em leilão, de
móveis e outros artigos, na semana seguinte. A casa em si seria vendida como
material de construção, e demolida. Lia-se 1o lote, em letras tortas escritas em
cal, na parede da cervejaria, e 2o lote na parte principal do prédio, que ficara
tanto tempo fechada. Outros lotes estavam assinalados em outras partes da
estrutura, e a hera fora arrancada para dar lugar às inscrições; boa parte dela
estava caída no chão de terra, já murcha. Entrando por um momento pelo portão
aberto, com o ar pouco à vontade de um desconhecido que não tinha por que
estar ali, vi o funcionário do leiloeiro andando por cima dos barris e contando-os
em voz alta, enquanto um compilador fazia suas anotações à caneta, usando
como escrivaninha temporária a cadeira com rodas que eu tantas vezes
empurrara, ao som da canção do velho Clem.
Quando voltei ao Javali para comer, encontrei o sr. Pumblechook
conversando com o taverneiro. O sr. Pumblechook (cuja aparência não havia
melhorado por efeito de sua recente aventura noturna) estava à minha espera e
dirigiu-se a mim nos seguintes termos:
Meu jovem, lamento vê-lo arruinado. Mas o que mais se poderia esperar!
Que mais se poderia esperar!
Como ele me estendeu a mão com um magnífico ar de perdão, e como eu
estava enfraquecido pela doença e incapaz de brigar, aceitei-a.
William, disse o sr. Pumblechook ao garçom, ponha um muffin* sobre a
mesa. Então a coisa acabou assim! A coisa acabou assim!
De cara amarrada, sentei-me e comecei a comer. O sr. Pumblechook, em
pé, serviu-me o chá antes que eu tivesse tempo de pegar o bule com o ar
de um benfeitor decidido a ser fiel até o fim.
William, disse o sr. Pumblechook, com uma voz triste, traga o sal. Em
tempos mais felizes, dirigindo-se a mim, creio que você usava açúcar? E leite?
Sim, açúcar e leite. William, traga um pouco de agrião.
Obrigado, disse eu, seco, mas não como agrião.
Não come agrião, retrucou o sr. Pumblechook, suspirando e balançando a
cabeça várias vezes, como se já esperasse aquilo, como se não comer agrião
fosse coerente com minha derrocada. É verdade. Os frutos simples da terra.
Não. Não precisa trazer, não, William.
Continuei a comer, e o sr. Pumblechook permaneceu em pé a meu lado,
com seu olhar fixo de peixe e respirando ruidosamente, como de hábito.
Só pele e ossos!, ruminava ele, em voz alta. E no entanto quando ele
partiu daqui (posso acrescentar, com minha bênção), e eu abri para ele minha
humilde loja, ele estava rechonchudo como um pêssego!
Isso me fez pensar na diferença incrível entre a maneira servil com que ele
me oferecera a mão, quando eu acabara de me tornar próspero, indagando:
Posso?, e a clemência ostensiva com que ainda há pouco exibira os mesmos
cinco dedos.
Ah! exclamou ele, entregando-me o pão com manteiga. E vai agora ter
com o Joseph?
Pelo amor de Deus, exclamei, sem conseguir mais me controlar, o que
lhe importa aonde vou? Largue esse bule.
Foi a pior coisa que eu poderia ter feito, porque deu a Pumblechook a
oportunidade que ele queria.
Sim, meu jovem, disse ele, soltando o bule e afastando-se um passo de
minha mesa, e falando de modo a ser ouvido pelo taverneiro e pelo garçom à
porta, vou largar o bule, sim. Você tem razão, meu jovem. Pela primeira vez,
você tem razão. Foi por distração que eu me interessei pelo seu desjejum, para
que você alimentasse seu organismo, exaurido pelos efeitos debilitantes da
prodigialidade, com a comida salutar dos seus antepassados. E no entanto, disse
Pumblechook, virando-se para o taverneiro e o garçom, apontando-me com o
braço esticado, era com ele que eu brincava no tempo de sua infância feliz! Me
digam que não pode ser; pois eu afirmo que é ele mesmo!
Um murmúrio discreto dos outros dois lhe deu resposta. O garçom parecia
particularmente afetado.
Era ele mesmo, disse Pumblechook, que eu levava na minha carroça.
Ele, que eu criei com a mão. Ele, de cuja irmã me tornei tio por afinidade, cuja
mãe dela era Georgiana Mria, ele que o negue se for capaz!
O garçom parecia convencido de que eu não podia negá-lo, e que isso
tornava a coisa ainda mais séria.
Meu jovem, disse Pumblechook, virando a cabeça para mim à sua
maneira de outrora, você vai ter com o Joseph. O que me importa, você
pergunta, aonde você vai? E eu lhe digo: meu caro, você vai ter com o Joseph.
O garçom tossiu, como se convidando, modestamente, a responder a tal
desafio.
Ora, disse Pumblechook, e tudo isso com o ar mais irritante de dizer na
causa da virtude o que era perfeitamente convincente e conclusivo, vou lhe
falar o que dizer ao Joseph. Aqui está o proprietário do Javali, conhecido e
respeitado nesta cidade, e aqui está o William, cujo nome do pai era Potkins, se
não me engano.
Isso mesmo, senhor, disse William.
Na presença deles, prosseguiu Pumblechook, vou lhe dizer, meu jovem, o
que dizer ao Joseph. Diga o seguinte: Joseph, hoje estive com meu primeiro
benfeitor e fundador da minha fortuna. Não vou dizer quem é, Joseph, mas é
assim que o chamam na cidade, e eu estive com esse homem.
Juro que não o estou vendo aqui, disse eu.
Diga isso também, retorquiu Pumblechook. Diga que você disse isso, e
até mesmo o Joseph vai se surpreender.
Então o senhor não o conhece, disse eu. Eu o conheço bem.
Diga você, prosseguiu Pumblechook. Joseph, eu estive com esse homem,
e ele não me deseja mal, nem a ti nem a mim. Ele te conhece bem, Joseph,
conhece bem a tua teimosia e a tua ignorância; e ele me conhece bem, Joseph,
conhece bem a minha ingratidão. Sim, Joseph, diga você, e nesse ponto
Pumblechook sacudiu a cabeça e a mão para mim, ele conhece bem minha
total desficiência em matéria de gratidão humana. Ele a conhece, Joseph, melhor
do que ninguém. Tu não a conheces, Joseph, não tendo tido oportunidade disso,
mas esse homem a conhece.
Mesmo sabendo que ele era um asno falastrão, fiquei pasmo de ver que ele
era capaz de dizer tal coisa na minha cara.
Diga você: Joseph, ele me deu um pequeno recado, que vou te transmitir
agora. É que, ao me ver humilhado, ele viu o dedo da Providência. Ele
reconheceu esse dedo ao vê-lo, Joseph, e ele o viu com clareza. E o dedo
apontava para a seguinte inscrição, Joseph: Castigo pela ingratidão para com seu
primeiro benfeitor, e fundador de sua fortuna . Mas esse homem disse que não se
arrependia do que havia feito, Joseph. Nem um pouco. Foi a coisa certa a fazer,
foi a coisa boa a fazer, foi uma benevolência, e ele faria outra vez.
É uma pena, disse eu, com sarcasmo, terminando meu desjejum
interrompido, que o homem não tinha dito o que foi que ele fez e faria outra
vez.
Proprietário do Javali, Pumblechook agora se dirigia ao taverneiro, e
William! Não me oponho a que os senhores mencionem, na aldeia ou seu
entorno, se assim o desejarem, que foi certo, bom e benevolente fazer a coisa
que eu fiz, e que eu a faria outra vez.
Com essas palavras, o impostor apertou a mão dos dois homens, com ares de
importância, e saiu, deixando-me muito mais atônito do que deliciado pelas
virtudes da coisa indefinida. Saí da taberna não muito tempo depois que ele
saiu, e quando desci a High-street vi-o discursando (sem dúvida sobre o mesmo
tema) à porta de sua loja para um grupo seleto, o qual me agraciou com olhares
muito desfavoráveis quando passei pela calçada oposta.
Isso, porém, tornava ainda mais agradável a perspectiva do encontro com
Biddy e Joe, cuja imensa generosidade brilhava ainda mais do que antes, se tal
fosse possível, em contraste com aquele farsante descarado. Eu caminhava
devagar, pois meus membros estavam fracos, mas com uma sensação de alívio
crescente à medida que me aproximava deles, e a sensação de estar deixando
para trás, cada vez mais longe, a arrogância e a falsidade.
Era junho, e o tempo estava magnífico. O céu estava azul, as cotovias
voavam bem alto sobre o trigal verdejante, todo o campo me parecia muito mais
belo e pacífico do que eu jamais o vira. Ao longo do caminho, distraíam-me
muitas imagens agradáveis da vida que eu haveria de levar ali, e da mudança
para melhor que sofreria meu caráter quando eu tivesse a meu lado uma
presença a me guiar, com uma fé simples e uma sabedoria natural que eu bem
conhecia. Elas despertavam em mim uma emoção terna, pois meu coração
estava suavizado por aquele retorno, e era tal a mudança ocorrida em mim que
eu me sentia como o viandante que volta para casa descalço depois de uma longa
viagem, com muitos anos de duração.
Eu nunca vira a escola onde Biddy lecionava; mas o caminho indireto que eu
tomara para chegar à aldeia, a fim de ter uma caminhada mais tranquila, levoume
até ela. Decepcionei-me ao ver que era um feriado; não havia nenhuma
criança lá, e a casa de Biddy estava fechada. Eu havia imaginado encontrá-la
ocupada com seus afazeres cotidianos, e essa expectativa frustrou-se.
Mas a ferraria era bem perto dali, e para lá fui à sombra das doces tílias
verdejantes, tentando ouvir as marteladas de Joe. Quando eu já devia estar a
ouvi-las há um bom tempo, e quando eu já imaginara tê-las ouvido há um bom
tempo, tudo permanecia silencioso. Lá estavam as tílias, e os pilriteiros, e as
castanheiras, e suas folhas farfalhavam em harmonia quando eu parava para
escutar; porém o som das marteladas de Joe não vinha no vento estival.
Quase temendo, sem saber por quê, divisar a ferraria, vi-a por fim, e estava
fechada. Não havia fogo, nem fagulhas reluzentes, nem ressoava o ronco do fole;
tudo fechado e silencioso.
Entretanto, a casa não estava vazia, e a sala de visitas de cerimônia parecia
estar sendo usada, pois havia cortinas brancas esvoaçando na janela, a qual
estava aberta e enfeitada com flores. Aproximei-me em silêncio, pensando em
olhar por cima das flores, quando vi Joe e Biddy à minha frente, de braços dados.
De início Biddy deu um grito, como se julgasse ver uma aparição, mas no
instante seguinte abraçou-me. Chorei ao vê-la, e ela chorou ao ver-me; eu,
porque sua aparência era tão fresca e agradável; ela, porque eu parecia tão
cansado e pálido.
Mas, querida Biddy , como estás elegante!
É, meu querido Pip.
E Joe, como tu estás elegante!
É, Pip, camarada velho.
Olhei para os dois, de um para o outro, e então
Hoje é o dia do meu casamento, exclamou Biddy, numa explosão de
felicidade, e me casei com o Joe!
Eles me levaram à cozinha, e eu pousei a cabeça na velha mesa de pinho.
Biddy levava uma de minhas mãos aos lábios, e a mão confortadora de Joe
tocava-me o ombro. É que ele ainda não está forte pra aguentar uma surpresa
assim, querida, disse Joe. E Biddy disse: Eu devia ter pensado nisso, meu
querido Joe, mas eu estava feliz demais. Os dois estavam felicíssimos por me
ver, orgulhosos por me ver, emocionados por eu ter vindo a eles, deliciados por
eu ter chegado por acaso para tornar aquele dia completo!
O primeiro pensamento que me ocorreu foi de grande alívio por não ter
comunicado a Joe essa minha última esperança frustrada. Quantas vezes, quando
ele estava comigo em minha convalescença, as palavras não haviam subido a
meus lábios! Como teria sido irrevogável para ele essa revelação, se tivesse
permanecido comigo mais uma hora, apenas!
Querida Biddy , disse eu, tens o melhor marido do mundo, e se pudesses
vê-lo à minha cabeceira tu
mas não, não poderias amá-lo mais que o amas.
Não, não poderia, não, disse Biddy .
E tu, meu querido Joe, tens a melhor esposa do mundo, e ela há de te fazer
tão feliz quanto mereces ser, meu querido Joe, tão bom, tão nobre!
Joe olhou-me com o lábio trêmulo, e chegou a levar a manga da camisa aos
olhos.
E Joe e Biddy, vocês que estiveram hoje na igreja, e sentem caridade e
amor por toda a humanidade, recebam meu humilde agradecimento por tudo
que fizeram por mim, e pelo qual eu lhes recompensei tão mal! E quando eu lhes
disser que estou partindo dentro de uma hora, pois em breve vou para o
estrangeiro, e que não descansarei enquanto não conseguir ganhar com meu
trabalho o dinheiro que comprou minha liberdade, e enviá-lo a vocês, não
pensem, queridos Joe e Biddy, que mesmo se eu pagasse mil vezes essa quantia
seria possível para mim saldar um milésimo do tanto que lhes devo, ou que eu o
faria se pudesse fazê-lo!
Os dois se emocionaram ao ouvir essas palavras, e ambos imploraram que
eu não dissesse mais nada.
Mas tenho que dizer mais. Querido Joe, espero que vocês tenham filhos
para amar, e que um dia um menininho se sente aqui no canto da lareira numa
noite de inverno, e que ele te faça lembrar de um outro menininho que daqui
partiu para sempre. Não digas a ele, Joe, que fui ingrato; não digas a ele, Biddy,
que fui tão pouco generoso e tão injusto; digam-lhe apenas que eu tive muita
estima por vocês dois, por serem tão bons e fiéis, e que, como filho de vocês,
afirmei que era natural que ele se tornasse um homem muito melhor que eu.
Não vou dizer a ele, retrucou Joe, falando por detrás da manga da camisa,
nada disso, não, Pip. Nem a Biddy não vai. Ninguém vai dizer nada disso.
E agora, embora eu saiba que vocês já fizeram isso no fundo de seus
corações bondosos, por favor me digam, vocês dois, que me perdoam! Por
favor, deixem-me ouvir essas palavras, para que eu possa levá-las comigo, e
então possa acreditar que vocês podem confiar em mim, e ter-me em melhor
conta no futuro!
Ah, querido Pip, meu velho, exclamou Joe. Deus sabe que te perdoo, se
tem alguma coisa pra mim perdoar!
Amém! E Deus sabe que eu também o faço!, ecoou Biddy .
Agora deixem-me subir e ver meu velho quartinho, e repousar lá a sós por
alguns minutos, e então, depois que eu comer e beber com vocês, levem-me até
o poste indicador, queridos Joe e Biddy , para lá nos despedirmos!
Vendi tudo que tinha, 1 e economizei o quanto pude para entrar num acordo
com meus credores os quais me deram bastante tempo para saldar minhas
dívidas por completo e fui trabalhar com Herbert. Em menos de um mês,
parti da Inglaterra, e em menos de dois meses estava trabalhando como caixeiro
da Clarriker & Cia., e em menos de quatro meses assumi toda a responsabilidade
pela sucursal pela primeira vez. Pois a viga do teto em Mill Pond Bank já não
tremia com os grunhidos do velho Bill Barley e estava em paz, Herbert fora à
Inglaterra para desposar Clara, e fiquei sozinho responsável pela sucursal oriental
da firma até ele voltar com ela.
Muitos anos se passaram até que eu me tornasse sócio, mas fui feliz,
morando com Herbert e sua esposa e levando uma vida frugal; liquidei minhas
dívidas, e mantive uma correspondência constante com Biddy e Joe. Foi só
quando me tornei o terceiro sócio da firma que Clarriker cometeu uma traição,
contando tudo a Herbert; ele, porém, afirmou que o segredo do que possibilitara a
ascensão de Herbert pesava-lhe há muito tempo na consciência, e que ele
precisava revelá-lo. Assim, ele abriu-se: Herbert ficou tão comovido quanto
atônito, e nossa amizade não se tornou menor por conta desse segredo mantido
por tanto tempo. Que não se pense que nos tornamos uma grande empresa, nem
que ganhamos dinheiro a rodo. Não negociávamos em escala grandiosa, mas
tínhamos um bom nome na praça, trabalhávamos muito para ganhar nosso
dinheiro e demo-nos muito bem. Devíamos tanto à disposição alegre de Herbert
para o trabalho que muitas vezes eu me perguntava como pude jamais duvidar
de sua capacidade, até que um dia a questão se esclareceu quando me ocorreu a
reflexão de que a incapacidade talvez jamais tivesse sido um atributo dele, e sim
meu.
* Muffin: massa de pão cortada em fatias redondas cozinhada na chapa, servida
com manteiga. (n. t.)
20
Fazia onze anos que eu não via Joe nem Biddy com meus olhos corpóreos
embora os dois estivessem sempre presentes na minha imaginação, no Oriente
quando, numa noite de dezembro, uma ou duas horas depois do pôr do sol,
pousei a mão silenciosamente na maçaneta da velha porta da cozinha. Meu toque
foi tão leve que ninguém me ouviu, e olhei dentro da casa sem que me vissem.
Lá, fumando seu cachimbo no lugar de sempre junto à lareira, saudável e forte
como sempre, ainda que um pouco grisalho, estava Joe; e lá, encurralado no
canto da cozinha pela perna de Joe, sentado no meu banquinho, olhando para o
fogo, estava
eu de novo!
A gente deu a ele o nome de Pip em tua homenagem, meu velho, disse
Joe, muito contente, quando me sentei em outro banco ao lado do menino (mas
não lhe despenteei o cabelo), e a gente espera que ele fique um pouco como ti
quando crescer, e a gente acha que ele vai ficar, sim.
Eu também pensava assim, e saí para caminhar com ele na manhã seguinte,
e conversamos muitíssimo, compreendendo um ao outro à perfeição. E levei-o
até o campo-santo, e o pus sobre uma certa lápide de lá, e ele me mostrou do alto
dela qual pedra era dedicada à memória de Philip Pirrip, paroquiano de lá, e
também Georgiana, esposa do acima.
Biddy , disse eu quando fui conversar com ela depois do jantar, enquanto a
filha pequena dormia em seu colo, tens que me dar o Pip, um dia desses, ou
pelo menos emprestá-lo.
Não, senhor, disse ela, carinhosa. Tens que te casar.
É o que dizem Herbert e Clara, mas acho que nunca vou me casar, Biddy.
Já me acostumei tanto a morar com eles, que isso não é mais provável. Já me
tornei um solteirão.
Biddy olhou para a criança, levou sua mãozinha aos lábios e depois pôs sua
boa mão de matrona, com que ela a tocara, na minha mão. Havia algo naquele
ato, e na leve pressão da aliança em seu dedo, que continha uma linda
eloquência.
Querido Pip, disse Biddy , tens certeza de que não sofres mais por ela?
Ah, não creio que não, Biddy .
Fala comigo como a uma velha amiga. Esqueceste-a por completo?
Querida Biddy, não esqueci nada que ocupou um lugar importante na
minha vida, e quase nada de qualquer coisa que me tenha ocorrido. Mas aquele
sonho vão, como eu o chamava outrora, se esvaeceu completamente, Biddy,
completamente!
Não obstante, eu sabia, no momento mesmo em que dizia essas palavras, que
pretendia em segredo visitar o lugar onde antes ficava o casarão, naquela mesma
noite, sozinho, por ela. Sim, apesar de tudo. Por Estella.
Eu ficara sabendo que ela tivera uma vida muito infeliz, tendo se separado do
marido, que fora muito cruel com ela, e que se tornara famoso por sua
combinação de orgulho, avareza, brutalidade e mesquinhez. E soubera também
da morte dele, num acidente causado pelos maus-tratos que ele infligira a um
cavalo. Estella tornara-se livre cerca de dois anos antes; talvez tivesse voltado a
casar-se.
Como o jantar na casa de Joe era cedo, tive bastante tempo, mesmo após
uma conversa demorada com Biddy, para caminhar até o lugar da casa velha
antes que escurecesse. Durante a caminhada, porém, parei muitas vezes para ver
coisas antigas e pensar nos tempos antigos; assim, quando cheguei a meu destino
já estava escurecendo bastante.
Agora não havia mais casa, nem cervejaria, nem prédio nenhum, apenas o
muro do velho jardim. O terreno baldio era delimitado por uma cerca grosseira,
e olhando por cima dela vi que alguns ramos da velha hera haviam criado raízes
novas, e agora estavam verdejantes por cima de montes de entulho. O portão da
cerca estava entreaberto, abri-o por completo e entrei.
Uma névoa friorenta descera sobre a tarde, e a lua ainda não nascera para
dissipá-la. Porém as estrelas brilhavam por trás da névoa, a lua já estava quase
nascendo, e a noitinha não estava escura. Pude identificar o local em que ficara
cada parte da velha casa, onde os portões, onde os barris. Tendo feito isso, fiquei
contemplando o desolado caminho do jardim quando vi um vulto solitário dentro
dele.
O vulto demonstrou que percebia minha presença, à medida que me
aproximava. Antes o vulto vinha em minha direção, mas agora estava parado.
Chegando mais perto, vi que era uma mulher. Quando me aproximei ainda mais,
ela fez menção de se afastar, mas então parou e deixou-me chegar até ela. Então
hesitou, como se atônita, e pronunciou meu nome, e gritei:
Estella!
Mudei muito. Não sei como me reconheceste.
De fato, o frescor de sua beleza se havia desvanecido, mas uma indescritível
majestade e um indescritível encantamento permaneciam. Esses seus atributos
eu já vira antes; o que eu jamais vira era aquela luz suavizada e melancólica nos
olhos outrora orgulhosos; o que jamais sentira antes era o toque simpático da mão
outrora insensível.
Sentamo-nos num banco perto dali, e eu disse: Depois de tantos anos, é
estranho que voltemos a nos encontrar, Estella, aqui onde nos vimos pela
primeira vez! Costumas voltar aqui sempre?.
Nunca mais voltei.
Nem eu.
A lua começava a subir no céu, e pensei naquele olhar plácido voltado para o
teto, que já não existia. A lua começava a subir no céu, e pensei na pressão em
minha mão depois que pronunciei as últimas palavras que ele ouviu neste mundo.
Foi Estella quem rompeu o silêncio que se instaurara entre nós.
Muitas vezes desejei e tencionei vir aqui, mas fui impedida por uma série
de circunstâncias. Pobre casa velha!
A névoa prateada agora era tocada pelos primeiros raios de luar, e os
mesmos raios tocaram as lágrimas que caíram de seus olhos. Não sabendo que
eu as via e tentando livrar-se delas, Estella disse em voz baixa:
Por acaso estavas pensando, ao caminhar por aqui, como foi que o lugar
acabou nesse estado?
Estava, sim, Estella.
O terreno é meu. É a única propriedade de que não abri mão. Tudo mais
que tinha perdi, pouco a pouco, mas isto permanece. Foi a única coisa que me
levou a oferecer resistência em todos esses anos de desgraça.
Vão construir no terreno?
Finalmente. Vim aqui para me despedir dele, antes da mudança que vai
ocorrer. E tu, disse ela, com aquele tom de interesse que se sente por um
viandante, ainda vives no estrangeiro?
Ainda.
E vives bem, sem dúvida?
Trabalho muito para ter o suficiente, de modo que
Sim, vivo bem.
Tenho pensado muito em ti, disse Estella.
É mesmo?
Muito, ultimamente. Durante muito tempo, um tempo muito difícil, mantive
afastada a lembrança do que joguei fora quando não conhecia ainda seu valor.
Mas como nada havia no reconhecimento dessa lembrança que fosse
incompatível com meus deveres, terminei por lhe dar um lugar no meu
coração.
Tu sempre tiveste um lugar no meu coração, repliquei. E ficamos em
silêncio de novo, até que ela voltou a falar.
Jamais imaginei, disse ela, que iria te dizer adeus ao dizer adeus deste
lugar. É muito bom que seja assim.
Muito bom dizer adeus outra vez, Estella? Para mim, dizer adeus é uma
coisa dolorosa. Para mim, a lembrança da última vez em que nos despedimos
sempre foi melancólica e dolorosa.
Mas tu me disseste, retorquiu Estella, muito séria, Que Deus te abençoe,
que Deus te perdoe! E se pudeste dizê-lo naquele dia, não hesitarás em dizer o
mesmo a mim agora agora, depois que o sofrimento me deu uma lição mais
forte do que qualquer outra, e me ensinou a compreender como era outrora o seu
coração. A vida me dobrou, me quebrou, mas espero que me tenha tornado uma
pessoa melhor. Sê tão compreensivo e bom comigo quanto foste antes, e dize-me
que somos amigos.
Somos amigos, disse eu, levantando-me e debruçando-me sobre Estella,
enquanto ela se levantava também.
E continuaremos amigos à distância, disse ela.
Tomei-lhe a mão, e saímos daquelas ruínas; e tal como as névoas matinais se
haviam dissipado tantos anos antes, quando parti da ferraria pela primeira vez,
assim também as névoas vespertinas se dissipavam agora,1 e naquela extensão
de luz tranquila que elas me revelavam, não vi nenhuma sombra de um adeus a
Estella.2
Notas
introdução
1 Os comentários de Shaw e Swinburne foram reeditados em Critical essays on
Great expectations. cotsell, Michael. (Org.). Boston: G. K. Hall, 1990, pp.
34, 24.
2 Great expectations. In: Dickens and the twentieth century. gross, John; pearson,
Gabriel (Orgs.). Londres: Routledge & Kegan Paul, 1962, pp. 199-211.
3 Ibid., p. 209.
4 The heros guilt: the case of Great expectations. In: Critical essays, pp. 73-87.
5 gilbert, Elliot L. In primal sy mpathy : Great expectations and the secret life. In:
Critical essays, pp. 146--67; cohen, William A. Manual conduct in Great
expectations, elh 60, 1993, pp. 217-59.
6 Dickens and the uncanny : repression and displacement in Great expectations,
Dickens Studies Annual 13, 1984, p. 119.
7 Appreciations and criticisms of the works of Charles Dickens (1911). In: Critical
essays, p. 31.
8 The Dickens world. 2ª ed. Londres: Oxford University Press, 1942, p. 135.
9 Household Words , 05/07/1851. A partir de agora, faremos referência aos
artigos de Household Words apenas por meio da data de publicação.
10 Bodies of capital: Great expectations and the climacteric economy, Victorian
Studies 37, 1993, pp. 73-98.
dedicatória
1 Afetuosamente dedicado a Chauncy Hare Townshend: O reverendo Chauncy
Hare Townshend ( 1798-1868) era um próspero clérigo e colecionador,
interessado em literatura e espiritismo. Dickens foi seu testamenteiro
literário e preparou para publicação sua obra Religious opinions (1869).
Além da dedicatória, Townshend ganhou de Dickens o manuscrito de
Grandes esperanças.
volume i
capítulo 1
1 Muito antes do tempo das fotografias: os pioneiros da fotografia moderna
conseguiram fixar imagens no final da década de 1830, e nos anos 1850
já havia fotógrafos profissionais na maioria das cidades britânicas. Esta é
a primeira de uma série de referências às datas em que transcorreriam
os eventos do romance. Para a análise mais detalhada dessas
referências, ver: Jerome Meckier, Dating the action in Great
expectations, Dickens Studies Annual 21 (1992), pp. 157-94, em que o
autor conclui que a narrativa começa em dezembro de 1812; a chegada
de Pip a Londres no início do segundo volume ocorre em julho de 1823;
o terceiro volume começa no final de 1828; e a última página se passa
e m 1840. Seja ou não apropriado esse grau de precisão, Dickens
costuma enfatizar não a data exata, e sim, como aqui, no grande
intervalo de tempo entre o momento em que ele escreve e as coisas tal
como eram na sua infância. Ver também, no Apêndice B, as anotações
de Dickens sobre datas.
2 O charco junto ao rio: o cenário do romance é a península de Hoo em Kent,
limitada ao norte pelo estuário do Tâmisa e ao sul pelo rio Medway. O
charco de Cooling, que inspirou o charco do romance, se estende ao
norte em direção ao Tâmisa a partir da aldeia de Cooling. As patéticas
lápides dos treze filhos de uma família que ficam no cemitério da igreja
de são Tiago em Cooling, lugar aonde Dickens ia muitas vezes a pé de
sua casa em Gads Hill, são há muito consideradas a inspiração dos
túmulos dos irmãos de Pip. Embora ele se houvesse mudado para Gads
Hill pouco tempo antes, em 1857, Dickens conhecia a região desde
menino; sua família morara em Chatham de 1817 a 1822. A cidade de
Rochester, perto dali, serviu de modelo para a cidadezinha em que fica a
Casa Satis.
3 Um grande ferro na perna: um grilhão de ferro.
4 Velha bateria: forte ou obra de fortificação para artilharia.
capítulo 2
1 Ter-me criado com a mão: ou seja, alimentando-o com uma colher ou uma
mamadeira, em vez de o amamentar. A expressão (by hand) era
comum na época: na primeira edição do Book of household management
[Livro de administração do lar], de Isabella Beeton (1861), o capítulo
sobre a alimentação artificial do bebê tem o título Rearing by hand.
2 Hércules: na mitologia grega, filho de Zeus e Alcmena, tremendamente forte,
célebre por ter estrangulado duas serpentes ainda no berço.
3 Dúzia de frade: treze.
4 Relógio alemão: uma espécie de relógio de madeira barato, importado da
Alemanha.
5 Emplastro: o boticário (farmacêutico) aplicava unguento a feridas ou contusões
espalhando-o num pano que em seguida era colocado sobre o lugar
afetado.
6 Água alcatroada: solução de alcatrão, usada como desinfetante ou, como é o
caso aqui, um remédio de gosto horrível, que supostamente curava as
doenças pulmonares.
7 Presigangas: a partir de 1776 (quando a Guerra da Independência dos Estados
Unidos impediu o degredo de prisioneiros para as colônias norteamericanas),
presigangas cascos de navios desativados por não
estarem mais em condições de navegar, atracados no Tâmisa perto de
Woolwich e em outros portos britânicos eram usadas como prisões. A
partir de 1810, alguns desses navios foram atracados também no rio
Medway, ao largo de Sheerness. Os prisioneiros que lá ficavam
costumavam trabalhar nos estaleiros. Depois que começaram a ser
enviados degredados à Austrália, em 1787, era comum os prisioneiros
prestarem trabalhos forçados nas presigangas antes de irem para o
degredo. O sistema passou por várias reformas e começou a ser
desativado por volta de 1840 (em parte porque várias colônias
australianas se recusavam a receber mais prisioneiros); a última das
presigangas foi queimada em Woolwich em 1857.
8 Atrito suave: antes do advento dos fósforos de enxofre, que produzem fogo
quando atritados numa superfície áspera, para obter-se uma chama
golpeava-se uma pederneira com um pedaço de aço, gerando uma
faísca que incendiava uma lasca de madeira. Os fósforos de enxofre
foram inventados na década de 1820, mas seu uso só se popularizou de
modo gradual.
9 Sumo de alcaçuz: bebida doce, não alcoólica, feita dissolvendo-se pó de alcaçuz
em água.
capítulo 3
1 Aprendiz: os aprendizes eram legalmente obrigados, por força de um contrato
(indenture), a trabalhar para um artesão, o mestre, por determinado
número de anos. Normalmente os pais ou amigos do aprendiz tinham de
pagar um preço por esse privilégio. O mestre, por sua vez, assumia o
compromisso de não maltratar o aprendiz e ensinar-lhe o ofício. Findo o
período estipulado, o aprendiz podia ir embora, ou então continuar a
trabalhar para o mesmo mestre ou outro por um salário diário ou
semanal, como mais adiante, na narrativa, Orlick trabalha para Joe
como jornaleiro aquele que trabalha em troca de jornal (do
la tim diurnãlis, diário), no sentido de remuneração por dia de
trabalho.
2 Sezão: uma febre malárica intermitente.
capítulo 4
1 Pernas dos cruzados nos monumentos: antigamente, acreditava-se que as
estátuas de cavaleiros nos túmulos medievais nas igrejas representavam
cruzados quando suas pernas estavam cruzadas. [Em inglês, a palavra
cross quer dizer cruz como substantivo, e zangado como adjetivo.
(n. t.)]
2 Uma espécie de reformatório: prisão para menores infratores, instituída pela Lei
das Escolas Reformatórias de 1854.
3 Quando fossem lidas as proclamas [
] não fosse o fato de que era Natal e não
domingo: proclamas de casamento de casais de noivos costumam ser
divulgadas pelos ministros anglicanos na oração matinal e na vespertina
nos três últimos domingos antes da cerimônia de matrimônio. Pip
imagina-se fazendo sua confissão em resposta à exortação do ministro:
Se algum dos presentes sabe de uma causa ou justo impedimento
contra a união dessas duas pessoas no santo matrimônio, que fale agora.
Mas como se trata de um culto de Natal e não de um dominical, não há
proclamas, e ele não tem oportunidade de se manifestar.
4 O sr. Wopsle, o sacristão [
] meu amigo lá de cima: o sacristão era um
funcionário leigo a quem cabia puxar os cantos e os responsos na igreja.
O sr. Wopsle e o pároco usam um púlpito de três níveis, em que o
sacristão ficava sentado no nível mais baixo e o pároco lia as orações no
do meio, subindo para o mais alto na hora do sermão.
5 Os porcos eram os companheiros do filho pródigo: na parábola de Cristo (Lucas
15, 11-32), o filho pródigo se torna porqueiro.
6 Um médium de nossos tempos: o espiritismo tornou-se moda na década de 1850.
A alusão aqui é a um charlatão que finge que um espírito do além está
batendo numa mesa leve em resposta ao que lhe perguntam, quando na
verdade ele próprio é quem o faz.
capítulo 5
1 À sua, à minha [
] melhor música não há!: o sargento recita um brinde
tradicional enquanto bate o seu copo contra o do sr. Pumblechook.
capítulo 7
1 Catecismo: uma série de perguntas e respostas a serem aprendidas por toda
pessoa, antes de ser ela levada ao bispo para a confirmação.
Costumava ser ensinado às crianças, para que elas aprendessem moral e
a doutrina da Igreja Anglicana. A criança promete cumprir a sagrada
vontade e os sagrados mandamentos de Deus, e assim caminhar por
todos os dias de minha vida.
2 A oração de Marco Antônio sobre o cadáver de César [
] Ode sobre as
paixões de Collins: o sr. Wopsle recita a fala que começa com
Friends, Romans, countrymen, lend me your ears
[Amigos,
romanos, compatriotas, ouvi-me], da peça de Shakespeare Júlio César
(ato 3, cena 2), e a Ode on the passions, de William Collins (1721-59).
Pip refere-se aqui aos versos 39-44:
And longer had She sung, but with a Frown,
Revenge impatient rose,
He threw his blood-staind Sword in Thunder down,
And with a withring Look,
The War-denouncing Trumpet took,
And blew a Blast
[E mais teria ela cantado, mas, com um esgar,/ Vingança,
impaciente, ergueu-se,/ Jogou a espada ensanguentada trovejante,/ E
com olhar tremendo,/ Tomou a trombeta que anuncia a guerra,/ E
forte soprou].
3 Caí nas mãos daqueles salteadores: tal como ocorre com o viajante na parábola
do bom samaritano, Lucas 10: 30-35.
4 Seje um verdadeiro grão-mogol: aja de modo despótico, como um soberano
autocrático na Índia.
capítulo 8
1 Satis: bastante em latim.
capítulo 9
1 Quarenta e três pence: na época, o sistema monetário britânico compunha-se
de libras, xelins e pence [plural de pêni]. Um xelim valia doze pence, e
vinte xelins valiam uma libra; as crianças tinham de aprender a calcular
essas unidades. A resposta à pergunta de Pumblechook é três xelins e
sete pence.
capítulo 10
1 Vela de imersão, sem espevitadeiras: a vela de imersão [produzida pela imersão
de um pavio em cera derretida], ao contrário da vela feita em molde,
era mais barata e queimava mais depressa, deixando um pavio
queimado que fumegava a menos que fosse apagado com uma
ferramenta especial (a espevitadeira).
2 Que parentas um homem não podia desposar: como sacristão, o sr. Wopsle
conhece bem a Tabela de parentes de sangue e por afinidade, através
da qual a Igreja Anglicana proíbe que um homem despose sua mãe,
filha, mãe de seu pai, mãe de sua mãe, filha de seu filho, filha de sua
filha, irmã, filha de seu pai, filha de sua mãe, mãe de sua esposa, filha
de sua esposa, esposa de seu pai, esposa de seu filho, esposa do pai de
seu pai, esposa do pai de sua mãe, mãe do pai de sua esposa, mãe da
mãe de sua esposa, filha do filho de sua esposa, filha da filha de sua
esposa, mulher do filho de seu filho, esposa do filho de sua filha, irmã de
seu pai, irmã de sua mãe, filha de seu irmão ou filha de sua irmã.
3 Uma passagem terrivelmente violenta de Ricardo III: talvez um trecho evocado
pela ideia de incesto, como este, do ato 4, cena 2:
I must be married to my brothers daughter,
Or else my kingdom stands on brittle glass:
Murder her brothers, and then marry her!
Uncertain way of gain!
[Força é desposar a filha de meu irmão,/ Senão meu reino se sustenta
em vidro frágil: / Matar-lhe os irmãos, e desposá-la em seguida!/
Incerto caminho para a vitória!].
4 Notas de uma libra: este detalhe ajuda a fixar o período em que se passa o
romance, pois essas notas deixaram de circular em 1821, embora
tenham continuado a valer por algum tempo. Dickens certamente
lembrava-se delas do seu tempo de menino.
capítulo 11
1 Um bolo de casamento: o bolo de casamento moderno, em camadas, só se
tornou comum no final do século xix. O bolo da sra. Havisham, embora
colocado sobre um centro de mesa, provavelmente seria apenas um bolo
de frutas redondo, grande, com glacê branco.
2 Gengibre e sais voláteis: o carbonato de amônio, aromatizado com gengibre
seco, era vendido nas farmácias como sal volátil para reanimar
senhoras que desmaiavam, ou para impedir que tivessem ataques
histéricos.
3 Como se eu fosse um gigante: na mitologia grega, o titã Crono devorava cada
um de seus filhos tão logo nascia.
capítulo 12
1 Mirmídones da Justiça: os mirmídones eram seguidores de Aquiles na Ilíada de
Homero; neste contexto a expressão significa agentes da lei,
policiais.
2 O velho Clem: são Clemente (morto por volta de 100), um dos primeiros papas,
era considerado o padroeiro dos ferreiros. Costumava-se cantar a
canção do velho Clem na doca de Chatham no dia de são Clemente, 23
de novembro; Dickens talvez a tenha ouvido lá.
capítulo 13
1 O Grande Selo da Inglaterra em palha trançada: o Grande Selo da Inglaterra é
levado pelo chanceler do reino. A alusão provavelmente tem menos a
ver com a forma da bolsa do que com o ar de importância com que a
sra. Joe o leva.
2 Vinte e cinco guinéus: um guinéu era uma moeda de ouro que valia uma libra e
um xelim, e que deixou de circular em 1817; assim, embora ainda
tivesse validade legal, é característico do jeito antiquado da sra.
Havisham que ela continue a utilizá-la. Quando mais tarde Joe se refere
à quantia como vinte e cinco libras quando o valor, na verdade, é
de vinte e seis libras e cinco xelins , trata-se provavelmente de um
cochilo do autor.
3 Pequeno Rantipole: há dúvidas quanto ao significado da expressão. O Oxford
English dictionary afirma que a palavra significa traquinas; uma pessoa
indomável, mal-educada ou imprudente, mas alguns comentaristas
observam que ela era usada como apelido de Napoleão iii (1808-73), o
que é certamente irrelevante. Uma explicação mais plausível, proposta
por Lois E. Chaney (Dickensian 79, verão de 1983, pp. 162-3), é que a
sra. Joe se refira às duas crianças Rantipole, personagens de The history
of the fairchild family (1818), pp. 132-43, livro evangélico para crianças
de autoria da sra. Sherwood. Elas comportam-se bem na presença de
uma senhora de idade de quem esperam ganhar presentes, porém ela as
observa em segredo e vê que, quando a julgam ausente, são egoístas e
mal-educadas. Além da semelhança entre a situação dessas crianças
com relação à senhora rica e a de Pip em relação à sra. Havisham, há
que levar em conta as muitas outras referências a livros infantis e contos
de fada que há em Grandes esperanças. Em The fairchild family, porém,
o uso da palavra é explicado: os vizinhos, em função das boas
qualidades de uma delas, lhes dera o nome de Simpáticos, e a outra
família, por conta de seu caráter desagradável, recebeu o nome de
Rantipole. Isso confirma que o termo era comumente usado como
apelido para uma pessoa de má reputação, e desse modo torna-se
desnecessário supor que a sra. Joe conhecia um livro para crianças
recém-publicado e caro.
4 Tofe de amêndoas e emplastros adesivos: os retratos escurecidos parecem a Pip
serem feitos com tofe de cor escura, à base de melado, e pedaços de
tecido que eram grudados em feridas superficiais.
5 A ode de Collins: v. capítulo 7, nota 2.
6 Os comerciantes [
] o Recanto dos Acrobatas: o barulho incomoda os
caixeiros-viajantes do andar de baixo, os quais observam, com
sarcasmo, que o sr. Wopsle parece achar que está num bar onde se
exibem acrobatas.
7 O Lady fair!: canção popular de autoria de Thomas Moore (1779-1852),
apropriada para se cantar numa caminhada noturna. Eis a primeira
estrofe:
Oh, Lady fair! where art thou roaming?
The sun has sunk, the night is coming.
Stranger, I go oer moor and mountain,
To tell my beads at Agnes fountain.
And who is the man, with his white locks flowing?
O Lady Fair! where is he going?
A wandring Pilgrim, weak, I falter,
To tell my beads at Agnes altar.
Chill falls the rain, night winds are blowing,
Dreary and darks the way were going.
[Ó bela dama! por onde vagas?/ O sol se pôs, a noite vem./ Eu,
forasteiro, pela charneca e pela serra,/ Vou rezar meu terço na fonte
de Agnes./ E quem é o homem, de cachos brancos ao vento?/ Ó bela
dama! aonde vai ele?/ Eu, peregrino errante, fraco, com passo
trôpego /Vou rezar meu terço no altar de Agnes./ Fria cai a chuva,
sopram os ventos da noite,/ Agro e escuro é nosso caminho].
capítulo 14
1 Quadrados negros: nas ferrarias, as janelas não tinham vidraça, e eram
mantidas fechadas por travas de madeira.
capítulo 15
1 Eu fui a Londres [
] Ta-ra-lá: claramente, uma canção sobre o tradicional
tema do homem do campo que vai à cidade grande e lá é vítima de uma
trapaça.
2 Caim ou o Judeu Errante: em Gênese 4, 12, Caim, tendo assassinado o irmão,
Abel, torna-se um fugitivo e um vagabundo. O Judeu Errante era um
personagem lendário da Idade Média, fadado a perambular pelo mundo
num castigo eterno por ter sido cruel com Jesus.
3 A tocante tragédia de Goerge Barnwell: a peça The London Merchant, or, The
history of George Barnwell, de George Lillo (1693-1739), encenada pela
primeira vez em 1731. Trata-se de uma tragédia doméstica, em que um
jovem aprendiz é convencido por Sarah Millwood, a quem ele ama, a
roubar seu mestre e matar seu tio. No final, tanto Barnwell quanto
Millwood são enforcados.
4 Em seu jardim em Camberwell: Wopsle está recitando um trecho de George
Barnwell, ato 3, cena 7.
5 Em Bosworth Field, e em meio a agonias indizíveis em Glastonbury: Wopsle, em
seguida, passa a recitar trechos de sua obra favorita, Ricardo III de
Shakespeare, em que há cenas passadas em Bosworth Field (ato 5, cenas
3 a 5), e depois de uma outra peça mais difícil de identificar. O mais
provável é que Dickens tenha confundido Glastonbury com a abadia de
Swinstead, St. Edmundsbury, onde o rei João sofre uma morte horrenda,
envenenado, no último ato do Rei João de Shakespeare.
capítulo 16
1 Os homens da Bow-Street: os Bow Street Runners constituíam um corpo de
detetives criado na década de 1750 pelos magistrados metropolitanos,
cujo escritório central ficava na Bow Street, em Londres. Não usavam
uniformes e agiam em segredo, sendo ocasionalmente designados para
auxiliar na resolução de crimes graves ocorridos no interior. Os
membros da Bow Street Horse Patrol, estabelecida em 1805, usavam
coletes vermelhos e eram conhecidos como Robin Redbreasts [o nome
popular do pisco-de-peito-ruivo]; foram absorvidos pela Polícia
Metropolitana em 1839. A confusão entre as duas forças era comum.
capítulo 18
1 Timão de Atenas [
] Coriolano: protagonistas de duas tragédias de
Shakespeare, caracterizados o primeiro por suas vituperações, o segundo
por sua arrogância.
2 A Gabolice é um bom cachorro, mas a Reticência é melhor ainda: provérbio
cujo sentido é que é melhor calar-se do que se gabar de algo.
capítulo 19
1 Aquela passagem sobre o rico e o reino dos céus: ou Mateus 19, 24 é mais
fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico
no reino de Deus ou uma das passagens semelhantes em Marcos 10,
25 ou Lucas 18, 25.
2 O cachorro da velha Hubbard: referência a um poema infantil de Sarah
Catherine Martin:
She went to the tailors
To buy him a coat,
But when she came back
He was riding a goat.
[Ela foi ao alfaiate/ Comprar-lhe um casaco,/ Mas quando voltou/ Ele
estava montado num bode].
A velha Hubbard também vai ao padeiro, ao marceneiro, ao peixeiro, à taberna,
ao chapeleiro, ao barbeiro, ao fruteiro, ao sapateiro, à costureira e ao
comerciante de meias, tudo por conta de seu cachorro.
3 A asa do fígado: considerava-se a melhor parte do frango assado a asa direita,
servida junto com o fígado da ave.
4 Jogando um sapato velho: para dar sorte: o costume só sobrevive hoje nos
casamentos.
5 O mundo se abria para mim: compare-se com o relato de Adão e Eva saindo do
Éden no Paraíso perdido de Milton, parte xii, versos 646-7: The world
was all before them, where to choose/ Their place of rest
[Todo o
mundo estava diante deles, para lá escolherem/ Um lugar de repouso
].
volume ii
capítulo 1
1 Cross Keys: uma estalagem que realmente existiu do século xvii à década de
1830, onde ficava a estação terminal de diligências de várias cidades do
interior. Quando menino, Dickens veio a Londres na diligência de
Chatham, chegando à Cross Key s no final de dezembro de 1822; ele
atribui a mesma viagem a David Copperfield e a Pip.
2 Enfeitada [
] seis grandes diademas: na estalagem, Pip salta da diligência, a
qual percorria um trajeto entre pontos fixos, como um ônibus moderno,
e pega um fiacre, o qual o leva aonde ele deseja ir, como um táxi de
hoje. Por acaso, o fiacre que ele pega pertenceu anteriormente a algum
nobre; embora em mau estado e antiquado, o veículo conserva relíquias
de seu esplendor original, como o pano ornamental que cobre o assento
do cocheiro e a decoração pintada do lado de fora, a qual identifica o
antigo proprietário.
3 Smithfield: uma praça grande onde o principal mercado de gado londrino
funcionou até 1852.
4 Como o Touro na história do Tordo, puxando a corda do sino : o homem está
puxando o cacho como forma de saudação, um gesto respeitoso. A
alusão é ao poemeto infantil Cock Robin: I, said the Bull,/ Because I
can pull,/ Ill toll the bell. [Eu, disse o Touro,/ Como sei puxar,/ Eu toco
o sino.] Ao que parece, Dickens está relembrando uma ilustração
específica contida em algum livro infantil; esse poema (tal como o da
velha Hubbard, mencionado anteriormente) era com frequência
impresso em livrinhos ilustrados.
5 Barnards Inn : um grupo de prédios medievais em Holborn, de longa data
ocupado por advogados e estudantes de direito. No século xix, os
chamados Inns of Chancery , que incluíam o Barnards Inn e o
Furnivals Inn (onde Dickens morou de 1834 a 1836), eram associações
de advogados, com poucos poderes legais. Foram oficialmente
dissolvidas durante o período vitoriano. Embora muitos advogados
morassem lá, outros, como Pip e Herbert, podiam alugar aposentos em
qualquer lugar.
capítulo 2
1 Anéis de luto: era costume legar quantias aos amigos e parentes para que eles
adquirissem joias, principalmente anéis, para servirem de mementos.
Esses anéis muitas vezes tinham inscrições de iniciais, datas ou lemas, e,
por vezes, continham cabelo do falecido.
2 O café daqui: há registros de um café no Barnards Inn de 1813 a 1840.
capítulo 3
1 O menino moralista da cartilha: as cartilhas do início do século xix continham
frases e histórias com intenção moralizante.
2 O ferreiro harmonioso: a Ária com cinco variações de G. F. Handel
(1685-1759) é conhecida por esse nome, e supostamente teria sido
baseada na canção que Handel ouvira um ferreiro cantando.
3 Manteiga derretida: molho para frango cozido, preparado com manteiga e água
espessada com farinha.
4 O pai dela casou-se de novo em segredo: a partir de 1753, a lei inglesa exigia
que todos os casamentos fossem celebrados por um clérigo numa
paróquia ou capela pública ou através de uma licença ou após a
publicação dos proclamas. Porém, podia-se driblar a lei casando-se num
lugar onde não se era conhecido, sem que o casamento perdesse a
validade. Herbert dá a entender que o pai da sra. Havisham escondeu o
segundo casamento da família e dos amigos até que sua segunda esposa
morreu.
5 Meia-entrada no teatro: foram assistir à segunda das duas peças incluídas no
programa, e por isso pagaram meia-entrada. Provavelmente seria o
Theatre Roy al, Drury Lane, se bem que seu vizinho, o Theatre Roy al,
Covent Garden (a partir de 1847 denominado Roy al Italian Opera
House, incendiado em 1856), também fosse chamado simplesmente de
o teatro.
6 A Bolsa: o pregão da Roy al Exchange, a Real Bolsa, na Threadneedle Street.
Até o incêndio ocorrido em 1838, o Lloy ds, o mercado de seguros
marítimos, funcionava na ala leste do prédio. Muitas das alusões
topográficas do romance, como esta, dizem respeito a cenas da vida
londrina que mudaram depois do tempo em que ocorrem os eventos do
livro, e depois do tempo em que o próprio Dickens foi a Londres pela
primeira vez.
capítulo 4
1 Sentar-se na almofada de lã ou de proteger a cabeça com uma mitra: o sr.
Pocket estava dividido entre tornar-se advogado (e assim vir a ascender
ao cargo de lorde chanceler da Inglaterra, o qual se senta na almofada
de lã reservada para ele na Câmara dos Lordes) e fazer carreira de
clérigo da Igreja Anglicana (e porventura chegar a bispo, o qual usa
mitra).
2 Haviam agarrado o Tempo pelo topete : isto é, aproveitado a oportunidade
quando ela surgiu. A expressão proverbial vem do filósofo grego Tales
de Mileto (cerca de 624 cerca de 546 a.C.).
3 Uma boneca alemã: uma boneca articulada de madeira, importada da
Alemanha.
4 Na posição do Gladiador Moribundo: deitado e apoiado num dos braços, como a
famosa estátua, agora conhecida como O gaulês moribundo,
considerada cópia romana de um original grego, no Museo Capitolino de
Roma. Dickens talvez esteja pensando também numa passagem do
Childe Harolds pilgrimage de By ron (iv, versos 1252-4): I see before
me the Gladiator lie:/ He leans upon his hand his manly brow/ Consents
to death
[Vejo à minha frente o gladiador deitado:/ Apoiado na mão
a fronte máscula/ Aceita a morte
].
capítulo 5
1 O Bailey: o tribunal criminal central de Londres é há muito tempo conhecido
c om o Old Bailey [o velho Bailey ] por ficar próximo ao local onde
outrora havia um torreão (bailey) na muralha que cercava Londres. A
construção a que Dickens se refere fica ao lado da prisão de Newgate, e
enforcamentos públicos ocorriam na frente dos dois prédios. Tanto a
prisão quanto o tribunal foram derrubados em 1902 para a construção do
atual tribunal de Old Bailey .
2 A máscara foi feita em Newgate, logo depois que o desceram da forca: as
máscaras mortuárias de criminosos executados eram muitas vezes
vendidas a entusiastas; Thomas de Quincey menciona em seu ensaio
On murder considered as one of the fine arts [Do assassinato
considerado como uma das belas-artes] que conseguiu comprar uma
máscara de gesso do assassino da estrada de Ratcliffe de 1811, John
Williams.
capítulo 6
1 Metal Britânia: liga de estanho e antimônio, com um sinete representando a
figura de Britânia, usada como substituto barato da prata.
2 Relógio de repetição: um relógio que dá a última hora quando se aperta um
botão, e desse modo pode ser consultado no escuro.
3 Hora de Greenwich: a determinação precisa do tempo solar baseia-se na
observação do sol a partir do local onde ficava o Real Observatório de
Greenwich. Wemmick está se valendo de um grau ridículo de precisão
para disparar sua arma.
4 Estufa fria: uma estrutura de vidro para proteger plantas tenras da geada.
5 Calcadores de fumo: peças que se encaixavam no fornilho do cachimbo e eram
usadas para calcar o fumo.
6 Espeto giratório: espeto provido de mecanismo de relógio para ficar girando
com a peça de carne acima do fogo.
capítulo 7
1 Caldeirão das bruxas: Macbeth, iv, i: Uma caverna escura. No meio, um
caldeirão fervente.
capítulo 8
1 Nos livros de um estofador da vizinhança [
] um rapaz de botas: Pip está
devendo dinheiro a um vendedor de móveis e decorador de interiores, e
contratou um criado.
2 Tendo criado o monstro : como o protagonista do romance de Mary Shelley,
Frankestein, ou o Prometeu moderno (1818), que também é citado mais
adiante, no primeiro capítulo do volume iii.
3 Lona [no original, floorcloth]: lona resistente utilizada em vez de carpete.
4 Renome rosciano [
] nosso bardo nacional: Róscio (morto em 62 a. C.) foi um
conhecido ator romano. Essa alusão a ele é apenas um sinônimo
elaborado para teatral, tal como nosso bardo nacional é apenas uma
maneira tortuosa de dizer Shakespeare.
5 Casca de laranja: a plateia jogou cascas de laranja nos atores.
6 A Casa da Graxa: frascos de graxa de sapato com a imagem da fábrica em que
ela era feita eram produzidos pela Day and Martins Blacking, de 97
High Holborn, e pela Warrens Blacking, de 30 Strand. A primeira usava
cartazes vermelhos. Não está claro a qual das duas Joe se refere, mas o
que interessa é que para ele essa fábrica é um dos pontos a serem
conhecidos em Londres. Mas aí há também uma referência
autobiográfica disfarçada: aos doze anos de idade, Dickens havia
trabalhado em outra fábrica de graxa, em 30 Hungerford Stairs, Strand,
a qual falsificava o produto original da Warrens; seu trabalho consistia
em colar rótulos em que as palavras Hungerford Stairs apareciam em
letras muito pequenas. Ele sentia vergonha e indignação por essa
ocupação humilde (que corresponde à vergonha de Pip por ser ferreiro),
e jamais divulgou esse episódio de sua vida.
capítulo 9
1 Cataplasma de pão, baeta, estopa e pó de pedra: os presidiários que cumpriam
pena fazendo trabalhos forçados nos estaleiros muitas vezes eram
obrigados a quebrar pedras, o que explica o cheiro de pó de pedra.
Estopa é o material que resulta do trabalho de desfiar cordas velhas, uma
tarefa árdua que também era frequentemente imposta aos prisioneiros.
Baeta era um tecido de lã barato e grosseiro, que Dickens também
associa às prisões em Bleak house, no capítulo 26: cavalheiros da
estrada de baeta verde [
] que sabiam discorrer sobre galés no
estrangeiro e trabalhos forçados na Inglaterra; é possível que o
uniforme dos prisioneiros fosse feito desse material. Cataplasma de pão
era pão embebido de água quente, utilizado em inchaços e contusões;
talvez o pão servido na prisão só pudesse ser comido dessa maneira.
2 O mentor do nosso jovem Telêmaco [
] Quentin Matsys [
] verb. sap.: na
mitologia clássica, Telêmaco, filho de Odisseu, é guiado por Atena, que
assume a forma de Mentor, um dos amigos de seu pai. Quentin Massy s
ou Matsy s (cerca de 1466-1530) foi um pintor flamengo que
supostamente começou a carreira como ferreiro. verb. sap. é a
abreviação de verbum satis sapienti, provérbio latino cujo sentido é para
bom entendedor, meia palavra basta. Dickens está parodiando aqui o
estilo ridiculamente alusivo e chistoso do jornalismo de província.
capítulo 10
1 A hora do jantar: as variações na hora em que são feitas as refeições muitas
vezes estão carregadas de significado. As pessoas mais ricas comiam
mais tarde, de modo que Pip jantaria mais tarde na condição de
cavalheiro do que no tempo em que era ferreiro (ver volume iii, capítulo
20, o jantar era cedo na casa de Joe). Além disso, ao que parece, em
Londres as pessoas jantavam mais tarde do que na província. Porém,
essa referência à hora do jantar da sra. Havisham talvez tenha a ver
com a mudança de hábitos entre o momento em que ela parou os
relógios e o momento em que Pip está escrevendo. À medida que o
almoço foi se tornando mais formal, passou-se a jantar mais tarde. Mas
sempre havia muita variação, e talvez Dickens esteja sendo vago de
propósito; ele próprio, pelo que se sabe, normalmente jantava por volta
das cinco da tarde.
capítulo 11
1 Ir até a esquina do Hyde Park para saber que horas eram: talvez para consultar
o relógio que ficava no abrigo a oeste do portão de Hy de Park. Mas a
expressão também pode significar para informar-se sobre as
novidades.
2 Em busca do sr. Wopsle e da Dinamarca : o sr. Wopsle está interpretando o
papel-título de Hamlet, como deixou claro o relato feito por Joe. Stanley
Friedman discute as referências à peça no romance em Echoes of
Hamlet in Great expectations, Hamlet Studies 9 (1987), pp. 86-9.
capítulo 12
1 Um extraordinário corpo de bombeiros: os prédios que tinham seguro contra
incêndio ostentavam placas grandes com o emblema da companhia de
seguros, para que os carros de bombeiros, que eram operados pelas
companhias, pudessem identificar qual prédio devia ser salvo.
capítulo 13
1 Eles raramente ateavam fogo a suas prisões: em fevereiro de 1861, os
prisioneiros da Chatham Prison se amotinaram, queixando-se da comida,
e os jornais passaram a discutir se a reforma das prisões não teria ido
longe demais.
2 Pombos volteadores: pombos que dão uma espécie de cambalhota em pleno
voo.
3 Relatório do juiz: no final de cada circuito o juiz entregava seu relatório ao
ministro recomendando clemência. Nesse ponto alguém que fora
condenado à forca (como é o caso do coronel) podia ser perdoado, sob a
condição de ser degredado ou condenado a trabalhos forçados.
Entretanto, Wemmick acha improvável que um moedeiro falso seja
perdoado.
capítulo 14
1 Moisés em meio aos juncos [
] abundância de salsa: a aparência da manteiga
faz Pip pensar no episódio (Êxodo 2,3) em que Moisés, ainda bebê, é
escondido em meio aos juncos.
2 As anquinhas verdes: uma anágua (saia de baixo) com armação de arames; no
contexto, personificação de uma dama usando trajes do início do século
xviii.
capítulo 15
1 Ensinava os jovens a desabrochar: citação (versos 1152-3) do poema Spring
[Primavera], de The seasons [As estações], de James Thomson
(1700-48): Delightful task! to rear the tender thought,/ To teach the
young idea how to shoot [Tarefa deliciosa! nutrir o pensamento tenro,/
Ensinar os jovens a desabrochar].
capítulo 16
1 Trabb & Cia. haviam realizado uma verdadeira execução funerária dela: os
agentes funerários apropriaram-se da casa como se fossem oficiais de
justiça ocupando a casa de um devedor.
2 Nada traz ao mundo: citações extraídas do ofício do enterro dos mortos: Nada
trouxemos a este mundo, e é certo que nada dele poderemos levar [
].
O Senhor deu, e o Senhor tomou [
]. O homem, nascido da mulher,
vive pouco [
] foge como uma sombra, e não permanece.
capítulo 17
1 Diversas pontes: a menção à ponte de Waterloo e a afirmação feita no capítulo
7 do volume iii, com referência à ponte London, que naquele tempo,
ainda era a ponte velha, fixam os acontecimentos narrados entre o
término da construção da ponte de Waterloo, em 1817, e a demolição da
velha ponte London, uma estrutura medieval, depois que foi aberta sua
substituta, mais para o oeste, em 1831.
capítulo 18
1 Provador de vinho: o profissional que prova o vinho do barril e decide quando
ele deve ser engarrafado e vendido; alguém que trabalha no ramo
atacadista do comércio de vinho.
capítulo 19
1 És pau, és pedra!: talvez uma citação de On the late massacre in Piemont de
Milton, verso 4: When all our fathers worshipped stocks and stones
[Quando todos os nossos ancestrais adoravam paus e pedras
]. Mas a
passagem de Milton, por sua vez, provavelmente ecoa uma passagem
bíblica (Jeremias 2: 27), um lamento contra a ingratidão do povo de
Israel, o que talvez também esteja por trás da escolha de palavras feita
por Dickens aqui: Que dizem ao pau: Tu és meu pai; e à pedra: Tu me
geraste; porque me viraram as costas, e não o rosto
.
2 Julgava que ele soubesse onde me encontrar: Pip está desafiando Drummle
para um duelo.
3 Ter sido dominado por um impulso que
: ter falado de modo destemperado. A
expressão era uma maneira elegante de dizer por ter perdido as
estribeiras e falado de modo indelicado a um de seus anfitriões.
4 Baile de assembleia: baile realizado através de subscrição.
5 História oriental: quando menino, Dickens possuía um livro de autoria de sir
Charles Morell (ou seja, James Ridley, 1736-65) intitulado Tales of the
genii [Histórias dos gênios] (1764). Trata-se de uma série de narrativas
interligadas à maneira das Mil e uma noites. A sexta história, que era de
predileção de Dickens, pois sabe-se que ele fez uma adaptação teatral
dela quando menino, chama-se The enchanters, or, Misnar, the Sultan of
India [Os encantadores, ou Misnar, sultão da Índia]. O sábio vizir de
Misnar, Horam, engana seus inimigos construindo a armadilha complexa
mencionada aqui.
capítulo 20
1 Temple: um dos Inns of Court [literalmente, albergues do tribunal]. O nome
designa uma das organizações profissionais de advogados e os prédios
por ela ocupados, onde pessoas que não eram advogados, como é o caso
de Pip, também podiam alugar aposentos. O Temple era o único dos
Inns com jardins que se estendiam até o Tâmisa.
2 Pastor de ovelha contratado: os prisioneiros degredados não ficavam presos na
Austrália nem eram soltos ao chegar lá; normalmente recebiam
contratos de trabalho com empregadores privados por um período fixo,
que dependia da sentença recebida. Depois de certo número de anos de
bom comportamento, o degredado ganhava o direito de trabalhar por
conta própria, ainda que sujeito a certas condições.
3 Voltar é morrer : teoricamente, até 1834 era crime punível com a morte voltar
do degredo, embora a última pessoa a ser executada por esse crime
tivesse morrido em 1810.
volume iii
capítulo 1
1 Fumo solto do tipo denominado cabeça-de-negro: um fumo negro bem forte.
2 Botany Bay: essa baía era o destino original da primeira leva de degredados
enviados para a Austrália em 1787, mas pouco depois que eles
chegaram o governador transferiu o povoado para um local próximo,
Port Jackson, a atual Sy dney. A referência deixa claro que Magwitch foi
degredado para a colônia de Nova Gales do Sul, que parou de aceitar
forçados em 1840.
3 Traje de marinheiro [
] e o empoaria: os marinheiros eram das poucas pessoas
que usavam roupas compradas prontas (mesmo no tempo em que era
ferreiro, Pip mandava fazer trajes sob medida). Às vezes vendidas em
lojas de artigos para navios, essas roupas, produzidas sem qualquer
consideração com corte, eram largas e feitas com um tecido mais
grosseiro do que o usado pelas outras pessoas. Usar polvilho no cabelo
para que esse parecesse branco ou grisalho era um costume do século
xviii, mas naquela época pessoas antiquadas e provincianas ainda
recorriam a essa prática.
4 Todos os crimes do Calendar: referência ao Newgate Calendar (1771), uma
série sensacionalista de histórias reais de crime, ou uma das muitas
outras publicações semelhantes que se seguiram a ela.
5 O estudante imaginário perseguido pela criatura disforme: o protagonista do
rom a nc e Frankenstein, ou o Prometeu moderno, de Mary Shelley
(1818), que consegue criar um homem artificial, o qual passa então a
persegui-lo.
capítulo 3
1 Eles media minha cabeça: a pseudociência da frenologia baseava-se na teoria
do anatomista alemão Franz Joseph Gall (1758-1828), segundo a qual a
forma externa do crânio revelava a importância de diversas
características mentais, e o exame do crânio podia ser usado para
determinar o caráter. Tanto essa teoria quanto a fisionomia uma
teoria diversa, porém relacionada à outra , a qual tentava determinar o
caráter com base na expressão facial e na relação entre os diferentes
traços de um rosto, influenciaram a caracterização de muitos ficcionistas
do século xix. Essas teorias eram também estudadas pelos penologistas,
que tentavam sistematizar o conceito de tipo criminoso; claramente,
Magwitch foi medido por um deles.
capítulo 4
1 A sua terra, Shropshire: ao que parece, Dickens esqueceu que antes foi dito que
os pais de Drummle moram em Somerset (volume ii, capítulo 6). Na
primeira versão do final do livro (ver Apêndice A), Drummle e Estella
estão em Shropshire.
2 Como fez o ladrão com a velha, segundo o livro: trata-se de um dos crimes
tradicionalmente atribuídos ao famoso salteador Dick Turpin (1706-39),
cujos feitos foram explorados por tantos escritores sensacionalistas que
não é possível determinar a que livro Dickens se refere aqui. Em The
genuine history of the life of Richard Turpin, etc. (Londres: Standen,
1739), lê-se o seguinte trecho: Turpin insistia que ela tinha dinheiro, e
ela insistia em negá-lo, até que por fim ele exclamou: Que o Do a
carregue, sua pa velha. Se não nos disser, vou encostar a sua ba nua
na grelha.
capítulo 5
1 Seguir a pé até Londres: uma caminhada de cerca de cinquenta quilômetros.
capítulo 6
1 Hummuns: hotel que ocupava uma fileira de casas no lado sudeste de Covent
Garden. Fechou em 1865, e o lugar foi reconstruído. O nome deriva de
humoun, que em persa significa banho turco ou suadouro.
2 Uma tradicional vela de junco [
] Argos insensato: o objeto em questão era
uma vela barata, feita a partir de um pavio de junco mergulhado em
banha, e não cera. As palavras tradicional e virtuosos aqui indicam
que o objeto era econômico e antiquado. Na história, a vela de junco
está colocada (por uma questão de segurança) dentro de um cilindro de
lata furado; daí o padrão de manchas de luz nas paredes. Na mitologia
grega, Argos Panoptes (Argos, o que tudo vê) era um gigante usado
pelos deuses como guarda, por ter cem olhos, dos quais cinquenta
estavam sempre abertos e cinquenta fechados, dormindo. Dadas as
imagens de prisão dessa passagem, é relevante mencionar que o filósofo
Jeremy Bentham (1748-1832) propôs em 1791 um modelo de prisão, o
Panóptico, em que um único guarda podia manter sob vigilância um
grande número de prisioneiros, cada um deles em sua solitária.
capítulo 7
1 Old Green Copper Rope-Walk : ao contrário do que se dá com a maioria dos
nomes de ruas mencionados no romance, este não é autêntico. O sentido
do nome é o lugar onde antigamente se fabricavam cordas com fio de
cobre oxidado.
2 Capitão Cook: James Cook (nascido em 1728), explorador que foi o primeiro a
identificar a costa sudeste da Austrália como um lugar adequado para
uma colônia britânica, foi assassinado por nativos no Havaí em 1779. A
gravura em questão, feita por William By rne a partir de uma pintura de
James Webber, também aparece na parede da sala de Esther em Bleak
House.
3 A ponte velha: a ponte de pedra medieval tinha dezenove arcos estreitos, e a
força da maré tornava-os perigosos até mesmo para barqueiros
experientes. A ponte foi demolida depois da inauguração da nova ponte
London, mais para o oeste, em 1831. Um artigo sobre pessoas que
morreram afogadas tentando passar de barco sob a ponte foi publicado
em All the Year Round 5 (4 de maio de 1861), pp. 130-1, o número que
incluía o capítulo 19 do volume ii do livro.
capítulo 8
1 Uma jovem fantasiada de cama: isto é, uma moça cuja roupa parecia ter sido
feita com as cortinas de uma cama de baldaquino.
capítulo 9
1 Na igreja verde: isto é, viviam maritalmente sem estar legalmente casados;
assim, Estella é filha ilegítima.
capítulo 10
1 Lousas de marfim: usadas para tomar notas; as anotações a lápis depois eram
apagadas do marfim.
capítulo 13
1 A terra das Mil e uma noites: Egito. Mais adiante, no capítulo 16, ficamos
sabendo que Herbert parte rumo ao Cairo.
capítulo 15
1 Funcionário da arfândega sabe o que fazer com os botão: a hostilidade de Jack
com relação aos funcionários da alfândega, que eram muitas vezes
recrutados entre ex-oficiais da Marinha e usavam um uniforme com
botões semelhantes, porém não iguais, aos da Marinha, indica que ele já
foi contrabandista. Porém, a prisão de Magwitch não seria da alçada da
alfândega; provavelmente ele estava sendo perseguido pelos homens da
Polícia do Tâmisa (fundada em 1800), que não usavam uniformes.
2 Nore: banco de areia ao largo da ilha Grain, na ponta da península em que fica
o charco de Cooling, onde tem lugar a primeira cena do livro. Neste
capítulo, a viagem empreendida por Pip em direção a leste, rumo a
Londres, é feita em sentido contrário.
capítulo 16
1 O livro vermelho: livro que a sra. Pocket está lendo quando Pip a vê pela
primeira vez (volume ii, capítulo 4), o qual dizia respeito a títulos de
nobreza; presume-se que fosse Peerage, de Debrett (primeira edição,
1784), ou alguma obra semelhante.
2 Himeneu: na mitologia grega, o deus que presidia aos casamentos, filho de
Dioniso e Afrodite.
capítulo 17
1 A sessão seguinte: as sessões eram realizadas quatro vezes por ano. O que se dá
a entender aqui é que Magwitch tem menos de três meses de vida pela
frente.
2 Antes que o juiz fizesse seu relatório: ver acima, volume ii, capítulo 13, nota 4.
3 Os dois homens que entraram no Templo para rezar : na parábola de Cristo, em
Lucas 18:10-13:
Dois homens subiram ao templo, para orar; um, fariseu, e o outro,
publicano. O fariseu, estando em pé, orava consigo desta maneira: Ó
Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens,
roubadores, injustos e adúlteros; nem ainda como este publicano.
Jejuo duas vezes na semana, e dou os dízimos de tudo quanto possuo.
O publicano, porém, estando em pé, de longe, nem ainda queria
levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, tem
misericórdia de mim, pecador!
capítulo 18
1 Melhor vir para minha casa: o homem é um meirinho, e está prendendo Pip por
ele não pagar suas dívidas. Ele administra uma sponging-house, casa
onde os endividados podem morar, pagando diária, até conseguirem
saldar suas dívidas.
2 Um codicílio: Joe quer dizer codicilo, espécie de pós-escrito acrescentado a
um testamento.
capítulo 19
1 Vendi tudo o que tinha : talvez um eco do conselho dado por Cristo ao rico que
queria entrar no reino dos céus, mencionado anteriormente, volume i,
capítulo 19. Lucas 18:22: Vende tudo quanto tens, reparte-o pelos
pobres, e terás um tesouro no céu; vem, e segue-me.
capítulo 20
1 As névoas vespertinas se dissipavam agora: tal como no final do volume i, há
aqui um eco do final do Paraíso perdido de Milton, seção xii, versos
628-32:
The cherubim descended; on the ground
Gliding meteorous, as evening mist
Risen from a river oer the marish glides,
And gathers ground fast at the labourers heel
Homeward returning.
[Desceram os querubins; e sobre o chão/ Meteóricos deslizavam,
como a névoa vespertina/ Elevada de um rio sobre o charco desliza,/
E se acumula lépida no encalço do trabalhador/ Que volta para o lar.]
2 Não vi nenhuma sombra de um adeus a Estella: a última oração do final revisto
[no original, I saw the shadow of no parting from her, literalmente não vi
a sombra de nenhum despedir-se dela] foi modificada por Dickens na
edição em um volume publicada em 1862, para: não vi nenhuma
sombra de um outro adeus a Estella (I saw no shadow of another parting
from her). É discutível se essa mudança aumenta ou não a ambiguidade
do final.
Cronologia do autor
stephen wall
2002
1812 7 de fevereiro Charles John Huffman Dickens nasce em Portsmouth, onde
seu pai é funcionário do escritório de pagamentos da Marinha, filho mais
velho de uma família de oito, dois dos quais morrem na infância.
1817 Depois de ser transferido para Londres e Sheerness e de muitas mudanças
de endereço, John Dickens instala-se com a família em Chatham.
1821 Dickens frequenta uma escola local administrada por um pastor batista.
1822 A família volta a Londres.
1824 O pai de Dickens é detido na prisão de Marshalsea para devedores por três
meses. Durante esse período e por mais algum tempo, Dickens
trabalha numa fábrica de graxa para sapatos, colando rótulos nos
vidros. Retoma seus estudos na Wellington House Academy,
Hampstead Road, Londres, entre 1825-7.
1827 Torna-se empregado de um advogado.
1830 É admitido como leitor no Museu Britânico.
1831 Torna-se repórter parlamentar após aprender estenografia. Apaixona-se
por Maria Beadnell, 1830-3. Falta a um teste para obter trabalho
como ator em Covent Garden por estar doente.
1833 Primeiro conto publicado, A dinner at Poplar Walk, na Monthly
Magazine. Outras histórias e crônicas serão publicadas nesse
periódico e em outros, 1834-5.
1834 Torna-se repórter do Morning Chronicle.
1835 Torna-se noivo de Catherine Hogarth, filha do editor do Evening Chronicle.
1836 Sketches by Boz, primeira e segunda séries, publicadas. Casa-se com
Catherine Hogarth. Conhece John Forster, seu conselheiro literário
e futuro biógrafo. The strange gentleman, uma farsa, e The village
coquettes, opereta pastoral, são montadas profissionalmente em
Londres.
1837 The Pickwick papers é publicado em um volume (lançado em seções
m ensais, 1836-7). Nascimento de um filho, o primeiro de dez.
Morte de Mary Hogarth, cunhada de Dickens. Edita a Bentleys
Miscellany, 1837-9.
1838 Oliver Twist é publicado em três volumes (lançado em folhetim na
Bentleys Miscellany , 1837-39). Conhece escolas em Yorskhire
semelhantes à Dotheboy s, que aparece em Nicholas Nickleby.
1839 Nicholas Nickleby é publicado em um volume (lançado em seções mensais,
1838-9). Muda-se para 1 Devonshire Terrace, Regents Park,
Londres.
1841 Recusa convite para se candidatar ao Parlamento. Publica The old curiosity
shop e Barnaby Rudge em volumes separados, depois de saírem
em folhetins semanais na Master Humphreys Clock , 1840-1.
Jantar público em sua homenagem em Edimburgo.
1842 janeiro-junho Primeira viagem à América do Norte, relatada em American
notes, dois volumes. Georgina Hogarth, cunhada de Dickens, passa
a morar em caráter permanente com a família.
1843 Discurso sobre a imprensa na Sociedade de Pensão dos Impressores,
seguido por outros em favor de várias causas ao longo de sua
carreira. Publicação de A Christmas carol em dezembro.
1844 Martin Chuzzlewit é publicado em um volume (lançado em seções mensais,
1843-4). Viaja com a família para a Itália, Suíça e França. Volta
a Londres por alguns dias para ler The chimes para os amigos
antes da publicação em dezembro.
1845 Volta com a família da Itália. The cricket on the hearth é publicado no
Natal. Escreve fragmento autobiográfico, ?1845-6, só publicado
quando incluído na biografia de Dickens de John Forster (três
volumes, 1872-4).
1846 Torna-se primeiro editor do Daily News, mas renuncia após dezessete
números. Publicação de Pictures from Italy. Viaja com a família
para a Suíça e Paris. The battle of life é publicado no Natal.
1847 Volta a Londres. Ajuda Angela Burdett Coutts a criar, e mais tarde
administrar, um Lar para Mulheres Sem Lar.
1848 Dombey and Son é publicado em um volume (lançado em seções mensais,
1846-8). Organiza e atua em montagens beneficentes de As
alegres comadres de Windsor, de Shakespeare, e Every man in his
humour, de Ben Jonson, em Londres e outras localidades. The
haunted man é publicado no Natal.
1850 Household Words, semanário dirigido por Charles Dickens, é lançado em
março, prosseguindo até 1859. Dickens faz um discurso na
primeira reunião da Associação Sanitária Metropolitana. David
Copperfield é publicado em um volume (lançado em seções
mensais, 1849-50).
1851 Morte do pai de Dickens e de sua filha de menos de um ano de idade. Mais
atividades teatrais na Guilda de Literatura e Arte, inclusive uma
apresentação à rainha Vitória. A childs history of England é
lançada em partes em Household Words , e em três volumes
(1852, 1853, 1854). Muda-se para Tavistock House, Tavistock
Square, Londres.
1853 Bleak house é publicado em um volume (lançado em seções mensais,
1852-3). Dickens faz suas primeiras leituras públicas beneficentes
(de A Christmas carol).
1854 Vai a Preston, Lancashire, para observar agitação operária. Hard times sai
como folhetim em Household Words, e também como livro.
1855 Discurso em prol da Associação de Reforma Administrativa. Encontro
decepcionante com Maria Beadnell, já casada.
1856 Compra Gads Hill Place, perto de Rochester.
1857 Little Dorrit é publicado em um volume (lançado em seções mensais,
1855-7). Dickens atua no melodrama de Wilkie Collins, The frozen
deep, e apaixona-se pela jovem atriz Ellen Ternan. The lazy tour
of two idle apprentices, escrito a quatro mãos com Wilkie Collins
sobre uma viagem de férias a Cumberland, é lançado em
Household Words.
1858 Publica Reprinted pieces (reedição de artigos de Household Words ).
Separa-se de sua esposa, publicando depois uma declaração sobre
a separação em Household Words. Primeiras leituras públicas em
benefício próprio em Londres, seguidas por turnê no interior. A
casa de Dickens é agora administrada pela cunhada, Georgina.
1859 All the Year Round , um semanário também dirigido por Charles Dickens,
é lançado. A tale of two cities, lançado tanto em folhetim em All
the year round quanto em seções mensais, sai em um único
volume.
1860 Vende a casa em Londres e muda-se com a família para Gads Hill.
1861 Great expectations [Grandes esperanças] é publicado em três volumes,
depois de sair como folhetim em All the Year Round (1860-1) . The
uncommercial traveller (com artigos publicados em All the Year
Round) é lançado; versão aumentada, 1868. Mais leituras públicas,
1861-3.
1863 Morte da mãe de Dickens e de seu filho Walter (na Índia). Reconciliação
com Thackeray, com quem Dickens havia brigado, pouco antes
de sua morte. Publicação de Mrs. Lirripers Lodgings na edição
natalina de All the Year Round.
1865 Our mutual friend publicado em dois volumes (lançado em seções mensais,
1864-5). Dickens fica seriamente traumatizado após sofrer grave
acidente de trem em Staplehurst, Kent, voltando da França com
Ellen Ternan e a mãe dela.
1866 Começa mais uma série de leituras. Aluga casa para Ellen em Slough.
Mugby Junction é publicado na edição natalina de All the Year
Round.
1867 Instala Ellen em Peckham. Segunda viagem à América. Faz leituras em
Boston, Nova York, Washington e outras localidades, apesar de
problemas de saúde crescentes. George Silvermans
explanation é publicado na Atlantic Monthly (e, em seguida, em
All the Year Round, 1868).
1868 Volta à Inglaterra. Em suas leituras inclui o episódio sensacional Sikes and
Nancy , de Oliver Twist; problemas de saúde se agravam.
1870 Leituras de despedida em Londres. The mystery of Edwin Drood é lançado
em seis seções mensais, a ser completado em doze, mas fica
inacabado.
9 de junho Morre, após derrame, em Gads Hill, aos 58 anos de
idade. É enterrado na abadia de Westminster.
Apêndice
apêndice a:
versão original do final do romance
E m 11 de junho de 1861, Dickens já havia terminado de escrever Grandes
esperanças e recebeu para revisão as provas da última seção (o romance estava
saindo como folhetim no semanário All the Year Round). Foi então passar uns dias
(15 a 18 de junho) com um amigo, o romancista sir Edward Bulwer-Ly tton
(1803-73), que leu as provas e argumentou que o final era muito decepcionante
para os leitores. Em 24 de junho Dickens enviou a Bulwer um novo final, que
deixa em aberto a possibilidade de um casamento entre Pip e Estella, e que foi
utilizado em todas as versões do romance editadas até a morte do autor. Para um
estudo detalhado da revisão, ver Edgar Rosenberg, Last words on Great
expectations: a textual brief on the six endings, Dickens Studies Annual 9 (1981),
pp. 87-115.
A primeira versão do final, bem mais curta, sobrevive nas provas e foi
também publicada em John Forster, The life of Charles Dickens (1872-4); além
disso, sobrevive no manuscrito, até imediatamente antes das palavras Shropshire
doctor [médico de Shropshire]. Na concepção original do romance, o atual
penúltimo capítulo era o último, que emendava com o atual último capítulo. As
palavras que agora dão início ao último, For eleven years [Fazia onze anos],
eram originariamente For eight years [Fazia oito anos], e a conversa com
Biddy tinha um tom ligeiramente diferente:
Querido Pip, disse Biddy , tens certeza de que não sofres mais por ela?
Disso tenho certeza absoluta, Biddy .
Fala comigo como a uma velha, velha amiga. Esqueceste-a por
completo?
Querida Biddy, não esqueci nada que ocupou um lugar importante na
minha vida. Mas aquele sonho vão, como eu o chamava outrora, se esvaeceu
completamente, Biddy , completamente!
Foi só dois anos depois que voltei a vê-la. Eu ficara sabendo que ela
tivera uma vida muito infeliz, tendo se separado do marido, que fora muito
cruel com ela, e que se tornara famoso por sua combinação de orgulho,
avareza, brutalidade e mesquinhez. Soubera também da morte dele (num
acidente causado pelos maus-tratos que ele infligira a um cavalo), e que
Estella voltara a casar-se com um médico de Shropshire, o qual,
contrariando seus próprios interesses, uma vez havia intervindo, de modo
muito viril, numa ocasião em que estava prestando seus serviços profissionais
ao sr. Drummle e testemunhou seu comportamento indigno para com ela. Eu
ficara sabendo que o médico de Shropshire não era rico, e que o casal vivia
da fortuna pessoal de Estella.
Eu estava na Inglaterra outra vez em Londres, caminhando por
Piccadilly com o pequeno Pip quando um criado veio correndo até mim
pedindo-me que voltasse atrás um pouco, pois uma senhora numa
carruagem queria falar comigo. Era um pequeno cabriolé puxado por um
pônei, guiado pela própria senhora; e eu e ela entreolhamo-nos com muita
tristeza.
Mudei muito, eu sei; mas achei que gostarias de apertar a mão de
Estella também, Pip. Levanta esse menino bonito para que eu lhe dê um
beijo! (Ela supôs, creio eu, que o menino fosse meu filho.)
Posteriormente, gostei muito de ter tido aquele encontro, pois em seu
rosto e em sua voz, e em seu toque, ela me deu a certeza de que o sofrimento
fora mais forte do que os ensinamentos da sra. Havisham, e lhe dera um
coração para compreender como fora outrora o meu coração.
apêndice b:
anotações de trabalho de dickens
Juntamente com o manuscrito de Grandes esperanças temos algumas anotações
feitas pelo autor durante a redação do texto. São (a) duas meias folhas de papel
com os cabeçalhos Dates [Datas] e (Dates) 2, que claramente foram
escritas antes de Dickens batizar o vilão de Compey son em vez de Compey,
enquanto redigia o capítulo 6 do volume iii; (b) duas meias folhas de papel com
os cabeçalhos General Mems: 1 [Mem[orandos] gerais: 1] e General Mems:
2; e (c) uma terceira folha com o cabeçalho Tide [Maré]. Eis as anotações:
(a)
Datas
Herbert Pocket diz que o caso da sra. Havisham aconteceu há vinte e cinco
anos. Na época, Pip teria por volta de dezoito, dezenove anos. Portanto,
aconteceu seis ou sete anos antes de nascerem Pip e Estella que tem mais ou
menos a idade dele.
Mas digamos que toda a coisa levou mais ou menos um ano para se
desenrolar o que é razoável , então teria sido só cinco ou seis anos antes do
nascimento deles.
Magwitch conta sua história no Temple quando Pip está com 23 anos.
Magwitch tem então por volta de sessenta anos. Digamos que Pip tem sete anos
no início da história. A fuga de Magwitch foi então há cerca de dezesseis anos. Se
Magwitch conheceu Compey uns vinte anos antes, então ele teve cerca de quatro
anos para trabalhar para Compey até o momento da fuga. Com isso ele teria
cerca de quarenta anos quando conheceu Compey , que era mais moço que ele.
Quando Magwitch conheceu Compey, o caso da sra. Havisham teria
portanto acontecido sete ou oito anos antes.
Estella, como filha de Magwitch, deve ter nascido
(Datas) 2
cerca de três anos antes de ele conhecer Compey .
As idades na última parte das Esperanças de Pip são, portanto:
Pip cerca
de 23
Estella 23
Herbert 23
Magwitch 60
Compey 52 ou
53
sra.
Havisham
56
(imagino
que ela
era mais
velha
no
tempo
do
noivado)
Biddy
cerca
d e 24
ou 25
Joe cerca
de 45
Jaggers
55,
Wemmick
quase 50, e
assim por
diante.
(b)
Mems. gerais: 1
A sra. Havisham e Pip, e o dinheiro para Herbert.
Assim Herbert vira sócio da Clarrikers
/Compey son. Como entra em cena?
/Estella. Filha de Magwitch
/Orlick, Pip cai na armadilha e escapa.
À fuga
Início
Perseguição
Luta ambos caem nágua
juntos Compey son se afoga.
Magwitch salvo por Pip. E
capturado.
Em seguida:
Magwitch julgado, declarado culpado & condenado à
Morte
Pouco depois morre em Newgate
Propriedade confiscada pela Coroa.
Herbert vai para o estrangeiro:
Pip fica de talvez ir depois.
Pip tem ordem de prisão quando está doente demais para
ser removido fica deitado em seu quarto com febre.
Joe é seu anjo da guarda.
Recuperado, Pip vai humilde para a
velha aldeia no charco, para pedir Biddy em casamento.
Encontra Biddy casada com Joe
Mems. gerais: 2
Assim vai para o estrangeiro ao encontro de Herbert (casado e feliz com Clara
Barley ), e trabalha como caixeiro para ele.
Única coisa boa que fez quando era próspero,
única coisa boa que perdura e dá bons frutos.
(c)
Maré
Desce às sobe
9h 15 h
até até
15h 9h
desce
às 21h
até 3h
Desce às 9h até 15h de
quarta
sobe às 15h até 9h de
quarta
desce às 9h até 3h de
quinta-feira
sobe às 15h até 9h de
quinta-feira
quando o barco dá a partida
apêndice c:
cabeçalhos acrescentados em 1867-8
A edição Charles Dickens dos romances (1867) acrescenta cabeçalhos às
páginas da direita; um prospecto, segundo o qual o autor atualmente cuida de
sua própria edição, indica que os cabeçalhos foram redigidos pelo próprio
Dickens (Athenaeum, 04/05/1867, p. 600; Robert Patten, Charles Dickens and his
publishers, Oxford: Clarendon Press, 1978, p. 42). As edições subsequentes por
vezes utilizam esses cabeçalhos, adaptando-os quando conveniente. Aqui eles
aparecem em sua forma original.
Capítulo 1 Prometo dar ao forçado o que ele quer
Capítulo 2 O sr. e a sra. Joe e eu / A busca do conhecimento apesar dos
obstáculos
Capítulo 3 Outro forçado / Eu faço o que prometi
Capítulo 4 Pumblechook e os outros / Terríveis demonstrações de Pumblechook
Capítulo 5 O sargento e os soldados / A perseguição / Encontramos os forçados
Capítulo 6 A viagem de volta
Capítulo 7 Minha vida como pau para toda a obra/ A educação de Joe / Chegada
da sra. Joe com notícias
Capítulo 8 Na casa da sra. Havisham / A sra. Havisham / Estella / Descubro que
sou vulgar
Capítulo 9 Minha descrição da sra. Havisham / Um dia memorável
Capítulo 10 Rodadas de rum na Barqueiros Alegres /Duas notas de uma libra
Capítulo 11 Meu primeiro encontro com um homem que voltaria a ver com
frequência / Felicidade familiar / Um jogo de batalha
Capítulo 12 O sangue do jovem cavalheiro pálido / Biddy , e minhas perspectivas
em geral
Capítulo 13 Joe na casa da sra. Havisham / Relato de Joe
Capítulo 14 Minha inquietude
Capítulo 15 Argumento de Joe / O velho Orlick e a sra. Joe / Um serão intelectual
/ Agressão brutal sofrida pela sra. Joe
Capítulo 16 A sra. Joe torna-se inválida
Capítulo 17 Uma mudança em Biddy / Abro meu coração com Biddy
Capítulo 18 O cavalheiro desconhecido / Examinado pelo sr. Jaggers / O exame
prossegue / Biddy fica sabendo que sou um cavalheiro
Capítulo 19 Rumo a Londres! / O sr. Trabb e seu empregado / O servilismo de
Pumblechook / Despeço-me da sra. Havisham / Viajo
para Londres
Capítulo 20 Os clientes do sr. Jaggers / Meu tutor e seu funcionário
Capítulo 21 O Barnards Inn
Capítulo 22 Eu e Herbert trocamos confidências / Herbert conta-me a história da
sra. Havisham / As perspectivas de Herbert na vida/ A
sra. Pocket e os pequenos Pocket
Capítulo 23 Mais sobre os Pocket / A sra. Pocket e sua dignidade
Capítulo 24 Disposições pecuniárias e outras / Os amigos pessoais de Wemmick
Capítulo 25 Meus colegas / Vou para casa com Wemmick
Capítulo 26 Um convite para jantar / O jantar na casa do sr. Jaggers / Não
simpatizo com Bentley Drummle
Capítulo 27 Joe vem ao Barnards Inn / O recado da sra. Havisham trazido por
Joe
Capítulo 28 Forçados na diligência / Pumblechook, fundador da minha fortuna!
Capítulo 29 Estella tornou-se uma mulher / Quem será que Estella me faz
lembrar? Chegada do sr. Jaggers
Capítulo 30 De volta à velha aldeia / Herbert sabe que amo Estella! / A namorada
de Herbert
Capítulo 31 O sr. Wopsle no papel de Hamlet
Capítulo 32 Um bilhete de Estella / Wemmick em casa em Newgate
Capítulo 33 Estella diz-me aonde vai / Levo Estella a seu destino
Capítulo 34 Os Tentilhões do Arvoredo / Eu e Herbert examinamos nossa
situação
Capítulo 35 O enterro de minha irmã / Eu repreendo Biddy
Capítulo 36 Tenho uma breve conversa com meu tutor / Minha pergunta
permanece sem resposta
Capítulo 37 Mais uma peregrinação ao castelo / Abro meu coração com
Wemmick / Ajudo Herbert sem que ele o saiba
Capítulo 38 Estella com a sra. Havisham outra vez / Fiel à sua lição, ou não? /
Drummle afirma conhecer Estella
Capítulo 39 Noite de tempestade no Temple / Reconheço meu visitante / Ele
desfaz meu grande equívoco / E desperto de meu
sonho
Capítulo 40 Provis / A morte, se identificado / Tento em vão escondê-lo / Muita
virtude num juramento
Capítulo 41 É preciso conhecer sua história
Capítulo 42 Ele relata sua vida e suas aventuras / Ele continua sua narrativa / Fim
da narrativa
Capítulo 43 Meu encontro com Drummle
Capítulo 44 Uma conversa com a sra. Havisham e Estella / Meu amor é
incompreensível para Estella / Recebo um alerta
Capítulo 45 Asso uma linguiça para o pai idoso / Os conselhos e a administração
doméstica de Wemmick
Capítulo 46 O velho Barley / Começo a preparar um bote
Capítulo 47 O drama náutico / O sr. Wopsle me preocupa
Capítulo 48 Sei agora em quem Estella me fez pensar / Informações de
Wemmick
Capítulo 49 Um empréstimo feito pela sra. Havisham / A sra. Havisham diz-me
tudo que sabe
Capítulo 50 Herbert torna-se meu enfermeiro / Uma conversa com meu
enfermeiro
Capítulo 51 Dirijo um apelo ao sr. Jaggers / Dois impostores
Capítulo 52 Uma carta de Wemmick
Capítulo 53 No charco / Caio numa armadilha / Face a face com a morte / Minha
vida é preservada / A hora da fuga se aproxima
Capítulo 54 Ele entra no barco / Uma galeota de quatro remos / A galeota nos
aborda / Eu acompanho o prisioneiro
Capítulo 55 Herbert despede-se e parte para o Oriente / O casamento de
Wemmick
Capítulo 56 Ele é julgado e condenado
Capítulo 57 Joe cuida de mim em minha doença / Joe e eu conversamos / Coisas
necessárias e desnecessárias / Joe delicadamente vaise
embora
Capítulo 58 O fundador de minha fortuna faz um sermão / Chego tarde demais, e
penitencio-me
Capítulo 59 O vulto nas ruínas
Leituras complementares
ackroy d, Peter. Dickens. Londres: Sinclair-Stevenson, 1990.
brooks, Peter. Reading for the plot: design and intention in narrative. Nova York:
Alfred A. Knopf, 1984.
carey , John, The violent effigy: a study of Dickenss imagination . Londres: Faber
& Faber, 1973.
cohen, William A. Manual conduct in Great expectations, elh 60, primavera de
1993, pp. 217-59.
connor, Steven (Org.). Charles Dickens, coleção Longman Critical Readers.
Londres: Longman, 1996.
cotsell, Michael. (Org.). Critical essays on Great expectations. Boston: G. K. Hall,
1990.
forster, John. The life of Charles Dickens, 3 vols. Londres: Chapman & Hall,
1872-4.
gilmour, Robin. The idea of the gentleman in the Victorian novel. Londres: Allen
and Unwin, 1981.
ginsburg, Michal Peled. Dickens and the uncanny : repression and displacement in
Great expectations, Dickens Studies Annual 13, 1984, pp. 115-24.
gross, John; pearson, Gabriel (Orgs.). Dickens and the twentieth century. Londres:
Routledge & Kegan Paul, 1962.
hardy , Barbara. The moral art of Dickens. Londres: Athlone Press, 1970.
hartog, Curt. The rape of Miss Havisham, Studies in the Novel 14, outono de 1982,
pp. 248-65.
house, Humphry . The Dickens world. Londres: Oxford University Press, 1941.
house, Madeline; storey , Graham, et al. (Orgs.). The letters of Charles Dickens,
em andamento. Oxford: Clarendon Press, 1965-.
johnson, Edgar. Charles Dickens: his tragedy and triumph. Ed. rev. Londres:
Allen Lane, 1997.
leavis, F. R.; leavis, Q. D. Dickens the novelist. Londres: Chatto & Windus, 1970.
meckier, Jerome. Dating the action in Great expectations: a new chronology,
Dickens Studies Annual 21, 1992, pp. 157-94.
. Charles Dickenss Great expectations: a defense of the second ending,
Studies in the Novel 25, primavera de 1993, pp. 28-58.
moy nahan, Julian. The heros guilt: the case of Great expectations, Essays in
Criticism 10, 1960, pp. 64-77.
paroissien, David. The companion to Great expectations. Mountfield: Helm, 2000.
rosenberg, Edgar. Last words on Great expectations: a textual brief on the six
endings, Dickens Studies Annual 9, 1981, pp. 87-115.
sell, Roger D. (Org.). Great expectations, coleção New Casebook. Nova York: St.
Martins, 1994.
stone, Harry. Dickens and the invisible world: fairy tales, fantasy and novelmaking.
Bloomington, Indiana: Indiana University Press, 1979.
tambling, Jeremy. Prison-bound: Dickens and Foucault, Essays in Criticism 36,
janeiro de 1986, pp. 11-31.
walsh, Susan. Bodies of capital: Great expectations and the climacteric economy,
Victorian Studies 37, outono de 1993, pp. 73-98.
worth, George J. Great expectations: an annotated bibliography. Nova York:
Garland, 1986.
Copy right da introdução © 1996 by David Trotter
Copy right da cronologia de Dickens © 1995, 2003 by Stephen Wall
Copy right das notas © 1996 by Charlotte Mitchell
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.
Penguin and the associated logo and trade dress are registered
and/or unregistered trademarks of Penguin Books Limited and/or
Penguin Group (usa) Inc. Used with permission.
Published by Companhia das Letras in association with
Penguin Group (usa) Inc.
título original
Great expectations
capa e projeto gráfico penguin-companhia
Raul Loureiro, Claudia Warrak
preparação
Jacob Lebensztay n
revisão
Valquíria Della Pozza
Márcia Moura
ISBN 978-85-8086-316-1
Todos os direitos desta edição reservados à
editora schwarcz s.a.
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32
04532-002 São Paulo sp
Telefone: (11) 3707-3500 Fax: (11) 3707-3501
www.penguincompanhia.com.br
www.companhiadasletras.com.br
www.blogdacompanhia.com.br
Compartir en redes sociales
Esta página ha sido visitada 391 veces.